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Caixa de ferramentas para uma atitude histórico-crítica na pesquisa-

intervenção
Toolbox for a critical attitude in the intervention-research
Caja de herramientas para un actitud histórico-crítica en la investigación-intervención

Heliana de Barros Conde Rodrigues


Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Resumo
O artigo retoma a caixa de ferramentas forjada quando da dissertação de mestrado da
autora, na qual o modo foucaultiano de fazer história – a genealogia – é posto em corre-
lação e, principalmente, em contraste com outras formas de historicização (História Po-
sitivista, Filosofia da História e Nova História). Tal caixa de ferramentas possui cone-
xões com os procedimentos desnaturalizadores, micropolíticos e desdisciplinarizadores
subjacentes à prática da pesquisa-intervenção (ou intervenção institucional); pois tanto
na genealogia como na pesquisa-intervenção, a força ético-política do intempestivo – o
que estamos em vias de nos tornar – incide sobre o presente e faz com que ele se separe
de si mesmo, tornando-se permeável à invenção de modos de vida singulares.
Palavras-chave: Caixa de Ferramentas; Pesquisa-Intervenção; Genealogia; Formação
Psi.

Abstract
This paper makes use of a toolbox forged in the author’s master's thesis in which gene-
alogy - Foucault’s way of writing history - is put in correlation with, and in contrast to,
other forms of historicizing (Positivistic History, Philosophy of History and New Histo-
ry). This toolbox is connected to denaturing and micro-political processes as well as to
undisciplining procedures that underlie the practice of intervention-research (or institu-
tional intervention): for both genealogy and intervention-research, the ethico-political
force of the untimely - that which we are becoming now - impinges on the present and
causes it to detach itself from itself to become permeable to the invention of singular
modes of life.
Keywords: Toolbox; Intervention-Research; Genealogy; Psi Training.

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Rodrigues, H
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Resumen
Este artículo recoge la caja de herramientas forjada en la tesis de maestría de la autora,
en la cual la manera de hacer historia de Foucault – genealogía – es puestas en correla-
ción, y especialmente en contraste con otras formas de historizar (Historia Positivista,
Filosofía de la Historia y Nueva Historia). Esta caja de herramientas tiene conexiones
con procedimientos desnaturalizadores, micropolíticos y des-disciplinarizadores que
subyacen a la práctica de la investigación-intervención (o intervención institucional):
tanto en la genealogía como en la investigación- intervención, el vigor ético-político del
intempestivo – lo que nos estamos tornando – actúa en el presente y hace que este se
separe de sí mismo, o más bien se convierta en un tiempo permeable a la invención de
formas únicas de vida.
Palabras-clave: Caja de Herramientas; Investigación-Intervención; Genealogía; For-
mación Psi.

Uma encomenda e suas vicissitudes de uma investigação os procedimentos


nela seguidos podem ser descritos sem
Este artigo responde a uma en- mentiras maiores. É o caso do texto que
comenda de produzir conexões entre se segue, com a ressalva de que reco-
genealogia e pesquisa-intervenção. Ava- nheço ser ele mais voltado à genealogia
liando que o melhor desenvolvimento do que à pesquisa-intervenção estrito
de tal problematização, em meu próprio senso. Sobre isso, cabe uma só observa-
percurso, fora o gerado ao término de ção: ao realizar intervenções, ou me-
minha dissertação de mestrado (Rodri- lhor, ao “vir entre” instituições, nosso
gues, 1993) e publicado em um periódi- intuito é, invariavelmente, a desnatura-
co hoje dificilmente acessível (Rodri- lização ou desestratificação dos modos
gues, 1998), optei por retomá-lo com as de pensar, agir e ser de coletivos de
modificações impostas pelo momento agentes envolvidos em processos tera-
atual e pelas diretrizes de Polis e Psi- pêuticos, pedagógicos, comunitários,
que. sindicais, políticos, urbanos, empresari-
Dizem os pesquisadores mais ais, culturais, de lazer etc., incluindo,
lúcidos que “o método é o caminho de- nessa aventura de estranhamento, os
pois de percorrido” (Granet, 1987, cita- próprios pesquisadores, interventores ou
do por Eribon, 1995) – somente ao final analistas institucionais.

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Aquela inflexão que intempesti- Pois podia ter sido de outro modo, mas
vamente nos separa de nosso presente e não foi. Outra coisa aconteceu: encon-
constitui, como veremos adiante, condi- tros ocasionais, e depois procurados,
ção para a construção de uma genealo- com certos saberes, práticas e subjetiva-
gia, é a mesma que deliberadamente ções, meus "mestres" e meus "alunos" –
buscamos ao realizar pesquisas- que se enfatizem as aspas. Pois se este
intervenção ou intervenções institucio- artigo versa principalmente sobre os
nais. Os princípios – nada “principis- primeiros, dirige-se aos últimos, sem
tas”, por sinal – associados a este último saber qual dos dois grupos mais o con-
modo de ação demandam exclusiva- figura.
mente a implantação de um dispositivo Insisto: tenho sido psicóloga e
analisador autogestionário: artifício de professora universitária. Simplória aná-
criação de um espaço-tempo crítico – lise de implicações, porque pouco diz
fala-se inclusive em “crisanálise” – em dos vínculos afetivos, políticos e histó-
que se suspendem os instituídos relati- ricos que poderiam singularizar uma
vos a instituições como o dinheiro, o trajetória. No entanto, suponho que tais
tempo, a divisão do trabalho, a partição marcações muito apontem quanto a um
e legitimação dos saberes, os especia- insistente mandato social de gerir, de
lismos monopolizadores etc. gestionar, de dirigir práticas e proble-
Se tal nexo entre genealogia e matizações envolvendo uma pretensa
pesquisa-intervenção se tornar perceptí- natureza a que se chama, demasiado
vel mediante a leitura do presente arti- despreocupadamente, "subjetividade".
go, a encomenda terá sido atendida, Quanto a ela, me tem sido encomenda-
embora com seus inevitáveis (e quiçá do o estabelecimento de certo domínio,
até mesmo desejáveis) desvios. no duplo sentido do termo: campo de
saber e exercício de uma dominação.
"A vida inteira que podia ter sido e Tudo isso teria sido, mais que
que não foi" (Bandeira, 1974) aborrecido, mortífero, na ausência de
bons encontros que, por ocasionais, não
Nos últimos quarenta anos, tenho deixaram de ser determinantes. Alguns
sido professora universitária e psicólo- deles – com os "mestres-pensadores" –
ga. Esses anos teriam sido, no que re- ganharam relevo via concretude dos
mete a tais “identidades”, extremamente escritos e imaginário das paixões pelo
aborrecidos, caso não..... Caso não. que chamo, com deliberada imprecisão

