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Ens s e debates Universalizacao e localismo Movimentos sociais e crise dos padrées tradicionais de relagdo politica na Amazénia Alfredo Wagner Os movimentos sociais na érca rural da Amazénia, que desde meados dos anos 1970-80 vém se consolidando fora dos marcos tradicionais do controle clientelistico' ¢ tendo nos Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STRs) uma de suas expresses maiores, conhecem atualmente certos desdobramentos, cujas formas de associagio ¢ luta escapam ao sentido estrito de uma organizagio sindical. Contflitos localizados, envolvendo aparelhos de poder, cujas instituigdes de carter econdmico implantam seus programas como uma ordem a ser acatada a todo custo, tém se agravado até um ponto insustentavel de extrema tensio. No bojo destes antagonismos agucados manifestam-se, todavia, condigdes favoraveis & aglutinagio de interesses de grupos sociais diferenciados. Embora nao haja homogencidade absoluta nas suas condigdes materiais de existéncia sio momentaneamente aproximados e assemelhados baixo o poder nivelador da agio do Estado. A propria intervengao de forcas coatoras é que propicia o estabclocimento de interesscs comuns mesmo que, em certa medida, circunstanciais. Em outras palavras ¢ em outro nivel de abstragio, pode-se adiantar que as politicas plblicas & que possibilitam os elementos basicos & formagdo de composigdes € de vinculos solidérios, tais como registrados naquelas situagdcs de confronto. Sao elas que concorrem decisivamente para uniformizar ages politicas de grupos sociais ndo-homogéneos do ponto de vista ccondmico. Sem representar necessariamente categorias profissionais ou segmentos de classe, tais grupos tém se organizado em consistentes unidades de mobilizacio nao somente na Amaz6nia, mas em todo © Pais. O valor da forca de trabalho nao constitui sua base racional e declarada, mas a despcito disto verifica-se um elevado grau de coesiio em suas priticas, tornando-as formas Ageis e eficazes de organizagio politica. Por se encontrarem atreladas a lutas localizadas ¢ imediatas, cuja especificidade se atém ao préprio tipo de intervengao dos aparelhos de poder, estabclecem uma articulacdo particular do politico com o econdmico. Circunscrevem, inicialmente, seu raio de atuagdo numa mobilizagao aulodefensiva na qual esta cm jogo a manutengao do meio de produgao basico, quer seja através da posse, da propriedade ou de dircitos imemoriais que asseguram 0 usufruto. Mesmo com todas as diferenciagdes ¢ desigualdades que porventura encerrem, mobilizam-se pela “manutengio das condigdes de vida” preexistentes aos mencionados programas ¢ projetos. Cerram filciras contra uma intervengdo governamental considcrada catastrofica. Compdem-se, objetivando garantir o efetivo controle de dominios representados como territdrios fundamentais a sua identidade ¢, inclusive, para alguns deles, a sua afirmagao étnica, O carter consensual desse objetivo superou reservas, ressentimentos, desconfiangas € competigdes. O que antes dividia crodiu temporariamente, permitindo convergéncias inimaginadas noutros momentos. “Antrop6iogo. Exercicio apresentado no XIV Encontro Nacional dos Grupos Tematicos do Projeto de Intercimbio de Pesquisa Social na Agricultura (PIPSA). Belém, 16 de junho de 1989. LMEIDA, Alfredo Ws * Para maiores explicagdes consulte- agner Berno de - "0 intransitivo da transigdo ~0 Estado, 0s conflitos agrérios a violéncia na Amazinia (1965-1988)". Rio de Janeiro, mimeo. 