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RIO DE JANEIRO
2019
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 2
PLANO DE CURSO
Ano: 2019. Semestre: 2º. Série: 3º ano. Turno: Noturno. Aulas: quarta-feira, 2º tempo.
Conteúdo:
Plano do curso:
Avaliações:
1ª nota: prova do dia 25 de setembro. Conteúdo: introdução à literatura joanina (de acordo
com o texto da apostila exposto em aula) e pregação nos evangelhos (de acordo com o texto
da apostila e do capítulo 11 da obra GREIDANUS, S. O pregador contemporâneo e o texto
antigo. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. p.317-369, ambos expostos em aula).
A turma será dividida em dois grupos. Cada grupo escolherá uma perícope qualquer dos
livros da literatura joanina (Evangelho de João, 1João, 2João, 3João e Apocalipse) e
apresentará uma exegese da mesma, contendo obrigatoriamente os seguintes itens abaixo.
Cada tarefa deverá ser dividida entre os membros do grupo, e a responsabilidade por cada
parte indicada no trabalho. Os dois grupos devem entregar o trabalho impresso no dia 9 de
outubro. Nos dias 09, 16 e 22 de outubro o grupo deverá apresentar em forma de seminário
um resumo do trabalho e entregar uma cópia do comentário exegético para todos os alunos
presentes.
Tarefa Especificação
Aspectos formais de Capa, folha de rosto, sumário, organização do conteúdo em capítulos,
apresentação do paginação, notas de rodapé, referências bibliográficas, entre outros.
trabalho
Introdução Apresentação da razão da escolha do texto
Tradução 1. Apresentação e identificação do texto.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 4
1
WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento, p. 52.
2
Nos manuais de exegese os itens relacionados ao contexto estão geralmente distribuídos entre a análise da redação e
análise literária.
3
WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento, p. 176-177.
4
Indispensável neste ponto consultar a obra de BEALE, G. K.; CARSON, D. A. (orgs.). Comentário do uso do Antigo
Testamento no Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova.
5
WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento, p. 117-119.
6
Indispensável neste ponto consultar a obra BROWN, C.; COENEN, L. (orgs.). Novo Dicionário Teológico do Novo
Testamento. 2 volumes [ou a edição em 4 volumes]. São Paulo: Vida Nova.
7
Indispensável neste ponto consultar a obra KEENER, Craig S. Comentário histórico cultural da Bíblia - Novo
Testamento. São Paulo: Vida Nova.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 5
Trabalho opcional de complementação da 2ª nota valendo 1,0 pontos: declaração de leitura entregue
pessoalmente ao professor impreterivelmente até o dia 09 de outubro do Evangelho segundo João,
das cartas de João e do livro de Apocalipse, na Nova Versão Internacional (NVI).
3ª nota: Prova realizada no dia 27 de novembro. Conteúdo: teologia da literatura joanina (conforme
apostila e capítulos 20 a 24 da obra “Teologia do Novo Testamento” de I. H. Marshall).
Trabalho opcional de complementação da 3ª nota valendo 1,0 ponto: declaração de leitura entregue
pessoalmente ao professor impreterivelmente até o dia 27 de novembro dos capítulos 20 a 24 da
obra MARSHALL, I. H. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2007.
COMENTÁRIOS
KÖNIGS, J. Evangelho segundo João. Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal, 2000.
LÉON-DUFOUR, X. Leitura do evangelho segundo João. São Paulo: Loyola, 1996. Volumes 1-4.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 6
MAZZAROLO, I. O Apocalipse de São João. 3ª ed. Rio de Janeiro: Isidoro Mazzarolo, 2010.
______ Nem aqui, nem em Jerusalém – Evangelho de São João, exegese e comentário. Rio de
Janeiro: Mazzorolo, 2015.
GRÜNZWEIG, F.; HOLMER, U.; De BOOR, W. Cartas de Tiago, Pedro, João e Judas. Curitiba:
Esperança, 2008.
DICIONÁRIOS
COENEN, L.; BROWN, C. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. 2ª ed. São
Paulo: Vida Nova, 2004. 2 volumes.
DOUGLAS, J. D. (org.). O Novo Dicionário da Bíblia. 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 1999.
REID, Daniel G. (editor). Dicionário Teológico do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova/Loyola,
2012.
OBRAS ESPECAIS
CARSON, D. A.; MOO, D. J.; MORRIS, L. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Vida
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 7
Nova, 2008.
DUNN, J. D. G. Unidade e diversidade no Novo Testamento. São Paulo: Academia Cristã, 2009.
MAUERHOFER, E. Uma Introdução aos Escritos do Novo Testamento. São Paulo: Vida, 2010.
GUNDRY, R. H. Panorama do Novo Testamento. 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 2005.
O QUARTO EVANGELHO:
ESBOÇO:
O esboço mais difundido academicamente é o que divide o evangelho em duas partes
principais, antecedidas por um prólogo e sucedidas por um epílogo.8 Existem diversas outras
tentativas, não necessariamente ruins, mas esta tem alguns motivos que a recomendam.
1.1-18: Prólogo
1.19-12.50: Livro dos sinais (trazem sete atos significativos de Jesus denominados “sinais”)
13.1-20.31: Livro da Paixão ou Livro da glória
13.1-17.26: Discursos de despedida9
18.1-20.31: Narrativa da paixão
21.1-25: Epílogo10
AUTORIA:
Popularmente todos conhecem o quarto evangelho como o “Evangelho segundo João”,
conforme o título que aparece nas Bíblias. De fato, pelo menos desde o século II a autoria deste
evangelho é atribuída ao apóstolo João, filho de Zebedeu.
Entre os manuscritos, o P66, que data aproximadamente do ano 200, e o P75 do século III, são
os primeiros a trazerem o título “Evangelho segundo João”.11 Nos pais da Igreja, a principal tradição
8
Para essa divisão, entre outros, THOMPSON, M. M. João, Evangelho de. DTNT. p. 748; BROW, R. E. Introdução ao
Novo Testamento, p. 461; DODD, C. H. A interpretação do Quarto Evangelho, p.379-381.
9
Dodd entende que os discursos de despedida pressupõem a situação da paixão, embora literariamente venham antes.
10
Aqui certamente Dodd falha, visto entender que o capítulo 21, acrescentado ao evangelho, é um elemento estranho
estrutura do mesmo. Entretanto, apesar de ter sido acrescentado, o capítulo estruturalmente está balanceado com o
capítulo 1, e traz contribuições significativas ao conteúdo do Evangelho.
11
NESTLE, E.; ALAND. K. et alli. Novum Testamentum Graece. 27ª ed. Stuttgart: Deutschebibelgesellschaft, 1993.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 9
segue a conexão entre o apóstolo João, Policarpo (69-155), discípulo de João e Irineu (130-200),
discípulo de Policarpo, isto é, através das afirmações de Policarpo registradas nas obras de Irineu
que chegaram até nós. Outros testemunhos no século II são: Justino Mártir (aproximadamente 100-
166; é uma citação disputada); Teófilo de Antioquia (morto em 181; citou o evangelho atribuindo-o
a João); Cânon Muratoriano (final do século II – 180, é a 1ª lista de livros considerados canônicos,
continha 22 livros).
Dessa foma, percebe-se que já no século II a autoria joanina do quarto evangelho já estava
bem estabelecida.12 Quando Eusébio de Cesaréia escreve no 4º século essa posição já era uma
unanimidade.13
Não obstante, com a aplicação da crítica histórica ao Novo Testamento a partir do século
XIX levantou-se a questão se essa atribuição é realmente correta, ou é apenas tradição eclesiástica.
Muitos problemas e respostas foram apresentados, mas uma questão interna do livro que ficou
sendo determinante para definição da autoria do evangelho é a figura do discípulo amado. Este
personagem aparece em momentos importantes da narrativa, a saber:
Ora, ali estava conchegado a Jesus um dos seus discípulos, aquele a quem ele amava; a esse fez
Simão Pedro sinal, dizendo-lhe: Pergunta a quem ele se refere. Então, aquele discípulo,
reclinando-se sobre o peito de Jesus, perguntou-lhe: Senhor, quem é? (Jo 13.23-25).
Vendo Jesus sua mãe e junto a ela o discípulo amado, disse: Mulher, eis aí teu filho. (Jo 19.26)
Appendices I.
12
CARSON, D. A. O Comentário de João. São Paulo: Shedd, 2007. p. 25-30. O século segundo é o século fundamental
para o cânon do Novo Testamento. As obras que foram reconhecidas ainda neste século evidenciam um alto grau de
autoridade. Não obstante, havia no século II um grupo denominado de alogoi, expressão grega que significa: “os
ignorantes”, e que era aplicada pelos “ortodoxos” àqueles que rejeitavam o quarto-evangelho. Cabe observar, entretanto,
um fator que influenciava na rejeição tanto do evangelho, quanto do Apocalipse, que era a utilização desses livros pelos
montanistas, justamente um movimento considerando herético pela ortodoxia da Igreja Antiga. Gaio, por exemplo, era
um presbítero ortodoxo, mas era considerado alogoi porque rejeitava as obras joaninas em vista de ser contrário ao
montanismo. cf. CARSON, D.A; MOO, D. J.; MORRIS, L. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova,
2008. p. 158.
13
Por outro lado, é o próprio Eusébio quem coloca outro nome na discussão. Ele registra a seguinte citação de Papias
(bispo de Hierapólis, na primeira metade do século II): “Se alguém que tivesse estado em companhia dos líderes
cruzasse meu caminho, eu indagaria sobre as palavras desses líderes. 'O que', perguntaria eu, 'André ou Pedro disse ou
Filipe, ou Tomé, ou João ou Mateus ou quaisquer outros dos discípulos de Jesus ensinaram' O que Aristion e João, o
ancião, discípulos do Senhor ensinaram?' Nunca achei que os ensinos dos livros pudessem me ajudar tanto quanto o que
ouviria de viva e fiel voz”. Logo após a citação, Eusébio comenta: “Aqui, é digno de nota que em sua enumeração ele
tenha mencionado o nome de João duas vezes: ele coloca o primeiro desses Joões na mesma lista que Pedro, Tiago,
Mateus e outros apóstolos, claramente indicando os evangelistas; mas o último, ele coloca com o soutros, em uma
sentença separada, fora do grupo dos apóstolos, com Aristion antes dele; e claramente o chama de 'ancião'”. Desse
modo alguns interpretaram que existiam na Igreja primitiva dois líderes chamados João: um, o apóstolo, filho de
Zebedeu; e outro, o presbítero, e teria sido esse o autor do quarto evangelho. Carson questiona essa interpretação, e
considera que o próprio Eusébio interpretou a citação de Papias de forma equivocada, mas indica que essa mesma
interpretação apareceu em um manuscrito do século VII. cf. CARSON, D. A. O Comentário de João. p.70-71. Já F. F.
Bruce analisa a citação de Papias e outros dados históricos, e acha plausível que realmente na igreja primitiva haviam
dois líderes distintos chamados João: o apóstolo e o presbítero, embora não chegue a atribuir o quarto evangelho ao
ancião. cf. BRUCE, F. F. Pedro, Estevão, Tiago e João. São Paulo: Shedd, 2005. Quanto às citações, para a citação de
Papias em Eusébio segui a tradução existente na obra de Bruce (que diverge da de Carson). Já para o comentário, segui
Carson.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 10
Então, correu e foi ter com Simão Pedro e com o outro discípulo, a quem Jesus amava, e disse-
lhes: Tiraram do sepulcro o Senhor, e não sabemos onde o puseram. (Jo 20.2)
Aquele discípulo a quem Jesus amava disse a Pedro: É o Senhor! Simão Pedro, ouvindo que era o
Senhor, cingiu-se com sua veste, porque se havia despido, e lançou-se ao mar; (Jo 21.7)
Então, Pedro, voltando-se, viu que também o ia seguindo o discípulo a quem Jesus amava, o qual
na ceia se reclinara sobre o peito de Jesus e perguntara: Senhor, quem é o traidor? (Jo 21.20)
DATA:
Aqui a pergunta é: quando o evangelho foi publicado pela primeira vez? Carson propõe 80.
Depois de 100 é tarde, pelo testemunho dos pais e porque o mais antigo fragmento conhecido do
Novo Testamento é um fragmento de João: p52, datado de 130. Teriam se passado dez após a queda
de Jerusalém, tempo razoável para se omitir o fato. O evangelho usa linguagem semelhante ao
gnosticismo (um fenômeno que se difundiu no final do século 1º), sem combatê-lo explicitamente.
João morreu idoso e 21,23 ou indica que ele havia morrido, ou que haviam especulações acerca de
sua idade avançada. A teologia joanina está articulada com linguagem mais próxima ao final do
século, sobretudo a ênfase na divindade de Jesus e na pré-existência.
Finalmente, em favor da década de 80 pode-se acrescentar aos argumentos de Carson, a
provável anterioridade dos sinóticos ao evangelho de João, tendo em vista que consideramos
provável os sinóticos estarem prontos entre 65-80.
LOCAL:
Onde o evangelho foi publicado? Éfeso, na Ásia Menor, é o único local defendido pelos pais
da igreja. Segundo F. F. Bruce, uma tradição afirma que lá, na colina Ayasoluk, foi enterrado o
apóstolo. Na mesma colina, no século VI, o imperador Justiniano edificou uma Basílica em
homenagem a São João. Porém, recentemente, arqueólogos australianos concluíram que a basílica
foi construída sobre uma Igreja que dataria do século IV.17
PROPÓSITO:
Deve-se rejeitar algumas opções.18 Primeiramente, João não deve ser visto como uma
correção ou suplemento aos sinóticos, uma visão muito tradicional. Cresce a ideia de enxergar em
João um testemunho independente, que tem valor em si, independentemente dos sinóticos. Também
é improvável que o evangelho tencione combater o gnosticismo, uma finalidade mais próxima a
1João (contra W. G. Kümmel). Também a visão sintética deve ser desconsiderada: vários objetivos,
nenhum objetivo (causado pelas diversas leituras hoje possíveis).
A questão central do evangelho é: Quem é o Messias? Quem o Filho de Deus? Disso
resultam dois propósitos possíveis, não necessariamente excludentes. O objetivo é evangelizar
16
THOMPSON, M. M. João, Evangelho de. p. 745.
17
BRUCE, F. F. Pedro, Estevão, Tiago e João. p. 113-114.
18
CARSON, D. A. O Comentário de João. p.87-95.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 12
judeus e judeus prosélitos (que talvez estivessem familiarizados com o cristianismo), e não
helenistas. As alusões implícitas ao Antigo Testamento no evangelho pressupõem que os leitores
conheciam o AT, ou seja, judeus da diáspora e judeus prosélitos, bastantes influenciados pelo
helenismo difundido fora da palestina. O evangelho possui uma abordagem evangelística
individualista. Como a audiência era judaica, o objetivo de João era não apenas explicar porque ser
cristão e como ser cristão, mas o que significa ser cristão.19
19
Um argumento pastoral (empírico, obviamente) também cabe aqui como auxiliar: o quarto evangelho é possivelmente
o livro mais indicado para um neófito começar a ler o Novo Testamento e até mesmo a Bíblia.
20
KERMODE, Frank. João. In: ALTER, Robert; KERMODE, Frank (orgs.). Guia Literário da Bíblia. p. 473. Cabe
registrar que o original em inglês é de 1987.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 13
OUTRAS CARACTERÍSTICAS
Existe uma unidade estilística em todo o livro. Mesmo os discursos de Jesus são
transmitidos através do estilo de João.
O pano de fundo, o substrato das ideias é a tradição judaica e Antigo Testamento, isto é, a
matriz de pensamento não é helenística, mas veterotestamentária.21
A precisão geográfica na descrição dos lugares da Palestina, indica o bom conhecimento que
o autor tinha da região. A maioria dos estudiosos concorda que o autor do quarto evangelho era um
judeu da Palestina.
Carson cita Meir Sternberg para pontuar uma questão importante na discussão atual: a
diferença entre ficção e registro histórico, não é de quantidade de verdade (ambos têm), mas de
reivindicação de transmitir a verdade. Desse modo, não se pode julgar que João não tinha intenção
de registrar eventos históricos para transformar sua narrativa histórica em teológica. Assim, o
evangelho deve nos dar acesso não apenas à teologia do evangelista, mas ao próprio Jesus, sua
pessoa e sua teologia.
O TEXTO:
Entre as questões no texto do quarto evangelho, duas chamam a atenção.
A primeira é a perícope de 7.53-8.11.22 Carson mostra que a passagem está ausente de
praticamente todos os antigos manuscritos gregos. Todos os pais da Igreja omitem essa narrativa.
Entre os pais orientais ela não é citada antes do século X. Ela falta nas versões síriaca, copta,
armênia e outras. E ainda alguns manuscritos trazem a passagem em outros lugares de João e até
21
“João é visto hoje como preso a uma tradição fundamentalmente judaica, embora influenciada por ideias
helenísticas”. KERMODE, Frank. João. In: ALTER, Robert; KERMODE, Frank (orgs.). Guia Literário da Bíblia. p.
473
22
O título que a maioria da Bíblias dá a passagem é horrível: “a mulher adúltera”, pois salienta o pecado da mulher, e
não o perdão de Jesus, que é o objetivo da passagem. O título deveria ser: “a mulher perdoada”.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 14
23
CARSON, D. A. O Comentário de João. p.334. Os mesmos argumentos são repetidos literalmente em CARSON,
D.A; MOO, D. J.; MORRIS, L. Introdução ao Novo Testamento. p. 196-197.
24
Infelizmente nenhuma das versões em português conhecidas tomou a mesma medida ainda.
25
CARSON, D. A. O Comentário de João. p.334.
26
Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2000. p. 2005.
27
T. Zahn apud MAUERHOFER, E. Uma Introdução aos escritos do Novo Testamento. São Paulo: Vida, 2010.259.
Também considera um adendo MARSHALL, I. H. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: 2007. p. 442. Discorda
veementemente CARSON, D. A. O Comentário de João. p. 665-668.
28
KÜMMELL, W. G. Introdução ao Novo Testamento. 2ª edição. São Paulo: Paulinas, 1982. p.263. Kümmell conclui
pela opção de um redator desconhecido para o capítulo 21.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 15
fato, não morreria até a volta de Jesus. A primeira alternativa dá impressão de ser mais viável, mas
seja como for, é bem provável que alguém está tentando corrigir alguma coisa relacionada à
situação do apóstolo João.
3) O versículo 24 faz uma reivindicação da autenticidade do testemunho de João (também 19.35).
Portanto, embora seja uma questão para qual nunca haverá uma solução definitiva, a visão
de que os discípulos de João completaram a sua obra tem mais a seu favor. Certamente, eles fizeram
isso logo após a obra ter sido concluída, mas não publicada, visto que a evidência manuscrita
sempre traz o evangelho com o capítulo 21.29.
