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COLETIVA Teoria e Pratica Organizadore: Jairnilson Silva P Professor Titular em Politica de vue do Instituto de Satide Coletiva da Universidade Federal da Bahia, Doutor em Satide Piiblica pela Universidade Federal da Bahia Pesquisador 1-B do CNPq. Naomar de Almeida-Filho Professor Titular de Epidemiologia do Instituto de Satide Coletiva da Universidade Federal da Bahia. PhD em Epidemiologia pela Universidade da Carolina do Nort» em Chapel Hill Pesquisador I-A do CNPq SAUDE COLETIVA - Teoria e Prasica Dircitos exclusivos para a lingua portuguesa Copyright © 2014 by MEDBOOK ~ Editora Cientifica Ltda. 14 reimpresso 2014 ‘NOTA DA EDITORA: Os organizadores desta obra verificarant cuidadosamente os nomes genéricos ¢ comerciais dos medicamentos mencionados; também conferiram os dados referentos 2 posologia, objetivando informagdes acuradas em acordo com os padrics atualmente accitos. Entretanto, em funcio do dinamismo da rea da satide, os leitores devem prestar atengio as informagbes famecidas pelos fabricantes, a fim de se certificarem de que as doses preconi zadas ou as contraindicagdes nao sofreram modifieagies, principalmente em relagdo a substncias novas ou prescritas com pouea frequéncia. Os organizadores a Editora nao podem ser responsabilizados pelo uso impréprio nem pela aplicagio incorreta de produto apresentado nesta obra. Apesar de torem envidado 0 maximo de esforco para localizar os detentores dos direitos autorais de qualquer ma- terial utilizado, os organizadores e a Editora desta obra estdo dispostos a acertos posteriores caso, inadvertidamente, a identificagio de algum deles tena sido omitida Editoragdo Elotrénica: REDB — Produgdes Gréficas o Editorial Ltda. CIP-BRASIL. CATALOGAGAO NA PUBLICAGAO. SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVEOS, RJ 272 Satide eoletiva : teoria e prética | organizadores Jairnilson Silva Paim, Naomar ée Almcida-Filho. - 1. ed, - Rio de Janeiro : MedBook, 2014 120 p. il: 28 6m. ISBN 978-85-99977-97-2 1, Satide pilttica - Aspectos sociais, I, Paim, Jaimnilson Silva,1949- II, Almeida-Filho, Naomar de, 13-08426 eDD: 302 cDU: $16.6 30/07/2013 31/07/2018 Reservados tocios os direitos. & proibida a duplicagio ou reproducdo deste volume, no todo ou em parte, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrénico, mecinico, gravagao, fotovdpia, distribuigao na Web, ou outros), sem per missdio expressa da Editora, Rua Profeseora Ester de Melo, 178 ~ Benfica 20930.010 — Rio de Janeiro — RI ‘Telefones: (21) 2502-4438 o 2569-2524 |, contato@medbookeditora.com.br ~ medback@superig.com.br FoIrORA CIENTIFI¢A Lrox.”- Www.medbookeditora.com.br Conceitos de Saude: Atualizacao do Debate Tedrico-Metodologico Naomar de Aimeida-Fiho + Jairnilson Silva Paim INTRODUCAO Se perguntarmos as pessoas o que & satide, certa: mente teremos uma grande quantidade de definigées. AL gumas poderio dizer que sadde sig) sentir-ce bem; outras que ter sadde 6 nio estar doente. Muitas afirmario que satide é poder estar em pé, trabi Ihando, tocando a vida para a frente. Talvez haja ainda quem apele para uma filosofia espontanes e declare que satide & alegria de viver ou estar de bem com a vida. dustamente em fungiio dessa diversidade de defini- 1s de satide, os paises vinculados & Organizagio das Nagies Unidas (ONU) que criaram a Organizagio Mun- dial da Saiide (OMS) em 1949 convencionaram afirmar que satide & 0 completo bem-estar fisico, mental ¢ social ‘endo apenas a austncia de doengas. Ainda assim, muita controvérsia existe em tomo de tal definiyao, No fim do séeula passado, considerava-se que uma tarefas intelectuais mais instigantes © oportunas fandamentar uma concepeao & uma pratiea vineu- Jndas a idcia de savide, Ainda atual e relevante, teata-so de um ambicioso projeta que visa transformar a forma hhegemOnica do conceitualizar a sade, desmodicalizé-ta, passanda a concebé-Ia como cap para go zara vida, ter prazer em viver e conquistar & qualidade de vida (Najera, 1992). Enfim, satide reconhecida como qualidade de vida, solidariodade, alogria de viver, gozo estético, prazer, axé (energia), projeto de felicidade (Paim, 1994; Mendes. Ciongalves, 1995; Ayres, 2002) De fato, o termo saiide! designa um conceito rico & complexo, de grande interesse flos6fico, cient fica e pri ica shnplesmente a ‘Gabe de pronto uma anotagio etimolégiea. No idioma portugues, fo termo saide deriva de tra mesma mie etimolégien proveniente do latim Salus, em que designava o atvibuto principal dos sores in ‘witoe, intacts, intros, Dele deriva um outro radienl de intorcaee ‘para 6 nosso tema ~ safva ~ que ne latim medieval conoteva a si- tuncio de superago de ameagas intepridade fsien dos sujeiton bs - ‘ico, assim como nogdes do diseurso comum, conteais para o imaginério social contemporiineo. Para respon- der essa questilo, podemos tomar como hipstese, apenas para inicio de conversa, que a satide € uma realidade iiiltipla e complexa, referenciada por meio de conceitos {pela Linguagem comum ¢ pela Filosofia do Conheci mento), apreensivel empiricamente (pelas eiéncias bio- logivas e, em particular, pelas ciéncias clinieas), ana lisavel (no plano légico-matemitico € probabilistico, por meio da Epidemiologia) e perceptivel por seus elvitos sobre o modo de vida dos sujeitos (por meio das Ciéneias Sociais e Humanas). BE. hipétesc dela decorrente se desdobram