1989 ABR A JUL/89 Ensaios e debates Fatores étnicos, raciais ¢ religiosos usualmente utilizados para reforcar solidariedades ¢ distinguir as chamadas “minorias” perdem relativamente, no contexto destes antagonismos, sua forga de marcar diforengas intransponiveis. Ameagados pela perda de direitos as pastagens, 3s Mlorestas densas e 40s, recursos hidricos c, por conseguinte, a caga, & coleta, & pesca e A agricultura, vivem a ruptura da estabilidade na combinacdo de recursos € no exercicio de atividadcs clementares como prenincio de uma “crise ecolégiea” (WOLF; 1984: 336-350) sem precedentes. As terras indigenas, as chamadas erras de preto remanescentes de quilombos, as areas tituladas e aquelas de posse aparecem af alinhadas, uma apés outra, num bloco compacto de reivindicagdes em que os grupos sociais atingidos lutam para no serem removidos compulsoriamente (casos de barragens, campos de treinamento militar, portos, ferrovias, base de langamento de foguctes) ou para que nao sejam forgasamente fixados (caso dos garimpeiros face ao anteprojeto que institui 0 “regime de permissio de lavra mineral”, onde mudar de rca explorada constituiria crime), O dircito de imobilizar ou de remover de forma compuls6ria aparece como atributo e primazia de aparcthos de poder que representam os atingidos como cidadaos de segunda categoria. A “crise ecoligica” vivida por segmentos do campesinato ¢ por grupos indigenas da Amazinia tom uma dimensdo marcadamente politica € ideologica © nao eorresponde, necessariamente, & denominada “questo ecolégica” que caracteriza hoje a sociedade abrangente. Nestes antagonismos, em que & primeira vista nio ha © predominio politico de classe, as categorias de mobilizacio refletem, na medida adequada, o tipo de intervengo dos aparcthos de poder. Os agrupamentos traduzem efeitos de ago, sendo vejamos: “atingidos por barragens”, “remancjados”, dcslocados”, “reassentados” ¢ “assentados”. Prevalecem também nogdes mais genGricas, que ‘encobrem possiveis especificidades, tais como: “povos da floresta” ¢ “ribeirinhos”. O que parece importar € que categorias de circunstincias (“atingidos”) surgem ‘combinadas harmonicamente com outras de sen permanente (poves da floresta) no contexto de conflitos abertos. As nogées de “trabalhador rural” ¢ de digena” aparecem momentancamente realinhadas em lutas espceificas e localizadas, conhecendo um aparente cstilhagamento. “Seringuciros”, “castanheiros”, “Jutciros”, “barranguciros”, “assentados “colonheiros”, “possciros”, artesiios ¢ pescadores suigerem nomeagées de uso local e condigdes que se dcrramam naquclas catcgorias de mobilizacdo de pretensdo abrangente como “povos da floresta” ¢ “ribeirinhos”, Revelam-se ainda embutidas em outras derivagdes que elas vao conhecendo segundo a particularidade dos antagonismos: “os nio- indenizados de Tucuruf”, “os deslocados pela base de langamento de Alcantara”, “os que serao atingidos plas barragens de Altamira” ete. Os grupos sociais assim delineados mobilizam-se organizadamente em nticleos que recebem as seguintes denominagées: “comissGes” (de “atingidos por barragens”), “conselhos” (de seringuciros), “associagdes (de garimpciros ¢ de “assentados”) € “comunidades negras rurais” ¢ “comunidades” de resisténcia indigena (Pankararu, Kaingang). De acordo com as lutas localizadas e imediatas constituem-sc, pois, em unidades de mobilizacio de cuja coesdo social nao se pode duvidar, tanto pela uniformidade de suas praticas, quanto pela forga com que se colocam nos enfrentamentos diretos. Logram miltiplas c bem sucedidas mobilizagdes como os “cmpates” executados pelos seringueiros, impedindo os desmatamentos com centenas de familias, ‘embargando no local os servigos de derrubada, ou como as ocupages dos canteiros de obras no caso dos “atingidos por barragens”. Tais mobilizagdes concorrem para tornar aquclas unidades organismos logitimos de representigio, que nao mais podem ser