A COMUNIDADE JOANINA
“Hoje é lugar comum dizer que a escola ou comunidade círculo joanino preservou os
escritos de João a respeito de Jesus (o Evangelho de João) e também a correspondência de João
(1João; 2João; 3João)”.30 A obra “A comunidade do discípulo amado” de R. E. Brown, publicada
em 1979, foi a primeira tentativa de apresentar uma teoria completa sobre a existência de uma
comunidade em torno do apóstolo João, de onde teria surgido a maior parte do material joanino
neotestamentário. A partir de aperfeiçoamentos históricos e exegéticos, a tese atualmente é assim
apresentada (em linhas gerais):
Primeira fase: o apóstolo João planta igrejas na região de Éfeso. Uma comunidade de crentes
heterogênea, formada por judeus da diáspora e gentios que não conheciam quase nada do AT. Em
comum a fé e a lealdade em Jesus como Messias.
Segunda fase: a produção do quarto evangelho. Para uma comunidade que vivia sob a ameaça e o
preconceito judaicos, a primeira versão do evangelho de João é produzida, colecionando os
testemunhos de João, e enfatizando 1) a separação do mundo, que é hostil à igreja; 2) a união com
Deus e ação do Espírito Santo no meio de deles; 3) a unidade da igreja.
Terceira fase: a produção das cartas. As ameaças que antes eram externas, agora são internas
também. Um grupo de cristãos passou a usar elementos do quarto evangelho para se considerarem
inspirados pelo Espírito e aplicar a irmãos da igreja o vocabulário que antes era reservado ao
mundo. Nessa fase, o quarto evangelho passou um processo de edição, para explicitar uma visão
contrária aos ensinos desse grupo (nesse ponto foi acrescentado o prólogo, por exemplo). A morte
29
Considerando que muitos estudiosos acham estranho que João chame a si mesmo de “o discípulo amado”, o que soa
um pouco pretensioso, poderia-se dar um passo adiante nessa hipótese e afirmar que todas as ocorrências dessa
expressão foram inseridas pelos mesmos discípulos que foram autores do capítulo 21.
30
BURGE, G. M. João, Cartas de. In: DTNT, p. 730.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 16
de João também deve ter dado ensejo à produção do capítulo 21 e a criação do título “o discípulo
amado”. E nesse ponto, as cartas foram produzidas como respostas a esses grupos dissidentes que
distorciam o quarto evangelho.
Quarta fase: divisão. 2 e 3 João sinalizam que provavelmente a igreja joanina dividiu. O
aproveitamento do quarto evangelho por grupos gnósticos, pode indicar que alguns desses grupos
são dissidentes dessa primitiva comunidade joanina. Especialmente 1João é a tentativa de manter o
quarto evangelho alinhado à ortodoxia neotestamentária.
AS EPÍSTOLAS DE JOÃO
ESBOÇO DE 1ª JOÃO:31
1.1-4: prólogo;
1.5-2.17: a comunhão com Deus como andar na luz;
1.5-2.2;
2.3-6;
2.7-11;
2.12-14;
2.15-17;
2.18-3.24: a situação atual da igreja;
2.18-29;
3.1-3;
3.4-10;
3.11-18;
3.19-24;
4.1-5.12: a separação entre os que são da Igreja e os que são do mundo;
4.1-6;
4.7-12;
4.13-21;
5.1-5;
31
As grandes seções são sugeridas na obra de CARSON, D.A; MOO, D. J.; MORRIS, L. Introdução ao Novo
Testamento. p. 493-494, seguindo a sugestão de Rudolf Schnackenburg. A identificação das perícopes individuais são
fruto da avaliação pessoal do professor. 2ª e 3ª João são tão pequenas que não cabem divisão de conteúdo.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 17
5.6-12;
5.13-21: conclusão;
5.13-20;
5.21.
AUTORIA/CANONICIDADE:
A discussão sobre a autoria das cartas joaninas passa pela relação das cartas com o quarto
evangelho. Nesse sentido, a primeira carta é unanimemente atribuída ao mesmo autor do quarto
evangelho, isto é, o apóstolo João. No que se refere a evidência externa, textos de Clemente de
Roma, da Didaquê, da Epístola de Barnabé e de Policarpo, todos do final do século I e do início do
século II, contém alusões que podem ter sido extraídas sobretudo de 1João. Irineu, no século II,
atribui explicitamente 1 e 2João ao mesmo autor do 4º evangelho. Orígenes (185-254) é o primeiro
a referir-se às três epístolas, mas ao mesmo tempo ele afirma que muitos dos seus contemporâneos
duvidavam da autenticidade de 2 e 3João. Dionísio de Alexandria (falecido em 265) discípulo de
Orígenes, afirmou que o apóstolo João escreveu o evangelho e 1João, e apenas conheceu 2 e 3João.
Orígenes (por volta de 231) e Eusébio (em cerca de 325) fizeram listas apontando o estado
da discussão sobre canonicidade dos livros do Novo Testamento. E em ambas as listas, o evangelho
e 1João aparecem como incontestáveis, enquanto 2 e 3 João eram consideradas escritos duvidosos.
Já nas listas de Atanásio (367) e dos concílios de Hipona (393) e Cartago (397), 2 e 3João
figuravam como escritos certamente canônicos. Na época da Reforma, tanto do lado católico,
quanto do protestante ressurgiram questionamentos acerca da autoria de 2 e 3João.32
Do ponto de vista interno, a relação entre o evangelho e 1João é indiscutível. Como afirma
Sief van Tilborg: “Não há quem prescinda de João para explicar 1João – nem mesmo os que
pensam que 1João foi escrito por outro autor”.33 São relações vocabulares, estilísticas e teológicas.
Já para a 2 e 3 epístolas, essa relação é mais tênue, até por causa do seu tamanho muito pequeno.
Por outro lado, é mais fácil enxergar alguma relação entre 2João e 1João,34 e um pouco menos entre
3João e 1João.35
Excetuando-se algumas reconstruções históricas muito especulativas, pode-se dizer que há
32
CARSON, D.A; MOO, D. J.; MORRIS, L. Introdução ao Novo Testamento. p. 494-499, 506.
33
THEVISSEN, G.; KAHMANN, J. J. A.; DEHANDSCHUTTER, B. As cartas de Pedro, João e Judas. São Paulo:
Loyola, 1999. p.179.
34
Muito forte para Sief van Tilborg. cf. THEVISSEN, G.; KAHMANN, J. J. A.; DEHANDSCHUTTER, B. As cartas
de Pedro, João e Judas. p.277.
35
Sief van Tilborg considera que esta carta está longe do restante do corpo joanino. cf. THEVISSEN, G.; KAHMANN,
J. J. A.; DEHANDSCHUTTER, B. As cartas de Pedro, João e Judas. p.285.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 18
duas posições principais, plausíveis histórica e textualmente. A primeira é que atribui as três cartas
ao mesmo autor do evangelho, o apóstolo João.36 A segunda é que atribui 1João e o evangelho ao
mesmo autor, e 2 e 3João ao João, chamado de “o presbítero” por Papias.37 O ponto é que
justamente na 2 e 3 cartas é assim que o autor se qualifica: 2João 1 “O presbítero à senhora
eleita...”; 3João 1 “O presbítero ao amado Gaio...”.38 Esta posição é favorecida pela aceitação lenta
e polêmica das duas cartas na Igreja antiga, bem diferente da realidade do evangelho e de 1João.
Ademais, a escolha é corroborada pela posição exegética contemporânea que fala de uma
“escola”, uma “comunidade” ou um “círculo” joanino. É um grupo que teria sido inspirado pelo
apóstolo João, mas teve vários discípulos (inclusive o presbítero João da citação de Papias), de
modo que a autoria dos cinco livros da literatura joanina seria atribuída a distintos autores desse
círculo. O círculo estava radicado em Éfeso. F. F. Bruce considera plausível essa proposta,
mostrando que já antigas tradições apontavam nessa direção.39
DATA:
Para a datação das cartas pesam sobretudo duas considerações.
1) A relação com o quarto evangelho. Os estudiosos favorecem a opinião de que as cartas são
posteriores ao evangelho.
2) A questão do conteúdo. As cartas parecem conceitualmente mais próximas da virada do século I
para o II, isto é, elas são escritas para combater problemas religiosos mais comuns nesse período,
inclusive suscitados por uma interpretação equivocada do quarto evangelho.40 É necessário ainda
lembrar que 1João está mais próxima do evangelho, e que as atestações nos pais da Igreja começam
no século II, com mais citações em favor de 1João.
Assim sendo, uma data provável para 1João seria entre 85-90 e para 2 e 3João entre 95-100.
36
Assim, CARSON, D.A; MOO, D. J.; MORRIS, L. Introdução ao Novo Testamento. p. 494-499; MARSHALL, I. H.
Teologia do Novo Testamento. São Paulo: 2007. p. 457. KÜMMELL, W. G. Introdução ao Novo Testamento. 2ª edição.
São Paulo: Paulinas, 1982. p.571-593. Cabe observar, porém, que Kümmell considera que o autor do evangelho e das
epístolas é o mesmo, mas não é João, o apóstolo. Por outro lado, ele considera possível que 2 e 3João possam vir da
autoria de João, o presbítero, citado por Papias, mas ele não julga ser capaz de decidir sobre essa citação.
37
BRUCE, F. F. Pedro, Estevão, Tiago e João. p. 122, mostra vários exegetas modernos, inclusive conservadores,
avaliam que Eusébio entendeu corretamente a citação de Papias, isto é, a existência de dois Joões.
38
Quem atribuí tudo ao João filho de Zebedeu tem que explicar porque o apóstolo intitula aqui de “o presbítero”.
CARSON, D.A; MOO, D. J.; MORRIS, L. Introdução ao Novo Testamento. p. 497-498 nota a dificuldade.
39
BRUCE, F. F. Pedro, Estevão, Tiago e João. Essa ideia é reforçada pela impressão que o capítulo 21 do evangelho
possa ter sido acrescentado pelos discípulos de João.
40
CARSON, D.A; MOO, D. J.; MORRIS, L. Introdução ao Novo Testamento. p. 500; MAUERHOFER, E. Uma
Introdução aos escritos do Novo Testamento. p. 557.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 19
LOCAL:
Não há nenhum outro lugar tão relacionado à tradição quanto Éfeso.
CARACTERÍSTICAS:
1João não apresenta nenhum destinatário específico. Também faltam os elementos formais
das cartas gregas contemporâneas. Juntando-se a isso a dificuldade de apontar uma estrutura clara
no livro, alguns estudiosos pensam que não se trata realmente de uma carta, mas seria um manifesto
dirigido a todos os cristãos da época.41 No entanto, uma solução intermediária propõe que a carta
tenha sido encaminhada a várias congregações específicas de uma determinada região.42
Quanto ao objetivo de 1João, Sief van Tilborg assevera com muita propriedade: “na exegese
de 1Jo... dá-se muita importância à caracterização dos adversários com os quais o autor polemiza”.43
Ele afirma isso, para defender que nesta epístola “o protagonista é Jesus”. De fato, 1João é uma
carta polêmica, com objetivo de combater tendências heréticas relacionadas a um protognosticismo
ou docetismo e cerintianismo embrionários, que até mesmo influenciou um grupo de membros, a
ponto deles terem abandonado a comunidade.44 A importante colocação de Tilborg mostra que o
conteúdo da epístola pode ser entendido tendo como foco a revelação do filho de Deus em Jesus.
2João se dirige à “senhora eleita e seus filhos”. Respeitados exegetas consideram que
realmente se trata de uma respeitável mulher com grande número de filhos,45 mas parece ter razão
46
quem considera que aqui temos uma referência a uma comunidade cristã. Já 3João foi dirigida a
um indivíduo chamado Gaio. Quanto aos objetivos, segundo Kümmell, 2João visa combater uma
cristologia docética, enquanto 3João quer incentivar a acolhida aos pregadores itinerantes. Ela
elogia Gaio e Demétrio, e critica Diótrefes. O pequeno tamanho e os elementos formais de ambas
expressam melhor o estilo epistolar helenista.47
41
KÜMMELL, W. G. Introdução ao Novo Testamento. p. 574-575.
42
Assim, CARSON, D.A; MOO, D. J.; MORRIS, L. Introdução ao Novo Testamento. p. 493; MARSHALL, I. H.
Teologia do Novo Testamento. p. 460.
43
THEVISSEN, G.; KAHMANN, J. J. A.; DEHANDSCHUTTER, B. As cartas de Pedro, João e Judas. p.181-183.
44
CARSON, D.A; MOO, D. J.; MORRIS, L. Introdução ao Novo Testamento. p. 501-505; MARSHALL, I. H. Teologia
do Novo Testamento. p. 461.
45
Alguns nomes em THEVISSEN, G.; KAHMANN, J. J. A.; DEHANDSCHUTTER, B. As cartas de Pedro, João e
Judas. p.285. Já MARSHALL, I. H. Teologia do Novo Testamento. p. 458, embora não se decida, afirma: “seria
agradável pensar que ao menos um texto do Novo Testamento tenha sido dirigido especificamente a um destinatário
feminino”.
46
THEVISSEN, G.; KAHMANN, J. J. A.; DEHANDSCHUTTER, B. As cartas de Pedro, João e Judas. p.285. Deve-se
perceber, assim, que não é uma carta dirigida à Igreja universal, conforme observa CARSON, D.A; MOO, D. J.;
MORRIS, L. Introdução ao Novo Testamento. p. 500.
47
KÜMMELL, W. G. Introdução ao Novo Testamento. p. 586-590.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 20
CONTEÚDO:48
Teologia - Há uma dupla ênfase: a relação Deus e Jesus, de um lado, e a relação Deus e seu
povo do outro. Se testemunhar é se comprometer, 1João afirma que Deus se comprometeu com
Jesus.
Cristologia - 1João combate tendências docéticas. Diante dos muitos “espíritos” (pessoas
supostamente inspiradas), a encarnação é o critério da mensagem. Esse é o anticristo: quem não
confessa que Jesus veio em carne. Qualquer um pode ser um anticristo. O problema do docetismo
também está em vista em 5.6: Jesus é o Cristo tanto no batismo quanto na morte de cruz. Jesus
também é visto como “advogado” (1João 2.1).49 Ou seja, ele é nosso intercessor (aponta para o
título de Sumo Sacerdote) e ele continua em atividade.
A vida cristã - É preciso renunciar ao pecado. O pecado não pode ser a rotina de quem está
em Cristo. Destarte, o amor é a característica do comportamento cristão, tanto em relação aos
crentes, quanto aos não crentes. Nosso amor às pessoas é resposta ao amor de Deus por nós. O amor
é a essência de Deus, e assim, apenas olhando para Deus e para Jesus podemos conhecer
verdadeiramente o que é o amor.
CRÍTICA TEXTUAL
Do ponto de vista da crítica textual, o texto de 1João 5.7-8 é consensualmente considerado
um acréscimo posterior, que não fazia parte do texto original da carta. Ele é chamado de Comma
Ioaneum, e é proveniente de um comentário de Cipriano. Na Espanha, ele foi introduzido na
Vulgata e então passou a fazer parte do texto canônico.50 Entre os manuscritos gregos ele só aparece
a partir do século XI!51 No textus receptus, ele foi acrescentado por Erasmo.52
48
O que segue é o resumo do que está apresentado em MORRIS, L. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Vida
Nova, 2009. p. 347-352.
49
Duas observações. Primeiramente, a expressão grega é parácletos, que vai muito além do sentido moderno de
advogado. Em segundo lugar, a expressão “junto ao Pai” não quer dizer que o Pai seja o nosso acusador, mas indica, ao
contrário, onde e com quem está o nosso parácletos: “junto ao Pai”.
50
THEVISSEN, G.; KAHMANN, J. J. A.; DEHANDSCHUTTER, B. As cartas de Pedro, João e Judas. p.267, nota
180.
51
CARSON, D.A; MOO, D. J.; MORRIS, L. Introdução ao Novo Testamento. p. 505.
52
KÜMMELL, W. G. Introdução ao Novo Testamento. p. 578.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 21
APOCALIPSE DE JOÃO
AUTOR
Ao contrário das outras obras joaninas, Apocalipse identifica claramente o seu autor: João
(1.1, 4, 9; 22.8). Entre os pais da Igreja, no século II Justino Mártir, o cânon Muratoriano, Irineu e
Melito de Sardes reivindicavam que esse João era o apóstolo João. No século III, Clemente de
Alexandria, Tertuliano, Orígenes, Hipólito e Cipriota defenderam a mesma identificação. 53 Daí para
frente a atribuição do Apocalipse a João apóstolo foi quase unânime, com exceção de uma séria
contestação.
Em meados do terceiro século, Dionísio de Alexandria (bispo desta cidade a partir de 248)54
fez uma profunda avaliação das obras atribuídas a João, e concluiu que o autor de Apocalipse não
pode ser o mesmo autor do evangelho, pelas seguintes razões:
1) O autor de apocalipse não afirma ser apóstolo, nem testemunha ocular de Jesus, nem se
denomina “o discípulo amado”, como no evangelho.
2) Os conceitos e a disposição do material em Apocalipse são completamente diferentes do
evangelho e de 1João.
3) O grego de Apocalipse é bem diferente (e inferior) do evangelho e de 1João.55 Na época,
Dionísio e outros que compartilharam sua opinião lutavam contra a doutrina do quiliasmo baseada
em Apocalipse 20.1-6, isto é, a ideia de um futuro reino milenar de Cristo na Terra.56 Assim, muitos
estudiosos consideram que a ação de Dionísio de questionar a autoria apostólica de Apocalipse foi
influenciada pela sua objeção à doutrina quiliasta.
Não obstante, no século IV o Apocalipse foi incluído nas listas canônicas conciliares, com
exceção do concílio de Laodicéia (360). As igrejas ocidentais não mais questionaram a
canonicidade de Apocalipse a partir do século quarto. Entre as igrejas orientais isso só foi realidade
a partir do século VI.57 Na época da reforma, Lutero inicialmente teve algumas reservas ao livro. Ao
longo dos anos, ele passou a olhá-lo de forma mais positiva, mas sempre o colocou em uma lista
canônica separada, que também incluía Hebreus, Tiago e Judas.58
53
KISTEMAKER, S. Apocalipse. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. p. 33-37; CARSON, D.A; MOO, D. J.; MORRIS, L.
Introdução ao Novo Testamento. p. 520-521; KÜMMELL, W. G. Introdução ao Novo Testamento. p. 618-621;
MAUERHOFER, E. Uma Introdução aos escritos do Novo Testamento. p. 569-571.
54
KISTEMAKER, S. Apocalipse. p. 77.
55
CARSON, D.A; MOO, D. J.; MORRIS, L. Introdução ao Novo Testamento. p. 521.
56
Idem. É o que depois ficou conhecido como pré-milenismo.
57
KISTEMAKER, S. Apocalipse. p. 78.
58
KISTEMAKER, S. Apocalipse. p. 78s; KÜMMELL, W. G. Introdução ao Novo Testamento. p. 620. Segundo
Kistemaker, embora Calvino não tenha escrito um comentário sobre o Apocalipse, as citações desse livro nas diversas
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 22
compreendido durante o governo de Domiciano.63 Ele foi imperador entre 81 e 96. Durante a
primeira parte do seu governo ele foi tolerante em relação aos cristãos, mas no final do seu governo,
quando ele assumiu o título de “senhor e deus”, o culto ao imperador passa a ser propagado, e na
medida que os cristãos se negam a participar deles, passam a ser perseguidos pelo estado. Isso tudo
acontece por volta do ano 94.64 Assim, podemos situar o Apocalipse nessa época.
