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Cláudio Araújo Reis - Vontade Geral e Decisão Coletiva em Rousseau PDF
Cláudio Araújo Reis - Vontade Geral e Decisão Coletiva em Rousseau PDF
RESUMO: Nos termos rousseaunianos, a questão fundamental sobre o que devemos fazer
coletivamente (ou seja, o problema da decisão coletiva) se traduz como a questão sobre como podemos
conhecer a vontade geral. Só podemos responder adequadamente a essa questão, porém, se prestarmos
atenção a uma duplicidade importante no conceito de vontade geral. Rousseau usa a mesma expressão
para se referir a duas coisas diferentes: às próprias decisões coletivas, consubstanciadas nas leis (a
vg-decisão), e ao padrão do bem comum, em certo sentido anterior e independente das decisões
coletivas, servindo como referência para elas (a vg-padrão). A questão genérica sobre como podemos
vir a conhecer a vontade geral, portanto, deve ser desdobrada em duas: Como podemos vir a conhecer
a vg-decisão? e Como podemos vir a conhecer a vg-padrão? Este artigo pretende identificar os
elementos centrais da resposta de Rousseau a essas duas questões, elementos esses que permitem
discutir sobre o sentido da concepção rousseauniana de democracia.
1
O presente texto retoma, modificando-as significativamente, algumas ideias
desenvolvidas em uma breve comunicação apresentada em setembro de 2006, na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, por ocasião do Colóquio Internacional Religião e
Política em Rousseau: em torno das Cartas escritas da montanha, sob o título “Vontade
geral e deliberação”.
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Departamento de Filosofia - Universidade de Brasília (UNB). E-mail: reis@unb.br
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As referências aos textos de Rousseau remetem para a edição das Oeuvres complètes
citada na bibliografia, com o volume em números romanos e as páginas em algarismos
arábicos. Os títulos são referidos como siglas. Para uma lista das siglas utilizadas, ver a
bibliografia. Os trechos citados, quando não houver menção em contrário, são por nós
traduzidos.
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Patrick Riley enfatiza, com razão, a importância da insistência de Rousseau na ideia de
vontade, e não na mera generalidade. Isso é particularmente relevante quando se está
discutindo o lugar da liberdade no pensamento político de Rousseau. Para a questão que
examinamos, porém, a ideia de generalidade é mais importante do que a de vontade. Ver
RILEY, 1982 e 2006. Ver também SHKLAR, 1969, p. 184, que Riley cita.
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Vamos assumir aqui que os adjetivos “geral” e “comum” (assim como “público”) se
equivalem, quando utilizados em expressões como “interesse comum”, “necessidades
comuns”, “bem público” e outras equivalentes. Deixamos de lado a discussão sobre a
possibilidade (ou mesmo a necessidade) de distinguirmos “geral” de “comum”. Também
não pomos uma distância significativa entre os conceitos de “bem comum” e “interesse
comum”. Sobre as relações entre os conceitos de vontade geral, interesse e bem comum,
ver BERNARDI, 1998.
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Não vamos aqui desenvolver essa tese, mas remetemos o leitor para as análises de John
Rawls, que, em sua interpretação do Contrat social (retomando, a nosso ver, com resultado
mais interessante, a tradicional chave kantiana de leitura do pensamento político
rousseauniano), insiste igualmente em que o bem comum, tal como esse conceito está
implicado pela filosofia política de Rousseau, não pode ser entendido em termos
utilitaristas ou agregativos. Ver especialmente RAWLS, 2007, p. 229-230.
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Ver ALLEN, 1961, que associa a distinção entre vontade de todos e vontade geral a dois
“modos de comportamento político”, o agregativo e o associativo, empregando, de forma
diferente, uma oposição que aparece efetivamente em Rousseau, no início do Contrat
social, quando contrasta agregação e associação como duas formas diferentes de tentar
dar unidade a uma coletividade. Ver também BARRY; REES, 1964, sobretudo p. 9-14,
para uma reflexão esclarecedora sobre as relações entre as ideias de vontade geral e
interesse geral.
8
Rousseau diversas vezes refere-se à vontade geral como regra. Ver, p. ex., EP, III, 245,
247; MG, III, 286, 304; CS, III, 407. Mais ainda, a vontade geral é apontada como o padrão
a que se deve olhar, quando falham as leis (toda a passagem sobre a “primeira regra da
economia política”, em EP, III, 250-251, é extremamente significativa).