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neste instante, modo de historicização. cia; na solidão da fantasia, originalida-
No entanto, ainda estes teriam sido a- de etc. Quanto a nós, inventaremos um
borrecidos e mortíferos, caso do encon- perito – uma boa cópia – para cada um
tro com tais escritos, regado a tais pai- desses lugares bem discriminados (cf.
xões, não tivessem surgido experimen- Deleuze, 1974).
tações. A despeito de serem ditas psi, Prosseguiria, como bem se vê
elas se mostraram capazes de estabele- por tal descrição, restritivo e triste se
cer rupturas, mínimas que fossem, com não se expandisse. Ou melhor, se não
aquela "novela familiar" (como afirma a tivesse encontrado ressonâncias, "captu-
Análise Institucional Socioanalítica) ou ras duplas" (Deleuze e Parnet, 1980,
aquela “genealogia” (conforme prefere p.6), naqueles que costumo chamar de
Foucault) somente passíveis de descre- meus alunos, porém talvez fossem mais
ver satisfatoriamente através da ironia e bem designados como fabricantes-de-
da quase cáustica crueldade que se se- interiores-em-revolta (Baptista, 1987).
guem: nós, os psi, instituímos (e fomos Porque capazes de tomar das mesmas
instituídos) através de uma curiosa e- ferramentas – as dos mestres-
quação – aquela que pede às pessoas pensadores – e com elas fabricar outras,
que examinem o quanto estão próximas de romper alegremente com as grandes
dos modelos que propomos (de indiví- narrativas heroicas de origens e autores.
duo, criança, pai, mãe, trabalhador, Esses aparentemente poucos que
membro de grupo, aluno...) e que, ao são uma maioria (Daniel, 1992) andam
mesmo tempo, delas retira qualquer à cata de rupturas de limites. Têm anali-
possibilidade de invenção sobre esses sado, com rigor e alegria não incompa-
territórios existenciais. Sempre em fal- tíveis, sua (nossa) constituição enquanto
ta, tais pessoas nos procuram. Sempre intelectualidade. Nem sempre se pode
carecem de algo para que constituam ir muito além disso na fabricação de
verdadeiras cópias de nossos modelos – interiores em revolta. Fazê-lo já seria,
exército andrajoso de simulacros - pe- eventualmente, falar pelos outros. Tam-
dem nossa fala. Contestamos que de- pouco este artigo quer falar pelos ou-
vem recuperar a delas, tão perdida... tros, embora queira, com todas as suas
Cada modelo que propomos é um espe- forças, falar com eles, tentando esboçar
cialismo: não é a mesma coisa ser bom modos de fazer história com os quais
pai e boa mãe; não é a mesma coisa ser montamos certa caixa de ferramentas
criança e adulto; nos grupos, pertinên-

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(Foucault e Deleuze, 1979, p. 71), Saberes, poderes e éticas - se é que
mesmo que provisória. devem existir ciências humanas.
O texto quer falar com e, neste
sentido, preocupa-se quanto a como Falávamos, até aqui, de um pre-
falar. Como fazê-lo, a partir da Acade- sente contingenciado, e deste presente
mia, sem ser triste e mortífero? Uma em relação a certos modos de inserção
frase de Isabelle Stengers (1988) sugere na intelectualidade psi, ou seja, num
uma pista: corpo – por sorte, bastante fragmentado
– de cientistas-peritos, de intelectuais

Estas instituições [de produção de co- específicos do domínio da subjetivida-


nhecimento] não produzem apenas sa- de. Por que, quanto a tal presente, von-
ber, produzem também cientistas: estão tade de história(s)?
encarregadas não apenas da pesquisa,
Em uma entrevista concedida a
mas da transmissão do saber. E como é
Gerard Raulet, Foucault (1983/1994a)
feita esta transmissão? De maneira rá-
pida, de tal sorte que os cientistas pro- se declarou entediado com a excessiva
duzidos se tornem imediatamente ope- solenidade com que o pensamento con-
racionais e intercambiáveis. É por isso temporâneo costuma tratar o presente, o
que não lhes contam nada "inútil". Es-
qual aparece, quase sempre, em incô-
pecialmente, não lhes contam histórias:
moda oscilação entre triunfo e perdição.
transmitem-lhes a capacidade de reco-
nhecer, de construir, de trabalhar os Pouquíssimas vezes é pensado enquanto
"fatos", que são os de sua profissão, tempo como qualquer outro e que, exa-
como se fossem evidências incontestá- tamente por isso, não se confunde com
veis (p. 54-55).
outro qualquer. Este último modo de
pensar seria o único capaz de dar lugar
Se, como diz Stengers, "especi- às seguintes indagações: qual a natureza
almente, não lhes contam histórias", de nosso presente?; o que somos nós-
este artigo se propõe justamente a falar como-presente?. Tais perguntas, ainda
de um modo de fazer história(s), à luz segundo Foucault (1983/1994a), não
das considerações de um dos principais demandariam meras caracterizações,
componentes de nossa caixa de ferra- mas uma investigação do como e do por
mentas: o discurso/prática que se cos- que aquilo que é poderia não mais ser.
tuma resumir sob o nome Michel Fou- Melhor dizendo, pediriam uma descri-
cault. ção que seguisse fraturas virtuais, capa-

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zes de abrir algum espaço de liberdade, esforço para o autor e o leitor, e com a
eventual recompensa de um certo pra-
entendida como transformação possível.
zer, quer dizer, de um acesso a uma ou-
tra imagem da verdade (Foucault, Mil-
Por isso, esta designação ou descrição
ner, Veyne e Wahl, 1989, p.7).
do real jamais tem um valor prescritivo
do tipo "porque é assim, assim será". É
também por isso que, em minha opini- Este custo e esta eventual re-
ão, o recurso à história (...) é significa- compensa são históricos e críticos, sem
tivo, na medida em que a história serve
que cada um destes termos se possa
para mostrar como aquilo-que-é nem
sempre foi, isto é, que as coisas que nos
autonomizar. Pois só se faz história
parecem mais evidentes são sempre derivando pela fratura crítica do presen-
formadas na confluência de encontros e te; e só se critica contingenciando o
acasos, no curso de uma história precá- presente mediante a construção de uma
ria e frágil (...). O que as diferentes
história (rigorosa) do precário e frágil.
formas de racionalidade oferecem como
seu ser necessário pode perfeitamente
Reconstruindo seu próprio per-
ser historicizado e a rede de contingên- curso intelectual à luz de tais considera-
cias da qual emergem pode ser traçada ções, Foucault o denomina "ontologia
(...). Se estas coisas foram feitas, po- do presente" ou "ontologia histórica de
dem ser desfeitas, se soubermos como
nós mesmos". A alternativa não é gra-
foram feitas (Foucault, 1983/1994a,
p.449).
tuita: "nós-mesmos" implica um nós-
enquanto-presente, desde que este ser –
uma ontologia – seja constituído na
Introduzidos por esta entrevista,
qualidade de modo histórico de ser.
mergulhamos nos últimos trabalhos de
Foucault não é um filósofo como os
Foucault, nos quais ele defende, para o
outros, ou um historiador como os ou-
intelectual, uma "atitude histórico-
tros, exatamente em decorrência dessa
crítica". Por "atitude", Foucault não
vinculação.
designa uma visada subjetiva, tampouco
um princípio de conotação moralizante.
São possíveis três domínios de genea-
Estamos às voltas com um trabalho, a
logia. Primeiro, uma ontologia históri-
ser permanentemente efetivado:
ca de nós mesmos em relação à verda-
de, através da qual constituímos a nós
Trabalho: aquilo que é suscetível de in- mesmos como sujeitos de conhecimen-
troduzir uma diferença significativa no to; segundo, uma ontologia histórica de
campo do saber, ao custo de um certo nós mesmos em relação a um campo de