Os destinatários do livro devem ser encontrados em 1.4: “... às sete igrejas que se encontram
na Ásia”. Assim, o Apocalipse é escrito para incentivar os cristãos a perseverar na fé diante das
perseguições, pois mesmo que muitos cristãos sejam mortos, a história está no controle de Jesus,
apenas ele é o “Soberano dos reis da Terra” (1.5).65
GÊNERO
A chamada literatura apocalíptica judaica é considerada um gênero literário surgido no
século II antes de Cristo, e que perdurou até o século I da era cristã.66 O período de surgimento é o
tempo que os judeus sentem a ausência da voz profética, e ao mesmo tempo experimentam fortes
pressões religiosas, sobretudo as perseguições e a helenização provenientes de Antíoco Epífanes.
Nesse cenário, os textos apocalípticos eram escritos para explicar o momento atual de prevalência
do mal, estimular a esperança na intervenção futura e escatológica de Deus e ainda motivar a
perseverança dos fiéis em meio às perseguições. 67
A literatura apocalíptica possui antecedentes na literatura profética do Antigo Testamento,
mas possui diferenças significativas. Entre as suas características peculiares, destacam-se:
1) Apresentam revelações recebidas por meio de sonhos e visões.68
2) São extremamente simbólicos, lançando mão de números, cores, nomes e experiências com
significados representativos.
63
Parece que o primeiro a defender esse ponto de vista foi Irineu. Para a discussão cf. CARSON, D.A; MOO, D. J.;
MORRIS, L. Introdução ao Novo Testamento. p. 527-531; KISTEMAKER, S. Apocalipse. p. 44-60; MAUERHOFER,
E. Uma Introdução aos escritos do Novo Testamento. p. 574-576; REICKE, BO I. História do Tempo do Novo
Testamento. São Paulo: Paulus, 1996. p. 276-277.
64
Contra a data na época de Nero temos que a perseguição com ele foi localizada em Roma; o culto ao imperador não
estava disseminado e a situação das Igrejas descritas no Apocalipse se encaixa melhor no final do século 1. Uma
questão interna que poderia contribuir para a elucidação da data do Apocalipse é a interpretação de Apocalipse 17.9-10:
“... as sete cabeças são sete montes, nos quais a mulher está sentada. São também sete reis, dos quais caíram cinco, um
existe, e o outro ainda não chegou; e, quando chegar, tem de durar pouco”. A mulher sentada é uma referência a Roma.
Os reis seriam imperadores romanos, dos quais o sexto está no poder. Os estudiosos, porém, não entram em consenso na
identificação e contagem dos imperadores.
65
A escolha do número sete pode indicar, dentro do simbolismo do Apocalipse, que o livro tem em vista todos os
cristãos.
66
COSTA, H. M. P. A literatura apocalíptico-judaica. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1993. p. 26-27;
CARSON, D.A; MOO, D. J.; MORRIS, L. Introdução ao Novo Testamento. p. 532-33.
67
BIRSDALL, J. N. Apocalíptica. In: DOUGLAS, J. D. (org.). O Novo Dicionário da Bíblia. 2ª ed. São Paulo: Vida
Nova, 1999. p.89-91.
68
BIRSDALL, J. N. Apocalíptica. In: DOUGLAS, J. D. (org.). O Novo Dicionário da Bíblia. p.89-91.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 24
3) São escritos através de pseudônimos, ou seja, atribui-se a autoria das revelações a grandes
personalidades do passado. Muitos veem a pseudonímia com restrições, pois, em última análise,
entende-se que o verdadeiro autor está enganando seus leitores.
Mas por que os autores da época utilizavam esse recurso? Existem algumas considerações
que podem ser combinadas.
1) De acordo com R. H. Charles, como a voz profética havia cessado, esses escritores não seriam
ouvidos com base na sua própria autoridade.69
2) Para Ray Summers, nenhum autor sentia que estava sendo antiético com essa atitude, ao
contrário, como eles empregavam muito material de fontes primitivas, na verdade a impressão era
que os autores estavam abrindo mão do seu orgulho e fama pessoais para servir a obra de Deus.70
3) Tendo em vista que muitas dessas obras criticavam as autoridades políticas e religiosas que
estavam no poder, a pseudonímia servia como proteção e segurança.71
4) Dualismo entre esta era dominada pelo mau e o sofrimento, e a era futura, que será abençoada. 72
5) Reflete as tensões do presente histórico do autor. Ela procura dialogar com a sua realidade
histórica-religiosa. Na verdade, os autores dão a impressão de que a situação atual já foi prevista por
um profeta do passado, com intenção explícita de mostrar as pessoas: o que estamos vivendo não é
uma surpresa, mas tudo está dentro dos planos de Deus!73
No Antigo Testamento, os primeiros elementos apocalípticos aparecem nos livros de Isaías,
Zacarias e especialmente, Daniel. Há indícios que a apocalíptica teve grande influência no
desenvolvimento do cristianismo primitivo. No Novo Testamento, o sermão escatológico de Jesus,
as cartas ao Tessalonicenses e, obviamente, o livro de Apocalipse são os melhores exemplos do
gênero.74 Eles mantiveram alguns aspectos da apocalíptica judaica, mas foram profundamente
influenciados pelo advento do Filho de Deus. Este é o eixo que deve nortear a avaliar do
Apocalipse.
símbolos que aparece no livro. Na verdade, dos 404 versículos do Apocalipse, há em torno de 500
alusões ao Antigo Testamento. 75
MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO76
Podemos resumir os métodos de interpretação em quatro.
1) Abordagem preterista. Interpreta que todo o conteúdo do Apocalipse se refere a época de João.
Assim, não haveria no livro nenhuma referência ao futuro.
2) Abordagem historicista. Interpreta o livro como um roteiro da história mundial, sagrada e secular,
desde o pentecostes até o juízo final. Nessa perspectiva, o intérprete procura correlacionar símbolos
do Apocalipse com datas e eventos históricos e contemporâneos. Assim, na Idade média a besta que
emergia do mar era o Islamismo; na reforma, o anticristo era o Papa, e assim por diante. Ainda hoje
é uma visão popular entre os dispensacionalistas.
3) Abordagem futurista. Aqui, todo o conteúdo a partir do capítulo 4 se refere aos últimos
momentos da história, concomitantes a vinda de Cristo.
4) Abordagem idealista. Entende que o Apocalipse não trata de uma lista de acontecimentos, seja do
passado ou do futuro, mas de princípios teológicos que perpassam a história humana até a volta de
Cristo. É um livro que mostra para o povo de Deus a realidade espiritual que opera ao longo (e por
trás) dos eventos históricos, tanto a ação e oposição diabólicas, quanto a soberania de Deus, o
cuidado dele para com seu povo até o grande momento da volta de Jesus Cristo, com o juízo final e
os novos céu e terra. De fato, essa é a melhor forma de interpretação.
ARRANJO DO CONTEÚDO
Não é fácil estruturar o conteúdo do Apocalipse. Propostas que enxergam uma disposição
linear, como uma narrativa onde os eventos se sucedem, não demonstram ser muito apropriadas. Do
ponto de vista literário, o livro é melhor compreendido pelo método da recapitulação: 77 ciclos e
cenas que recapitulam a mesma mensagem básica, mas sempre ampliando ideias e imagens. Junto
com a recapitulação o autor usa o método da inclusão, em que o final de uma sequência funciona
com abertura de outra, e o método de intercalação, em que uma sequência é interrompida para
75
KISTEMAKER, S. Apocalipse. p. 31. Por outro lado, só existem 14 citações diretas do Antigo Testamento no
Apocalipse.
76
Para o que segue, cf. KISTEMAKER, S. Apocalipse. p. 60-68; CARSON, D.A; MOO, D. J.; MORRIS, L. Introdução
ao Novo Testamento. p. 538-539.
77
Segundo McGINN, Bernard. Apocalipse. In: ALTER, Robert; KERMODE, Frank (orgs.). Guia Literário da Bíblia. p.
571-572, o bispo mártir grego Vitorino de Pettau, escreveu em cerca de 300 d.C. um comentário em latim do
Apocalipse, em que pela primeira vez a noção de recapitulação foi utilizada.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 26
introduzir uma outra cena, continuando a seguir a narrativa da sequência anterior. 78 Do ponto de
vista profético-teológico, podemos designar a compreensão do conteúdo como um “paralelismo
progressivo”.79 Dessa forma, o conteúdo do Apocalipse está disposto em ciclos que tratam dos
mesmos eventos, sendo que cada ciclo apresenta novos e diferentes aspectos dos mesmos eventos:
várias vezes o conflito entre o exército do mal e o povo de Deus; várias vezes o juízo final; várias
vezes a vinda de Cristo.
SENHOR GLORIOSO
Jesus é visto de forma gloriosa.82 Ele é visto no céu, recebendo o louvor de toda a criação.83
Ele está no controle dos acontecimentos.
Mas paradoxalmente esse Senhor glorioso é o Cordeiro: aquele que foi morto. João enfatiza
o sacrifício de Jesus.
DEUS
João mostra sua reverência para diante de Deus ao evitar descrevê-lo. Ele usa a fórmula “é
semelhante” (o(/moioj).
A questão da justiça de Deus também sobressai no Apocalipse. Os sofrimentos e
calamidades estão relacionados aos males praticados pelas pessoas.
Deus está em oposição às forças do mal, vistas de forma espiritual. A liderança pertence ao
próprio Satanás. A grande cidade da Babilônia é a metáfora da sociedade humana corrompida. E
assim, João espera o juízo de Deus sobre Satanás e sobe todos os seus seguidores.
78
McGINN, Bernard. Apocalipse. In: ALTER, Robert; KERMODE, Frank (orgs.). Guia Literário da Bíblia. p. 565-566.
79
KISTEMAKER, S. Apocalipse. p. 23-24.
80
O que segue é o resumo de MORRIS, L. Teologia do Novo Testamento. p. 353-359.
81
Não dá para saber porque Morris fala em “pequena igreja”. As sete igrejas dos capítulos 2-3 de Apocalipse têm a
intenção de se referir a todas as igrejas da época.
82
O livro de Apocalipse não enfatiza o tema da humanidade de Jesus.
83
Destaque para os quatro seres viventes, que parece representar todos os seres espirituais que servem a Deus, e os
vinte quatro anciãos, que deve significar todo o povo de Deus.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 27
ANTECEDENTES
Percebemos de antemão, que o gênero evangelho possui antecedentes no Antigo
Testamento. Com a profecia compartilha os dois níveis de ouvintes: os ouvintes do Jesus histórico e
os ouvintes (e/ou leitores) dos evangelhos escritos. Em relação a narrativa hebraica, os evangelhos
seguem o estilo de apresentar a sequência de cenas e discursos, e também assumem uma perspectiva
religiosa da história.
O GÊNERO EVANGELHO
Greidanus começa discutindo as possibilidades de interpretação desse gênero. Assim, ele
rejeita a biografia (que embora valorize o aspecto histórico, deve ser rejeitada pela comparação com
literatura biográfica helenística) e a história dramática (um gênero artificial), e fica com o
entendimento de que se trata de um gênero inédito, criado pelos próprios cristãos.
Mais importante do que a designação é a caracterização do gênero. Evangelho, então, é:
1) Proclamação (kerygma). Evangelistas, antes de escritores, são proclamadores do evangelho, que
é Jesus. Dessa forma, os objetivos dos evangelhos não são informações, mas fazer pregação.
2) Boa nova. Os evangelhos são as boas novas de salvação, o que envolve julgamento,
arrependimento, perdão, graça e reconciliação com Deus.
3) Centralizados em Jesus e no Reino. Os evangelhos falam de Jesus, e Jesus falou do Reino de
Deus.
84
Os estudiosos de liturgia encontram no Apocalipse um rico material relativo ao culto cristão neotestamentário.
85
Resumo baseado principalmente em GREIDANUS, S. O pregador contemporâneo e o texto antigo. São
Paulo: Cultura Crista, 2006. p. 317-369, mas também com considerações a partir de GOLDSWORTHY, Graeme.
Pregando toda a Bíblia como Escritura Cristã. São Bernardo do Campo: Fiel, 2012.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 28
4) História kerygmática Escrita. Os evangelhos descrevem eventos históricos reais, nos quais Deus
manifestou a salvação em Jesus.
Características:
Relatos pós-ressurreição – obviamente os evangelhos são textos escritos pela Igreja sob o
impacto da ressurreição de Jesus. Foi este evento que impulsionou a coleção de histórias ligadas a
Jesus, primeiro oralmente, e depois de forma escrita, pelos evangelhos atuais. Muitos críticos,
porém, alegam que o fato dos evangelhos serem pós-pascais, implica que eles inventaram histórias
sobre Jesus para justificar a sua fé. Porém, essa desconfiança é gratuita, e certamente não passaria
desapercebido da audiência contemporânea. Não obstante, pode-se sim dizer que a narrativa
histórica dos evangelistas foi influenciada e colorida pela fé pascal, mas não inventada.
Foco kerygmático do material – por fim, Greidanus lembra que todos os procedimentos
citados acima visavam, em última análise, uma efetiva proclamação do evangelho para uma
audiência especifica.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 29
Critérios para historicidade – alguns estudiosos estabeleceram critérios diversos para separar
o que e historicamente verídico de supostas criações dos evangelistas (ou da Igreja posterior). No
entanto, a própria discussão sobre critérios já insinua uma posição de desconfiança para com os
textos. Retirando-se este pressuposto, todas as evidências apontam para a historicidade dos
evangelhos.
86
GREIDANUS, S. O pregador contemporâneo e o texto antigo. p. 328.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 30
CARACTERÍSTICAS NARRATIVAS
Cena – muitas narrativas nos evangelhos são estruturadas em sequência de cenas. Algumas
cenas apresentam um quadro completo, e devem apenas ser comparadas com outras cenas que
apresentam quadros semelhantes. Outras cenas estão conectadas umas com as outras, e o intérprete
deve perceber qual relação o autor tencionou nesta sequência.
Diálogo – os diálogos são conversas entre dois personagens, em que as vezes um deles ou
até os dois, representam grupos maiores, inclusive o próprio leitor. É um recurso muito importante
87
Como é possível que o capitulo 21 tenha sido acrescentado após a conclusão do evangelho, podemos ver nele uma
espécie de epílogo, em conexão com o prólogo de 1.1-18.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 31
em João (por exemplo, o diálogo de Jesus com a mulher samaritana, de Jesus com Nicodemus, dos
judeus com o cego de nascença que foi curado).
ESTRUTURAS RETÓRICAS
Repetição – instrumento pelo qual são repetidas palavras, frases, cenas e até discursos, com
intuito de enfatizar uma posição teológica, e/ou delinear uma estrutura literária maior.
Inclusão – são repetições como as citadas acima, mas que servem para marcar o início e o
fim de uma unidade textual, seja uma perícope, uma seção maior de várias passagens ou até mesmo
um livro inteiro. Podem ser encontradas, por exemplo, no início e no fim de Mateus (1.23/28.20) ou
na perícope de João 21.1-14.88
88
Usamos essa inclusão para delimitar a perícope trabalhada acima.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 32
Paralelismo – recurso literário por excelência na literatura judaica, também aparece nos
evangelhos. São importantes pois a explicação do texto não aparece nas linhas isoladas, mas nas
linhas paralelas. Podem ser, como no Antigo Testamento, sinonímicos, antitético ou, mais
raramente, sintético.
Passivo divino – e a utilização da voz passiva do verbo quando Deus e o sujeito da ação, e
assim evita-se o uso nome de Deus. Segundo Ralph Martin, citado por Greidanus, este recurso se
tornou predominante na literatura apocalíptica e foi usado amplamente por Jesus (o que demonstra
uma influência daquela literatura sobre Jesus). A função do intérprete é explicitar o sujeito.
Escolha do texto
Quanto a escolha de um texto para pregação nos evangelhos, a regra principal é que o texto
seja uma unidade. Como toda a perícope forma uma unidade, quem escolhe uma perícope não erra.
89
Kermode indica, por exemplo, que os milagres em João possuem sentidos diferentes para “os de dentro” e os “de
fora”, ou seja, para a comunidade crente o milagre possui um significado teológico maior do que simples demonstração
de poder ou fazer algo maravilhoso. KERMODE, Frank. João. In: ALTER, Robert; KERMODE, Frank (orgs.). Guia
Literário da Bíblia. p. 482.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 33
No entanto, considerando que a análise literária revela que uma perícope pode ser parte de uma
estrutura literária maior, ou, por outro lado, que uma perícope pode ser formada ou estruturada por
várias partes literárias, um sermão pode se utilizar de várias perícopes (desde que estejam
interligadas em uma mesma estrutura), ou de alguns versos de uma perícope. É preciso lembrar que
as opções precisam ser justificadas literariamente, e que as unidades precisam ser interpretadas à luz
do seu contexto. Não é de forma alguma recomendável (do ponto de vista exegético) o sermão
baseado em versos ou perícopes avulsas de um ou vários evangelhos, selecionados apenas pelo
gosto do pregador.
Interpretação literária
Contexto literário – não se entende um texto a parte do seu contexto. Eles não devem ser
ignorados na interpretação e na pregação.
História do Reino universal – os pregadores devem entender que o seu texto não é um ponto
isolado no tempo, mas está conectado com a totalidade da história da salvação, que começa no Éden
e vai até a parousia, passando pelo hoje, que é a situação do pregador.
Goldsworthy chama nossa atenção para o fato de que mesmo pregando nos evangelhos não
podemos perder de vista a perspectiva da história da salvação. Destacamos duas recomendações.
Primeiro, a vinculação da passagem evangélica com o Antigo Testamento e com o futuro da história
da salvação. Exemplo: a relação da promessa do Espírito Santo feita por Jesus com a dos profetas
do AT; a perspectiva escatológica das bem-aventuranças. Segundo, a percepção da existência de
diferentes etapas da história da salvação dentro dos evangelhos, sobretudo: João Batista; ministério
de Jesus até a ressurreição; ressurreição e pentecostes; tempo de testemunho da Igreja.90 Ou, em um
arranjo mais próximo das sugestões de Cullmann: a sobreposição entre a chegada da nova aliança e
o fim da antiga aliança (de João Batista até a cruz) e os eventos da cruz, ressurreição, ascensão e
pentecostes entendidos como “o meio do tempo” separados do período do Antigo Testamento e dos
últimos tempos vividos atualmente.91
90
Essa estrutura ajuda, por exemplo, a distinguir o batismo de João Batista do batismo cristão. Goldsworthy destaca a
diferença como Jesus lidava com seus contemporâneos (fisicamente) e como lida conosco hoje (pela Palavra e pelo
Espírito Santo).
91
Isso ajuda a compreender que os capítulos iniciais do livro de Atos tratam de um período de transição entre tempos.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 35
Interpretação teológica
Formulação do tema
A primeira tarefa do intérprete é definir o tema do texto. Ele deve ser formulado através de
uma declaração simples e direta, com sujeito e predicado, que expresse a intenção do autor em
escrever aquela perícope. Após o tema do texto, passa-se ao tema da pregação, que pode ser
idêntico ao texto, ou sofrer ajustes, tendo em vista o desenvolvimento da história da Salvação e o
escopo inteiro da revelação (por exemplo, um texto em que Jesus se refere ao Espirito Santo precisa
ser interligado com Atos 2), bem como as realidades da sociedade contemporânea, isto e, quais são
as perguntas de hoje, que esse texto pode responder? Quais as perguntas o seu autor original quis
que ele respondesse? Qual a relação entre aquelas e as nossas perguntas de hoje?