em uma série de perguntas conceituais que anima o debate atual a propésito das bases filoséficas, cientificas e praticas do, conhecimento sobre fatos e fendmenos, ideias e proces: 808 relatives & satide, Por um lado, é preciso propriamente perguntar s0- bre a natureza e as propriedades do conceito de satide em si, como objeto de conhecimento ¢ come operador de transformagdes no mundo ¢ na vida dos sujeitos que nele habitam. Bis ai uma questio fundamental: ser’ a saui- de uma coisa? Mas © que é uma "coisa"? Um algo com materialidade, tangivel, mensurdvel? Uma existéncia vensivel {no sentido do ser capaz de ativar nosso apa rato sensorial)? Um ente provido de concretude? (Nao cesquegamos que por muito tempo falava-se de “entidade mérbida” para designar quadros de deenca. problemas de satide ou fendmenas eorrelatos.) Por outro lado, ¢ preciso questionar o sentido e o lu sar das pritticas pessonis, profissionais, institueionais & sociais que, de modo articulado, conformam os espagos onde a saide se constitui, Sera a saiide um campo cultu- val? Campo cientifico, eampo de saberes, campo de prati- cas sociais? E que natureza, modalidades e condigdes de existéncia distinguem tais pratiens de tantas outras da. vida humana em sociedade? Nesse caso, dosignar atos a questiio ea 13 4 de promogiio, protegiio, cuidado e prolongamento da vida como servigos de setide seria redundante? Em sintese, varias dimensies ou facetas do conceito sade, reconhecidas por diverace autores, representati- vos de distintas eecolas de pensamento, eompéem & paws ta deste capitulo: 1. A questio coneeitual da saide como problemética filo- séfica (ou mais precisamente, epistemolégica) crucial para o reconiecimento dos sabores sisteméticos refe ridos a questies de vida, funcionalidade, competén- cia, sofrimente, dor, aftigao, incapacidades, restrigdes vitais ¢ morte. 2. A satide como Sato, atributo, fungio orginica, estado vital individual ou fendmeno natural, definido nega- tivamente como auséncia de doengas ¢ incapacidade ‘ou positivamente como funcionatidades, eapacidades, necessidades e demandas. 3. A medida da satide no sentido de avaliagio do estado de saiide da populacio, indicadores demogréficos ¢ epidemiolégices, andlogos de risco, competindo com estimadores econométricas de salubridade ow carga de doonea. 4. 0 valor da saide; nesse caso, tanto sob a forma de procedimentos, servigos © atos regulados ¢ legitime. dos, indevidamente apropriados como mercadori, quanto como direito social, servigo publico ou bem co- mum, parte da cidadania global contemparénea 5, A praxis da satide, enquanto conjunto de atos sociais de cuidado e atencio a necessidades e caréncias de satide e qualidade de vida, conformados em eampos © subcampos de saberes ¢ préticas institucionalmente regulados, operada em setores de governo ¢ de merca- dos, em redes sociais e institucionais. No decorrer do capitulo, cada um desses temas ser sucessivamente apresentado e discutido, destacando sua diversidade de formas ¢ realgando suas diversas facetas, modos ¢ estruturas conceituais, respeitosa da complexidade dos fenémenos, eventos © processos da satide-doenca-cuidado, QUESTAO CONCEITUAL DA SAUDE Nesta seco, apresentamos uma diseusstio geral das distintas facetas da satide como conceito filoséfico. Pra- ticamente todos os fldsofos clissiens, em um ou outro momento de suas obras, referemn-se a temas relaciona: dos com a satide e a doenca enn stas obras. Sem ddvida, a natureza da saiide constitui questo Rlscéfica secular, O grande filésofo grego Plato, considerado fundador da Filosofia Ocidental, defendia uma oposigao conceitual centre virtude e vicio, Virtude significa “sade, belera, ‘boa disposigio de dinimo"; ao contrério, vieio implica “doenca, feitira, fraqueza”. Com a intengio de demarcar Segao + EIXOS uma diferengs essencial entre os conceitos, Platiio poe nna boca de Sécrates a seguinte afirmacao: “Engendrar a satide 6 estabelecer, conforme a natureza, relagies de comando e submissio entre os diferentes elementos do corpo; engendrar a doenga é permitir-lhes comandar ou ser comandados um pelo outro ao arrepio da natureza” lato, 2004: 146). Aristiteles apresenta a diade satide-doenga como ilus- tragio de que opestos se encontram em contradigio ndo nevessariamente por serem um verdadeiro ¢ outro fal. Para ele, dizer que “o homem 6 sadio” significa atribuir. -the uma qualidade afirmativa; do mesmo mado, dizer “o homem é docnte” também é atribuir-Ihe uma qualilade afirmativa, Nesse sentido, “doents” © “no sadio” nfo que- rem dizer a mesma coisa. Assim, Aristételes conclui que ‘por exemplo, satide ¢ doenga sio contrérios, mas nem um nem outro é verdadeiro nem falso, [| 0 bom é 20 mesmo tempo bom e nto mau” (Aristételes, 1985: 164). Na época moderna, o filésofo francés René Descartes desenvolve duas ideias centrais sobre satide que pare com contestar a visio contempordnea predominante que toma seu pensamento como mecssicista, reducionista © dualista, Por um lado, defende que as sensayies da enfer- midade (dor, sofrimento) e das necessidades (sede, fore) ¢, conforme indica implicitamente, de satide e de fli cidade ~ resultam da unifo e da con-fussio mente-corpo. Por outro lado, protende demonstrar racionalmente a existéncia da alma ao duvider que um mecanismo feito de ose0s, nervos, miisculos, veias, sangue € pele poss funcionar pela mera disposigio de drgios e sistemas