9
Gopal Sreenivasan propõe definir a vontade geral como o conjunto das decisões
deliberativas de uma comunidade, tomadas sob determinadas condições. Ver
SREENIVASAN, 2000, p. 553-554.
10
Vale a pena mencionar um terceiro possível sentido, que podemos associar à ideia de
vontade geral, tal como aparece no Contrat social. Esse terceiro sentido possível tem
relação com a duplicidade (a que já fiz alusão de passagem) implicada pelo conceito
mesmo de “vontade”, que pode se referir tanto a um poder ou a uma faculdade, quanto ao
resultado da aplicação dessa faculdade Na sua leitura do Contrat social, John Rawls
define vontade como uma “capacidade de razão deliberativa” (capacity for deliberative
reason), capacidade que cada cidadão individualmente possui (não tem cabimento atribuir
essa capacidade, afirma Rawls, à sociedade como um todo, ao “corpo político” ou à “pessoa
moral”). A vontade geral, nesse sentido, seria uma “forma de razão deliberativa” – uma
forma que implica um determinado “ponto de vista”, justamente aquele ponto de vista
que Rawls evoca em suas obras com a ideia de razão pública (ver RAWLS, 2007, p. 224ss
e 229ss; Rawls chega a afirmar que a ideia de razão pública se origina com Rousseau). A
vontade como resultado da aplicação da faculdade de querer é privilegiada, por exemplo,
por Hobbes (vontade como último elo da cadeia de deliberação – vontade como ato, e não
faculdade, de querer), e assim também aparece diversas vezes nos textos de Rousseau.
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Patrick Riley, em seus trabalhos sobre a ideia de vontade geral em Rousseau, chama a
atenção para as dificuldades que o autor do Contrat social tem de enfrentar, por conta do
“caráter instável e paradoxal” da ideia de volição. A distinção que faz Riley entre dois
sentidos de vontade não é a mesma a qual enfatizamos aqui e, além do mais, o ponto
aqui é menos ambicioso.
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Poderíamos aqui introduzir uma complicação: haveria uma diferença entre deliberar
diretamente sobre o que é o bem comum (isso seria uma espécie de “deliberação” sobre
os fins, se quisermos), propondo-se, eventualmente, uma nova interpretação ou articulação
do que seja esse bem comum, e deliberar sobre os meios mais aptos a fazer avançar o
bem comum? Nos termos radicalmente democráticos propostos por Rousseau, o primeiro
tipo de deliberação é privilégio inalienável do soberano, enquanto o segundo pode ser,
em alguns casos, talvez, também atribuição do governo, responsável pela escolha dos
melhores meios para realizar os fins que se pôs a sociedade.
Conhecendo a vg-decisão
Rousseau procura responder, pelo menos em termos gerais, à questão
sobre como conhecemos a vg-decisão, que é, em suma, a decisão que se
segue a um procedimento de deliberação coletiva (o sufrágio), realizado sob
determinadas condições e restrições. Vamos agora nos deter na análise das
condições que devem ser satisfeitas pelo procedimento do sufrágio, para
que resulte de forma confiável na declaração da vontade geral (ou seja, na
vg-decisão). Essas condições são expostas por Rousseau ao longo de todo o
Contrat social, e devem incluir necessariamente pelo menos as seguintes13 :
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Ressalte-se que essas condições são necessárias, embora não sejam suficientes. Nesta
lista, aparecem pelo menos as principais condições mencionadas e examinadas por
Rousseau. Outras poderiam talvez ser lembradas e acrescidas (por exemplo, talvez
devêssemos incluir como condição necessária a ausência de desigualdades extremas).
Se jamais poderemos chegar a um conjunto de condições suficientes, dada a complexidade
da situação política, é uma questão permanentemente aberta. Ao tratar das condições
ou das restrições às deliberações públicas, talvez fosse necessário dizer algo também a
respeito de uma questão prévia ao sufrágio, que é a questão da iniciativa legislativa e,
mais geralmente, a questão da definição da agenda ou da pauta de deliberações, o que
remete, nos termos de Rousseau, à questão geral das relações entre o governo e o soberano,
entre o corpo de magistrados responsáveis pela administração pública e o corpo soberano,
formado pelo conjunto dos cidadãos. Rousseau trata brevemente do problema, nos
capítulos XIII e XVIII do livro III do Contrat social (III, 426-427, 435-436; evoca ainda, no
livro IV, cap. IV, os comícios romanos). Sobre esse ponto, ver PUTTERMAN, 2003, 2005 e
SCOTT, 2005.