Forma do sermão
De acordo com Greidanus, a forma do sermão deve refletir a forma do texto. Assim, a
melhor forma de pregar uma narrativa é fazer uma narrativa que siga o desenvolvimento do texto
(não recriar uma outra sequência), e ter como clímax da mensagem o clímax do texto. No caso dos
discursos incluídos no evangelho, a ordem recomendada também é aquela do texto. Nesse caso é
preciso levar em consideração a formulação literária e retórica da passagem, identifica-la e usa-la na
exposição do texto na pregação.93
92
Um caso a pensar: qual é o sentido da parábola do bom samaritano?
93
O capítulo sete da obra de Greidanus é dedicado totalmente a este ponto. Vale a pena conferir!
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 36
Relevância do sermão
Certamente não existe lugar na Bíblia onde a relevância de pregar se mostre do que nos
Evangelhos. Neles estamos em contato direto com a vida e a obra de Jesus. Mas mesmo aqui, a
relevância da perícope não pode ser inventada pelo pregador. O único controle histórico confiável é
perguntar pela intenção do autor. Os evangelhos serão relevantes para Igreja de hoje na medida em
que descobrirmos a relevância que tinham para os seus autores e primeiros leitores.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 37
EXERCÍCIO EXEGÉTICO
Esta perícope foi escolhida por uma razão pastoral. A passagem apresenta o drama da
restauração de Pedro, que como discípulo fracassou ao negar Jesus, mas é o próprio Cristo quem
realiza a sua restauração. O tema é recorrente no cotidiano pastoral: pessoas que fracassaram na sua
fé e precisam de restauração. E justamente o papel que Pedro já exercia entre os apóstolos aproxima
o texto de uma realidade ainda mais desafiadora para as igrejas: como lidar com os líderes que
erraram? Sendo que o texto não apenas oferece uma forma da igreja olhar para esta situação, como
dá pistas aos próprios líderes, isto é, como eu devo encarar a realidade do meu próprio pecado? Será
que é possível a restauração? Em quê condições? São perguntas que o texto ajuda a responder,
oferecendo um subsídio exegético para a construção de uma abordagem pastoral. E considerando
que a exegese em questão servirá para análise entre estudantes de teologia, entre os quais muitos
miram o ministério pastoral, a proposta é mais do que pertinente.
2. Delimitação:
O texto foi assim delimitado porque nesses versículos temos um diálogo entre Jesus e Pedro
em torno da relação de Pedro com Jesus. Os versículos 1-14 constituem uma unidade baseada da
manifestação do Jesus ressurreto aos discípulos. O verbo φανερόω (manifestar-se) marca o início e o
fim da seção (vs. 1 e 14). Este artifício é chamado na exegese de inclusio.
A partir do vs. 20, embora Jesus e Pedro continuem a conversar, e no vs. 22 Jesus repita a
ordem para Pedro segui-lo (dada primeiro no vs. 19), o eixo da conversa passa de Pedro para o
discípulo que Jesus amava. Claramente, o foco narrativo muda para este discípulo. O narrador faz a
transição no versículo 19 quando interpreta o dito de Jesus como se referindo ao tipo de morte que
Pedro, para então discutir a morte do discípulo amado.94
94
A favor desta delimitação R. Schnackenburg. cf. CARSON, D. A. O Comentário de João. p. 675. Não obstante, o
próprio Carson delimita a perícope entre os vs. 15-34. Entre as traduções bíblicas brasileiras, a Edição Pastoral faz a
delimitação entre os vs. 15-19. cf. Novo Testamento Edição Pastoral. 2ª ed. São Paulo: Paulinas, 1986. A ARA delimita
os versos 15-23, a NVI delimita entre 15-25. Nas edições em grego, tanto o Novo Testamento Grego, quanto o texto da
27ª edição de Nestle-Aland dividem a perícope em 15-19. cf. ALAND, B.; ALAND; K.; et alli. O Novo Testamento
Grego. 4ª ed. Stuttgart: Deutsch Bibelgesellschaft; Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2009; NESTLE, E.; NESTLE,
E. et alli. Novum Testamentum Graece. 27ª ed. Stuttgart: Deutsch Bibelgesellschaft, 1993.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 38
3. Texto grego:
Ὅτε οὖν ἠρίστησαν λέγει τῷ Σίμωνι Πέτρῳ ὁ Ἰησοῦς· Σίμων Ἰωάννου, ἀγαπᾷς με πλέον
τούτων; λέγει αὐτῷ· ναὶ κύριε, σὺ οἶδας ὅτι φιλῶ σε. λέγει αὐτῷ· βόσκε τὰ ἀρνία μου. 16 λέγει
αὐτῷ πάλιν δεύτερον· Σίμων Ἰωάννου, ἀγαπᾷς με; λέγει αὐτῷ· ναὶ κύριε, σὺ οἶδας ὅτι φιλῶ σε.
λέγει αὐτῷ· ποίμαινε τὰ πρόβατά μου. 17 λέγει αὐτῷ τὸ τρίτον· Σίμων Ἰωάννου, φιλεῖς με; ἐλυπήθη
ὁ Πέτρος ὅτι εἶπεν αὐτῷ τὸ τρίτον· φιλεῖς με; καὶ λέγει αὐτῷ· κύριε, πάντα σὺ οἶδας, σὺ γινώσκεις
ὅτι φιλῶ σε. λέγει αὐτῷ [ὁ Ἰησοῦς]· βόσκε τὰ πρόβατά μου. 18 ἀμὴν ἀμὴν λέγω σοι, ὅτε ἦς
νεώτερος, ἐζώννυες σεαυτὸν καὶ περιεπάτεις ὅπου ἤθελες· ὅταν δὲ γηράσῃς, ἐκτενεῖς τὰς χεῖράς
σου, καὶ ἄλλος σε ζώσει καὶ οἴσει ὅπου οὐ θέλεις. 19 τοῦτο δὲ εἶπεν σημαίνων ποίῳ θανάτῳ δοξάσει
τὸν θεόν. καὶ τοῦτο εἰπὼν λέγει αὐτῷ· ἀκολούθει μοι.
4. Análise gramatical:
Versículo 15:
Ὅτε – conjunção subordinada: depois.
οὖν – conjunção coordenada: então, pois.
ἠρίστησαν – verbo no indicativo aoristo ativo 3ª p. do plural de ἀριστάω: tomaram a refeição da
manhã, fizeram o desjejum.
λέγει – verbo no indicativo presente ativo 3ª p. do singular de λέγω: diz, disse (presente histórico).95
τῷ Σίμωνι Πέτρῳ - artigo + substantivos no dativo masculino singular: a Simão Pedro.
ὁ Ἰησοῦς – artigo + substantivo no nominativo masculino singular: Jesus.
Σίμων – substantivo no vocativo masculino singular: Simão.
Ἰωάννου – substantivo no genitivo masculino singular: de João [filho de João].96
ἀγαπᾷς – verbo no indicativo presente ativo 2ª p. do singular de ἀγαπάω: amas.
με – pronome pessoal 1ª p. no acusativo singular: mim, me.
πλέον – adjetivo (comparativo) no acusativo neutro singular: mais.
τούτων – pronome demonstrativo no genitivo masculino ou neutro plural: estes.
λέγει – verbo no indicativo presente ativo 3ª p. do singular de λέγω: diz, disse.
αὐτῷ - pronome pessoal 3ª p. no dativo masculino singular: ele.
ναὶ - partícula afirmativa: sim, com certeza.
κύριε – substantivo no vocativo masculino singular: Senhor.
σὺ - pronome pessoal 2ª p. no nominativo singular: tu.
οἶδας – verbo no indicativo perfeito ativo 2ª p. do singular de οἶδα: soubeste.
ὅτι – conjunção subordinada: que.
φιλῶ - verbo no indicativo presente ativo 1ª p. do singular de φιλέω: amo.
σε – pronome pessoal 2ª p. no acusativo singular: te.
λέγει – verbo no indicativo presente ativo 3ª p. do singular de λέγω: diz, disse.
αὐτῷ - pronome pessoal 3ª p. no dativo masculino singular: ele.
βόσκε – verbo no imperativo presente ativo 2ª p. do singular de βόσκω: alimenta, apascenta.
τὰ ἀρνία – artigo + substantivo no acusativo neutro plural: as ovelhas, os cordeiros.
μου – pronome pessoal 1ª p. no genitivo singular: meu, minha..
Tradução: Quando, pois, tomaram a refeição da manhã, Jesus disse a Simão Pedro: Simão, [filho]
de João, amas-me mais do que estes? Disse-lhe: Sim, Senhor, tu sabes que te amo. Disse-lhe:
Alimenta os meus cordeiros.
95
HAUBECK, W.; VON SIEBENTHAL, H. Nova Chave Linguística do Novo Testamento Grego. p. 1443.
96
HAUBECK, W.; VON SIEBENTHAL, H. Nova Chave Linguística do Novo Testamento Grego. p. 665.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 39
Versículo 16:
λέγει - verbo no indicativo presente ativo 3ª p. do singular de λέγω: disse.
αὐτῷ - pronome pessoal 3ª p. no dativo masculino singular: ele.
πάλιν – advérbio: novamente.
δεύτερον – advérbio: segunda vez.
Σίμων – substantivo no vocativo masculino singular: Simão.
Ἰωάννου – substantivo no genitivo masculino singular: de João.
ἀγαπᾷς - verbo no indicativo presente ativo 2ª p. do singular de ἀγαπάω: amas.
με - pronome pessoal 1ª p. no acusativo singular: me, mim.
λέγει - verbo no indicativo presente ativo 3ª p. do singular de λέγω: disse.
αὐτῷ - pronome pessoal 3ª p. no dativo masculino singular: ele.
ναὶ - partícula afirmativa: sim, com certeza.
κύριε – substantivo no vocativo masculino singular: Senhor.
σὺ - pronome pessoal 2ª p. no nominativo singular: tu.
οἶδας – verbo no indicativo perfeito ativo 2ª p. do singular de οἶδα: soubeste, sabes.
ὅτι – conjunção subordinada: que.
φιλῶ - verbo no indicativo presente ativo 1ª p. do singular de φιλέω: amo.
σε – pronome pessoal 2ª p. no acusativo singular: te.
λέγει - verbo no indicativo presente ativo 3ª p. do singular de λέγω: disse.
αὐτῷ - pronome pessoal 3ª p. no dativo masculino singular: ele.
ποίμαινε – verbo no imperativo presente ativo 2ª p. do singular de ποιμαίνω: pastoreia.
τὰ πρόβατά - artigo + substantivo no acusativo neutro plural: as ovelhas.
μου – pronome pessoal 1ª p. no genitivo singular: minha.
Tradução: Disse-lhe novamente, segunda vez: Simão [filho ] de João, amas-me? Disse-lhe: Sim,
Senhor, tu sabes que te amo. Disse-lhe Jesus: pastoreia as minhas ovelhas.
Versículo 17:
λέγει - verbo no indicativo presente ativo 3ª p. do singular de λέγω: disse.
αὐτῷ - pronome pessoal 3ª p. no dativo masculino singular: ele.
τὸ τρίτον – artigo + adjetivo (ordinal) no acusativo neutro singular: pela terceira vez ou na terceira
vez.
Σίμων – substantivo no vocativo masculino singular: Simão.
Ἰωάννου – substantivo no genitivo masculino singular: de João.
φιλεῖς – verbo no indicativo presente ativo 2ª p. do singular de φιλέω: amas.
με - pronome pessoal 1ª p. no acusativo singular: me, mim.
ἐλυπήθη – verbo no indicativo aoristo passivo 3ª p. do singular de λυπέω: entristeceu-se.
ὁ Πέτρος – artigo + substantivo no nominativo masculino singular: Pedro.
ὅτι – conjunção subordinada: que.
εἶπεν – verbo no indicativo aoristo ativo 3ª p. do singular de λέγω: disse.
αὐτῷ - pronome pessoal 3ª p. no dativo masculino singular: ele.
τὸ τρίτον - – artigo + adjetivo (ordinal) no acusativo neutro singular: pela terceira vez ou na terceira
vez.
φιλεῖς - verbo no indicativo presente ativo 2ª p. do singular de φιλέω: amas.
με - pronome pessoal 1ª p. no acusativo singular: me, mim.
καὶ - conjunção coordenada: e.
λέγει - verbo no indicativo presente ativo 3ª p. do singular de λέγω: disse.
αὐτῷ - pronome pessoal 3ª p. no dativo masculino singular: ele.
κύριε – substantivo no vocativo masculino singular: Senhor.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 40
Tradução: Disse-lhe a terceira vez: Simão, de João, amas-me? Entristeceu-se Pedro porque disse-
lhe pela terceira vez: amas-me? E respondeu-lhe: Senhor, todas as coisas tu sabes, tu conheces que
te amo. Disse-lhe Jesus: Alimenta os meus cordeiros.
Versículo 18:
ἀμὴν ἀμὴν – partícula asseverativa: em verdade, em verdade, verdadeiramente.
λέγω – verbo no indicativo presente ativo 1ª p. do singular: falo, digo.
σοι – pronome pessoal 2ª p. no dativo singular: te, a ti.
ὅτε – partícula temporal (conjunção): quando.
ἦς – verbo no indicativo imperfeito ativo 2ª p. do singular de εἰμί: eras.
νεώτερος – adjetivo (comparativo) no nominativo masculino singular: mais jovem.
ἐζώννυες – verbo no indicativo imperfeito ativo 2ª p. do singular de ζωννύω: aprontavas.
σεαυτὸν – pronome reflexivo 2ª p. no acusativo masculino singular: a ti mesmo.
καὶ - conjunção coordenada: e, também.
περιεπάτεις – verbo no indicativo imperfeito ativo 2ª p. singular de περιπατέω: andavas.
ὅπου – conjunção subordinada: onde.
ἤθελες – verbo no indicativo imperfeito ativo 2ª p. singular de θέλω: desejavas.
ὅταν – conjunção subordinada temporal: quando.
δὲ - conjunção coordenada adversativa: mas, porém.
γηράσῃς – verbo no subjuntivo aoristo ativo 2ª p. singular de γηράσκω: envelheceres.
ἐκτενεῖς – verbo no indicativo futuro ativo 2ª p. singular de ἐκτείνω: estenderás.
τὰς χεῖράς – artigo + substantivo no acusativo feminino plural: as mãos.
σου – pronome pessoal 2ª p. no genitivo singular: tua.
καὶ - conjunção coordenada: e, também.
ἄλλος – adjetivo indefinido no nominativo masculino singular: outro.
σε – pronome pessoal 2ª p. no acusativo singular: te.
ζώσει – verbo no indicativo futuro ativo 3ª p. do singular: aprontará.
καὶ - conjunção coordenada: e.
οἴσει – verbo no indicativo futuro ativo 3ª p. do singular de φέρω: conduzirá.
ὅπου – conjunção subordinada: para onde.
οὐ - advérbio de negação: não.
θέλεις – verbo no indicativo presente ativo 2ª p. do singular de θέλω: desejas.
Tradução: Em verdade, em verdade, te digo, quando eras mais jovem aprontavas a ti mesmo e
andavas onde desejavas; quando, porém, [te] envelheceres, estenderás as tuas mãos, e outro te
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 41
Tradução: Isto, porém, disse indicando que tipo de morte [ele] glorificará Deus. E, tendo dito isto,
disse-lhe: Segue-me.
5. Tradução literal:
15
Quando, pois, tomaram a refeição da manhã, Jesus disse a Simão Pedro: Simão, [filho] de
João, amas-me mais do que estes? Disse-lhe: Sim, Senhor, tu sabes que te amo. Disse-lhe: Alimenta
os meus cordeiros. 16Disse-lhe novamente, segunda vez: Simão [filho ] de João, amas-me? Disse-
lhe: Sim, Senhor, tu sabes que te amo. Disse-lhe Jesus: pastoreia as minhas ovelhas. 17Disse-lhe a
terceira vez: Simão, de João, amas-me? Entristeceu-se Pedro porque disse-lhe pela terceira vez:
amas-me? E respondeu-lhe: Senhor, todas as coisas tu sabes, tu conheces que te amo. Disse-lhe
Jesus: Alimenta os meus cordeiros. 18Em verdade, em verdade, te digo, quando eras mais jovem
aprontavas a ti mesmo e andavas onde desejavas; quando, porém, [te] envelheceres, estenderás as
tuas mãos, e outro te aprontará e [o] conduzirá para onde não desejas. 19Isto, porém, disse indicando
que tipo de morte [ele] glorificará Deus. E, tendo dito isto, disse-lhe: Segue-me.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 42
6. Comparação de versões:
Como se percebe acima, nenhuma das traduções analisadas compromete o sentido original
do texto grego. Ainda assim, pode-se anotar as seguintes observações:
vs. 15: A expressão “refeição da manhã” aparece na tradução literal para explicitar a ideia do
verbo ἀριστάω, que traz esse sentido (também pode ser “desjejum”).
vs. 15: Na expressão “Simão, filho de João”, o termo “filho de” é deduzido da utilização do
genitivo, não existe literalmente no grego.
vs. 15: A ARA e a BJ traduzem o verbo βόσκω por “apascentar”, enquanto a NVI e a EP por
“cuidar”. Todas as traduções estão relacionadas ao sentido do verbo grego, mas parece que a ideia
principal do verbo é a de alimentação,97 sendo assim utilizado na LXX.98
vs. 16: A BJ traduz ποιμαίνω por “apascentar”, que embora seja uma tradução possível, não
explicita a mudança de verbo ocorrida no grego em relação ao versículo 15 e 17, onde aparece o
verbo βόσκω (que ela também traduz por “apascentar”). Por outro lado, na BJ, assim como nas
demais versões, inclusive na tradução literal, os verbos diferentes ἀγαπάω e φιλέω são traduzidos
“amar” pois são considerados sinônimos em grego, e não existir em português um sinônimo real
para “amar”.
vs. 17: Aqui aparece outra utilização de verbos de forma sinônima: οἶδα e γινώσκω. Como
parece não haver no texto nenhuma distinção explícita, não há dificuldades na opção da ARA, da BJ
e da NVI. A EP seguiu a opção da tradução literal, e tentou fazer uma distinção.
vs. 18: Neste versículo aparece o verbo ζωννύω. A ARA e a BJ traduzem por “cingir”. A NVI
opta por “vestir”, enquanto que a EP utiliza “colocar o cinto”. Todas as opções são possíveis, mas
parece que o sentido da afirmação de Jesus é mais amplo do que simplesmente colocar uma roupa.
Não obstante, “cingir” dá impressão de ser rebuscada demais.
97
cf. LOUW, J. P.; NIDA, E. A (editores). Greek-English Lexicon of the New Testament Based on Semantic Domains. 2ª
New York: United Bible Societies, 1988.
