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Fichamento de texto para disciplina “História das Religiões II”

Professor - Everton Sales Souza


Aluno - Lucas Gesteira Ramos da Silva

Referência bibliográfica:

POMPA, Maria Cristina, Religião como tradução: missionários,


Tupi e “Tapuia” no Brasil colonial, 2001

Resumo:

Através da análise dos registros feitos pelos missionários cristãos


durante o Brasil colonial, Cristina Pompa constrói o argumento de que,
no processo de interação entre indígenas e missionários, houve a
tradução de um sistema cultural para o outro - tanto dos missionários
para com a cultura indígena como também o inverso. Ou seja, foi um
processo que não se deu inteiramente de maneira forçosa e impositiva
(embora isso também tenha acontecido), na medida em que houveram
grupos indígenas que acataram elementos da religião cristã, que
passaram a fazer parte do seu repertório cultural e simbólico. Da mesma
forma, entre os missionários houve a adesão, mesmo que insconsciente
ou funcional, a determinados aspectos da cultura indígena,
configurando um intercâmbio cultural através da tradução simbólica - a
comunicação.

· Palavras-chave: religião, tradução, missionários, indígenas

· Tema geral:

Os processos de tradução cultural envolvidos na catequização dos


povos indígenas Tupi e “Tapuia” no Brasil colonial

· Temas específicos:

Relatos sobre a mitologia dos povos indígenas; Relatos sobre as


práticas rituais, culturais e religiosas dos povos indígenas; Relatos
sobre as crenças dos indígenas; Relatos sobre as experiências de
evangelização dos indígenas pelos missionários; Relações de
convergência e de divergência que foram estabelecidas entre ambas as
culturas no processo de tradução (limites e possibilidades da
compreensão); Reflexões críticas a respeito do trabalho dos
missionários e do trabalho dos historiadores e antropólogos ao se
debruçarem e escreverem sobre os povos indígenas.

· Metodologia:

A autora coloca como problema metodológico os limites das fontes


utilizadas, que no caso estão restritas aos textos escritos pelos
missionários “produzidos pela cultura que se autopercebia como a
única legítima produtora de valores de civilização, na reconstituição da
história das culturas orais, cuja voz foi silenciada justamente pelo
discurso “civilizador”. (Pag. 7)
Ou seja, faz-se necessário responder de que forma é possível, tanto
no caso dos missionários como na antropologia e na historiografia, que
provém originalmente da Europa, ter um entendimento sobre as
culturas indígenas sem priorizar a cultura européia, incidindo sobre
erros que impossibilitem essa tradução.
Em resposta a isso, a autora coloca que “a única saída razoável
para este paradoxo é refazer explicitamente o percurso da história
ocidental inscrita nas categorias de observação das culturas “outras”,
num contínuo esforço de historicização: o “etnocentrismo crítico”,
proposto por De Martinino como superação deste absurdo teórico, é a
utilização não dogmática destas categorias, movida pela consciência de
sua gênese histórica e pela exigência de replasmar seu significado a
partir do confronto com outros mundos histórico-culturais (De Martino,
1977). (Pag. 8)
Ou seja, a autora defende que através da contextualização histórica
é possível trabalhar com fontes dessa natureza sem delas se tornar
refém. Na medida em que seu texto não pretende uma abordagem
sistemática dos princípios, fundamentos e sistemas de crenças dos
indígenas, e sim um estudo de como se deram os processos de tradução
de um sistema para o outro, ela argumenta que essa fonte não somente
é válida, como é um material que fala precisamente do encontro desses
sistemas, através dessas pessoas, possibilitando amplas reflexões sobre
o assunto.