Deseartes, 2004) No final do século XVIII, Immanuel Kant levanta uss interessantes quostées reintivas ao conceito de saiide, Primeiro, postula uma oposigio dislética entre terapéutica (liniva, referida A doenga) ¢ dietética (pre- ventiva, referida a satide). Segundo, define o sentimen- to de satide como uma das faculdades privadas do ser humano. Na perspectiva terapéutica, a satide nfo tem qualquer relevancia, pois o que se pretende é a supres- Ao ou climinagio da doenga por fatores e procedimentos praticos. Na perspectiva da dietétiea como prevencio, buscava-se aplicar a racionalidade cientifica para pro- teger a satide, reduzindo a possibilidade de ocorréncia de doengas. Em relaco ao segundo vonto, o sentimento de satide nao pode deixar de ser ilus6rio, uma aparéncia fagaz, j4 que a sensacio de bem-estar nio implica que a doenga esteja efetivamente ausente. O sentimento da doenga, este sim, seré indubitavel ¢ inapelavel: sentir-se al significaria sempre auséncia de satide (Kant, 1993). Grandes filésofos contemporaneos se notabilizaram justamente por escrever sobre temas de saiide e correla- 10s, como Canguilhem, Heidegger, Gadamer e Foucault. 0 filésofo francés Georges Canguilhem, em sua obra inaugural O Normal e 0 Patotdico (2006 (1943), argu- Capitulo 2 * Conceitos de Salide: Atualizacéo do Debate Tedrico-Metodoligico 15 rmenta que nio se pode considerar a doenga como fato abjetivo, posto que os métodos da ciéncia clinica 26 tém a capacidade de definir variedades ou diferencas, desert tivamente, Nessa perspectiva, o patoligico corresponde diretamente ao conceito de doenga, implicando o contré- rio vital do sadio. As possibilidades do estado de sade so superiores as capacidades normals: a satide insitui ¢ reafirma uma certa capacidade de ultrapassar as crises determinadas pelas forgas da doenca, permitindo desso mancira instalar uma nova ordem fisilégiea. Canguilaem (€006) toma a normalidade como categoria mais ampla, ‘gue engioba a satide 00 patalégico como subratezorias dis- tintas. Nesse sentido, tanto saiide como doenga so nor- malidade, na medida em que ambas implicatn uma norma de vida, sendo a sadide uma norma de vida superior e a doenga uma norma de vida inforior. A sate transcende « perspectiva da adaptardo, superando a obediéncia ir- restrita ao modo de vida estabelecido, Ela é maie do que isso, na medida em que se constitui justamente pela transgressio de normas e pela transformagio das fum- ‘68 vitais. Ainda assim, a tese desse autor limitou-se 08 aspeetos fisicos, recorrendo em sua argumentagho oxemplos de patologias como diabetes. Evitou, por exemplo, problematizar 2 questio mais complexa da satide mental 0 grande pensaddor francés Michel Foueault (2011), considerado diceipulo © herdeiro de Canguilhem, ini cialmente buscou estudar o surgimento dos padrées de normalidade no ambito éa medicina. No contexto de re “eonstrugio cultural do século XVIII, buscava-ce intervie sobre 0 individuo humano, seu corpo, sua mente, ¢ no apenas sobre 0 ambiente fisico, para com iseo recuperd- slo para a producao. Listar as possibilidedes normais de rendimento do homem, suas capacidades, bem como os parimetros do funcionamento social normal extrapola- 1am o campo médico e passaram a ser tarefas da medici- na mental, da psicolopia e das ciéncias sociais aplicadas, Posteriormente, Foucault antecipa uma definigao poli tica de saiide como eapacidade adaptativa aos poderes disciplinares ou submissio dos corpos ao que designa’ como biopoderes. No titimo trabalho de sua vida, Canguilhem (1990) retoma a obra de Kant que, como vimos, teria funda- rmentado a posigéo de que a satide 6 um objeto fora do campo do saber e que. por esse motivo, nunca poderia ser um conceito cientifico. Canguilhem propde que a snide 6 uma questio filoséfica na medida em que esta fora do alcance dos instrumentos, protocolos ¢ aparelhos da ciéncia. Esta “eatide filoséfiea” recobriria, sem com ‘la se confundir, a satide individual, privada e subjeti- va, Trata-se nosso caso de uma satide som eonceito, que emerge na relagio préxica do encontro médico-paciente, validada exclusivamente pelo sujeito doente e seu médi- ©0 (Coelho & Almeida-Filho, 1989) | Aideia de que & satide ¢ algo individual, privado, singular ¢ subjetivo tem sido recentemente defendida pelo filésofo alemao Hans-Georg Gadamer. Segundo esse autor, o mistério da savide encontracse em sua interio- vidado radical, em seu carter rigorosamente privado (Almeida-Filho, 2011), A saiide nao se revelaria s ou: tras pessoas nem se abrivia a instrumentos de medida, ‘com outros gradientes biolégices. Por esse motivo, nao faria sentido pensar em uma distinglo entre saiide e en fermidade. Trata-se de uma questo que diz respeito so mente & pestoa que esta se sentindo enferma e que, por niio poder mais lidar com as demandas da vida ou com os temores da morte, decide ir ao médico. A conelusio de Gadamer € singela: por seu earéter privado, pessoal, radicalmente eubjetivo, a satide nfo constitui questio f- los6fiea e nunea poderé ser reduzida a objeto da ciéncia. B corto que a perspectiva gadameriana em defesa da satide privada, inerente, enigmitica, radicalmente subje tiva, justificaria considerar a inviabilidade de ums abor- dagom cientifica da saiido, Entretanto, uma das prin- cipais proposigdes de Gadamer resulta erucial para 0 avango de uma formulago alternativa do objeto cien: tifico da satide. Apoiando-se, como Ihe 6 caracteristico, om um argumento etimalégico, defende a ideia de que & satide ¢ inapelavelmente totalizante porque seu coneei: to indica diretamente integralidade ou totalidade. Por ‘essa via, como veremos adiante, a nogio gadameriana do “enigma da satide” termina por abrir caminho a uma abordagem holistica do conceito de satide. Apesar disso, Canguilhem (1990) opée-se a exclusio 4a satide como objeto do campo cientifico, antecipando uma posigao antagénica & de Gadamer. Ele considera que a satide se realiza no genétipo, na historia da vida do sujeito e na relagao do individuo com o meio, dai por- que a ideia de uma satide filoséfica nao contradiz tomar a satide como objeto cientifie, Enquanto saiide floséfica compreende “sa‘de individual”, satide cientifica seria a “satide publica’, ou soja, satide dos coletivos humanos, uma salubridade que se constitui em oposiglo & ideia de morbidado. Com base nosso argumento, a satide 6 loséfica nfo incorpora apenas a satide individual, mas também seu complemento, reconhecivel como uma sat de piiblica, ou melhor, publicizada (ou melhor ainda, po: litizada) que, no Brasil, chamariamos de Saide Coletiva ‘aim & Almeida. Filho, 2000). SAUDE COMO FENOMENO NATURAL Independentemente da perspectiva filoséfica ascu- rida, satide como fenémeno poe ser entendido tanto ‘em tormos da positividade de sua existéncia como em re- lagdo aos niveis de sua referéncia come objeto de estudo, Desse ponto de vista, a sade pode ser conceituada como {ato, evento, estado, situado, condigdo ou processo. 16 ago l + EIXOS O primeiro recorte se refere & positividade do con. ceito. Nesse aspecto, satide tom sido definida nega vamente ou positivamente. Na eoncepsa0 negativa, 0 termo satide impliea mera auséncia de doengas, viseos, agravos ¢ incapacidades. Na vertente positiva, satide pode denotar desempenho, funcionalidades, capacidades © percepgdes. No segundo resort, que compreendo niveis de refe- réncia ou planos de existéncia, fendmenos de satide ocor- rem em niveis coletivos (populacional ou social) ¢ indivi duais (oubjetive au clinico). No primeiro nivel, em simbito coletivo ou ageegado, conceitos do satide tém sido postulados como estado, si- tuacio ou condigio atribuida a grupos ou populagSes hu- manas, em espages geogréfica ou politicamente defini: dos, ecologicamente estruturados e socialmente determi- nados. Nessa acepsiio, medidas e indicadores de sade ¢ém sido desenvolvidos e aplicados, particularmente 205 campos disciplinares da Epidemiologia ¢ da Economia da Sade, a partir de referencial metodolégico numérico ou estatistico. ‘Agora podemos analisar o segundo nfvel ou plano de ccorréncia: « saiide em Ambito individual ou singular. Nesse nivel, conceitos de saiide tim sido consideredas, por outro lado, por referéncia a capscidade, estado ou condi¢do individual, em uma perspectiva predominan- temente fisiopatoldgica que se situa, mais precisamente, nos subeampos do campo cientifico da Biologia Humana, Nessa vertente, o termo satide tem sido relacionado a uma, ou mais de uma, das seyuintes ideias: (a) fancdo rogulada ou padrio normal de adaptagao bioecolégica; (b) estado resultante da manutencio ou restabelecimen- to de um equilibrio dinémico organismo-ambiente; (@) controle ou neutralizacio de agentes, estimulos © pro- 08508 patolégicos: (d) condigio resultante da correcdo de defeito, lesio, falta ou Séickt om organismos vivos. Satide como equilibrio ‘A mais antiga teoria naturalista sobre sofrimento, doenga, vida © morte, ainda vigente, atribuida a Hipd- crates, considerava a satide como estado de equilibrio vital. Essa doutrina postulava a existéncia de quatro hhumores constituintes do corpo: bile amarcla, bile ne- fra, fleume e sangue. No modelo hipocrético, a satide era definida como perfeito equilibrio entre os humores © ddesses com 0s quatro elementos constituintos do mundo: a, fog, terra e égua O conccito de sade como equilibrio e da doensa como descompensagio persiste em diferentes cosmolo- sas, Nas culturas asidtieas, ae nogdes de eatide e doen. a prodominantes ainda hoje conservam o essenciel das antigas tradigies hipoerética e galénica da modicina. Acreditam em forcas vitais que animam o corpo: quando essas forgas operam de maneira harmoniosa, ha satide; caso contrérie, sobrevém a doenga. As medidas torapeu- ticas desses sistemas médicos tradicionais (ventosas, sangrias, acopuntura, joga) tém por objetivo restaurar © fluxo normall de enorgia no corpo doente e recuperar 0 ‘equilibrio ern sua relago com 0 ambiente. ‘As nogies de satide coma harmonia entre ambientes ¢ humores sobreviveram nas teorias médieas dos séculos XVII e XVIII. No entanto, essa concepgio gauha forca particular no século XIX, a partir do advento da medi- cina experimental de Claude Bernard, quando surge a ideia de meio interior e 0 principio da autorregulagio, Com a fisiclogia sistémica de Bernard, o tema do eau librio ganhou novas formas ¢ forgas na modelagem da homeostase e na redefinigao do conesito de equilibrio hidroolotrolitico em bases biomoleculares (Coelho & Al- meida-Filhio 1999). Na perspectiva darwiniana da evalugio bioléeica principal avango das ciéneias da vide no séeulo XIX, a doonga infecciosa significa um acidente na competicao entre duas espécies. Em um perfodo de tempo suficien temente longo, a espécie humana ¢ os microrganismos patogénicos