98
KÖSTENBERGER, Andreas J. João. In: BEALE, G. K.; CARSON, D. A. (orgs.). Comentário do uso do Antigo
Testamento no Novo Testamento. p. 633.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 45
vs. 18: Aqui também ocorre, no início da fala de Jesus, um duplo ἀμήν, que ARA e BJ
traduzem por “em verdade, em verdade”. Já a NVI optou por “Digo a verdade”, enquanto que a EP
usou “Eu garanto”. Ou seja, as primeiras foram mais literais, e outras interpretativas, mas sem
comprometer o sentido.
Conclusão: o último comentário já dá o tom das diferenças entre as traduções. Todas
preservam o sentido, mas a ARA e a BJ esforçam-se para uma correspondência mais literal com o
grego, enquanto que a NVI e a EP mostram preocupação em ter uma linguagem mais compreensível
ao leitor moderno.
8. Crítica textual:99
Versículo 15-17: o termo ’Iwa/nnou é substituído por Iwna (substantivo próprio no genitivo
masculino singular de Ἰωνᾶς) nos seguintes manuscritos: os unciais A, C² (uncial que passou por
revisão por um grupo de corretores por volta do século 6), K, N, G, D, Q, Y; os minúsculos das
famílias f¹ e f¹³ e os 33, 565, 700, 892, 1241, 1424, M (a maioria dos manuscritos bizantinos); o
manuscrito da antiga Latina c (em uma versão que possui pequena variação em relação ao texto que
ela apoia); toda a tradição da versão Siríaca. O aparato também informa que o termo ’Iwa/nnou é
omitido na leitura original do uncial sinaítico (a). Apoiam o texto como está (com a inclusão de
’Iwa/nnou): os unciais a (em correção feita pelo primeiro grupo de corretores), B, C (em leitura
original de um manuscrito que sofreu correções), D, L, W; lecionário 844; todas a versões coptas
disponíveis, a Vulgata e boa parte dos manuscritos da antiga versão latina.
A adoção da variante levaria o texto ser traduzido da seguinte forma: “Simão [filho de]
Jonas...”. O observar que a mesma substituição é feita nos versículos 16 e 17 da seguinte forma. No
16 a distribuição das variantes é idêntica, com a única alteração no lecionário 844 que testemunha
em favor de Iwna. No versículo 17, além do lecionário supra, Orígenes também é testemunho em
favor da alteração, enquanto o P59 (em leitura determinada por probabilidade) é adicionado aos
manuscritos anteriores em favor de ’Iwa/nnou.
Na perspectiva dos tipos de texto encontramos melhor testemunho do texto alexandrino em
favor de ’Iwa/nnou (a [nos versos 16 e 17], B, C, L W, versão copta). O Novo Testamento Grego4
classifica ’Iwa/nnou como {B}, isto é, “é quase certo que esse é o texto”. Omanson indica que a
alteração foi introduzida na tradição sob a influência da informação de Mateus 16.17, onde se diz lê:
99
O objetivo aqui é apenas apresentar uma amostra. Assim, não se fará a análise crítica de todo o texto.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 46
100
OMANSON, Roger. As variantes textuais do Novo Testamento Grego. p. 213.
101
PERKINS, Pheme. Evangelho Segundo João. In: BROWN, Raymond E.; FITZMYER, Joseph A.; MURPHY,
Roland E. (editores). Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Novo Testamento e artigos sistemáticos. p. 738. Esses
“grupos cristãos” poderiam ser comunidades que se separaram da comunidade joanina. É possível que a importância
dada a Pedro no Evangelho de João tenha como intenção manter a comunidade joanina alinhada aos demais cristãos e
igrejas apostólicas, ao mesmo tempo que se distanciando dos grupos cismáticos.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 47
discípulos, com exceção de Tomé (20.19-23) e finalmente a todos os discípulos (20.24-29). Aqui
também aparece a conclusão do evangelho. É a passagem de 20.30-31, que mostra que o evangelho
não registrou todos os feitos de Jesus, mas aqueles que foram registrados têm como intenção
promover a fé em Jesus, e por intermédio desta ter vida em seu nome. Ele mostra o viés pelo qual o
capítulo 21, e aliás, todo o livro deve ser lido.
102
KÖSTENBERGER, Andreas J. João. In: BEALE, G. K.; CARSON, D. A. (orgs.). Comentário do uso do Antigo
Testamento no Novo Testamento. p. 633.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 48
O verbo ἀγαπάω ocorre 143x no Novo Testamento, enquanto que o substantivo a)ga/ph possui
116 ocorrências. Ambos estão distribuídos de forma uniforme por toda a literatura neotestamentária,
com duas exceções: o verbo e o substantivo estão completamente ausentes do livro de Atos, e por
outro lado, há uma concentração dos dois na literatura joanina, especialmente nas epístolas de João,
de modo que o verbo ocorre 71x (sendo 31x apenas nas epístolas) e o substantivo 31x (sendo 22x
somente nas epístolas), isto é, 40% do vocabulário relacionado à a)ga/ph está no Novo Testamento
está em João.104
O mesmo resultado encontramos na avaliação de φιλέω. São 25 ocorrências deste verbo no
Novo Testamento, e destas, 13 estão no quarto evangelho e duas em Apocalipse.105
ἀγαπάω - No grego extra bíblico haviam várias palavras para amor. O Novo Testamento,
porém, somente fez uso das duas palavras que ocorrem nesse texto: ἀγαπάω e φιλέω. A primeira é a
que ocorre mais vezes. Curiosamente era uma palavra sem relevância no idioma grego antes do uso
bíblico. Na LXX (Septuaginta) frequentemente ἀγαπάω traduz o hebraico 'aheb, denotando tanto o
relacionamento entre seres humanos, quanto o relacionamento entre as pessoas e Deus. No primeiro
nível de relacionamento, pode naturalmente ser aplicada ao relacionamento sexual. Não existe uma
palavra equivalente a eros no Antigo Testamento. No relacionamento entre Deus e os homens a
palavra “amor” é usada com cautela, a fim de evitar os equívocos gregos, isto é, tanto o misticismo
exacerbado, quanto a noção de uma amor humano para com Deus, a parte de uma iniciativa de Deus
anterior. Ao longo do Antigo Testamento, o amor de Deus é descrito em uma série de ações divinas:
a criação, a eleição, as promessas, o Êxodo, entre outros, sempre tendo vista o seu povo. Assim, por
trás dessa fidelidade ao povo está o amor de Deus. Esse amor fiel de Deus ganha contornos
dramáticos em Oséias. O profeta permanece casado com uma mulher adúltera, da mesma forma que
YHWH continua fiel ao seu povo, apesar deles eles praticarem a idolatria (adultério religioso). Em
Oséias o amor de Deus é demonstrando de forma apaixonado. Essa abordagem também vai aparecer
em outros profetas. Já em Deuteronômio sobressai o tema da obediência aos mandamentos e da
dedicação ao próximo como a resposta esperada ao amor de Deus. No judaísmo helenístico ἀγαπάω
ficou sendo o conceito central para o relacionamento entre Deus e os seres humanos, e vice-versa. O
103
O que segue é o resumo de GUNTHER, W.; LINK, H. G.; BROWN, C. “amor”. In: COENEN, L.; BROWN, C.
Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 2004. p.113-125.
104
Os dados estatísticos foram extraídos da Concordância Fiel do Novo Testamento. Volume 1. São José dos Campos:
Fiel, 1994.
105
Encontra-se apenas uma ocorrência do substantivo relacionado à φιλέω no Novo Testamento. O termo fili/a só
aparece em Tiago 4.4.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 49
amor ao próximo era visto como fundamental para os judeus. Em Qumran o quadro era bem
diferente. Deus ama os integrantes da comunidade, e odeia todos que não fazem parte dela. E essa
era a atitude esperada dos membros comunidade: amar os eleitos de Deus, e odiar os que que Deus
odeia.
No Novo Testamento, ἀγαπάω é usado sobretudo para o relacionamento entre Deus e as
pessoas. Nos sinóticos, amor de Deus está diretamente ligado ao ministério de Jesus, pois na
medida em que ele acolhe os pobres, os doentes e pecadores, justamente ele expressa o amor de
Deus. Nos sinóticos sobressai mais a ação do que os discursos. Assim, as exigências do amor ao
próximo, aos inimigos e do perdão, que aparecem no Sermão do monte, são primeiramente
cumpridas pelo próprio Jesus em seu ministério. Aliás, como exigência, nos sinóticos encontramos
o principal resumo do Novo Testamento, feito pelo próprio Jesus: amar a Deus e amor ao próximo.
Embora estes preceitos já existissem no Antigo Testamento e no judaísmo, a associação e o
aprofundamentos de ambos são peculiares a Jesus: no amor se cumpre toda a Lei. Primeiro,
devemos amar a Deus como todo o nosso ser, e em seguida amor o próximo como amamos a nós
mesmos, mesmo que esse próximo seja nosso inimigo, e até nos crucifique, como no caso de Jesus.
Paulo retoma as ideias veterotestamentárias, e relaciona ἀγαπάω com eleição. O amor de Deus é o
amor que elege, e ele se revela em Jesus. Através de Cristo, as pessoas experimentam o amor de
Deus. Fora de Cristo, todos experimentam a ira de Deus. Dessa forma pode-se interpretar
1Coríntios 13 não na perspectiva da ética, mas da descrição da ação de Deus. Karl Barth sugere que
nesse texto pode ἀγάπη ser substituído pelo nome de Jesus. Por conseguinte, o crente é o pecador
que reconhece o amor de Deus, e por isso, entra na esfera desse amor e passa a ser pessoa que ama.
Ama o próximo como consequência do amor de Deus por ele. Em João o substantivo ἀγάπη é mais
frequente do que em Paulo. Nesse sentido, se em Paulo a palavra principal para o homem se voltar
para Deus é πίστις, em João é ἀγάπη. Esse amor não exclusivo de ninguém: é compartilhado pelo
Pai, pelo filho e pelos crentes.
Já no cristianismo primitivo, duas cerimônias eram praticadas para expressar o amor na
comunidade. Uma é o ósculo (Romanos 16.16; 1Pedro 5.14), o beijo de comunhão, que pode ter
sido parte regular da adoração cristã primitiva. Outra é a festa ἀγάπη, durante a qual celebrava-se a
eucaristia. Tinha conotações de alegria e solidariedade.
Φιλέω - No grego clássico, desde Homero a palavra é utilizada como amor, afeição, amizade
e sentidos afins. Como visto acima, a LXX privilegia o uso de ἀγαπάω, mas também utiliza φιλέω,
embora o hebraico tenha apenas uma única palavra para amor: ‘aheb. No Novo Testamento, é João
quem mais utiliza o verbo (13x). Os substantivos fi/lh e fi/loj são usados para amigos e para
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 50
irmãos da mesma fé. Não encontramos usos especiais do verbo Φ nos escritos neotestamentários,
além do significado básico de gostar, sentir afeição ou mesmo amar, sem distinções claras em
relação à ἀγαπάω. No caso dos substantivos, é interessante que tanto em ambientes judaicos, quanto
gregos, não se distingue claramente entre “amigos” e “parentes”, e geralmente, estes estavam
incluídos entre os primeiros. Já o φίλημα (beijo), era uma saudação comum de cortesia entre os
judeus, inclusive entre os rabinos. Foi desta natureza o beijo de Judas em Jesus. Assim, as
congregações primitivas incluíram nas suas celebrações o φίλημα ἅγιος: o ósculo santo.
Pastorear (ποιμαίνω)106
O verbo ποιμαίνω ocorre 11x no Novo Testamento, e no quarto evangelho apenas nesta
passagem. É peculiar o uso do verbo no livro de Apocalipse, em que 3x o verbo é aplicado à ação de
Jesus sobre os seres humanos. Não obstante, o substantivo poimh/n que aparece 18x no Novo
Testamento, é usado no Evangelho segundo João 6x, todas referindo-se a Jesus.107
Entre os gregos e no Antigo Oriente em geral, pastor tanto designava o trabalho de cuidar de
animais, quanto era aplicado às funções de liderança política, militar e religiosa. Até mesmo
divindades eram designadas assim. Platão fala do pastor humano como cópia do divino pastor. No
período patriarcal, o pastoreio de ovelhas, cabras e gado fazia parte das famílias nômades.
Esperava-se que os pastores se dedicassem ao seu rebanho, provendo água, descanso e proteção
contra inimigos. Após a ocupação de Canaã, a pecuária continuou sendo algo importante nas
atividades econômicas de Israel. Teologicamente, perpassa no Antigo Testamento a ideia de YHWH
como único pastor de Israel, e ao mesmo tempo, de Israel como rebanho de YHWH, ressaltando sua
soberania e seu amor espontâneo em relação ao povo. Nessa perspectiva, existem restrições à
aplicação do título de pastor aos dirigentes nacionais. Esta aplicação vai ocorrer nos profetas, mas
de forma negativa, ou seja, os pastores políticos e religiosos de Israel são criticados pela idolatria e
corrupção. Em Ezequiel e Zacarias, no entanto, começa a se delinear o Messias esperado como
futuro pastor a ser enviado. No judaísmo rabínico, a profissão de pastor de animais foi
profundamente desvalorizada. Os pastores eram suspeitos de desonestidade.
O Novo Testamento não reflete essa visão negativa em relação aos pastores vigente no
judaísmo contemporâneo. Na verdade, Jesus aplica a si mesmo e a Deus o título de pastor,
recuperando as noções veterotestamentárias (cf. Salmo 23). De fato, nos sinóticos Jesus é
106
BEYREUTHER, E. “pastor”. In: COENEN, L.; BROWN, C. Dicionário Internacional de Teologia do Novo
Testamento. p. 1587-1592.
107
Os dados estatísticos foram extraídos da Concordância Fiel do Novo Testamento. Volume 1. São José dos Campos:
Fiel, 1994.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 51
apresentado como o Pastor messiânico esperado, que vem: 1) Reunir as ovelhas perdidas da casa de
Israel, embora seu rebanho contenha ovelhas de todas as nações. 2) Ele vem morrer em prol do seu
rebanho. 3) No dia do juízo, todos estarão diante do Pastor, e ele mesmo fara a separação entre as
ovelhas e os cabritos. As ovelhas, então, formam o rebanho, a Igreja, sobretudo em João onde não
se utiliza a expressão ekklesia. Nos demais escritos do Novo Testamento, Jesus aparece como Pastor
celestial da Igreja, mas o título perde espaço para kyrios. Como título para a liderança da Igreja, os
textos são muitos tímidos, sobressaindo o título de presbítero. A exceção e justamente a conversa de
Jesus com Pedro em João 21, onde o próprio Jesus exorta que o apostolo pastoreia as ovelhas de
Jesus (comparar com a conversa de Paulo com os presbíteros em Atos 20 e a exortação de 1Pedro
5.2-4).
ἀρνίον e ἀμνός - No grego, ἀμνός é a palavra para o cordeiro, em contraste com πρόβατον
(ovelha). A LXX faz uso de ἀμνός para traduzir kebes. A palavra aparece principalmente em
passagens relacionadas aos sacrifícios. Assim, ἀμνός é o cordeiro da Pascoa na saída do Egito, nos
cultos regulares e mesmo em Isaías 53.
No Novo Testamento Jesus é descrito como ἀμνός em João 1.29, 36; Atos 8.32; 1Pedro 1.19.
Nas duas primeiras passagens é João Batista quem fala, e sua afirmação pode ser entendida a partir
de Isaías 53: Jesus é aquele que remove o pecado do mundo. Em Atos 8.32 Jesus aparece como
aquele que sofreu pacientemente e 1Pedro 1.19 sublinha a perfeição do seu sacrifício. Já o termo
ἀρνίον é encontrado apenas em João 21.15 e no livro de Apocalipse, que a utiliza 27 vezes. Em João
se refere às ovelhas de Jesus, enquanto que no Apocalipse se refere a Jesus: ele e o cordeiro que foi
morto, mas também é o líder da igreja celestial, aquele que precisa adorado, que é o Senhor da
história.
108
GESS, J.; TUENTE, R. “cordeiro”. In: COENEN, L.; BROWN, C. Dicionário Internacional de Teologia do Novo
Testamento. p. 429-432.
109
Os dados estatísticos foram extraídos da Concordância Fiel do Novo Testamento. Volume 1. São José dos Campos:
Fiel, 1994.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 52
Πρόβατον - Na língua grega a palavra conheceu vários usos. Primeiro, designava qualquer
animal de quatro patas. Depois, passou a designar o coletivo de animais: manada, rebanho, até que
também designou ovelhas propriamente ditas. Simbolicamente, a palavra podia ser usada
negativamente como uma ofensa a uma pessoa considerada inferior, bem como positivamente,
como alguém que precisa ser guiado por outra pessoa.
Na tradução grega do Antigo Testamento a palavra traz o sentido do animal ovelha em geral.
Também aparece como metáfora para o povo, sobretudo o povo de Deus. Dessa forma, o povo de
Deus são as ovelhas de Israel que precisam do cuidado e da proteção de YHWH, em última análise,
o pastor do seu povo. No Novo Testamento, Jesus segue a linha veterotestamentária, e se refere as
pessoas como ovelhas, que sozinhas ficam desorientadas e desprotegidas, mas podem encontrar
salvação no bom pastor. Assim, em Mateus ovelhas são os discípulos de Jesus, reunidos
principalmente da casa de Israel, e que após a ascensão de Jesus serão atacadas pelos lobos. João
também sublinha o relacionamento entre Jesus como pastor e os discípulos como ovelhas, com o
acento de que estas ovelhas são os eleitos pelo Pai, de todos os lugares.
Seguir (ἀκολουθέω)110
Este verbo é usado 90x no Novo Testamento, principalmente em relação aos discípulos de
Jesus durante o seu ministério terreno, por isso a grande concentração nos evangelhos: 60x nos
sinóticos, 19x em João. Além disso, 6x em Apocalipse, 4x em Atos, 1x em 1Coríntios.111
Entre os gregos o verbo possuía o sentido literal (ir atrás de alguém, acompanhar) e o
sentido metafórico (seguir a opinião de alguém, concordar). Encontra-se um uso religioso entre os
estoicos, isto é, a grande meta da vida é seguir a natureza ou Deus mesmo. Esse seguir leva a
incorporação do indivíduo na divindade.
O Antigo Testamento é muito cuidadoso em utilizar a ideia de “seguir YHWH”, e quando ela
aparece, nunca significa, como entre os estoicos, tornar-se como Deus, mas sim obedecer a ele,
submeter aos seus mandamentos. No aspecto teológico predomina o uso negativo, com crítica aos
israelitas que seguem outros deuses, desviando-se para a idolatria. O uso mais próximo dos
evangelhos e em 1Reis 19.20, onde Eliseu segue Elias como servo dele. Entre os rabinos, a palavra
serve para descrever o relacionamento entre o aluno da Torá e seu mestre.
110
BLENDIGER, C. “ἀκολουθέω”. In: COENEN, L.; BROWN, C. Dicionário Internacional de Teologia do Novo
Testamento. p. 578-581.
111
Os dados estatísticos foram extraídos da Concordância Fiel do Novo Testamento. Volume 1. São José dos Campos:
Fiel, 1994.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 53
Segundo a classificação formal de Klaus Berger a perícope de Jo 21.15-19 foi construída a partir
da utilização de alguns gêneros.113 Dominando a passagem está o que ele denomina “relato de visão
e audição”,114 visto que nos versículos 15-19 todo o cenário narrativo é suspenso e temos apenas
Pedro diante de Jesus. O objetivo da “visão” é trazer uma incumbência celestial ao visionário, que
no caso de Pedro, era a de pastorear a comunidade de discípulos de Jesus.