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poder através do qual constituímos a manuscrito datado de 1984 com a mes-
nós mesmos como sujeitos que agem
ma pergunta que Kant procurara res-
sobre outros; terceiro, uma ontologia
ponder no artigo publicado em 1784 no
histórica em relação à ética, através da
qual constituímos a nós mesmos como jornal alemão Berlinische Monatschrift:
agentes morais (Foucault, 1983, p. o que é o iluminismo? Num acordo par-
237). cial com seus críticos, afirma então ser
o iluminismo um evento determinante
Saberes, poderes e éticas consti- daquilo que pensamos, fazemos e so-
tuem, portanto, os eixos da ontologia mos no presente (Foucault, 1984a). No
histórica foucaultiana. A formação de entanto, esta afirmação pode ser relati-
cada um deles convoca os demais na vizada, exibindo seu caráter estratégico,
qualidade de condição de existência, pelo parágrafo com o qual conclui uma
sem que necessitemos pensar em causa- aula ministrada em 1983 no Collège de
lidades de base ou instâncias últimas. France. Ali, Foucault contrapõe duas
Ao longo do percurso de Foucault, vari- tradições críticas na filosofia moderna e
aram as ênfases diferenciais: os três contemporânea: a primeira, de seus o-
eixos estão presentes, um tanto mistura- positores, apelidada "analítica da verda-
dos, em História da Loucura; o saber de em geral"; a segunda, dele mesmo e
predomina em As palavras e as coisas, de alguns, não tão recentes, "compa-
o poder em Vigiar e punir, a ética em nheiros de viagem".
História da sexualidade. Mas sua arti-
culação explícita e, notadamente, o vín-
Há, na filosofia moderna e contempo-
culo com o tema da ética dos intelectu- rânea um outro tipo de questão, um ou-
ais deve ser buscada nas reflexões sobre tro modo de interrogação crítica: é a-

o texto kantiano O que é o iluminismo?. quele que se vê surgir justamente na


questão da aufklärung (...); esta outra
A aproximação a tal texto decor-
tradição crítica coloca a questão: o que
re, ao menos em parte, de um sem nú-
é nossa atualidade? Qual o campo atual
mero de objeções de que Foucault foi das experiências possíveis? (...) e pa-
alvo nas décadas de 1970 e 1980 por, rece-me que a escolha filosófica à qual

pretensamente, nunca ter explicitado nós nos encontramos confrontados atu-


almente é esta: pode-se optar por uma
sua própria episteme. Acusado de rela-
filosofia crítica que se apresentará co-
tivismo inconsequente, anarquismo teó-
mo uma filosofia analítica da verdade
rico e político, niilismo, irracionalismo em geral, ou pode-se optar por um pen-
e neo-conservadorismo, ele abre um samento crítico que tomará a forma de

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uma ontologia de nós mesmos, de uma crítico da ontologia do presente como
ontologia da atualidade; é esta forma
ontologia de nós mesmos:
de filosofia que, de Hegel à Escola de
Frankfurt, passando por Nietzsche e
Max Weber, fundou uma forma de re- Trata-se de mostrar em que, e como, o
flexão dentro da qual tentei trabalhar que fala como pensador, como sábio,
(Foucault, 1983/1994b, p. 39). como filósofo, faz parte, ele mesmo,
deste processo e (mais que isso) como
tem certo papel a desempenhar neste
Portanto, à maneira de um brico-
processo onde se encontra, ao mesmo
leur – leitor que interfere no texto para
tempo, como elemento e ator (...). Pa-
afirmar uma diferença –, Foucault toma ra o filósofo, colocar a questão de sua
de Kant, e da relação deste com o Ilu- pertinência a esse presente não será

minismo, um aspecto bastante específi- mais a de sua pertinência a uma doutri-


na ou uma tradição; não será mais sim-
co, mas nem por isso menos fundamen-
plesmente a questão de sua pertinência
tal: aquelas indagações que, pela pri-
a uma comunidade humana em geral,
meira vez na história da filosofia, inter- mas aquela da pertinência a um certo
rogam um presente pensado como pura "nós", a um "nós" que se refere a um

diferença quanto ao passado. Segundo conjunto característico de sua própria


atualidade (Foucault, 1983/1994b, p.
Foucault (1984a), antes de Kant a refle-
37).
xão sobre o presente havia tomado três
formas: o presente enquanto pertencente
Nesta bricolage que, ao recusar
a certa era do mundo, separada das ou-
parte da tradição da filosofia crítica – a
tras por eventos dramáticos; na quali-
"analítica da verdade em geral"–, cria
dade de algo a ser interrogado para de-
novos modos de pensar/agir/ser – a on-
cifrar signos de eventos futuros; como
tologia histórica de um nós-enquanto-
ponto de transição em direção ao come-
presente –, vemos delinear-se o perfil de
ço de um novo mundo (p.33-34). Em
um ethos filosófico que Foucault define
lugar desses enfoques solenes, o Kant
por relação ao Iluminismo. Não uma
de Foucault abre um novo campo pro-
crença em elementos doutrinários – a
blemático: o que se passa hoje?; o que
tradição da razão soberana; tampouco a
se passa agora?; o que é esse agora, no
pertença a um humano em geral, do
interior do qual estamos uns e outros?; o
qual se seria o arauto – o humanismo
que faço quando falo dessa atualidade?
como valor de princípio. Não a obra e o
– indagações balizadoras do projeto
autor, mas elemento-e-ator, ou seja, a

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análise histórico-crítica do que nos faz que a ontologia histórica de nós mes-
mos deve afastar-se de todos os proje-
ser, simultaneamente, elementos (de um
tos que clamam ser globais ou radicais
certo nós) e atores (de um certo pre-
(Foucault, 1984a, p.46).
sente).
Como positividade, o que pode
Tornando-nos atores – específi-
ser este ethos? No manuscrito de 1984,
cos, múltiplos –, e não autores – de um
Foucault o caracteriza como "atitude-
presente solene –, Foucault nos incita a
limite", retomando a clássica definição
refletir sobre a correlação necessária
de criticismo. Contudo, enquanto Kant
entre análise histórica e prática política
e certa tradição neo-kantiana buscam
cotidiana. Por um lado, a investigação
conhecer os limites que nos constituem
histórica nos faculta o acesso a um nós-
enquanto finitude humana para renunci-
enquanto-presente e favorece o teste
ar à transgressão – tornando-nos, as-
experimental da transgressão, do que se
sim, autores de uma segura caminhada
pode e se quer transformar. Por outro,
racional –, Foucault propõe um criti-
são exatamente tais rupturas, tais revol-
cismo sem renúncia. Indaga acerca do
tas – espaços de liberdade parciais e
lugar que, naquilo que nos é dado como
transitórios –, aquelas que permitem
obrigatório, necessário e universal, é
que, no limite do nós-mesmos-
ocupado por aquilo que é produto de
enquanto-elementos, contingenciemos
constrangimentos arbitrários, contingen-
aquilo que é, aquilo que somos, pensa-
te e singular. Torna-nos, pela via da
mos e dizemos, historicizando-os.
história, elementos-de-um-nós-enquan-
Preferindo as transformações es-
to-presente. Em seguida, frisa que este
pecíficas que se mostraram possíveis,
ethos deve conduzir a uma dimensão
nas décadas de 1960 e 1970, em áreas
experimental:
ligadas a modos de pensar, agir e ser –
relações com a autoridade, relações en-
(...) este trabalho, feito nos limites de tre os sexos, modos de perceber a lou-
nós mesmos, deve, por um lado, abrir
cura, a doença, o crime etc. – aos proje-
um campo de investigação histórica e,
por outro, submeter-se ao teste de reali-
tos revolucionários globais – pretensa-
dade, de realidade contemporânea, tan- mente criadores de um "novo tempo" –,
to para identificar os pontos onde a Foucault nos dirige a certa atitude quan-
mudança é possível e desejável quanto to às assim chamadas "relações teoria-
para determinar a forma precisa que es-
prática": "uma atitude indagadora, pru-
ta mudança deve tomar. Isto significa