· Sumário de pontos mais importantes: 

“O olhar do ocidente (historiador e antropólogo) tende a congelar os


índios e tirá-los da história, mas da mesma forma coloca a religião
ocidental sob o domínio da história de longa duração. No esquema
interpretativo que opõe resistência e dominação, o catolicismo é visto
como um sistema imutável, tanto quanto a suposta fé pré-colombiana
dos índios. Pelo contrário, a riqueza das fontes americanas mostra um
mundo de rápidas mudanças, tanto na população indígena e suas
crenças, quanto na redefinição constante dos conteúdos da
evangelização.” (Pag. 1 e 2)

“As convergências de horizontes simbólicos, que as fontes mostram


repetidas vezes, não são dados preexistentes ao impacto colonial, mas
construções nascidas no interior das realizações históricas desse último;
devemos pensar, portanto, que os elementos “alheios” foram
absorvidos pela cultura indígena porque inseriam-se num preciso
contexto significativo, isto é, faziam sentido. A criação de um sistema
original de representações (uma “cultura híbrida”, diria Vainfas, ou
uma “cultura mestiça”, diria Gruzinski) foi uma tentativa da cultura
nativa de refundar o sentido.” (Pag. 7)

“Quero aqui chamar a atenção para o fato de que, frequentemente, o


que os missionários, os cronistas, os agentes do governo colonial
apresentam em suas fontes é a sua própria imagem deformada no
espelho, em virtude do processo de tradução apontado acima. Por
exemplo, o tratado de paz entre os Janduí de Canindé e os portugueses,
de 1692, traduz uma exigência dos indígenas desenvolvida a partir de
um costume apreendido com os holandeses; ainda, no processo
inquisitorial investigando a “Santidade de Jaguaripe”, a heresia tropical
é a imagem especular do próprio ritual católico; finalmente, toda a
leitura da “religião” dos selvagens pelos missionários é feita nos termos
de uma “contração diabólica” em que o Diabo, símio de Deus, constrói
o contraponto infernal da própria divindade.” (Pag. 9)

“Se a cultura é um texto do qual se pretende desvendar a teia de


significações subjacentes, onde o significado está na apreensão da
polissemia dos símbolos, produzidos no intercruzamento de diferentes
campos semânticos, o texto escrito, produzido a partir da interpretação
(uma, entre as possíveis) de um “objeto” dentro de uma situação
histórica e cultural específica (uma, entre as infinitas) é talvez o lugar
privilegiado para aprender o processo de mediações culturais, de
mudança de registros, de revisão de códigos, de traduções de uma para
outra linguagem, que levou à construção do próprio texto.” (Pag. 10)

“Um problema análogo é o da personificação. Não apenas os


“Tapuia” (bem como os Tupi) deveriam “acreditar” em algo, mas
precisamente em alguém. Mais uma vez, Sabbatucci (1981 e 1991,
131ss.) nos ajuda a entender este aspecto da construção categorial que
organiza a percepção da realidade por parte da própria etnologia
religiosa. O autor mostra que o problema da divindade foi sempre
resolvido, na antropologia e na história das religiões, pela
personificação, a partir da noção de “Ser supremo” como
“personificação do céu” de Max Müller. Portanto, todos os documentos
etnológicos que atestam o “Ser Supremo”, são de fato construções
obtidas induzindo o indígena a “personificar”, algo que não é
personificáveis, mas que é a única maneira de estabelecer uma
comunicação com o campo religioso indígena.” Pag. 354

“A busca de Bernardo é análoga Pa dos missionários do século XVI


entre os Tupinambá, procurando as noções de dilúvio, da passagem de
Tomé, da imortalidade da alma, ou seja, os “rastros” de um processo de
descendência que, ligando os selvagens às tribos perdidas de Israel, à
estirpe de Com ou à pregação de São Tomé, podiam conferir
consistência à unidade do gênero humano e fundamento à
profecia.” (Pag. 359)

“Também entre os Kariri instaura-se, portanto, o jogo de espelhos entre


feiticeiro e missionário, já visto para os Tupinambá: se a leitura
missionária das práticas de cura indígena só pode se dar em termos de
distorção diabólica, a leitura indígena das práticas litúrgicas acontece
apenas via código xamanístico. Martinho de Nantes relata um episódio
em que ele próprio foi considerado autor de feitiçaria por um índio (de
outra nação) que em seguida morreu “vítima da própria
imaginação” (pai 364)