tenderiam a adaptar.se mutuamente. O pa- tégeno passaria gradualmente da situagio de parasita 4 de comensal. No comego, a enfermidade sesia grave © mortal, para ir se tornando gradualmente mais benigna medida que uma adaptacdo miitua se processa. Também as chamadas doengas cronicas degenerati ‘vas podem ser interpretadas em uma abordagem biolégi- ca evolutiva. A ocorréncia de patologiae pode significar 0 prego pago pela espécie humana em sa adaptagio a no- ‘vas condigdes ambientais. Modificagdes om dicta podem ser responsabilizadas por quadros metabélicos; novas substancias de alto potencial alergénico, sintotizadas pela indiistria e langadas no ambiente, podem alterar significativamente o sistema imunolégico humano. A transigdo demogrifica smplica aumento da expectativa de vida, o que possibilita 0 aparecimento de processos neoplisicos degenerativos. A mudanca cultural provo- cada pela modernizagio ¢ adaptagdo & vida urbana causam sedentarismo o estresse, causando sobrecarga fisiopatol6gica para o sistema circulatério e aumentando fo risco de transtornes ments A compreensio da doenga como excesso ou falta é mais evidente quando se trata de sintomas resultantes a oxacerbagdo ou reduedo das fungdes normais, desig. nados por prefixos referentes a excosco ou falta, como hiporglicemia e hipoglicemia, hipertenaio e hipotensio. Bassas abordagens articulam-se em modelos dindmicos de patologia, nos quais a ideia de compensagio nto se resume a suprimento de caréneias, mas implica estra- tégins diagndsticas e terapéuticas de reequilibragio das processos metabélicos e sistémiens. A despeito das dife rontes interpretagbes do que seria o conceito de “equili Capitulo 2 + Conceitos de Satie: Atualizacdo do Debate Teérico-Metodolégico a7 brio” no ambito da satide, o que possibilita o tratamento @ restabelecimento de pacientes com doencas crénicas nfo infecciosas, como transtornos mentais, diabetes © hipertensio, sfo as nogies de satide como equilibrio, doenga como descompensagio ¢ cura como sinénimo de estabilizagao, Satide como fun ide © filésofo norte-amoricano Christopher Boorse deft- ne “funcionamento normal” por referencia ao termo “elie ciéncia", tomando o ambito da populagao como base para sua definigao de “normalidade estatistica’. A fim de po- der usar 0 conceito de fungo para definir satide, Boorse (1997) aplica esse construto tanto a doengas que se ma: nifestam como enfermidade como Aquelas condigées la tentes ou assintomaticas (Almeida-Filho & Jucd, 2002). Propde como alternativa o eonceito de funcionamento nor- ‘mal capaz de tornar o funcionamento organico em estado ou condigao de normalidade (funcional). Boorse identifica fendmenos patol6gicos que propde descartar como anoma: lias te6ricas: (a) enfermidades estruturais ~ dextrocardia, deformidades menores ete, ~ nao poderiam ser identifica- das como doenga porque nao representam “problemas de satide’; (b) enfermidades universais — cérie, aterosclerose ete. ~ também niio deveriam ser assim classificadas por- que transgridem o critério bioestatistico de saiide, A perspectiva boorseana propée como base para um conceito tedrico de satide o mesmo registro da antinomia biolégica vida-morte. Como eixo de estruturagao de uma teoria da satide, propde o uso do termo “normal” no lugar de “satide” e de patolégico em substituigdo a “doenca’” Isso porque o termo “patolégico" seria mais preciso por sua correlagdo com as ideias de fungao biolégica € nor, malidade estatistica, A fungao normal se define pela contribuigéo indivi dual, “estatistieamente tipica” em relagdo A classe de re- feréncia, para a sobrevivancia e roprodugao da espéeie. Patologia: redugto da “eficiéncia tipica” implicada na fungdo normal. Satide significa simplesmente auséncia de patologia. Sendo o conceito de “condigio patolégica” formulado nesses tormos, aparentemente justifica-se no plano légico uma definigdo de satide como auséncia de doenga. Assim, Boorse termina indicando que, além da inexisténeia de patologia, o conceito de satide poder implicar simplesmente normalidade, sempre no sentido de auséncia de condisdes patolégicas (Almeida-Filho & ‘ues, 2002), Podemos resumir os elementos essenciais da teoria boorseana de satide-doenga, que seriam: a. satide como abjeto tedrico; ». naturalismo ou objetividade na distincdo satide e doenca: 4. conceito de doenca relacionado com o cumprimento de- ficiente de uma funcdo biologica comprometida porque ‘um dos componentes dessa funcdo encontra-se fora da normalidade estatisticamente definida; «. saide como auséncia de doenca. Em conclusio, Boorse insiste na proposta de uma teoria negativa da saide, na qual o fenémeno da saui de poderia ser definida como auséneia de doenca. Nao obstante, reafirma sua conceituag&o da doenga como re- dugio da “eficiéncia tipica” implicada na fungdo normal, Em consequeéneia, vé-se forgado a definir saide nos ter- mos funcionais (ou “bisestatisticos") da fisiologia, en quanto doenga é vista paradoxalmente como auséncia de saiide, Emerge do contraponto légico deste argumento a formulaggo de que a doenga pode ser definida como niio cumprimento (total ou parcial) de funciio biol6gica, a qual se encontra comprometida porque um de seus componontes encontra-so fora da normelidade “bioosta tisticamente” definida. final, na teoria biclégica de fun- io (e seus desdobramentos), sade pode ser entendida como eficiéneia funcional, enquanto