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dente, "experimental", é necessária; a nosso presente – cientificismos, indivi-
cada momento, a cada passo, devemos dualismos, sexismos, tecnicismos, inti-
confrontar o que estamos pensando e mismos, burocratismos, especialismos,
dizendo com o que estamos fazendo, academicismos hegemônicos, por e-
com o que estamos sendo" (Fou- xemplo. Estratégias e táticas estas que,
cault,1984b, p. 374). no campo da intelectualidade psi, nos
Dissemos "assim chamadas” re- têm conduzido, tendo como aliados
lações teoria-prática, dado não ser este o mestres-pensadores e mestres-apren-
melhor modelo para abordar os vínculos dizes, a ousar transformar, cotidiana-
entre o discursivo e o não-discursivo. E mente, nossa genealogia de mandato,
isto apesar do uso, nos textos acima em dado; de encargo social a cumprir,
referidos, da expressão "teste experi- em constrangimento histórico a contin-
mental", o qual sugere a possibilidade genciar, a contrariar, a desconstruir.
de uma aplicação diferida da análise Vislumbra-se, em tal procedi-
teórica (no caso, histórica). Talvez mento, exatamente a política como uma
fosse preferível afirmar que, com Fou- ética: ética sem ideal previamente arti-
cault – mais uma vez seguindo certa via culado, política da revolta; ética das
de determinado iluminismo kantiano –, intensidades, transgressão frente ao in-
a constituição histórica do sujeito do tolerável. Ou, seguindo os últimos tra-
conhecimento não é independente da- balhos de Foucault, "estética da existên-
quela relativa ao sujeito ético. E mes- cia": a vida como obra de arte, em evi-
mo da relativa ao sujeito político, por- dente linha-de-fuga face a nosso encar-
que, sem dúvida, em Foucault se aborda go social. No domínio psi, ele é inse-
a política como uma ética. parável das táticas de normalização:
Sendo assim, o projeto de consti- construção de dimensões identitárias,
tuição de uma ontologia histórica de nós sempre inclusivas em distribuições pre-
mesmos afirma a exigência de um traba- viamente fixadas de variáveis, que fa-
lho capaz de vincular um pensamen- zem de nós indivíduos-efeito de disposi-
to/discurso que desnaturalize radical- tivos disciplinares e biopolíticos, seja
mente os pretensos objetos de nosso enquanto objetos – cujas ações sofrem
cotidiano e a produção de estratégias e as ações de outros –, seja enquanto su-
táticas de ação/subjetivação que esca- jeitos – perpétua hermenêutica de nós
pem, mesmo que provisoriamente, a mesmos. O intolerável, aquela intensi-
certas obrigatoriedades intoleráveis de dade que pode servir de indicador para

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nossa ação em relação a nós mesmos e (...) um dar à luz à prática ou ao dis-
curso (p.152 – grifos nossos).
aos demais, não está dominantemente
no que não nos deixam ser, mas nos
Nossa caixa de ferramentas se
procedimentos tecnológicos que fazem
tem constituído, por conseguinte, como
de nós o que somos. Nesse sentido, ao
estratégia anti-reativa no campo do e-
ver de Foucault, a desnaturalização de
xercício psi. Pondo-a para funcionar,
nosso cotidiano supõe uma recusa do
historicizamos os saberes, poderes e
normatizado e pode nos levar, no plano
éticas que o (e nos) constituem, evitan-
ético-político, à invenção de novos mo-
do que apareçam como evidências ra-
dos de vida, inspirados na arte como
cionais, como pretensas naturezas às
exercício de criação.
quais meramente reagiríamos ou obede-

O que me impressiona é o fato de que, ceríamos. Conforme sugere Veyne,


em nossa sociedade, a arte se tenha tor- tentamos, com conceitos que martelam,
nado algo relacionado apenas a objetos cortam, conectam, dar à luz à prática ou
e não a indivíduos, ou à vida. A arte é
ao discurso psi (assim como à psicolo-
algo especializado ou feito por peritos,
gização de si e dos outros) na qualidade
que são os artistas. Mas não poderia a
vida de toda gente tornar-se uma obra
de experiências nada evidentes, histori-
de arte? Por que devem a lâmpada ou a camente instituídas e, consequentemen-
casa ser objetos de arte, mas não nossas te, contestáveis. Ao mesmo tempo, a
vidas? (Foucault, 1983, p.236).
partir do lugar que nos é feito ocupar no
presente – o de especialistas-peritos –,
Com base nessa perspectiva, e buscamos inventar modos de pen-
acompanhando o historiador P. Veyne sar/agir/ser diferentes daqueles que con-
(1982), estamos prontos a pôr em ques- figuram a hegemonia do que se pen-
tão a tão naturalizada necessidade de sa/age/é. A historicização faculta a a-
existência das ciências humanas, domí- ção, e vice-versa.
nio psi em especial:
Há muitas famílias na tribo de Clio
O ponto importante é que as ciências
humanas, se é que devem existir ciên-
Para mim e para inúmeros outros
cias humanas, não poderiam ser uma
– um grupo a expandir –, as disciplinas
racionalização dos objetos naturais (...);
elas supõem, primeiramente, uma análi- do desejo estão em bibliotecas várias:
se histórica destes objetos, quer dizer, "Você quer fazer psicologia? Deleuze e

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Guattari dizem: aprenda história, (...), Jamais nos limitamos à pesquisa
espolie a biblioteca do arqueólogo, do e à escritura, por mais que, nestes âmbi-
etnólogo, do economista, empanturre-se tos, já possamos exercer alguns dos
de literatura e de arte, estão aí as disci- nossos poderes de vida e morte. Nunca
plinas do desejo...". (Ewald, 1991, p.90) repousamos por muito tempo nos perío-
Andei espoliando sobretudo a do dos supostamente frios da história, nos
historiador – afirmação que não carece- quais gozaríamos do benefício da análi-
ria de maiores justificativas, tendo em se realizada unicamente no papel. Es-
vista a seção anterior. No entanto, ela tamos invariavelmente em hospitais,
merece um nuançamento adicional em hospícios, clínicas, escolas, empresas,
decorrência da configuração de nosso comunidades; frequentemente – e com
presente. que veleidades sapientes – também na
Mediante a espoliação de biblio- mídia; paradigmaticamente, nos con-
tecas outras nos temos formado, ao me- sultórios, a inventar maneiras sempre
nos em parte, como fabricantes-de- novas de produzir uma demanda psi
interiores-em-revolta. No entanto, pa- naturalizada e facilmente transferível
radoxalmente, muitas delas transpiram aos demais espaços.
uma calma surpreendente: o bem posto Quando, contudo, exercemos ou-
e composto dos volumes; a erudição tra coisa – o trabalho do intelectual crí-
irrefutável dos pensadores; o compene- tico do presente –, solicitamos bibliote-
trado rigor metodológico. Já nós, os cas outras, que sonhamos capazes de
psi, temos urgências: não nos basta rela- desnaturalizar, parcialmente que seja, o
tivizar na pesquisa, como o etnólogo; encargo social de normatização-
fazer dos documentos, monumentos, normalização tão solidamente arraigado
como o historiador; contextualizar os em nossos corpos. Mas essas bibliote-
acontecimentos, como o sociólogo, em- cas raramente têm as nossas urgências,
bora tenha sido em tais bibliotecas que embora decerto tenham as delas. Pois é
aprendemos a suspeitar da maior parte evidente que a história deve confrontar-
do que é dito nas nossas. Somos, os se com a metafísica da evolução, a mo-
psi, interventores diretos no campo so- ral do progresso e a política do apoliti-
cial, dotados de "poderes que podem cismo erudito; a etnologia, com os etno-
favorecer ou matar definitivamente a centrismos violentos ou suaves, os ra-
vida" (Foucault, 1979a, p. 11). cismos indolores, os relativismos da
tolerância que perdoa; a sociologia, com