descartados das mesas de negociagdes, quando das tentativas de resolugao dos conflitos. Nao obstante diferentes nfvis de prética e de organizacao ¢ relagbes distintas com os aparethos de poder, ta ¢ mobilizacio podem ser interpretadas como potencialmente tendendo a se constituir em forgas saciais*. Nesta ordem elas no represcntam apenas simples respostas a problemas localizados. Suas préticas alteram padroes tadicionais de relagao politica com os centros de podcr c com as instancias de intermediagio, possibilitando a emergéncia de liderancas que prescindem dos que detém o poder local. Destaque- 2 Cf POULANTZAS, Nica Clases sociales y poder politico en et estado capitalista. México, Siglo Veintiuno Eds. 1969, pp. 117-148. Reforma Agraria Ensaios e debates se, neste particular, que mesmo distantes da pretensio de serem movimentos para a tomada do poder politico logram generalizar 0 localismo das reivindicagdes ¢ mediante estas pritieas de mobilizagdo aumentam seu poder de barganha face a0 governo ¢ ao Estado, Para tanto suas formas de agdo transcendem as realidades localizadas ¢ geram movimentos de maior abrangéncia, que agrupam as diferentes unidades, a saber: Comissics Revionais de Atingidos por Barragens, distribuidas por quase todo © Pais; Conselho Nacional dos Scringuciros, U dos Sindicatos ¢ Associacdes de Garimpciros da Amazénia Legal ¢ Associagio das Arcas de Assentamento do Maranhdo. Ainda que incipientes, enguanto modalidade de organizagio politica, tém realizado sucessivos alos de mobilizagio. No decorrer dos cinco primeiros meses de 1989 intensificaram os preparativos para planos de Tuta em nivel nacional, Reuniram assembléias de delegados ¢ representantes nos chamados “encontros”, ou seja, uma forma superior de luta ou o evento maior de universalizagio do localizado, Caso fosse necessaria uma periodizacio, se podcria classificar 0 referide perfodo como “o tempo dos primciros encontros”, Assim, o I Encontro dos Povos Indigenas do Xingt foi realizado entre 20 ¢ 25 de fevereiro em Altamira (PA) formalizando protestos contra a construgio da usina hidrelétrica de Cararad e a inundagio de terras indigenas. O documento final da assembléia 6 intitulado Declaragio Indigena de Altamira foi aprovado por 404 indios representando cerca de 20 tribos ¢ 10 nagées ¢ tendo como observadores trabalhadores rurais da regia, isto 6, “colonos” & posseiros’, 0 [Encontro dos Povos da Floresta foi realizado entre 25 ¢ 31 de margo de 1989 em Rio Branco (AC), juntamente com o TH Encontro Nacional dos Scringuciros, definindo um amplo programa de lutas implantagdo de rescrvas extrativistas, pela demarcagio das terras indgenas ¢ contra a criagio de “coldnias indigenas” tal como vém sendo efetivadas, notadamente, no ambito dos projetos espcciais da Calha Norte; pelo “fim do pagamento da ronda e das relagbes de trabalho, que escravizam os scringuciros nos seringais tradicionais”; bem como reivindicagées para a prescrvagdo ambiental, para politica de pregos © comercializagio, de sanide © cducagio das “populagées extrativistas”. Este programa foi aprovado por 135 scringueiros ¢ 52 indios representando trabalhadores extrativistas de 26 municipios do Amapa, Acre, Rondonia, ‘Amazonas c dc uma drea de seringais da Bolivia, ‘Como observadores convidados, sem direito a voto, por niio serem delegados eleitos em seus povoados ¢ aldcias, participaram: 17 seringuciros 09 indios. CCredenciaram-se também junto a seeretaria do encontro 267 representantes de cntidades governamentais ¢ nd governamentaist, © LEneontro Nacior rabalhadores Atingidos por Barragens foi res cI Goidnia (GO), entre 19 ¢ 21 de abril reivindicando nao apenas uma “Nova politica para o setor elétrico com a participagio da