doenga ou patologia sse define por falha, defeito, desvio ou déficit de fungao, sendo, portanto, rigorosamente, auséncia de normalida- de (Almeida-Filho & Jucé, 2002). Satide como auséncia de doencga Inicialmente, devermos assinalar que a quase totali- dade dos autores que escreveram sobre o tema apresen: tam propostas marcadas por uma referéneia predominan. ‘temente biolégica. Daf dacorrem, quase inevitavelmente, teorias nfo da saiide, mas dos processos patologicos & seus correlatos, em que satide é vista necessariamente ‘como auséneia de doenga. Como consequéncia, observa-se ‘uma énfase nos niveis subindividual e individual, em que efetivamente operam os processos patolégicos e viven- is, Bessa logics de omissdes impossibilita uma conceituagao coletiva da satide (a nao ser, é claro, como somatério das auséncias individuais de doenga). A concepco de doenca como auséncia de saide nao se restringe 4 modelos bioldgicos ou naturalistas de pa- tologia. A teoria do papel de doente (sick role) constitu 2 primeira referéncia conceitual, robusta ¢ consistente, para definigdes de enfermidade-sickness como compo- nente societal do objeto complexo doenga, como veremos adianto (Parsons, 1975).A tooria funcionalista parsonia- na serviu de matriz teérica para abordagens da satide in- dividual como papel social, desempenho, funcionamento, atividade e capacidade, entre outras, que foram poste- riormente condensadas na concepgao da satide enquanto bem-estar social, caracceristica da retériea contempo nea sobre "qualidade de vida’. Nesse quadro, saide implica fungdo social, estado de capacidade étima para desempenho efetivo de tarefas socialmente valorizadas permitido pela auséncia de enfermidades. 18 Seco} + EIXOS Em uma formulacio tedrica estruturada que deno- mina “fenomenologia da sade”, a teoria de Porn-Nor- denfeld estabelece utna distingao entre doenga objetiva e-doenga subjetiva (Nordenfeld, 1995). A doenca objetiva 6 definida pelo potencial de capacidade funcional nao atingido por causa da doenga, enquanto a saide objeti- va corresponderia a0 efetivo exercicio desea eapacidade funcional. A moléstia (ou néo satide) subjetiva teria dois componentes: a consciéncia de doenca ("mere belief or awareness that someone is il) 0 gentimento de doonga, (set of mental states associated with illness”). Dessa me neira, postuls Nordenfeld (1995), uma possoa P é ou esté subjetivamente sadia se, © somente se: 1. ndo se encontre subjetivamente enferma, acredita ou sabe que esté sadia ou nao experimenta um estado mental associado a alguma smoléstia objetiva porventura existente, A insisténcia desses autores em postular uma “me: dicina tebrica” parece contraditéria com uma auténtica postura “‘naturalista”. Na perspectiva médica eléssica, 0 naturalismo encontra-co intimamente vinculado & ativi- dade clinica (Good, 1994). O olhar e o togue clinic, a0 agirem sobre a realidade corpérea, Uecifrariam 0 pro cessos patolégicos, tragando uma diferenciagio entre estados de doenca e estados saudaveis. Sompre no refe reneial do naturalismo, recentenente eresce o movimen: to denominado “medicina baseada om evidéncine”, que desloca a fonte de referéncia da eficécia da biomedicina “da experiéneia clinica para a demonsbragio expetimen- tal e para os estudos de meta-anilise a partir da epide- iologia. ‘Uma anotagdo complementar: de acordo com Can- truilhem (1990), saiide como perfeita auséncia de doen. ‘ga eitua-se no campo da anormalidade. O limiar entre saiide e doenca é singular, sinda que influenciado por planos que transcendem o estritamente individual, como cultural e o socioeconémico. Fim tiltima instancia, a in fluéncia desses contextos dice no nivel individual. En- tretanto, tal influéncia nfo determinaria diretamente resultados (satide, vida, doenga, morte) dessa interacao, na medida em que seus efeitos encomtram-se subordina- dos 1 processos normativos de padronizagao, Satide-doenca como processo © principal modelo processual dos fenémenos pato- Logicos, desenvolvide na seio das cidneias biomédicas, foi batizado de modelo de Histéria Natural da Doenga (AND), como mostra a Figura 2.1. Nas pslavras dos principais sistematizadores desso modelo, denomina-se “histéria natural da doenga 0 conjunto de processos inte- rativos que criam o estimulo patol6gico no meio ambion. te, ou em qualquer outea lugar, pasando pela resposta do homem ao estfmulo, até as alteragées que levam a uum defeito, invalidez, recuperagdo ou morte” (Leavell & Clark, 1976: 7) ‘O modelo da HIND considera a evolugao dos processos patolégicos em dois periodos consecutivos que se art lam e se complementam, Os periodos sao: pré-patogéne- se, quando manifestagies pattologicas ainda nfo se max nifestaram, e patogénese, em que processos patoléicos 4 se encontram ativos. A pré-patogénese compreende a evolugao das inter. -relagies dindmicas entre condicionantes ecolégicos socioeconémicos-culturais e condigées intrinsecas do sujei 40, a6 o estabelecimento de uma configuragio de fatores propicia A instalagio da doenga. Envolve interaghes en- tre elementos ou fatores que estimulam 0 desencadea mento da doenga no organismo sadio e condiges que permitem a existéncia desses fatores. Na pré-patogénese, o conjunto resultante da estru- surasia sinérgies das condigies ¢ influéncias indiretas — proxiinais ou distais — constitui ambiente gevador da doenga. Fatores que produzem efeitos