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a defesa de uma sociedade equiparada causais). Torná-los familiares é indis-
ao status quo capitalista etc. Mas quan- pensável a nosso estranhamento.
do nós, os psi, espoliamos especifica-
mente as bibliotecas da tribo da musa O jornalista onisciente, a galinha po-
da História, Clio, queremos arrancar edeira e o especialista
delas o que possuem de crítico não só
na análise, como para a ação cotidiana. Teremos por guia, para tanto, um
Algumas famílias dessa tribo – não to- texto de F. Châtelet (1974) que, dentre
das, felizmente – parecem menos in- as conformações do trabalho histórico
tranquilas: pesquisam e escrevem sem atual, identifica três linhas principais: a
sobressaltos maiores. História Positivista, a Filosofia da His-
Daí, peço não apenas paciência tória e a Nova História.
ao leitor, como paixão. Pois a paciência A História Positivista encarna o
permite compreender; mas só a paixão instituído da história: acontecimentos,
tem o necessário trágico para que as datações, nomes e cronologias bem en-
múltiplas famílias de Clio não sejam cadeados, numa espécie de jornalismo
somente incorporadas, mas possam, em superior.
sua diversidade por vezes irredutível –
bibliotecas não reuníveis numa bibliote- Um jornalismo retrospectivo que tenta
ca central –, no que se refere a um entre encontrar, no outrora e no antigamente,

elas e a um entre elas e nós, tornar-nos o desenrolar dos fatos, a causalidade


dos sentimentos e dos acontecimentos
diferentes de nós mesmos.
materiais (...); vai-se assim do "qual-
A paixão indaga: como se escre-
quer coisa" dos cronistas historiadores,
ve a história? Descobre bibliotecas das habituados às técnicas dos mass-media
histórias. Apreende, também, que já (...), à "seriedade" dos fabricantes de

sabe um pouco acerca do como que livros escolares e universitários, preo-


cupados em construir imagens confor-
procura, pois as ferramentas com que
tadoras e bem ligadas (...) (Châtelet,
tem trabalhado parecem funcionar se-
1974, p. 211-212).
gundo certos modos: desnatura-
lizadores-produtivistas-micro (e não
Por Filosofia da História, Châte-
relativizadores - representacionais - ma-
let entende um trabalho "pelas pontas":
cro); transdisciplinares-transversalizan-
de Santo Agostinho a alguns marxistas
tes (e não inter ou multi-disciplinares e
contemporâneos, fazendo uma demora-

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da pausa em Hegel, vemos a história história. Pouco interessada em saber
constituir-se na forma de um desenrolar quem exatamente fez o que e/ou preci-
previsível, seja linear (ao modo de as- samente em que data ocorreu tal fato,
censão ou queda), seja dialético (via pertencente a tal desenrolar filosófico
contradições e superações). Tal desen- reconfortante, os novos historiadores
rolar segue uma figura do mesmo, per- têm por objeto a sociedade inteira e suas
manentemente afirmado na qualidade de transformações.
significação totalizante das transforma-
ções no tempo: uma origem e/ou uma Recusando tanto o acontecimento como
finalidade sustentam o meio do cami- a lei, (...) eles indicam que estão fora da

nho. Fazendo referência a certo tipo de triste problemática do "acontecimento"


ou do doloroso referencial cronológico;
História Marxista enquanto Filosofia da
esforçam-se – para esclarecer o presen-
História, Châtelet (1974) é não apenas
te – por restaurar a opacidade das prá-
explícito, como humorístico: ticas passadas, em sua diversidade (...).
Instaura-se, assim, (...) a idéia, exorbi-
tante, de uma história total e sempre i-
Do lado da revolução, está o marxismo,
nacabada (Châtelet, 1974, p.213).
que aguarda o momento em que as re-
lações de produção entrarão em contra-
dição com as forças produtivas; estas se Total porque não factual, sempre
defrontarão, entrarão em choque, até o inacabada porque sem princípio totali-
momento em que, de Engels a Kautsky,
zante, a Nova História – já não tão no-
será estabelecida uma leitura tranqüili-
va, aliás – propõe seus novos proble-
zante da história: a galinha capitalista
não poderá deixar de pôr seu ovo socia-
mas (retomada do sentido do conceito,
lista (aconteça o que acontecer, contan- da quantificação, do fato, do tempo),
to que nos organizemos!) (p. 211). novos objetos (o clima, a língua, as
mentalidades, o livro, o corpo, a doen-
Já a Nova História tem destaque ça, o filme, a festa), novas abordagens
especial, pois Châtelet a vê como eixo (o concurso à disciplina histórica, de
essencial da pesquisa historiográfica da economia, demografia, literatura, arte,
atualidade. O trabalho da Escola dos psicanálise, etnologia) (Le Goff e Nora,
Anais é apreendido como repúdio si- 1989). Neste processo, diversifica a
multâneo das coleções de historietas dos noção de acontecimento. Este não é
positivistas e das visões cavalheirescas pensado como fato datado, localizado e
das diferentes formas de filosofia da compreensível, mas como irrupção ou

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ruptura, como produto que remete a empreende. Este risco estaria no insta-
outras redes de acontecimentos, em ou- lar-se ela em uma perspectiva que, ape-
tros campos: o documento factual torna- sar de enfatizar a novidade incessante
se monumento a ser incluído em séries gerada pelo encadeamento dos comba-
diversificadas (Foucault, 1969/1987; Le tes sociais, não toma posição nestes
Goff, 1990). No que tange a este senti- mesmos combates.
do atribuído ao acontecimento, a abor- Conquanto discorde da expres-
dagem da Nova História se assemelha à são que Châtelet (1974) adota para ca-
marxista, mas sem se embaraçar com o racterizar a temática do presente –
possível economicismo (ademais profé- "combate ideológico"–, não posso dei-
tico) desta última: se a galinha capitalis- xar de lhe dar razão quando critica a
ta não está obrigada a pôr seu ovo socia- equivalência estabelecida, por muitos
lista, rigor conceitual não se confunde dos novos historiadores, entre flexibili-
com princípios a priori. dade metodológica e neutralismo.
A Nova História, tributária de
tantas alcunhas – história viva, das in- (...) o importante, nesta questão decisi-
timidades, das mentalidades, do cotidi- va para o historiador, consiste em mos-

ano, serial etc. (Dosse, 1992) –, aparen- trar que um objeto que o prende (...)
entra num combate ideológico, que os
temente fala de tudo em todos os tem-
conhecimentos que ele elabora aí estão
pos. No entanto, é evidente que não fala
presentes e têm peso, que a erudição e a
de qualquer coisa, pois aquilo de que especialização não poderão ser tomadas
fala (e como o faz) se insere nas lutas por álibis de neutralidade. É nisto, jus-

do presente. É exatamente nesta dire- tamente, que consiste a questão da ob-


jetividade em história (p. 219).
ção que Châtelet (1974) encaminha as
conclusões de seu artigo, ao abrir o de-
Neste sentido, o Materialismo
bate sobre os efeitos políticos do discur-
Histórico tem, para Châtelet (como para
so historiador. Isto porque, como que
nós), um mérito essencial, que não deve
imperceptivelmente, ao criticar as pos-
ser desprezado: cada momento analisa-
turas de um marxismo dominado pelo
do na luta histórica é instrumento nas
centralismo, filosofismo e economicis-
lutas do presente. Instrumento, neste
mo, e de um positivismo oficial, onde
caso, não para validar uma Filosofia da
os fatos apontam à evolução e ao pro-
História previamente definida como
gresso, a Nova História corre o risco de
libertadora por um partido, um intelec-
ser a primeira vítima da ruptura que