classe trabathadora”, mas também “reforma agraria ja” © “demarcagio das terras indigenas e das comunidades * Muiores esclarecimentos podem ser encontrados na série de artigos ppublieados in: A. Provincia do. Para clém, 25 de feverciro de 1989, 18 cad Cf. Sceretaria do Encontro (CNS-UNI) Boletim Noticias n®3, Rio Branco, 27de margo de 1989 p.1 ABR A JUL/89 Ensaios e debates negras remanescentes de quilombos”. O documento final dcnominado de Carta de Goitinia foi subserito por 25 entidades, sendo uma central sindical, um polo sindlical ¢ um “movimento” ¢ ainda 6 comissdes cstaduais de “atingidos por barragens”, 4 “comunidades indigenas” (Kaingang de I Kaingang de Chapccozinho, Avi-Guarani c Pankararu) ¢ 12 catidades de apoio ¢ institutos de pesquisa c documentacao, Foi criada no referido ‘cucontzo a Comissio Nacional de Atingidos. © LEncontro dos Atingidos pela Barragem de Tucurui realizou-sc em Belém (PA) discutindo as relagies dos chamados “atingidos”, intermediados pelos STRs, junto as prefeituras © 3 Eletronorte a propésito do cumprimento dos convénios para reparar danos ¢ atcndcr reivindicagdes (escotas, postos de saticle). Delegados representantes de 8 STRs (Itupiranga, Tucuruf, Jacundé, Baito, ijuba, Cameti, Igarapé-Miri, Ouciros do Pari), das Coldnias de Pescadores (Jacunds ¢ Ia , dois micleos de pescadores ndio-formalizados (Cameti ¢ Tucurus), juntamente com membros do STR de Altamira, da FETAGRI-PA, da Cut “Tocantinea definiram que a atuagéio dos STRs deve sera de fiscalizar a execugdo das obras ¢ de sua administragio. Participaram também do evento 04 entidades de apoio. © fundador & expresidente di Unisio dos Sindicatos, dos Garimpeiros da Amazinia Leyal (USUGAL), José Altino Machado, apresentado como “warimpeiro, do Tapajés”, num manifesto intitulado “Urutu, nt Amazonia, € cobra”, publicado em 15 de abril pelo Jornal do Brasil, protestou contra 0 anteprojeto de lei sobre & alividade garimpeira cnviado a Presidéncia da Repiiblica pela Scerctaria de Assessoramento & Defesa Nacional (SADEN). 0 autor forncecu dados sobre os possiveis representados, na oportuinidade cm que se preparava o cneontro de gaarimpciros de Roraima - que sera tr: ado adiante: “© garimpo tinha 400 mil profissionais ha apenas dois anos, Hoje so hum millxio, Chegam-nos mais de 1 mil 500 pessoas por dia & Amazé Na primeira semana de maio foi fundada a 3 CF. MACHADO, José Altino = “Ueuty, na Amacdnia, € cob” Jornal do Brasil, Rio de Janciro, 15 de abril de 1982 CF. Dados divulgidos pela FEFAEMA, hoje 136 STRs com cerca de dois mith sindicalizados. Reforma Agra Associagao das Arcas de Assentamento do Maranhio. (ASSEMA), no Vale do Mearim, com a participagio de representantes de areas ja desapropriadss por jeresse social para fins de reforma agedria. Duas semanas depois 78 STRs do Maranhao num “encontro” para definir programa de reivindicagies, realizado cm Séo Luts, aprovaram proposigées de que as ocupagées de latifindios seriam apoiadas pelo movimento sindical. Sublinhe-se que levantamento feito pela FETAEMA indica existirem ma dircus ocupadas por cerca de S00 Estado’, abrangendo mais de 2 mithdes de hectares de terras em contflito. Acrescente-se que 0 I Encontro das Comunidades Negras Rurais do Maranhao esti previsto para os, dias 28 a 30 de julho em Bacabal, com representantes de mais de uma centena das chamadas twrras de pret ¢ cis dreas remanescentes de quilombos. Na sua convocatéria ja se deli n reivindicagdes pelo imediato reconhccimento das terras ocupadas pelos remanescentes de quilombolas ¢ por uma reforma ediata, Entidades de apoio como 0 Grupo Negro Palmares Renascendo ¢ Centro de Cultura Negra promovem o evento.

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