diretos sobre as fungées vitais do ser-vivo, perturbando-as e assim pro- duzindo doenga nos sujeitos, so denominados agentes patogénicos. Essos agentes levam estimulos do meio am- ‘biente ao meio interno do ser humano, operando como transmissores de uma pré-patologia gerade ¢ desenvol- vida no ambiente, Por sua presenga ou auséncia, atuam também como iniciadores ¢ mantenedores de uma pato- logia que passard a existir no ser humano. Ao se consi- derarem as condigdes ideais para que uma doenga tena inicio em um individuo suscetivel, nesse modelo, ne- nnhum agente sera por si s6 suficiente para desencadear © pracesso patolégice. A eclosio da doenga depende da articulaco de fatores contribuintes (ou doterminantes pareiais), de modo qué se pode pensar em uma configue ragio de minima probabilidade ow minimo riseo; uma vonSiguracdo de maxima probabilidade ou méximo risco; «e configuragées intermedidrias de rises variando entre ‘os dois extremos. Quanto mais estruturados forem os fa tores determinantes, com maior forga atuaré o estimulo patolégico. Quanto mais diversificadot forem tais deter- minantes, mais complexo ser o provesso de determina. ‘gio da satide e das doencas, Nesse aspecto, determinantes dx satide podem ser bicldgicos ou socioculturais. Ov determinantes biolégicos ‘ont geral sao classificades como genéticos ou ambientais, (Os determinantes sociovulturais podem eer econémicos, sociais propriamente ditos, culturais ¢ psicoldgicos Determinantes biolégicos fazem parte do ecossiste: ma definidor do meio externo onde atwam como agen- te etioldgico, como vetor biolbgien ou como reservatsrio. Fatores genéticos determinam ainda maior ou menor suscetibilidade das pessoas para a aquisigao de doencas ou manutengio da satide, Em situagGes ecolégicas des- Capitulo 2 + Conceitos de Satide: Atualizacao do Debate Tedy vico-Metodolégico 19 HISTORIA NATURAL E PREVENGAO DE DOENCAS” AMBIENTE que produzern ESTIMULO a doonga > SUSCETIVEL-ESTIMULO REAGKO—> | EN {ROTECAO ESPECIFICA i MED *Leavel & Clark, 1976. Figura 2.1 + Diagrams da favoriveis, atuam fatores fisicos, quimicos e biolégieos do meio externo que, por terem aceseo a0 meio interno de seres vivos, podem funcionar como agentes patogé- icos. Determinantes sociais © econdmicos da saiide so poderosos. Nao somente pobreza ou privagio determi: na problemas de saiide mediante precirias condigdes de vida ou pouco acesso a servicos de satide; desigualdades econdmicas ou iniquidades sociais constituem impartan- te fator de risco para a maioria das doengas conhecidas, Por outro lado, determinantes socioculturais, expres: s0s como preconceitos, hébitos alimentares, crendices € comportamentos, também contribuem para determina- 620, difusio © manutencao de doengas © para a adogio de formas de proteco e promosdo da satide em grupos humanos. Determinantes que atuam sobre o psiquisma humano, por sua presenca ou auséneia, tanto podem au. mentar a resisténcia dos sujeitos, constituindo-se em fa- tores de protecao da saiide, eomo podem comprometer 0 sistema imunolégico, atuando como estressores, aumen- tando a suscetibilidade a doengas organiecas, ‘Nesse modelo processual, a histéria natural da doen: ga tem seguimento com o desenvolvimento de processos || BIAGNOSTICO ‘Terecoce © TRATAMENTO SAM TIALS AULA Te 1ATO historia natural da doenca patolégicos no ser humano. £ 0 perfodo denominado patogénese. Esse estagio se inicia com as primeiras al- teragdes que agentes patogénicos provocam no sujeito afetado. Seguem-se perturbagdes bioquimicas em nivel celular, as quais continuam como distarbios na forma @ fungilo de érgaos ¢ sistemas, evoluindo para defeito permanente (ou sequela), cronicidade, morte ou cura. Este modelo traz uma concepio ecolégica de satide e doenga, dopendendo da interagao entre agento, hos- pedeiro e ambiente, representada por uma balanga que indiearia forgas em equilibrio, Tal concep¢ao no modelo da HIND é considerada duplamente otimista, pois insi- ‘nua quo 6 poseivel eliminar o agente ou restabelecer 0 equilibrio a favor do hospedeiro. Assim, o homem com saiide ostaria no periodo pré-patogénico, embora cons- tantemente sob a ameaca de transformar-se em doente no periado patogénico (Arouca, 2003). Amplia-se des- se modo o espago de normatividade médica, quando a medicina jé no se limita a atuar a partir do horizonte clinico, mediante a identifieagdo de sinais ¢ sintomas. Ao contrécio, expande seu espago de intervenc&o para 0 periodo pré-patogénico, ou seja, pare toda a vida, jé que viver signifiearia, praticamente, prevenir doengas. Este 20 Segiol + EIXOS ‘modelo, consequentemente, reforca um dado projeto de medicalizagio da vida e da sociedade. Contudo, o modelo HIND reprosenta um grande avan- ‘go em relagao 20 modelo biomédieo elissico, na medida fem que reconnece que saiide-doenga implica um proces- so de miiltiplas e complexas determinagées. A vantagem principal dosse modelo consiste em dar sentido aos di- forentes métodos de prevengdo e controle de deengas € problemas de saride. Nao obstante seu valor para a cons: tituiedo de novas préticas de cuidado em satide, podemos critieé-los em pela menos dois aspectos fandamentai Por tum lado, a determinacéo dos fendmenos da saiide concretamente nio se restringe & caualidade das pato logias (patogénese). Por outro, meras ferramentas como de fato sio, modelos nio podem reproduzir a realidade conereta como tal. Aesim, objetos de conhecimento e de intervengio do tipo sate e enfermidade nao constituem entes tangiveis portadores de ontologia propria; expec- tativas de equilibrio e ordem nao s8o principios regula- dores de um mundo incerta e eadtied: a “histéria natural das doengas” pode ser histériea, mas de maneira nenhu- ma é natural. Jé 0 modelo de vigilancia da sade (Figura 22) digloga com o da HND, embora em wma perspectiva de produgio social da saiide-doenca. Na parte superior do diagrama apresentado na Figura 2.2 consideram-se Modelo da Vigilancia da Sado oud . 