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tual universal, uma vanguarda dirigente, ção difícil, de uma "no man's land"(p.
mas necessariamente instrumento, por- 114).
que toda história é perspectiva afirmada. Não se duvida de Farge quando
Conforme o estamos utilizando, o termo se lê, por exemplo, o texto em que Jac-
perspectiva diverge da concepção que ques Léonard (1980), debatendo Vigiar
supõe olhares diversos sobre uma mes- e Punir, expõe as condições impostas
midade, que seria a História, com mai- pelos historiadores para que um filósofo
úscula. Toda história é marcada por sua os venha interpelar:
paixão, seja história, aqui, o objeto ou o
discurso sobre o objeto. E é exatamente É preciso, para ser competente, ter por
deste problema que parte a tentativa, muito tempo respirado a poeira dos

desenvolvida a seguir, de situar a pers- manuscritos, envelhecido dentro dos


depósitos de arquivos departamentais,
pectiva (muito nietzscheana) de um
ter disputado com os camundongos os
Foucault-historiador frente à da Nova
tesouros dos sótãos dos presbitérios
História. (...). Em certos deslizes, em certos sar-
casmos mal contidos, ele [o historiador]

O concurso de tiro e os engenhos de percebe que Foucault não sente sempre,


do interior, todas as realidades do pas-
guerra
sado. (p. 10).

Embora a criação da Escola dos


Tampouco quando Foucault
Anais date do final dos anos 1920,
(1980a) responde ironicamente a esse
quando, em 1969, Foucault publicou A
repto:
Arqueologia do Saber, a primeira parte
do livro foi saudada na qualidade de
(...) o sábio desolado que chora por seu
explicitação da episteme da Nova Histó- pequeno domínio que os selvagens aca-
ria. Durante os anos 1970, no entanto, bam de pilhar: como depois de Átila, a

apesar das declarações recíprocas de relva ali não mais crescerá. Em breve,
todos os clichês: os pequenos fatos ver-
apreço e da eventual colaboração entre
dadeiros contra as grandes idéias vagas;
Foucault e os novos historiadores, a
a poeira afrontando a nuvem (p. 29).
tribo de Clio não se abriu facilmente ao
invasor. Segundo A. Farge (1984), a Seria fácil demais atribuir desen-
trajetória da relação entre Foucault e os contros como esse às divisões instituí-
historiadores faz surgir, em lugar da das do saber. Acreditamos que mais
figura de uma harmonia, a de uma rela-

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vale seguir a sugestão de Farge (1984) e os dados quantitativos, as citações dos
explorar a história das práticas em que especialistas sobre o período focalizado
se funda a criação dessa "terra de nin- (séculos XVIII-XIX). Sua base são
guém". Para tanto, a autora constrói textos nunca lidos, arquivos pouco co-
uma história de acontecimentos, no sen- nhecidos – aquilo que Foucault (1979b)
tido que o próprio Foucault dá a tal denomina "maçonaria da erudição inú-
conceito: construir um acontecimento é til" (p. 168-169). Com isso, Vigiar e
fazer surgir uma singularidade, mostrar Punir destrói uma série de evidências,
que não seria necessário que tivesse como por exemplo: a prisão como pura
sido assim; é ligar fios de redes diferen- descontinuidade – revelando seus nexos
tes, engendrando-os uns a partir dos com outras práticas punitivas de dife-
outros; é seguir uma genealogia de rela- rentes âmbitos institucionais; a referên-
ções de força. cia a um responsável, como o Poder ou
Para fazê-lo, Farge (1984) lem- o Estado – quase não há sujeito identifi-
bra que, em 1971, M. Foucault, J.-M. cável na obra.
Domenach e P. Vidal-Naquet criam o Tantas diferenças teriam provo-
GIP (Grupo de Informações sobre as cado uma espécie de bloqueio dos deba-
Prisões), depois de uma greve de presos tes, só retomados a partir dos anos
políticos de esquerda aliados aos deten- 1980. Desde então, delineiam-se me-
tos do direito comum, a fim de denunci- lhor as preocupações de lado a lado,
ar as condições do sistema penitenciário permitindo levantar três pontos funda-
francês. Em 1972, há agitações em To- mentais de distância entre Foucault e os
ul, Melum, Nancy, nas quais o GIP está novos historiadores, em cuja explicita-
engajado. Em 1975, chega Vigiar e ção a análise de Farge (1984) converge
Punir: o livro não é qualquer livro de com a de Veyne (1982).
história – lembremos a problemática da O primeiro ponto é dito a intui-
objetividade levantada por Châtelet ção fundamental de Foucault: há que
(1974) –, pois faz parte de uma estraté- partir, não do objeto dado, mas das prá-
gia para "desobstruir o campo da histó- ticas – discursivas e não discursivas –
ria" (Farge, 1984, p. 115). É um traba- que o engendram, a fim de identificar
lho quase sem referências, se estas fo- segundo que regras essas práticas fun-
rem entendidas como discurso anterior cionam. Não se estabelece uma narrati-
dos historiadores. Assim construído, va da evolução de um objeto no tempo,
abandona as análises socioeconômicas, tampouco dos diferentes olhares e/ou

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comportamentos quanto a um objeto- Se só as práticas existem, nada é
incógnita previamente posto. O objeti- necessário: tudo poderia ter sido de ou-
vo da historicização é colocar-se no tro modo, assim como tudo poderá vir a
lugar preciso onde as práticas engen- ser diferente. Aquilo que Foucault afir-
dram, a cada momento, o objeto que ma dos poderes, podemos dizer da his-
lhes corresponde. tória: ela se exerce, é um como, não um
para que ou um por que totalizantes.

O crime e o comportamento criminoso Caso queiramos indagar do por que, ou


serão então estudados a partir das práti- seja, perguntar de onde vem a transfor-
cas punitivas e do modelo disciplinar. mação das práticas, teremos de nos de-
A loucura é vista através daquilo que
frontar com um vazio, isto é, com in-
estabeleceu a separação entre loucura e
suspeitadas conexões entre práticas que
não loucura. A sexualidade é lida como
uma experiência onde o saber, a norma- nossa razão não supõe a princípio. Ca-
lidade e as formas de subjetividade fa- da evento, em história, é uma raridade,
bricam um ser "sujeito do desejo” (Far- um bibelô de época. Vale, por conse-
ge, 1984, p.116).
guinte, acontecimentalizá-lo, quer dizer,
produzi-lo na qualidade de diferença
Se seguirmos a revolução na his-
irredutível a qualquer espécie de mesmo
tória que Veyne (1982) atribui a Fou-
(mecanismo econômico, estrutura an-
cault, poderemos até mesmo afirmar
tropológica, processo demográfico etc.).
que, para este invasor dos domínios de
Clio, não existem coisas: a loucura não
Enfim, tudo é histórico, tudo depende
existe, tampouco o criminoso, o gover-
de tudo (e não unicamente das relações
no, o Estado, a infância, a família, a de produção), nada existe transistori-
sexualidade, o indivíduo ou nossa tão camente e explicar um pretenso objeto
querida subjetividade. Só as práticas consiste em mostrar de que contexto
histórico ele depende. A única diferen-
existem; ou melhor, apenas o que são os
ça entre essa concepção e o marxismo
dizeres e os fazeres em certo momento
é, em suma, que o marxismo tem uma
– as regras não conscientes a que obe- idéia ingênua de causalidade (uma coi-
decem –, independentemente do que sa depende de uma outra...) (Veyne,
possamos justificar a respeito (nossa 1982, p.198).