Os versículos 21.15-17 foram inspirados no gênero Paideutikon,115 que traz duas características
principais. Primeiro, a ideia de instruir o instrutor, ou seja, o destinatário é encarregado a liderar
112
O objetivo desta etapa é a identificação do gênero literário do texto; caracterização do gênero literário do texto e a
identificação de estruturas literárias e retóricas menores.
113
Conforme observa LIMA, M. L. C. Exegese Bíblica. p. 123-124, texto pode fazer uso de vários gêneros literários
distintos. O exegeta deve nesse caso avaliar qual seria o gênero dominante da passagem.
114
BERGER, K. As Formas Literárias do Novo Testamento. p. 255-258.
115
BERGER, K. As Formas Literárias do Novo Testamento. p. 192-193.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 54
e/ensinar um grupo com base na autoridade que quem exorta. Há, então, uma estrutura tripartite:
Jesus – Pedro – os discípulos de Jesus (que serão pastoreados por Pedro). A segunda característica
deste gênero é o uso dos imperativos, que realmente ocupam papel central na passagem, sendo
utilizados quatro vezes por Jesus.
O texto também se utiliza do gênero literário diálogo, controlado pela pergunta “tu me amas?” e
da forma do vaticínio de sofrimento, que a previsão feita por Jesus em 21.18 do futuro martírio de
Pedro.116
116
BERGER, K. As Formas Literárias do Novo Testamento. p. 233 e 266.
117
BERGER, K. As Formas Literárias do Novo Testamento. p.226-227.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 55
a Pedro:
Alimenta os meus cordeiros.
Pastoreia as minhas ovelhas.
Alimenta os meus cordeiros.
O conteúdo do texto está claramente estruturado em torno do verbo λέγω, caracterizando assim
o gênero diálogo, mencionado acima. Excetuando a moldura narrativa são 12 frases, todas elas
contendo o verbo (que ao todo aparece 14 vezes). As frases, por sua vez, estão estruturadas em
quatro seções, cada qual com um modelo tríplice: Jesus fala, Pedro responde, Jesus fala. Está última
fala de Jesus (parte C do esquema) sempre traz um imperativo. Na parte 4 a estrutura se mantém,
sendo que a fala de Pedro é substituída pelo comentário do narrador, justamente para manter o
formato. Segue o esquema:
PARTE 2: A (Jesus) Disse [λέγει]-lhe novamente, segunda vez: Simão [filho ] de João, amas-
me?
B (Pedro) Disse [λέγει]-lhe: Sim, Senhor, tu sabes que te amo.
C (Jesus) Disse [λέγει]-lhe Jesus: pastoreia [imperativo] as minhas ovelhas.
PARTE 4: B (Narrador) Isto, porém, disse [εἶπεν] indicando que tipo de morte [ele] glorificará
Deus.
C (Jesus) E, tendo dito [εἰπὼν] isto, disse [λέγει]-lhe: Segue-me [imperativo].
A situação de Pedro
É importante analisar a passagem, um diálogo entre Jesus e Pedro, à luz de todo o
relacionamento de Pedro com Jesus. Os relatos dos Evangelhos mostram que Pedro, logo assim que
Jesus formou o grupo apostólico, já ocupava um papel de destaque entre os apóstolos (o que se
confirmou depois no início da igreja, conforme o livro de Atos). Ele pertencia aquele grupo mais
íntimo de Jesus, com Tiago e João. Jesus afirmou que ele seria a “pedra” sobre a qual sua igreja
seria edificada (Mateus 16.17-19).119 A diferença de Pedro ficava ainda mais clara por suas
afirmações e atitudes que demonstravam um grande comprometimento com Jesus, como quando ele
afirmou que, se preciso, daria a própria vida por Jesus (João 13.37).
Entretanto, ao se aproximar a morte de Jesus, Pedro sofreu um grande revés. Conforme
Jesus já tinha lhe falado ele negou, não apenas que fosse um discípulo, mas até que conhecesse
Jesus (Mateus 26.66-74; João 18.17-18). Obviamente sua tristeza foi muito grande: “chorou
amargamente”, segundo Mateus 26.75. Logo ele que sempre se destacou entre os apóstolos, e que já
tinha sido advertido por Jesus que tal fato ocorreria.
Agora é preciso olhar para o capítulo 21 de João. Não se pode perder de vista que a essa
altura Pedro já tinha encontrado Jesus após sua tríplice negação. Ele foi, inclusive, um dos
primeiros a testemunharem que o túmulo estava vazio. Mas nada nos quatro evangelhos atesta que
Jesus tivesse conversado particularmente com ele antes desse episódio. A primeira parte do capítulo
21 mostra Pedro indo pescar com mais sete apóstolos: “vou pescar”, disse ele. Em Lucas 5.1-11, há
uma perícope muito semelhante a esta, onde se conta que após uma pesca frustrada, Jesus aparece a
Pedro, faz acontecer uma pesca bem-sucedida e vocaciona Pedro: “Não temas, doravante serás
pescador de homens” (Lucas 5.10). Assim sendo, o fato do Evangelho de João registrar Pedro
voltando a pescar peixes, isso após ter negado Jesus três vezes, somando-se a provável motivação
de Jesus em conversar com Pedro, leva a crer que, de algum modo, o apóstolo estava desistindo da
vocação, e voltando para sua antiga profissão. No mínimo tinha dúvidas sobre sua dignidade para
cumprir tal tarefa.
118
O objetivo aqui foi fazer uma exposição pastoral do texto, com base na interpretação firmada a partir dos
levantamentos exegéticos acima. Por esse motivo, prescindiu-se de dialogar com os diversos comentaristas que
analisam a passagem.
119
No sentido que ele era um representante dos apóstolos. Em última análise, a pedra era o grupo apostólico. É claro
que existem outras interpretações para a expressão.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 58
As perguntas de Jesus
Jesus pergunta três vezes a Pedro se ele o ama. Por que essa insistência? Independentemente
da variação das palavras,120 com certeza Cristo teve alguma intenção ao reforçar o questionamento.
Primeiramente deve-se lembrar que Pedro negou Jesus justamente três vezes. Como visto acima,
esse fato ocasionou grande frustração no apóstolo. Por outro lado, Jesus parece esperar uma
resposta positiva, ou seja, ele sabia do amor de Pedro por ele. Daí a pergunta: “Tu me amas?” Jesus
visava exatamente que ele demonstrasse para ele, para os discípulos e para Deus o seu amor por
Jesus. Cristo deu a oportunidade para ele confessar seu amor.
A primeira pergunta possui uma peculiaridade. Ela possui um termo (πλέον) que possui um
sentido de comparação: “amas a mim mais do que estes?” A questão é qual é o referente da
expressão “estes” (τούτων)? Existem duas possibilidades:121 1) Amas-me mais do que estes
discípulos me amam? 2) Amas-me mais do que a estes peixes? (ou a estas redes, ou a própria
profissão de pescador). Partindo-se do pressuposto que Pedro entendeu o que Jesus falou, no
primeiro caso a intenção de Jesus seria mostrar para Pedro que ele não precisava amar mais que os
outros discípulos. Ele queria um amor sincero, “normal”, com todas as fragilidades que um amor
humano possui. Contudo, a segunda hipótese se encaixa melhor ao contexto da passagem e da vida
de Pedro. Considerando que ele realmente estava desistindo do ministério apostólico para voltar a
sua antiga profissão, a pergunta de Jesus tinha o objetivo de fazer Pedro olhar para dentro de si, ver
que em meio a culpa, a insegurança e a tristeza por haver falhado, ainda havia amor. Assim, Jesus
queria lembrá-lo do seu verdadeiro amor e da sua verdadeira vocação.
Agora, independente da interpretação correta da pergunta, deve-se destacar que Jesus
perguntou acerca do amor de Pedro. Ora, como se viu acima, provavelmente Pedro tinha uma
expectativa muito grande em relação a si mesmo como apóstolo. Talvez seu amor por Cristo fosse
tanto que ele desejava ser um “super discípulo”. As negações de Pedro frustraram profundamente
esses anseios. Por isso Jesus perguntou simplesmente se ele o amava. Não perguntou se ele era
perfeito, se ele nunca pecou, nem o fez prometer uma fidelidade sobre-humana. Jesus mostrou para
ele que queria um discípulo que o amasse, mesmo tendo fraquezas. O imprescindível no discipulado
é o amor a Cristo.
120
Do ponto de vista gramatical, não é possível estabelecer a existência de alguma diferença no tipo de amor por causa
da alternância entre os verbos. Conforme LOURENÇO, Frederico. Bíblia, volume I: Novo Testamento: Os quatro
evangelhos. p. 411, “um consenso alargado entre os especialistas do NT de que agapân e phileîn são sinônimos no grego
dessa época”.
121
LOURENÇO, Frederico. Bíblia, volume I: Novo Testamento: Os quatro evangelhos. p. 411, afirma: “há aqui uma
ambiguidade na palavra ‘estes’ (toutôn), que pode ser masculina (referindo-se, assim, aos outros discípulos) ou neutra
([...] referindo os apetrechos próprios da vida de pescador que Pedro vai ter de abandonar para seguir Jesus até as
últimas consequências).
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 59
As respostas de Pedro
Nas suas respostas, Pedro sente-se inseguro de expressar seus sentimentos. Quando ele fala
“tu sabes que te amo”, o “tu sabes” joga a responsabilidade para Jesus. Ele não se sente à vontade
de dizer, como seria natural: “sim, eu te amo!”. Talvez tenha aprendido a lição de ser um pouco
mais comedido em suas afirmações, um servo mais humilde.
O texto diz que Pedro “entristeceu-se” por Jesus ter perguntado a terceira vez, e assim a
resposta de Pedro também muda. Ao “tu sabes que te amo”, ele acrescenta “tu sabes todas as
coisas”. Notadamente o apóstolo percebe a ligação das três perguntas de Jesus com suas três
negações. Por isso, a resposta de Pedro significa: “Senhor, tu sabes todas as coisas, sabes que te
neguei, sabes das minhas limitações, e também sabes que eu te amo”. E era exatamente neste ponto
que Jesus queria que Pedro chegasse. Queria que Pedro lembrasse que ele foi escolhido, não para
ser perfeito, mas para amá-lo. E Jesus sabia que ele o amava.
A renovação da vocação
Se Jesus repetiu três vezes a mesma pergunta, após as respostas de Pedro, ele também
repetiu três vezes uma ordem para o apóstolo: “pastoreia as minhas ovelhas!”. É nesta afirmação
imperativa que se percebe que a intenção de Jesus era tratar do ministério de Pedro. Na proporção
que o apóstolo o negou, Cristo lhe dá uma missão. E como se dissesse: “Eu sei que você me negou.
Eu conheço as suas falhas, mas eu ainda tenho uma missão para você. Ainda estou interessado em
sua vida!”.
Toda a situação quando isso ocorre também tem um significado especial para Pedro. O
encontro de Jesus com ele ocorre quando ele e outros apóstolos estavam pescando, no mar de
Tiberíades. Segundo os evangelhos sinóticos,122 a vocação de Pedro, no início do ministério de
Jesus, aconteceu da mesma forma. Nos três sinóticos Pedro é chamado a ser “pescador de homens”.
O relato de Lucas é ainda mais semelhante ao de João. Em ambos, os apóstolos tiveram uma
pescaria fracassada, e Jesus ordena-lhes que lancem a rede novamente. E sob as ordens de Jesus,
eles conseguem pescar muitos peixes. Daí, vê-se que Jesus repetiu aquela cena para,
intencionalmente, lembrar da sua vocação, do seu chamado para ser pescador de homens, não de
peixes.
Não obstante, a forma como Jesus dirige-se ao apóstolo também chama a atenção. Nas três
perguntas Jesus não fala “Pedro”, mas “Simão”. Por que? Pode ser uma mera coincidência, mas
Mateus 4.18-20; Marcos 1.16-18; Lucas 5.1-11. “Mar de Tiberíades” (João); “Mar da Galileia” (Mateus e Marcos) e
122
vem à mente que o nome “Pedro” foi dado pelo Jesus (João 1.42),123 e equivalia a um título. Jesus,
então, quer lembrar o apóstolo do “Simão” que anteriormente foi vocacionado por ele, do “Simão”
que precisava recomeçar para ser um novo Pedro, deixando para trás as falhas do antigo Pedro. Por
conseguinte, se a intenção de Jesus no diálogo é renovar a vocação de Pedro, através das afirmações
imperativas: “Pastoreia as minhas ovelhas”, Jesus deixa claro para Pedro que seu ministério precisa
basear-se no seu amor a Cristo. Jesus lhe fez uma pergunta e foi só após a resposta que ele deu a
ordem a Pedro. Ainda que o apóstolo continuasse a ter falhas, ele nunca teria sucesso no seu
ministério se prescindisse do seu amor por Jesus, ou não fizesse dele a sua base ministerial.
O sustento da vocação
Quando os apóstolos perceberam que pelas ordens daquele homem conseguiram pescar
muitos peixes, reconheceram que não se tratava de um homem qualquer, e sim de Jesus. Logo a
seguir Jesus os faz um convite: “Vinde, comei!”. Ele está na praia, lhes oferece uma refeição, e ele
próprio os serve. Diz o texto: “Veio Jesus, tomou o pão, e lhes deu, e de igual modo, o peixe”. O
relato ecoa as narrativas sinóticas da instituição da eucaristia, bem como o do encontro do
ressuscitado com os discípulos de Emaús.124 Perceba que os verbos “tomar” e “dar” em todas as
passagens são variações dos verbos λαμβάνω e δίδωμι.
E, tomando um pão (λαβὼν ἄρτον), tendo dado graças, o partiu e lhes deu (καὶ
ἔδωκεν), dizendo: Isto é o meu corpo... Semelhantemente (ὡσαύτως), depois
de cear, tomou o cálice... (Lucas 22.19-20)
E aconteceu que, quando estavam a mesa, tomando ele o pão (λαβὼν τὸν
ἄρτον), abençoou-o e, tendo-o partido, lhes deu (ἐπεδίδου); então, se lhes
abriram os olhos, e o reconheceram; mas ele desapareceu da presença deles.
(Lucas 24.30-31)
Disse-lhes Jesus: Vinde, comei. Veio Jesus, tomou o pão (λαμβάνει τὸν
ἄρτον), e lhes deu (καὶ δίδωσιν), e, de igual modo (ὁμοίως), o peixe.
(João 21.12-13)
123
Diz o texto que Jesus o designou “Cefas (que quer dizer Pedro)”. Pedro (ou Simão Pedro) é a forma mais comum dos
evangelhos referirem-se ao apóstolo.
124
Aliás, é interessante observar que as aparições do Jesus ressurreto sempre foram acompanhadas de alguma refeição.
Além deste texto no quarto evangelho, temos em Lucas a refeição com os discípulos do caminho de Emaús e, em 24.42,
Jesus comendo “um pedaço de peixe assado” como prova de sua ressurreição corporal. No texto extra canônico de
Marcos 16.14 relata-se que Jesus aparece aos discípulos quando eles “estavam à mesa”. Não obstante, parece haver
algum paralelo entre o relato lucano do caminho de Emaús e a narrativa joanina de João 21.1-14. É assunto para
pesquisas posteriores.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 61
Partindo da premissa de que o fato ocorreu exatamente conforme João narrou (não é uma
mera produção literária), é plausível pensar que Jesus teve a intenção de lembrar os apóstolos
aquele importante acontecimento. Agora, pensando principalmente em Pedro, qual intenção seria
essa? Tendo em vista que Jesus encontrou um apóstolo em crise é que o objetivo era renovar a
vocação apostólica dele, pode-se concluir que Jesus queria exatamente oferecer alimento para
Pedro: o pão e o peixe apontavam para a Ceia do Senhor,125 e esta remetia ao verdadeiro alimento
espiritual, que é Cristo. Dessa forma, Jesus queria lembrar ao seu apóstolo enfraquecido, que ele
deveria renovar as suas forças alimentando-se de Cristo. Por outro lado, quando Jesus fala para
Pedro pastoreia, apascenta as minhas ovelhas, isso inclui o alimentar as ovelhas. Por conseguinte, o
mesmo alimento que Pedro terá para se fortalecer, é o alimento que ele dará as ovelhas. Afinal, as
ovelhas não são dele. O Senhor é enfático ao falar: “minhas ovelhas, meus cordeiros”. Toda essa
interpretação da refeição oferecida aos apóstolos está de acordo com a ênfase do evangelho de João
em ver Jesus como alimento espiritual, tendo o crente a necessidade de “comer” e “beber” Cristo.
Observe-se, especialmente, alguns trechos do capitulo 6, passagem que também aponta para a
eucaristia:
Declarou-lhes, pois, Jesus: Eu sou o pão da vida; o que vem a mim jamais terá fome;
e o que crê em mim jamais terá sede. (vs.35)
Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém dele comer, viverá eternamente; e o
pão que eu darei pela vida do mundo é a minha carne. (vs. 51)
Portanto, Jesus mostrou para Pedro, para os outros discípulos e para todos os crentes que só
em Cristo há sustento para os desafios da vocação. Sem esse alimento, qualquer ministério está
fadado a perecer.
125
LOURENÇO, Frederico. Bíblia: Novo Testamento: Os quatro evangelhos. p. 410, comenta que em João 21.13 há
“uma sutil ressonância eucarística”. Lembremos que um dos artifícios literários preferidos por João é o significado
duplo. Ver abaixo a discussão desse item.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 62
16. Implicações
Consideramos que o eixo central do texto de João 21.15-19 é a questão do exercício ministerial,
especificamente as condições para o exercício do ministério, o sustento espiritual do ministério e a
renovação do ministério.
126
Por isso uma definição teológica de vocação está incluída na Constituição da Igreja Presbiteriana do Brasil, a saber, o
artigo 108. cf. Manual Presbiteriano, edição 2013.
127
McKIM, Donald. A “vocação” na Tradição Reformada. In: McKIM, Donald (editor). Grandes Temas da Tradição
Reformada. São Paulo: Pendão Real, 1998. p.298-299.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 63
tema no Novo Testamento sem considerar esta passagem. Ela mostra que, na perspectiva de Jesus,
mesmo alguém que negou a fé publicamente, pode ser restaurado ao ministério. E mesmo a forma
de Jesus tratar Pedro é algo que chama a atenção. As perguntas de Jesus exigiram uma confissão
pública e sincera do amor de Pedro por Jesus. Naturalmente, Pedro havia passado por uma
experiência de arrependimento e Jesus sabia disso. Olhando para o dia a dia da vida eclesiástica em
uma comunidade ou em um concílio, precisamos tratar cada situação individualmente, com suas
particularidades específicas, lembrando que a realidade é sempre mais complexa que a teoria
teológica. Nunca, porém, podemos esquecer de olhar para este texto como um referencial
neotestamentário nessa questão.
O EVANGELHO DE JOÃO128
NARRATIVA TEOLÓGICA
Marshall trabalha com a ideia de narrativa teológica. Mas não resolve a questão entre João e
Jesus.