Rousseau não deixa dúvida quanto a essa desejabilidade. Ver, p. ex., CS, III, 439: “Quanto
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mais reina o acordo em uma assembleia, ou seja, quanto mais as opiniões se aproximam
da unanimidade, tanto mais também é a vontade geral dominante; mas os longos debates,
as dissensões, o tumulto anunciam a ascendência dos interesses particulares e o declínio
do Estado”. A unanimidade é necessária, certamente, em alguns casos fundamentais – o
pacto, por exemplo, implica a unanimidade –, mas estou me referindo aqui às decisões
coletivas particulares que o corpo político é obrigado a tomar, ao longo de sua existência.
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Desenvolver adequadamente esse tópico não é possível no espaço restrito deste artigo.
Para uma discussão mais ampla, remetemos o leitor ao célebre ensaio de Bernard Manin
sobre a deliberação (MANIN, 1985) e à argumentação interessante, embora não sem
problemas, de Pierre Favre (FAVRE, 1976).
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Pode-se salientar que o ideal não é exatamente o da unanimidade, mas o do consenso.
Da forma como a estamos tomando aqui, a ideia de unanimidade como ideal não se
distingue da ideia da busca do consenso (ou de um tipo de consenso) nas decisões coletivas.
Ver, sobre a ideia de consenso em Rousseau, GRAHAM, 1970.
17
As leituras que aproximam a concepção rousseauniana do sufrágio das ideias que
Condorcet procurou formalizar, no que ficou conhecido como “teorema do júri”, procuram
22
Não é esse, em particular, o caminho de Riley, mas a leitura totalitária de Rousseau
muitas vezes também aponta para os mesmos elementos que Riley denuncia no
“amálgama” de tradições que identifica no pensamento rousseauniano. Em registro
diferente (e em uma escala bem mais ampla e ambiciosa), mas apontando na mesma
direção, Louis Dumont identifica um núcleo problemático no pensamento de Rousseau, a
partir também de uma espécie de “amálgama” entre valores individualistas e holistas,
coisa que associa igualmente ao fenômeno totalitário. Ver, p. ex., DUMONT, 1966, p. 301;
DUMONT, 1977, p. 21-22; DUMONT, 1983, p. 102.
23
Joshua Cohen (COHEN, 1986b) dá a Riley uma resposta que tem elementos interessantes.
No entanto, a interpretação proposta por Cohen, assim como a que propõe Rawls, que
transformam Rousseau em uma espécie de profeta do liberalismo político, tal como o
define Rawls, desconsidera muito rapidamente o que a visão política e social do genebrino
deve à sua nostalgia da cidade antiga e, mais ainda, à sua visão de si mesmo e do seu
papel como filósofo, e, em geral, à sua concepção terapêutica de filosofia.
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Como sugerimos, o conteúdo da vontade geral é uma determinada concepção do que
seja o bem comum, que deve orientar, na forma de um padrão, as decisões coletivas.
Cohen (1986a), por sua vez, sugere que a teoria da justiça como equidade de Rawls poderia
ser uma dessas concepções de bem, constituindo, assim, o conteúdo da vontade geral
(Cohen não o faz, mas poderíamos pensar ainda que seria interessante traçar um paralelo
entre a ideia do consenso por interseção (ou consenso sobreposto), em Rawls, e a ideia
rousseauniana do bem comum como interseção, que exploramos mais acima). Essa
sugestão de Cohen é perfeitamente plausível, mas esconde o fato de que, no liberalismo
político contemporâneo, a esperança de conseguir um consenso em torno de uma teoria
da justiça só se dá ao preço de separar fortemente as questões (“abrangentes”) sobre o
bem, fadadas ao desacordo razoável permanente, das questões mais restritas sobre o
justo. Essa distinção não pode ser projetada sobre Rousseau.
Conhecendo a vg-padrão
Como foi sugerido, a vg-padrão não é outra coisa senão o bem ou
interesse comum. Aquilo que é nossa vontade coletiva, aquilo que queremos
coletivamente é, nos termos mais gerais que podemos pensar, o nosso bem
comum ou coletivo. Note-se, preliminarmente, uma ambiguidade que pode
ter desdobramentos significativos: trata-se do que efetivamente desejamos
(ou seja, o conjunto dos fins que queremos, com nosso esforço conjunto,
alcançar) ou do que deveríamos desejar? Por se tratar de uma regra, a vg-
padrão tem necessariamente um sentido normativo: sua orientação pode,
eventualmente, ir contra aquilo que efetivamente desejamos (a vontade geral
não se identifica com a vontade de todos, como sabemos).