ideologia) ou da mentalidade caracte-


rística de nossa época ou nossa cultura O segundo ponto a diferenciar

(nossas atitudes ou representações). Foucault dos novos historiadores impli-

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ca a própria definição de real. O prima- Os historiadores trabalham habitual-
mente sobre objetos (o corpo, a alimen-
do das práticas, ou das relações, sobre
tação, o casamento, a solidão etc.) para
os objetos desmistifica o grande objeto
determinar a evolução das práticas que
– a instância global do real, a sociedade lhes correspondem e encontrar muta-
enquanto tal – como totalidade a restitu- ções e descontinuidades. Eles tentam
ir, a compreender. Foucault se refere a também captar os esquemas de repre-
sentação da sociedade e das classes so-
uma mecânica do real (modo de engen-
ciais frente a estes objetos e trabalham
dramento) e não à realidade como intei-
sobre as reações sociais. (Farge, 1984,
reza representada e/ou atuada, global- p.117).
mente, pelos agentes.
Talvez a melhor ilustração desse Consequentemente, a apreensão
modo de proceder seja a referência ao micro do que é do real não se distingue
conceito de sociedade disciplinar. A da macro frente ao real à maneira da
disciplina não é um tipo ideal weberia- oposição entre o pequeno e o grande.
no – o homem obediente como catego- Trata-se, isto sim, do contraste entre
ria global de interpretação –, mas uma uma apreensão pela via da produção-
generalização nominalista (denomina- engendramento e uma apreensão pela
ção sintética) para um conjunto de téc- via da representação-reação. Se a pri-
nicas de adestramento, vigilância e in- meira redunda numa certa figura do
dividuação dos elementos do corpo so- real, embora sempre à beira do desfigu-
cial. O fato de nunca funcionar comple- ramento, a segunda parte de uma enti-
tamente, já que nenhuma sociedade, por dade totalizadora – o real – que deverá
mais que disciplinar, é inteiramente ser necessariamente figurada, isto é,
disciplinada, não a torna uma idealidade representada.
confrontada com uma realidade. A dis- Aqui se abre o terceiro ponto de
ciplina não é o real já dado, mas do real distância entre Foucault e os historiado-
enquanto modo de produção deste últi- res: a própria disciplina histórica é prá-
mo: microfísica do poder, micropolítica tica de produção de real, à qual se há
do real, em lugar de realidade macro ou que indagar quanto às suas condições de
global à qual corresponderiam determi- existência e funcionamento. As pergun-
nadas reações sociais. Nesta linha, tas foucaultianas relativas à escrita da
mais uma vez Foucault se distingue dos história não são as de um tranquilo cien-
historiadores, inclusive dos novos. tista que sempre põe (ou supõe) previ-
amente seu objeto, mas as de um filóso-

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fo que coloca entre parênteses a ciência, am em pontos diversos deste alvo, seja
a fim de elaborar uma visão crítica do seguindo certo tipo – linear ou dialético
presente. De tal visão, a própria história – de evolução (da pontaria), seja em
– certa biblioteca, certa família da tribo função de simples diferenças de códigos
de Clio – será o suporte. E se, confor- histórico-culturais (tipo de lente usada
me objetam a Foucault alguns historia- na mira da arma, digamos). Já a expres-
dores, partes do real são postas de lado são de Veyne para definir o modo fou-
em tal empreendimento – representa- caultiano de historicizar é outra: trata-se
ções, quantidades, condutas, responsá- de "engenhos de guerra" que estouram
veis –, é por vontade realizadora; me- em todas as direções, e não de um "con-
lhor dizendo, para produzir real como curso de tiro" em que variam, na apa-
acontecimento, como raridade. rente tranquilidade da representação ou
Por meio deste terceiro ponto do código, pontarias ou focos de mira.
talvez se clarifique a diferença entre a No dizer do próprio Foucault (1979a),
desnaturalização foucaultiana e a relati- por sua vez, trata-se de privilegiar “aná-
vização historicista-culturalista. Se o lises que se fazem em termos de genea-
objeto é posto de início, mesmo que logia das relações de força, de desen-
como pura incógnita, o alvo colocado volvimentos estratégicos e de táticas
pelo historiador não é, ele mesmo, his- (...). A historicidade que nos domina é
toricizado. Acompanhando a sugestão belicosa e não linguística”. (p.7)
de Veyne (1982), é possível afirmar:
uma frase tal como "a loucura (ou a Caleidoscopizando
delinqüência, o corpo, o casamento, a
família, a criança) é apreendida dife- Conquanto belicosa, nem por is-
rentemente por culturas e contextos so nossa historicidade exclui certa esté-
históricos distintos" deve ser dita meta- tica. Ao estourar em todas as direções,
física (p. 170). Metafísica porque des- os engenhos de guerra configuram a
considera os efeitos da própria prática disposição de certas práticas (discursi-
historiadora, a qual está lançando para o vas e não discursivas). Estas surgem no
lugar idealizado (e idealista) de um alvo seio de práticas outras que, mais do que
visado, aquilo que ela mesma engen- causá-las, as atualizam, ao produzir o
dra, no seu exercício, como conceito. vazio que elas vêm preencher. Mesmo
Neste tipo de raciocínio, culturas se pensarmos que os dizeres e os fazeres
e formações históricas distintas acertari- de uma época têm certa gramática –

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conjunto de regras pré-conceituais que a cionando-o a séries de deslocamentos
história se empenha em determinar con- de pedaços outros.
ceitualmente –, há que ressaltar que tais Isto parece nos lançar na exigên-
regras não estão instaladas na plenitude cia de apelar a campos disciplinares
de qualquer razão soberana, utopia evo- vizinhos: um acontecimento-pedaço-de-
lutiva ou queda irreversível. Aquilo que vidro no campo da penalidade ou puni-
permite que certas formas de dizer, de ção, por exemplo, demandaria o recurso
fazer e de ser apareçam em certo mo- aos campos econômico, militar, peda-
mento são simplesmente "as saliências e gógico, fabril, religioso etc. Porém um
reentrâncias das práticas vizinhas" caleidoscópio não é um jardim de espé-
(Veyne, 1982, p.161). cies disciplinadas: os pedaços de vidro
não são obedientes e imóveis. Há, pois,

(...) em uma certa época, o conjunto que aplicar aos próprios domínios de
das práticas engendra, sobre tal ponto saber uma estratégia de caleidoscopiza-
material, um rosto histórico singular ção: nem multi-disciplinarizá-los nem
(...); mas, em outra época, será um ros-
inter-disciplinarizá-los, mas desdiscipli-
to particular muito diferente que se
narizá-los (Foucault, 1980a, p. 39) e
formará no mesmo ponto e, inversa-
mente, sobre um novo ponto, se forma- transversalizá-los.
rá um rosto vagamente semelhante ao Como simples exemplo da nova
precedente (...): não há, através do inquietude instaurada por essas experi-
tempo, evolução ou modificação de um
mentações desdisciplinadoras-trans-
mesmo objeto que brotasse sempre no
versalizantes, basta citar Deleuze
mesmo lugar. Caleidoscópio, e não vi-
veiro de plantas (Veyne,1982, p.172). (1991a):