128
MARSHALL, H. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2007. p. 425-455, capítulo 20.
129
LOURENÇO, Frederico. Bíblia: Novo Testamento, volume I: Os quatro evangelhos. p. 319: “João inicia seu
evangelho com uma das mais intraduzíveis afirmações alguma vez registradas por meio da palavra escrita: uma
afirmação de fulminante arrojo assertivo, de sublime alcance teológico, carregada de múltiplos e complexos sentidos”.
130
Segundo Kermode, o prólogo é uma poesia cujo eixo está entre o era e o vir a ser (ἦν e ἐγένετο). KERMODE,
Frank. João. In: ALTER, Robert; KERMODE, Frank (orgs.). Guia Literário da Bíblia. p. 478.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 65
131
A relação entre fé e milagre pode ser assim caracterizada: o milagre desperta e/ou reforça a fé, mas nunca pode
sustentá-la.
132
Segundo KERMODE, Frank. João. In: ALTER, Robert; KERMODE, Frank (orgs.). Guia Literário da Bíblia. p. 486-
487, a narrativa de João sempre possui um “propósito mais profundo, que é a representação do eterno em relação ao
transitório” e justamente a eucaristia é “o ponto de encontro do transitório e o eterno”.
133
Este tópico de João lembra a ênfase gnóstica da libertação através do conhecimento.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 66
judaísmo.
O ápice do livro dos sinais é a ressurreição de Lázaro, que antecipa a ressurreição espiritual
da morte para vida realizada por Jesus.
JESUS E OS DISCÍPULOS
13.1-30: é o ambiente da última ceia não registrada por João. Ocorrência do lava pés. Jesus
servindo os discípulos, e o dever do serviço mútuo. A marca distintiva da comunidade cristã no
mundo é o amor mútuo.
13.31-17.26 é a grande seção dos discursos de Jesus. Aparece o tema da crucificação, que
para João já faz parte da glorificação de Jesus. Há menção, embora com pouca ênfase, da parousia
de Jesus. O tema da ida e da volta de Jesus parece se referir à morte e à ressurreição. Por outro lado,
o texto reforça a vinda do outro consolador.134 Por intermédio dele, Jesus se fará presente. Jesus
ajuda os crentes através dele. O Consolador possui alguns traços pessoais.
A ação de convencer o mundo do pecado, da justiça e do juízo é feita pelo consolador
através dos discípulos. Já os frutos, são expressão da vida divina dos discípulos, embora inclua a
questão dos novos convertidos.
O capítulo 17 é a mais longa oração do Novo Testamento. Santificação, separação do
mundo, e preservação da pureza são temas importantes na passagem.
MORTE E RESSURREIÇÃO
O capítulo 21 é um acréscimo. O objetivo do Evangelho inclui cristãos e não cristãos. Agora
Jesus é chamado de “Senhor” na narrativa.
TEMAS TEOLÓGICOS:
O pano de fundo do quarto evangelho é judaico, mas transitando por ideias helenistas, sendo
assim passível de entendimento por gentios não inteirados com o judaísmo. Nesse sentido, João
reconhece o dualismo temporal (preferido pelos judeus), mas destaca o dualismo entre Deus e o
mundo (dualismo espacial preferido pelo helenismo).
O tema de João é apresentar Jesus como Messias e Filho de Deus. Nessa perspectiva, ele é o
enviado, o missionário de Deus no mundo. João também trabalha outras designações cristológicas.
134
“Outro” significando “do mesmo tipo”. Veja que em 1João 2.1 é Jesus o consolador.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 67
Ele chama Jesus de Profeta; Pastor; Filho do Homem (não apenas como juiz vindouro, mas como
aquele que traz a salvação), e sobretudo, Filho de Deus, pois mais que qualquer outro, João quer
ressaltar o relacionamento entre Jesus como Filho e Deus como Pai, sendo o quarto evangelho o
livro que mais usa esse título para Deus. Jesus é o unigênito de Deus, mas possibilita que outros se
tornem filhos de Deus também. Já o título Verbo, reservado ao prólogo, sublinha Jesus como meio
de comunicação de Deus com o mundo.
Por conseguinte, os seres humanos no pecado louvam os homens. Jesus que é Deus louva
com seu sacrifício a Deus.
A Verdade: o nosso mundo é caracterizado pela mentira, mas Jesus revela a verdade; ele é a
verdade; o Espírito Santo é o Espírito da verdade, que nos guia à verdade.
Salvação: em João salvação é vida ou vida eterna. João utiliza as metáforas do alimento
físico, para mostrar que Jesus sacia nossas necessidades espirituais. A vida dada por Jesus é
permanente a partir de agora, antecipando a esperança do futuro. A fé é o meio de se conseguir a
salvação. Mais do que em outros lugares, João acentua Jesus como conteúdo da fé. Jesus é o doador
e o dom. A fé em Jesus é a resposta esperada ao evangelho. Ela pressupõe, no entanto, uma relação
contínua de permanecer. Conhecer Jesus é o conteúdo da fé. João não usa o termo igreja, mas fala
do amor mútuo que caracteriza os discípulos, que ao mesmo tempo estão unidos a Jesus (a videira).
A verdade: 3Jo 3.4,8,12; 2Jo 1.2-4; 1Jo 1.6-8; 2.4,21; 3.18-19; 4.6; 5.7. A verdade divina se
encontra na mensagem cristã apostólica (ortodoxia) e no comportamento expresso pelo amor. Aí se
distinguem as duas partes da realidade: os que são da luz e os que são das trevas.
Apresenta o paradoxo do pecado na vida do crente: a meta é buscar uma vida sem pecado,
mas não podemos nos vangloriar de que já alcançamos o alvo. Haviam pessoas que abandonaram a
igreja por não compreender o paradoxo.137 O pecado para morte deve ser a apostasia deliberada e
persistente.
135
MARSHALL, H. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2007. p. 457-472, capítulo 21.
136
O quadro da participação e avaliação dos profetas parece o mesmo que Paulo apresenta em 1Coríntios.
137
Parece que alguns setores do cristianismo primitivo tiveram dificuldade em lidar com o pecado na vida do cristão.
Esse pode ser, inclusive, um dos problemas dos destinatários da carta aos Hebreus. cf. LINDARS, Barnabé apud
TIDBALL, Derek. Ministério segundo o Novo Testamento. São Paulo: Cultura Cristã, 2001. p. 173.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 69
O APOCALIPSE DE JOÃO138
NARRATIVA TEOLÓGICA
O livro começa com João recebendo uma revelação com finalidade profética, ou seja, com
promessas e exortações. Há logo uma referência à Trindade, sendo o Espírito Santo visto como “os
sete espíritos”.141 Uma designação interessante para Jesus é a de testemunha fiel, padrão e
inspiração para a igreja perseguida (além de um importante tópico associado à sua humanidade).
Por outro lado, João mostra Jesus como aquele que é soberano sobre toda a história, ainda que
poderes adversos se levantem contra.
Na seção das cartas (2-3) Marshall destaca as futuras recompensas reservadas àqueles que
perseverarem na fé. São recompensas diferentes, expressando a realidade da salvação eterna de
forma variada. Podemos observar tanto a ênfase na responsabilidade do crente em perseverar,
quanto o cuidado e a proteção divina sobre os crentes.
Nos capítulos 4-5 João apresenta a realidade celestial através de imagens e comparações,
nunca uma descrição direta. Lá a atividade permanente é a adoração. E Jesus, por causa do seu
sacrifício, é considerado o único digno de abrir os selos do livro da história do plano de Deus.
A primeira série de juízos no capítulo 6 apresenta quatro cavaleiros trazendo quatro
desgraças diferentes. A natureza limitada dos juízos sugere o caráter de advertência, como exortação
ao arrependimento.
Nos capítulos 7-10 destacam-se os selos que Deus coloca sobre o seu povo, os 144 mil.142
138
MARSHALL, H. Teologia do Novo Testamento. p. 473-488, capítulo 22.
139
Uma das formas mais simples de se estudar o livro de Apocalipse é conferindo os seus textos com as referências
veterotestamentárias. A melhor ferramenta para isso são as indicações nas margens externas do Novum Testamentum
Graece. 28ª ed. NESTLE-ALAND.
140
É o chamado paralelismo progressivo.
141
Provavelmente uma apropriação da ideia de Isaías, mostrando a plenitude do Espírito.
142
A melhor forma de interpretamos os 144 mil é vê-los da seguinte forma: 12 x 12 x 1.000. Os números são
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 70
Ainda que nessa vida e nesse mundo enfrentemos perseguições,143 João está mostrando que a
salvação do povo de Deus está garantida pelo próprio Deus. O último selo abre uma nova sequência
de juízos. Mas antes de iniciá-lo há um novo interlúdio.144
O capítulo 11 traz a imagem das duas testemunhas. Elas têm a missão de testemunhar
durante 3,5 anos145, sempre enfrentando perseguição, até mesmo ser morta.146 Depois elas
ressuscitam após 3,5 dias, e são elevadas ao céu. Elas também representam o povo de Deus em sua
missão de testemunhar nesse mundo. Mas assim como o mundo rejeitou Jesus, rejeita sua Igreja, e
mesmo a faz morrer. Mas na volta de Cristo, a Igreja se levanta gloriosa.
Nos capítulos 12-14 devemos salientar a figura da mulher, que dá a luz uma criança, e que
ambas são perseguidas pelo dragão. A mulher representa o povo de Deus. A criança é Jesus, que
nasce do seu povo. O dragão é Satanás que perseguia e persegue o povo de Deus.
Os capítulos 15-18 descrevem mais uma sequência de juízos, que culmina com a destruição
da Babilônia, a grande cidade, vista como uma prostituta. A vitória de Deus e do seu povo sobre
esse sistema pecaminoso é vista e celebrada no capítulo 19. O capítulo – um dos mais discutidos do
Apocalipse – trata de uma prisão temporária de Satanás, um reinado milenar de Cristo, até que
Satanás seja solto, e por um breve período persiga a Igreja, para finalmente ser destruído com seus
seguidores. Diante da questão do milênio, Marshall oferece duas interpretações: 1) o milênio como
o período do reinado de Cristo no céu e do testemunho da Igreja na terra, iniciado com a vitória de
Jesus na cruz, que limitou os poderes do Diabo, até a “grande perseguição”, onde por um breve
período ele perseguirá a Igreja.147 2) o milênio sem significado independente, sendo apenas uma
imagem paralela ao novo céu e nova terra.148
simbólicos: Doze representando o povo de Deus do Antigo Testamento; doze representando o povo de Deus do Novo
Testamento, e mil, que em Apocalipse é um símbolo de grande quantidade.
143
Devemos entender que nada em Apocalipse diz que os juízos enviados por Deus ao mundo progressivamente até o
juízo final não atingirão a Igreja ou os crentes. Embora o propósito do juízo vise os ímpios, a Igreja sofre os efeitos
colaterais desses juízos.
144
Na música são os trechos que intercalam as diversas partes de uma longa composição.
145
Em Apocalipse, sete é o número do completo, do perfeito, do eterno. Assim, três e meio é a sua metade, ou seja,
quase completo, quase perfeito. 3,5 anos são, então, um grande período, mas não eterno.
146
Parece que a perspectiva do Apocalipse é que a perseguição contra a Igreja só vai aumentando, até um período
crítico, no qual ela apesar de ainda existir, estará silenciada.
147
De qualquer forma, Marshall rejeita esta interpretação, que é a mais aceita pela escatologia reformada.
148
Do ponto de vista histórico, a interpretação simbólica e espiritual do milênio remonta a Agostinho e a um exegeta
donatista do final do século IV chamado Ticônio. A interpretação milenarista (que no futuro Jesus virá e estabelecerá
um reino terreno de literalmente mil anos sobre a Terra) foi defendida no século II por escritores como Justino e Ireneu.
A partir do século IV perdeu força através da influência de Agostinho e Ticônio, mas será retomada no final da idade
média. Joaquim de Fiore, um abade calabrês do século XII, afirmou que recebeu na manhã da páscoa de 1183 ou 1184
uma revelação divina que lhe dava a correta intepretação do Apocalipse. Nessa linha, ele verá no livro a descrição dos
principais eventos da História da Igreja, progredindo para uma era futura de purificação e plenitude da Igreja. A exegese
de Fiore reintroduziu o milenarismo no cristianismo e exerceu grande influência nos séculos seguintes. Uma variação
foi introduzia pelo franciscano Nicolau de Lyra, no final do século XIV, que difundiu a interpretação de que o livro
apresenta a história da Igreja em perspectiva linear e histórica, mas sem defender um milênio literal. Assim, “na véspera
da Reforma havia, então, três modos amplos de interpretar o livro: o modelo ticoniano-agostianiano (recapitulativo,
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 71
Os capítulos 21-22 descrevem os novos céus e nova terra, a nova Jerusalém, na qual o
próprio Deus habitará com seu povo. Salta aos olhos que o livro termina com um aviso e uma
súplica relacionada à volta de Cristo. João está esperando pela volta de Jesus.
TEMAS TEOLÓGICOS
Geograficamente Apocalipse opera com três realidades: céu, terra e inferno.
O propósito do livro é encorajar os cristãos ao testemunho e à fidelidade nesses tempos de
perseguição, e ao mesmo tempo, lançar um apelo evangelístico relacionado ao chamado de Deus ao
arrependimento.
Mais que em outros livros do Novo Testamento, o principal aspecto salientado em relação a
Deus é seu poder. Isso diz respeito aos propósitos do livro.
Quanto à cristologia, em Apocalipse ela aparece desenvolvida, valorizando o sacrifício de
Jesus e seu status de igualdade com Deus.
Os anjos exercem papel proeminente neste livro. Marshall não define uma interpretação para
os anjos das Igrejas dos capítulos 2-3.149
Em Apocalipse encontramos um verdadeiro exército do mal. Temos uma trindade satânica: o
dragão, que lidera esse exército – Satanás, a 1ª besta, que imita Jesus, até na mesmo numa suposta
ressurreição, e a 2ª besta, que atua como profeta da primeira, fazendo propaganda dela. Entretanto,
Deus permanece controle. A locução verbal “foi dado” mostra que todos esses acontecimentos
passam pela permissão de Deus.
A humanidade é vista em dois grupos. Os que seguem o Cordeiro e os que sucumbem às
tentações da Babilônia. Existe a possibilidade de se mudar de lado: há o receio dos cristãos
abondarem sua fé (por isso a ênfase na perseverança e na fidelidade) e ao mesmo tempo, há a
exortação para que as pessoas se arrependam, “lavem suas vestiduras no sangue do cordeiro” e
passem a fazer parte do povo de Deus. Em contrapartida, os nomes do povo de Deus estão selados
no livro da vida, dando-lhes a garantia da sua salvação. Aqui, como em outros lugares, prevalece o
moral e eclesiológico, mas resolutamente a-histórico e antimilenar); o modelo joaquinita (também recapitulativo, moral
e eclesiológico, mas progressivamente histórico e milenar); e o disseminado por Nicolau de Lyra e seus seguidores
(linear-histórico, eclesiológico e antimilenar)”. McGINN, Bernard. Apocalipse. In: ALTER, Robert.; KERMODE,
Frank. Guia Literário da Bíblia. p. 576. O mesmo autor afirma que o que caracterizou os comentários de Apocalipse da
Reforma foram seu anti-romanismo: “o Apocalipse, corretamente entendido, mostrou como o papado ao longo da
história funcionava com o Anticristo perseguidor”, p. 577. McGinn ainda afirma que na geografia da Reforma, a
Inglaterra foi o lugar em que o livro de Apocalipse foi estudado e debatido com maior avidez, levando ao ressurgimento
do milenarismo.
149
A interpretação tradicional entende que os anjos são os pastores. O problema é que nenhum lugar na Bíblia chama os
pastores de anjos, e em todo o restante do livro os anjos são de fato seres angelicais, além do quê, a ideia de anjos
auxiliando o povo de Deus era corrente no judaísmo. Por outro lado, TIDBALL, Derek. Ministério segundo o Novo
Testamento. p. 239, observa que as cartas são exortações à congregação como um todo, e não a indivíduos específicos,
de modo que os anjos podem ser personificações da igreja.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 72
paradoxo da salvação.150
Não obstante, essa realidade faz a Igreja sentir-se ameaçada e leva ao entendimento que não
pode existir conciliação entre ela e a Babilônia. Estamos sempre em guerra.
O livro termina com julgamento, salvação e convite. Julgamento sobre as forças do mal e os
incrédulos, constituído de morte e destruição, e sofrimento eterno. Marshall percebe a tensão
existente entre as duas ações, e se inclina a considerar a temática da morte e destruição como central
na narrativa.151 A salvação realiza-se em uma nova terra, na qual céu e terra se uniram. O convite:
“O Espírito e a noiva dizem: Vem! Aquele que ouve, diga: Vem! Aquele que tem sede venha, e quem
quiser receba de graça a água da vida”.
150
Marshal parece, as vezes, enfraquecer o lado da soberania de Deus nesse paradoxo.
151
Assim, ele parece adotar a posição do aniquilamento como consequência do juízo final, uma posição periférica no
pensamento cristão tradicional.
152
MARSHALL, H. Teologia do Novo Testamento. p. 489-498, capítulo 23.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 73
OS SINÓTICOS
A tradição joanina deve remontar a João filho de Zebedeu. O autor do evangelho deve ter
tido algum conhecimento de Marcos e Lucas154.
Em João a terminologia do Reino de Deus (isto é, Jesus como proclamador e iniciador do
reino; as bênçãos do governo de Deus sobre a humanidade; o discipulado como resposta ao
chamado) é substituída pela da temática da vida eterna e as discussões centralizam-se em torno do
próprio Jesus.
Assim, ao contrário dos sinóticos, João é explícito em relação à preexistência e à encarnação
de Jesus. Na utilização do título Filho do homem, João vai além dos sinóticos e o título Filho de
Deus também é mais valorizado do que nestes.
João destaca a fé como resposta adequada à mensagem de Jesus. A linguagem da salvação é
a da vida ou vida eterna. A união do crente com Cristo é descrita na linguagem da teologia pós-
ressurreição, na plenitude do Espírito Santo.
A polêmica de Jesus com os fariseus em João é mais cristológica, do que quanto ao modo de
vida, como nos sinóticos. João também destaca o pedir a Deus em nome de Jesus.
PAULO
Paulo enfatiza mais a pessoalidade do Espírito Santo.
João não usa a linguagem da justificação pela fé.
Ambos concordam que o evangelho é destinado para todos, judeus e gentios, e a “seleção”
ocorre através da resposta de fé ou não.
A convergência teológica principal entre Paulo e João está na linguagem do estar em Cristo,
com a noção da habitação mútua entre Jesus, o crente, e Deus Pai. É a relação entre Cristo e os
crentes, no nível individual e coletivo.155
A vida em comunidade: em João através das metáforas do rebanho e da videira, e mediante a
ação do Espírito Santo.
Missão: assim como Jesus foi enviado pelo Pai, nós somos enviados.
153
MARSHALL, H. Teologia do Novo Testamento. p. 499-517, capítulo 24.
154
Entre outros, assim também pensa W. G. Kümmell.