1 CONTROLE DE Riscos ' | epcemicogia Grupos ef | Sovien Hp tT ome "F £23 | Rscos —* Exposicto > a 1 | Poseas | 7 | Senso comm — Exposes | Nowa oon ‘trés momentos: danos, riseos e casas. No momento do dano (mortes, doengas ¢ agravos) seriam diagnosticados casos, Entretanto, antes de casos identificados poderia aver indicios de danos (assintométicos) ¢ indicios de ex- posicio (casos suspeitos), No momento do risco poderia ser verificada @ exposicdo propriamente dita através da qual o agente ou a auséncia deste infuiria sobre 0 indi ‘viduo e a poptlagdo. Aqui podem ser lembracios “fontes de infecgao”, modos de transmissio ¢ de intoxicagio € outras relagées entre agentes ¢ ambientes. Anteceden- do a exposigio existirin o proprio risco, seja na acopeio do semso comm, da norma jurfdica ou da probabilidade com base eth estuidos epidemiolégicos (riscos absoluto, relativo ¢ atribuivel) quando sao classificados os expos- tos e 08 nie expostos (individuos, grupos e populagbes). No momento da causa sf considerados os determinan- tos socioambientais daa necessidades de satide que, em ‘time anslise, podem se expressar om riseos ¢ danos. ‘Nao obstante o reconhecimento dos aspectos bichigi- cos ¢ ambientais da satide como estruturantes dos fené- ‘menos da satide, em todas as etapas e para todos os ele mentos da problematica da satide-doenga como questo cientifica e teenolégica, ressalta seu caréter histérico e politica, Portanto, sera certamente mais adequado falar fem “histéria social da sade”, em proceasos da saide- doenga-cuidado e em objeto complexo da saiide, visando ’ BONTROLE DE DANOS. ' \ ' : ' t ' ' ‘ ' 1 Cum ' ' 1 caicos—> nies» coe fs outa | Seats * Dane ‘ : t | ove | 1 euaptn AcSomatees ' Polticas poblicas Promocio da Saude Voticnsataon | 1! Wotan 1 fransetorials 1_>— yt ictancia dice Hoptalar \! iagnéatica 1 a Limitagio de Danos CConscincia santaria e ecoldgiealEcucayao em SatidePromogao de Satide Amplada Figura 22 * Diagrama da vigiancia de saide Capitulo 2 + Conceitos de Satide: Atualizacio do Debate Tebrico-Metodolégico 2a estender 0 escopo de estusio dos fonémenos relatives « satide, ago e vida, assim como sofrimento, dor, aflgées e morte de seres humanos, transcendendo o ambito bio: l6gico restrito para uma abordagem dos sistemas ecosso- ciais e culturais, ‘A partir desse referencial, novos modelos tém sido propostos, como 0 apresentado na Figura 2.3, adotado pelo texto de referéncia para a Conferéncia Mundial so- bre Determinantes Sociais de Satide, realizada no Rio de Janeiro em 2011 (OMS, 2011). Esse diagrama destaca os doterminantes estruturais das desigualdades de satide € 08 determinantes intermedidrios da satide. Entre os primeiros encontram-se a posigio socioeconémica (clas- se social, género, etnia, educagao, renda e ocupagiic) € ‘© contexto socioecondmico e politico. No easo dos deter- minantes intermedidrios, destacam-se 0 capital social e sistema de sade. Ainda que nao haja uma preocupa- fo fundamental em conceituar satide nessa proposta, constata-se um esforgo no sentido de indicar possiveis relagées entre determinantes sociais capazes de ter im: pacto sobre a equidade em saiide eo bem-estar. SAUDE COMO MEDIDA Neste tépico, vamos discutir limites e possibilidades de tratamento quantitative dos fendmenos da satide no plano individual e singular que, em nossa cultura cien. tifica, praticamente tem sido monopdlio de abordagens, Pca sci Mercado de rata clinieas, Em segundo lugar, vamos avaliar uma das ver- tentes de quantificagao da satide na sociedade de maior expresso atualmente, a epidemiologia, para estimar pro- babilidades condicionais de ocorréncia, nao de doengas, mas de satide. Em tereciro lugar, também no plano agre zgado ou coletivo, pretendemos introduzir oleitor a abor- dagens econométricas da satide, analisando impasses desdobramentos de propostas de anélise quantitativa da situagao de satide como se fosse um recurso econémico das sociedades modernas. Inicialmente, analisemos a questio da saiide como medida no plano individual ou singular que, no que con: cerne gos temas da pesquisa sobre satide-doenca, em sido convencionalmente objeto da clinica. Partamos do prinefpio de que satide pode ser tomada como atributo individual de seres humanos e, como tal, encontra-se vul nerivel a processos de mensuragio. Com vistas a uma formalizacdo preliminar da satide nesse nivel, devemos considerar as seguintes proposigies: a. Nem todos os sujeitos sadios acham-se isentos de doenga. b, Nem todos os isentas de doenga sio sadios. Sabemos que individuos funcionais produtivos po- dom ser portadores de doengas, mostrando-se muitas, vezes profusamente sintométicos ou portadores de se. quelas ¢ incapacidades parciais. Outros sujeitos apre- Sircunstancias materias 4, trot baba, PACTO

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