Estética de caleidoscópio: práti- Com efeito, o que nos interessa são


cas que, como múltiplos pedaços de modos de individuação que não são
mais os de uma coisa, de uma pessoa
vidro, se deslocam, dando lugar a um
ou de um sujeito: por exemplo, a indi-
vazio que certo pedaço "outro" vem
viduação de uma hora do dia, de uma
preencher, por uma confluência de aca- região, de um clima, de um rio ou de
sos. Se identifico certo pedaço- um vento, de um acontecimento. E tal-
acontecimento-atualização, devo, na vez creia-se erradamente na existência
de coisas, pessoas ou sujeitos (p. 116)
qualidade de historiador efetivo, intensi-
ficar sua raridade, seu improvável, rela-

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Heterotopias e ficções o que mais nos falta, sonho sim, alian-
do-me a Foucault, com o intelectual
Ao fazer referência à “vida intei- destruidor das evidências, que cria fic-
ra que podia ter sido e que não foi”, este ções porque estas, embora virtuais, não
artigo aspirava bem pouco ao saudosis- deixam de ser reais. Produzem-se com
mo, muito a certo tipo de futurismo. tanta ou mais realidade do que o monó-
Não, por certo, ao que murmura “um tono suposto real em que nos querem
dia seremos de tal ou qual forma...”. fazer crer e que nos torna reativos con-
Afinal, o modo de historicização aqui sumidores de transcendências forjadas
apregoado – desnaturalizador-constru- por práticas e discursos do Mesmo –
tivista-micro e transdisciplinar-trans- em nosso caso específico, o indivíduo, a
versalizante – nos recusa os confortos criança, o Édipo, a falta, o significante.
dos essencialismos das origens e desti- Exatamente por isso, o modo de histori-
nos, dos campos disciplinares auto- cização até aqui proposto merece uma
suficientes ou em pacto de dominação, adjetivação suplementar, a de ficcional,
dos monopólios de legitimação. Futu- no sentido que lhe dá Michel Fou-
rismo heterotópico, talvez: “As utopias cault(1980b):
consolam, as heterotopias inquietam.”
(Foucault, 1966/1992, p.7-8) (...) nunca escrevi nada além de ficções.
Inquietar nossa formação é criar Com isso não quero dizer que elas este-

uma imagem de pensamento-ação- jam fora da verdade. Parece-me plausí-


vel fazer um trabalho de ficção dentro
subjetivação em favor, espero, de um
da verdade, introduzir efeitos de verda-
tempo em que o desmanchamento de
de dentro de um discurso ficcional e, de
territórios hoje cristalizados – empresa- algum modo, fazer com que o discurso
riamento moral, disciplinamento dos permita surgir, fabrique, algo que ainda

corpos, gerenciamento da vida – se atu- não existe (...). Ficciona-se a história


partindo de uma realidade política que a
alize, inclusive, como criação de um
torna verdadeira; ficciona-se uma polí-
novo povo psi, efeito de um processo de
tica que ainda não existe partindo de
desprendimento de si. uma verdade histórica (p.75).
Dirão talvez, de forma reprova-
dora, que sonho, ao imaginar este novo Realidade política que torna ver-
povo, despersonalizado e desprofissio- dadeira a ficção de uma nova história da
nalizado. Contudo, se como por vezes formação psi: certo diagnóstico de nos-
afirmou Deleuze, acreditar no mundo é so presente enquanto intelectuais no Rio

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de Janeiro/2014, em ruptura, junto a lidades da ação que preservam (ou fe-
inúmeros companheiros, com o intole- rem) grandes dominações. Com este
rável encargo de “guardiães da ordem” procedimento, pratica-se uma autodis-
(Coimbra, 1995) – ordem racional, or- solução do domínio psi que se contra-
dem política, ordem subjetivante. Pos- põe ao que denomino, lançando mão de
sível contribuição de um modo ficcional um termo caro aos socioanalistas fran-
de historicização para uma política que ceses (Lourau, 1973/2004), mühlmani-
ainda não existe: certa história de nos- zação da formação, ou seja: certa tem-
sos pretensos objetos naturais – aquela poralidade instituída de estudos, na qual
que os faça emergir como efeitos de a reflexão histórico-crítica é vista como
práticas –, permitindo-nos conhecer o devendo ser adiada para um sempre-
que supostamente devemos ignorar – o depois da (de)formação teórico-técnica.
detalhe, o aparentemente banal, o pe- Forma-se, hegemonicamente, através de
queno acontecimento monumental, as uma lógica de falsificação deliberada de
forças e inversões de forças – poderá todo enunciado que não seja legitimador
incrementar a invenção de táticas e a de um domínio, prometendo para dias
flexibilização de estratégias em nossos melhores, que evidentemente não virão,
enfrentamentos, no presente, com tudo a oportunidade para desenvolver a vin-
aquilo que nos aparece com a intensida- culação entre a gênese teórica e a gêne-
de do intolerável (na academia, clínica, se sócio-histórica de conceitos e proce-
hospício, hospital, escola, cidade, rua, dimentos.
vida cotidiana). Às vezes se pergunta, à maneira
Professora em um curso de for- dos engajados, a quem serve este tipo
mação de psicólogos, tendo a pensar (hegemônico) de formação. Preferimos
como Deleuze (1991b): não há exercí- indagar como funciona. Resposta breve:
cio confortavelmente instalado no do- institucionalizando “fabricantes de inte-
mínio psi senão o do padre (p.19). Sen- riores”. Apesar disso, certos de que na-
do assim, tenho lançado mão da história da nos determina senão o presente, de
foucaultiana do presente em minhas que quanto a ele somos sempre pós-
práticas de ensino e pesquisa. Conto modernos e que toda espera é represen-
histórias, elaboradas de um certo modo: tativa – representamos o futuro espera-
acontecimentos que instauram novos do sendo representados por quem diz
regimes de verdade e prática, baixos conhecê-lo, pois pretende dominá-lo –,
começos que movem montanhas, bana- temos ensaiado menos a grande revolu-

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ção que a revolta situada, menos a orga- Daniel, H.(1992) Somos a maioria. Bo
nização que a ação exemplar, menos a letim da Abia, nr.16, abr.
aceitação acrítica de uma presença que a Deleuze, G. (1974) Platão e o simula
atenção a um presente que pode portar, cro. Em Lógica do sentido. São
e sempre porta, a diferença intempestiva Paulo: Perspectiva.
dos novos modos de pensar, agir e ser. __________. (1991a) Mil platôs não
São eles também novos modos de for- formam uma montanha, eles
mar-se, pois “de que valeria a obstina- abrem mil caminhos filosóficos.
ção do saber se ele assegurasse apenas a Em C.H. Escobar (org.) Dossier
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Heliana de Barros Conde Rodrigues:


professora associada do Departamento
de Psicologia Social e Institucio-
nal/Instituto de Psicologia da Universi-
dade do Estado do Rio de Janeiro (U-
ERJ).
E-mail: helianaconde@uol.com.br

Enviado em: 07/07/2014 - Aceito em: 30/11/2014

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