155
Não obstante, para Paulo nós estamos em Cristo de forma diferente da maneira que Cristo está em Deus. Já João é
mais ousado: estamos em Cristo e estamos Deus, e ambos podem estar em nós.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 74
ANEXO
1.2 GNOSTICISMO
É um movimento religioso sincrético característico do helenismo. Iniciado antes do
cristianismo, influenciou e foi influenciado por ele. Para o gnosticismo o problema do ser humano é
que o mundo existe. A alma humana é de natureza divina, e está aprisionada no corpo, neste mundo.
A salvação é reconhecer que esse mundo é mal, admitir sua origem divina, e assim a alma volta ao
nada. Esse reconhecimento é a gnose, conhecimento. O anúncio é feito pelo revelador.
1.4 MANDEÍSMO
O mandeísmo é uma seita ainda existente nas regiões do Iraque e do Irã. Os documentos
escritos remontam ao século 7º e 8º, mas é provável que a tradição oral seja dos primeiros séculos.
É possível que o grupo religioso tenha começado na Palestina, simultaneamente ao cristianismo,
dentro do movimento gnóstico.
2) O SIMBOLISMO
A diferença entre o simbolismo de João e as parábolas dos sinóticos: a parábola descreve
uma situação plausível aos ouvintes. Os detalhes da história contada não possuem uma significação
independente. Em geral a “moral da história” é óbvia aos ouvintes, a partir da qual Jesus apresenta
sua aplicação. Os discursos em João estão mais para a alegoria. Cada detalhe possui significado
importante, que nem sempre é explicado. Por exemplo: nos sinóticos o cuidado de Jesus para com
as pessoas é comparado ao pastor que tinha cem ovelhas, perdeu apenas uma e foi buscar. Em João
Jesus afirma: “Eu sou o bom pastor, e o bom pastor dá a vida pelas ovelhas”.
Análises do simbolismo:
O bom pastor: 10.1-19: No AT e na literatura apocalíptica intertestamentária o povo de Deus
é representado como rebanho de Deus, os representantes de Deus (Moisés, Davi, e outros)
são descritos como pastores, e os maus líderes são chamados de maus pastores
(mercenários). Já em Fílon o Logos é chamado pastor do cosmos.
A videira verdadeira: 15.1-17. No AT o povo de Israel é descrito como vinha ou videira
plantada por Deus. Uma vinha tirada do Egito e plantada em uma boa terra. Porém, a vinha
degenerou. No helenismo era conhecida a figura de Deus como agricultor. O interessante é
156
É necessário utilizar esses escritos com prudência, porque quase todos são posteriores ao Novo Testamento.
Outrossim, realmente testemunham um gnosticismo e um judaísmo contemporâneo.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 76
que o significado não vem de uma comparação que Jesus está fazendo com as prática
agrícolas do seu tempo, mas ele está utilizando todo esse patrimônio de associações.
O pão e água: o pão era símbolo dos mandamentos da lei e da sabedoria. O conceito de “pão
do céu” representava no judaísmo as bênçãos da era messiânica, e em Fílon também era uma
figura para o Logos. A água estava ligada nos escritos Herméticos à criação inferior. Veja
que ela é substituída pelo vinho. Mais importante são as associações veterotestamentárias:
água como símbolo de vida.
O verdadeiro: aponta para os significados eternos. Pão, vinha e luz: são verdadeiros porque
apontam para a realidade espiritual.
Também as narrativas são simbólicas: por isso são chamadas de sinais. Correspondem aos
atos proféticos do AT, que eram mais que ilustração, eram prelúdio do que Deus iria fazer.
Aqui João usa o termo sinal mais próximo ao sentido do AT (anúncio do que vai acontecer),
do que de Fílon (sentido oculto, intelectual).
3) A VIDA ETERNA:
Conceituação: vida e vida eterna (zwh//; h) zwh\ a)iw/nioj). No AT significa bem estar na
vida e terrena, e apenas em alguns lugares se insinua uma vida após a morte. O conceito bíblico de
eternidade não é atemporal, mas de um tempo indefinidamente para o futuro.157 O judaísmo
desenvolveu a escatologia das duas eras: o tempo era dividido entre esta era e a era vindoura. A
diferença entre as duas estava na qualidade e na quantidade. João usa vida eterna no sentido judaico.
A teologia de João expressada sobretudo no sinal da ressurreição de Lázaro, mostra que Jesus
trouxe a possibilidade de uma ressurreição já agora, ou seja, antes da morte e que supera de
antemão a morte. João sabe que haverá uma ressurreição escatológica, mas enfatiza o aspecto
presente da salvação.158 Agora já podemos desfrutar da qualidade da vida eterna (não ainda da
quantidade).
4) O CONHECIMENTO DE DEUS:
Conhecimento era um tema importante em todo o pensamento religioso da época. No
gnosticismo, nos escritos herméticos, e em Fílon.
De acordo com R. Bultmann, para os gregos conhecimento não implica em relacionamento.
157
Assim também pensa O. Cullmann, e creio que ambos estão corretos.
158
Em outras palavras, na tensão do já e ainda não, João crê no ainda não, mas enfatiza o já.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 77
Conhecimento tem haver com contemplação à distância. Para os judeus conhecer sempre envolve
relacionamento entre quem conhece e quem é conhecido. Em relação a Deus: contemplá-lo em sua
realidade última ou viver em aliança com Deus.
Para o gnosticismo conhecimento não é um exercício intelectual, mas um dom divino, que
faz do homem um ser divino. Por ironia o sentido gnóstico acaba se aproximando do sentido
judaico-veterotestamentário, especialmente nos Hermética. Conhecemos a Deus por que ele se
revelou. Nosso conhecimento de Deus depende da vontade de Deus.
Peculiaridades do conhecimento de Deus em João.
Ignorância de Deus não falta de conhecimento intelectual, é deixar de reconhecê-lo e de
adorá-lo. É expresso pelo comportamento ético. Esse é um pensamento derivado do AT,
especialmente dos profetas. Eles denunciam o povo por ignorar a Deus.
Quem conhece o Senhor alcança a vida eterna. Conhecer Jesus = conhecer o Pai = conhecer
o Espírito Santo.
João também fala de conhecer como ver. A terminologia é grega. Para os judeus a visão de
Deus era uma bênção escatológica. Mas João mostra que em Jesus a era vindoura já chegou,
e ver a Jesus é a visão de Deus. Em Jesus vemos (conhecemos) a glória de Deus.
Também se fala do conhecimento que Deus tem do homem. No AT quando se afirma que
Deus conhece o povo de Israel quer dizer que Deus tem interesse por aquele povo, tem
prazer em se relacionar com ele.
Jesus é tanto o meio pelo qual o homem conhece a Deus, quanto o meio de Deus conhecer o
homem (Deus se relaciona com o mundo através do logos). O conhecimento que Deus tem
do homem envolve os temas da graça e eleição: Deus escolhe e conduz os seus a si mesmo.
Textos importantes:
O mundo não conhece a Deus: 1.10; 10.6; 14.17; 16.3; 17.25.
Jesus tem o conhecimento de Deus, o Pai: 8.55; 10.15; 17.25.
Os discípulos conhecem ou conhecerão a Deus: 6.69; 8.32; 14.7; 14.17; 14.20; 17.3; 17.8;
17.25.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 78
5) A VERDADE:
Substantivo: a)lh/qeia; adjetivos: a)lhqh/j; a)lhqino/j.
No hebraico a expressão é ’êmet. Significa: constância; fidedignidade. Deus é o absolutamente
fidedigno.
Os adjetivos podem se significar:
a) Uma afirmação verdadeira, verídica; uma pessoa sincera.
b) O real, o genuíno em relação à mera representação, imagem ou cópia. Esse é o sentido da
afirmação de Jesus em 4.23: verdadeiros adoradores são os reais adoradores. Os outros não são
falsos adoradores, eles não são adoradores. Também significa a realidade, o conhecimento da
realidade ou a manifestação da realidade. Assim, a verdade é a realidade divina revelada aos
homens em Cristo, em si e sua revelação. O mundo jaz no maligno, o pai da mentira: ou seja, a
negação da realidade divina.
1.17: graça e a verdade através de Cristo – em Cristo temos a realidade dessas coisas (antes
apenas a sombra).
3.21: praticar a verdade – agir honradamente; praticar a fidelidade.
8.32: conhecereis a verdade e a verdade vos libertará – promessa de libertação através do
conhecimento da realidade divina, ou seja, o conhecimento de Jesus.
14.6: Jesus é a verdade – ele é a realidade divina, e a revelação do divino.
17.17: tua a palavra é a verdade – a realidade divina revelada.
18.37: testemunha da verdade – testemunha da realidade divina; aquele que é dá verdade.
6) A FÉ:
Verbo: pisteu/w.
Concepções na literatura grega: 1) dar crédito a; crer. 2) ter confiança em, confiar. No
hebraico sobressai a noção de permanecer firme tanto literalmente (aplicado a animais), quanto
figuradamente, como virtude moral do ser humano.
Em João:
a) Dar crédito às palavras de Jesus. cf. 4.21; 14.11.
b) Se tornar cristão, como em Atos. cf. 4.53.
c) verbo + dativo: crer em. cf. 2.22; 5.46; 8.31-47.
d) verbo + frase com o/(ti: acreditar, estar convencido. cf. 8.24; 13.19; 11.27; 20.31.
“Em Deus” no helenismo indica estar na dependência de Deus: estar nas mãos de Deus. No
estoicismo e nos Hermeticos predomina o sentido espacial, de união com o divino. Em Fílon tem
haver com o êxtase profético (ter a mente possuída por Deus).
O uso cristão antes de João: Paulo 5x usa a expressão “em Deus” (Rm 2.17; 5.11; Ef 3.9;
1Ts 2.2; Cl 3.3). Mas o principal antecedente do uso joanino é a expressão “em Cristo”. Em Paulo o
sentido da metáfora é estar no corpo de Cristo. A união do crente com Cristo é orgânica, através da
igreja (Schweitzer). Estamos em Cristo de maneira diferente da que Cristo está em Deus. Essa é a
diferença entre o uso paulino e o joanino. Neste a relação de Cristo com Deus é o modelo da nossa
relação com Cristo.
A união entre Jesus e o Pai significa: unidade de revelação (ver Jesus é ver Deus); unidade
de ação (o que Jesus faz é a ação do Pai – na verdade isso também tem haver com a revelação, pois
Jesus é sempre a manifestação de uma ação originada no Pai).
A unidade do Pai e do filho é reproduzida na unidade entre Cristo e os fiéis: amor expresso
pela obediência; participação de vida na realização de obras. É um triângulo entre o Pai; o filho e os
discípulos, baseados no amor, obediência sempre glorificando o Pai.
característica do a)ga/ph é a origem divina e a doação. Outrossim, a única forma de união entre
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 80
pessoas é o amor. Assim, nossa união com Deus expressa-se em um relacionamento de amor de
Deus para conosco ocorrido na história, e o no relacionamento de amor entre o crente e Cristo.
hebraico ׁשפט
ַ é um ato de soberania expresso na legislação e na administração da justiça.
Há uma ambiguidade na função de Jesus em João: ora se afirma que ele não veio para julgar
(3.17; 8.15; 12.47), ora se diz que ele veio justamente para julgar (5.27,30). A solução está na
comparação com Ef 5.8-14: a luz manifesta tanto a verdade, quanto o erro, o bem e o mal. Isso volta
a noção grega de juízo: ele também é separação entre o certo e o errado. A reação das pessoas às
palavras e aos atos de Jesus faz a separação entre os homens, de modo que aqueles rejeitam Jesus já
se condenam a si próprios.
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A morte de Cristo como julgamento possui paralelos com outros escritos do NT (Paulo; 1Pe
e Ap).
9) O ESPÍRITO:
Substantivo pneu=ma.
Em grego podia ser associado ao ar em movimento (vento e sopro dos seres vivos) ou a
yuxh\ (alma, princípio de vida).
Para o estoicismo, pneu=ma era uma força que penetrava todo o universo, passível de
transformações.
Na LXX é usada para traduzir o hebraico rúah. A ideia fundamental é a de um poder sobre-
humano, invisível, irresistível, e material. Podia vir sobre os homens concedendo-lhes capacidades:
força física; sabedoria intelectual, visão profética. Posteriormente pneu=ma passou a se identificar
com o sentido de נפׁש/yuxh\: emoções humanas, princípio de vida que Deus dá e retira na morte.
pensamento do AT, quanto entre os gregos, era o que trazia a vida. Então, em João temos
que Deus traz a verdadeira vida que é a do relacionamento com Deus.
10) O MESSIAS:
João considera irrelevante a filiação davídica para o Messias. O messianismo de João
relacionado a outros títulos:
Rei: O Messias é visto como um Rei não-terreno, um Rei da verdade.
Cordeiro de Deus: Jo 1.29: “Eis o Cordeiro [a)mno\j]de Deus, que tira o pecado do mundo!”
(ARA).159 Também em Apocalipse é enfatizada a obra de Jesus como Cordeiro de Deus. Lá
a expressão é a)rnion. cf. Ap 5.6.12; 6.16; 7.14.17; 14.1-5; 17.14; 22.13. Ali o cordeiro é
tanto aquele que é sacrificado, quanto o líder do povo de Deus, que luta e vence seus
inimigos.
Na apocalíptica judaica (Henoque; Testamento dos 12 Patriarcas e outros) os líderes do povo
são descritos como carneiros-guias, e mais ainda, o Messias é descrito como o cordeiro que
luta e derrota os inimigos do seu povo. Na perspectiva cristã, além de líder e vencedor de
inimigos, o Messias-Cordeiro também se auto-sacrifica.
O cordeiro também poderia se referir ao cordeiro do AT que é sacrificado pelo pecado.
Nessa interpretação surgem dois problemas: 1º no AT a oferta característica pelo pecado é
aquela feita por bodes; 2º João, segundo Dodd, não trabalha a ideia da morte de Jesus como
sacrifício expiatório. Por outro lado, a expressão “que tira o pecado” não deve ser entendida
como quem leva ou carrega o pecado, mas como quem destrói, acaba com o pecado. Ele é o
Messias que veio combater e destruir o pecado.
O cordeiro poderia ainda se referir ao cordeiro da Páscoa. Em 19.36 a citação “Não lhe
quebrareis osso algum”, pode ser uma alusão ao Sl 33.21 (que fala das aflições do justo e
sua libertação), assim como os Salmos 21.19 e 68.22 são citados no mesmo contexto da
morte de Jesus, não sendo portanto uma citação da prescrição para a preparação do cordeiro
159
No seu comentário a João, Carson mostra que existem em torno de 12 opções de interpretação para a expressão
“Cordeiro de Deus”.
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para Páscoa. João não alterou as datas da crucificação para faze-la acontecer na Páscoa.
Outrossim, Dodd considera discutível se havia um elemento expiatório no rito da Páscoa no
AT.
Outra associação possível é com o Servo Sofredor de Is 53, sobretudo o verso7: “como o
cordeiro é levado ao matadouro”. Mas ali parece mas uma comparação que um título, e não
era entendido assim pelas pessoas. João faz menção da teologia do Servo de Isaías, mas não
enfatiza o caráter expiatório.
Salvador do Mundo: 4.42. No NT é comum para Jesus nas obras um pouco mais tardias
como pastorais, 2Pe e Judas. No AT se referia a Deus, no helenismo a deuses e imperadores.
João não define, deixa à mercê da narrativa.
Profeta (que vem ao mundo): 7.40, 6.14. João parece admitir que o título lança alguma luz
sobre a compreensão de Jesus, mas não o considera um título messiânico.
cruz, e quem contempla o filho do homem na cruz alcança a vida eterna (maior do que a
cura dos que olhavam para a serpente levantada por Moisés).
Em João:
Jesus é filho de Deus porque foi enviado pelo Pai ao mundo. No mundo ele fala as palavras
do Pai, e faz as obras do Pai, sempre em submissão ao Pai. Como os profetas do AT.
Como filho de Deus Jesus exerce as funções exclusivas da divindade: ele julga e vivifica,
não de forma autônoma, mas em contínua dependência do Pai. Assim, há uma unidade de
ação entre o Pai e o Filho. É o aspecto único da filiação divina.
É no sentido de missão que se afirma que a vinda do Filho se origina no Pai. Essa passagem
da essência divina para esfera da humanidade não é explicada por João. Ele não faz
referência ao nascimento virginal, mas afirma a sua pré-existência temporal. Nesse sentido
ele não é comparável aos profetas, nem a Abraão, pois pertence a uma outra ordem de seres.
A relação do Pai com Filho não começou com o tempo, nem termina com o fim da história.
Na carreira de Jesus ela se expressou no amor e na obediência.
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14) O LOGOS:
Substantivo lo/goj.
Entre os gregos logos possui dois sentidos: o logos na mente = pensamento; o logos
pronunciado = palavra. Há relação entre os sentidos, pois palavra não é simples som ou grafia, mas
um significado, e pensamento é uma unidade de sentido que se expressa em palavra, textos ou
discursos.
A LXX usa logos para traduzir ָּד ָּבר. A dabar YHWH é auto-revelação de Deus, sendo a
Torá a melhor expressão dela. Assim no AT a noção de revelação é muito mais sonora (a palavra
falada e ouvida), do que visual.
De acordo com a tendência do pensamento hebraico a palavra de Deus possui um poder
próprio, uma existência independente após ser pronunciada.
João:
Ao longo do Evangelho o termo pode se referir as palavras, o ensinamento de Jesus. O
plural logo/i: literalmente palavras faladas por Jesus ou por outros. Sinônimo de ῥήματα.
Singular logos: pode se referir a uma afirmação ou discurso específico de Jesus. cf. Jo 2.19-
22. Mas também pode ter sentido coletivo, referindo-se a toda mensagem de Jesus, como
revelação, como mandamentos. Em tudo isso a noção de logos tem haver com o sentido das
palavras. Ouvir o logos é conhecer o significado das palavras de Jesus, é perceber a verdade
(eterna, de Deus, a a)lh/qeia) expressa nas palavras.
Fora do Prólogo: nunca se diz que Jesus é o logos. Ele apenas anuncia o logos, revela o
logos. Mas considerando que Jesus não apenas anuncia a verdade, mas é a verdade, como
não apenas dá a vida, mas é a vida, daí é lógico que se Jesus traz o logos, ele é o logos.
Assim, tudo que há em Jesus, há em suas palavras. Jesus não nos dá do que ele tem, nos dá
do que ele é.
A interpretação do logos do prólogo:
a) como a Palavra de Deus do AT: A priori a dabhar YHWH no AT era intercambiável com a
Torá. Assim o vs.10: A Palavra de Deus estava no mundo, reflete a noção de uma revelação
geral ou universal. O vs. 11: A Palavra veio para o povo de Israel, mas este não a recebeu. O
vs. 12: alguns, porém, receberam o direito (não poder; noção legislativa ou judiciária) de
serem filhos de Deus. Versículo 14: a Palavra de Deus se torna homem, trazendo a ׁש ִכינָּ ה,
ְׁ a
Shekinah de Deus. Dificuldades: a Palavra era Deus; a Palavra se faz carne. A vantagem é
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É a tendência de Dodd de buscar uma fonte para o pensamento joanino, procedimento passível de crítica.