Relacionada a isso surge a questão sobre qual é o “conteúdo”, por
assim dizer, do bem comum. Em termos gerais, apenas duas coisas talvez
possam ser ditas para responder a essa pergunta. Primeiro, que seja lá o que
mais for desejado, sempre se deseja a preservação do corpo político. Esse é
o conteúdo mínimo da ideia de bem comum: é um interesse compartilhado
por todos que subsistam ao longo do tempo as condições que tornam possível
a comunidade de cidadãos livres e iguais (e como quem quer o fim quer
também os meios necessários para realizá-lo, também podemos incluir esses
últimos, genericamente considerados, na nossa ideia de bem comum).
Segundo, que todo o resto que entra na nossa ideia de bem comum vem da
interseção dos diversos interesses particulares que compõem a sociedade.
O problema de como podemos vir a conhecer a vg-padrão remete, no
final das contas, à distância que separa a decisão do padrão e, portanto, ao
problema das “deliberações públicas”, que já foi evocado anteriormente.
Como é bem conhecido, é para equacionar esse problema que Rousseau
introduz a figura do Legislador (bem como alguns outros artifícios
institucionais, a que voltaremos). É assim que Rousseau introduz a
necessidade de um Legislador:
Como uma multidão cega, que frequentemente não sabe o que quer, porque
raramente sabe o que é bom para ela, executaria por si mesma uma tarefa
tão grande, tão difícil, quanto elaborar um sistema de legislação? Por si
mesmo, o povo quer sempre o bem, mas, por si mesmo, não o vê sempre. A
vontade geral é sempre reta, mas o juízo que a guia não é sempre esclarecido.
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25
Jean Starobinski já chamava a atenção para o fato de que a exaltação da festa, em
Rousseau, tem a mesma estrutura da vontade geral: “La description de la joie publique
nous offre l’aspect lyrique de la volonté générale: c’est l’aspect qu’elle prende en habits
du dimanche” (STAROBINSKI, 1971, p. 120).
26
Em outro lugar, exploramos as relações entre os conceitos de vontade geral e amor à
pátria. Ver REIS, 2005, p. 360.
27
A atitude de Rousseau com relação às assembleias populares muda entre a redação do
EP, quando acentuava as dificuldades práticas e a falta de necessidade de assembleias,
quando o governo é “bem intencionado” (cf. III, 251), e o CS, quando vê as assembleias
mais positivamente. De todo modo, permanece, mesmo quando vê as reuniões populares
com melhores olhos, o medo (platônico) dos abusos a que pode ser submetido o povo,
sempre bom, mas nem sempre virtuoso (como o próprio Jean-Jacques, de resto), o que o
torna especialmente vulnerável à manipulação e ao engano. No CS, embora a percepção
das assembleias seja mais positiva, permanece a desconfiança em torno dos debates
públicos: se entendemos a deliberação pública na forma de um debate, estamos indo em
direção de encontro à posição rousseauniana.
ABSTRACT: In rousseauian terms, the fundamental question about what we should collectively do
(i.e., the problem of collective decision-making) translates itself as the question about how we could
know what the general will is. This question, however, can only be adequately answered if we consider
that “general will” has a double meaning. Rousseau uses the same expression to refer to two quite
different things: to the collective decisions themselves consubstantiated in the law (“gw-as a decision”)
and to the common good as a pattern which, in a way, exists before and independently of the decisions,
functioning as a reference to the decision-making procedure (“gw-as a pattern”). The general question
about how could we know what the general will is, then, should be split into two: How can we get to
know the gw-as a decision? and How can we get to know the gw-as a pattern? This article intends to
identify the central elements of Rousseau’s answer to this two questions, which throw an interesting
light on the rousseauian conception of democracy.
REFERÊNCIAS
Abreviaturas utilizadas (obras de Rousseau):
CS – Contrat social
EP – Discours sur l’économie politique
MG – Manuscrit de Genève (primeira versão do Contrat social)
ALLEN, Glen. La volonté de tous and la volonté générale: a distinction and its
significance. Ethics, v. 71, n. 4, p. 263-275, 1961.
BERNARDI, Bruno. Volonté générale, interêt, bien commun (sur la formation du
concept de volonté generale dans la philosophie politique de Jean-Jacques
Rousseau). Cahiers Philosophiques, v. 77, p. 75-106, 1998.