“Por outro lado, os Kariri não abrem mão dos rituais tradicionais, como
a lamentação, o uso das cinzas, a saída para o mato. Então é o padre
que entra na simbologia indígena, utilizando a água benta com a mesma
função das cinzas e revestindo-se do papel do xamã. Sem dúvida, como
ele próprio diz, se trata de um uso instrumental, mas o importante é o
fato de que o missionário, em várias ocasiões, conscientemente ou não,
se faz nativo, ou pelo menos veicula conteúdos cristãos com uma
linguagem nativa.” (Pag. 385)

“O ritual se abre assim à absorção do outro. Me baseio aqui na idéia de


Sabbatucci (1991, 183ss) de que, enquanto o mito define uma realidade
não pass[ivel de transformações, ou seja, o que foi fundado de uma vez
por todas (a morte, a humanidade atual, até a presença dos brancos,
como vimos), o rito permite intervir nela e modificações-la (tendo o
mito, obviamente, como ponto de referência). O mito atribui a mudança
a um sujeito não atual, enquanto o rito faz dela uma ação de um sujeito
atual. Na verdade, o operador titula se comporta como um ser mítico,
na medida em que sua ação (na história) e deshistorificada, assimilada a
uma ação mítica.” Pag. 388

· Conclusões: 

A autora conclui que os sistemas culturais e religiosos não são


fechados em si mesmos, ou seja, tem em si a possibilidade constante da
transformação e da abertura para o “outro”, para o diferente. A
tradição, portanto, se atualiza constantemente, de acordo com seu
tempo presente e as necessidades do momento, o que também não
implica em esquecer ou mesmo “apagar” o passado. Isso se mostra
verdadeiro tanto no caso dos indígenas, que aderiram às práticas e
crenças cristãs, como também entre os missionários, que foram postos e
se colocaram em lugares sociais próprios dos indígenas, atuando em
certos episódios de forma análoga aos xamãs. A autora traz uma valiosa
contribuição para o estudo dos intercâmbios culturais e religiosos,
superando a dicotomia que enxerga os missionários como meros
transmissores da religiosidade cristã, imposta aos indígenas, e estes
como meros receptores ou como antagonistas ferrenhos, que não
abriam mão de nenhuma de suas crenças nem de seus costumes. A
realidade, defende Pompa, é algo que está entre uma coisa e outra: o
processo de tradução de uma tradição pela outra.

· Comentários avaliativos sobre o trabalho: 

Gostei bastante das análises da autora e, sobretudo, da opção que


ela fez por transcrever vários trechos dos relatos dos missionários, sem
os quais o texto ficaria vazio de significado. Ela defende seu argumento
com segurança e coerência, trazendo uma abordagem corajosa, na
medida em que propõe algo bastante distinto do que se espera de um
estudo sobre as relações entre missionários e indígenas no Brasil
colonial. Com essa produção é possível pensar cultura, religião e
tradição para além de círculos fechados, abrindo horizontes para um
entendimento mais amplo sobre os intercâmbios e traduções possíveis
de um sistema para o outro, tão importantes num país pluricultural,
pluriétnico e plurireligioso, como é o Brasil, no qual processos de
tradução semelhantes estão entranhados em toda parte.
Senti falta apenas de que fosse explorado mais o contraponto da
tradução que a autora coloca, que seria o da tradição que escolhe não se
abrir, e por isso vive destinos diferentes, sendo o mais frequente o da
extinção. Na maior parte do texto, ela explora as potencialidades da
tradução, mas quais são os seus limites? Ela fala brevemente sobre essa
questão, mas não desenvolve profundamente (talvez o faça em outro
capítulo da dissertação). Penso que essa é uma questão importante, pois
se focamos apenas nas traduções, perdemos de vista o processo cruel e
colonizador que esteve presente na evangelização durante o período
colonial.
Outra reflexão que julgo importante é que ela fala da tradução
pelos indígenas, e vê-se amplamente o desdobramento disso hoje em
dia, nas aldeias que sobreviveram a esse processo. Entretanto, o
desdobramento das traduções feitas pelos missionários foi algo que se
restringiu bem mais às experiências desses indivíduos, uma vez que
não gerou um impacto com as mesmas proporções na estrutura
hierárquica nem no sistema religioso cristão. Existe, a meu ver, um
desnível nesse processo, e isso deve ser assinalado para que não
caiamos no engano de considerá-las como correspondentes uma da
outra.

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