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Tecno-estética Contemporânea:
Shary Boyle e transbordamentos

Fernanda Areias de Oliveira


Universidade Federal do Maranhão – UFMA, Maranhão/MA, Brasil
E-mail: nandaareias1@gmail.com

Resumo Abstract
A partir da noção de tecno-estética, propo- Drawing on the notion of techno-aesthetics,
mos a análise do processo de criação com o we propose the analysis of the creation process
maquínico, elaborado pela artista canadense with the machinic, elaborated by the canadian
Shary Boyle. O ensaio* se localiza no interesse artist Shary Boyle. This essay shares the inter-
de discussão das reverberações entre o pen- est in discussing the reverberations between
samento do filósofo Gilbert Simondon, e sua the thought of the philosopher Gilbert Simon-
operacionalização no contexto da cena con- don, and its operationalization in the context
temporânea intermedial, e seus transborda- of the contemporary intermedial scene, and it’s
mentos entre linguagens artísticas. overflowing of artistic languages.

Palavras-chave Keywords
Tecno-estética. Cena contemporânea. Inter- Techno-aesthetics. Contemporary scene.Inter-
medialidade. mediality.

* O ensaio apresentado compõe a revisão de algumas dimensões analisadas na tese “Pedagogia do teatro contemporâneo: apro-
priações da cena intermedial na formação de docentes de teatro”, defendida em 2016 na Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, sob a orientação da Profª.Drª Marta Isaacsson e Profª. Drª.Maria Cristina V. Biasuz.
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A estética não é a única nem primeira- sentido levam em consideração uma visão am-
mente sensação do “consumidor” da
plamente fenomenológica, ou tecnicista, des-
obra de arte. É também, mais original-
mente ainda, o feixe sensorial mais ou tacando algumas referências, mas deixando
menos rico do próprio artista: um cer- claro o espaço reduzido destinado ao pensa-
to contato, com a matéria enquanto
trabalhada. (Simondon, 1998, p. 257. mento acerca da questão da estética. Desta-
Destaque conforme o original). ca, dentre as produções sobre o tema, a carta
enviada a Jacques Derrida em 1982, onde de-
Na epigrafe que inicia o ensaio1, Simondon senvolve algumas noções de sua tecno-esté-
nos chama a questionar a extensão da estética tica. O referido texto representa uma das pu-
para o ato de elaboração do artista, incluindo blicações onde ele trata de uma abordagem
desta forma o entendimento da criação/ação sobre a estética presente no objeto técnico.
sensorial como elementos a serem embutidos Nesta correspondência, percorre a introdução,
no pensamento sobre a arte. A fusão que nos destacando para Derrida, que os monumentos
convida a pensar será um dos basilares para a e espaços destinados à admiração e deleite ti-
reflexão em torno da arte tecnológica que se veram sua construção a partir da intervenção
produz contemporaneamente. A técnica usada de objetos técnicos associados ao pensamen-
para a elaboração do objeto, do espetáculo, to humano. Em sua comunicação informal,é
da performance é sempre convidada ao de- possível rever essa demanda em deixar claro o
bate e ao questionamento. As escolhas téc- desejo de reconhecer a máquina como objeto
nicas e saídas dos produtores desse tipo de a ser aberto e manipulado pelo homem. Dentre
arte acompanham muitas vezes o caráter da os muitos exemplos citados, passa pela Torre
recepção e da crítica que irão imergir a partir Eiffel, e termina por concluir: “Trata-se de uma
da obra. Assim, a fusão intercategórica elabo- obra técno-estética perfeitamente funcional,
rada por Simondon nos apresenta a coalisão inteiramente bem-sucedida e bela, simulta-
contida no termo proposto por ele e adotado neamente técnica e estética, estética porque
por nós para pensarmos os produtos artísticos técnica, técnica porque estética. Há fusão in-
presentes nesta pesquisa, a tecno-estética. A tercategórica” (Simondon, 1998. p. 255).
intermedialidade presente na cena que nos in- Nesta perspectiva, é preciso dar voz a uma
teressa investigar transborda a partir do lugar técno-estética que já há muito anuncia a in-
onde reconhecemos a estética presente no teratividade presente na arte tecnológica con-
objeto técnico, como potência. temporânea. É no desejo do tátil e do expe-
A problematização da estética na ótica Si- rimento sensório motor que a mesma irá se
mondoniana não é amplamente divulgada por colocar, como apresenta o autor: “Mas a téc-
seus comentadores. Duhem (2016), em seu no-estética não tem como categoria principal
artigo Simondon y la cuestión estética, irá as- a contemplação. É no uso, na ação, que ela se
sinalar que a maioria das publicações nesse torna orgásmica, meio tátil e motor de estímu-
lo” (Simondon, 1998. p. 256). Desenvolvendo a
1 O ensaio aqui apresentado é uma reelaboração do texto da proposta em torno do comando de máquinas
tese: Pedagogia do teatro contemporâneo: apropriações da
cena intermedial na formação de docentes de teatro. Retoma-
e operadores, Simondon (1998) nos pergunta
mos parte do texto acadêmico com o intuito de recolher as- porque a arte proposta pelo uso na tecnologia
pectos pertinentes às discussões propostas por este dossiê.

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não abarcaria o prazer sensorial e tátil como o prolonga, formando uma rede de
obras, ou seja, realidades de exceção,
um dos propulsores de seus mecanismos de radiantes, a pontos chaves do univer-
apropriação? Prossegue remetendo o prazer so humano e natural. Mas separando
do mundo e do homem, que a antiga
do dedilhar ao piano como algo do domínio rede de pontos-chave do universo má-
da arte que já apresentaria este prazer técno- gico, a rede espacial e temporal das
-estético. Ao se aproximar mais do território obras de arte é uma mediação entre o
mundo e o homem que conserva a es-
artístico, sugere que o uso do objeto técnico trutura do mundo mágico. (Simondon,
estimularia o prazer estético, como o que é vi- 2007, p. 202. Tradução nossa)3.
sualizado entre os músicos e seus instrumen-
tos. Trabalhando em oposição à estética platô-
O que diferenciaria os pintores, os músicos nica, Simondon nos propõe um entendimen-
dotados desta “intuição perceptivo-motora to da obra de arte que vai ao encontro de sua
sensorial” dos artistas da arte eletrônica? Não ontologia. A obra de arte como um prolonga-
seriam os sensores novas formas de apertar, mento do estar no mundo, mas com sua auto-
soldar e produzir encadeamentos maquínicos? nomia de universo próprio. Tal direcionamento
Com um recorte sobre o pensamento esté- permite um pensamento estético atomizado
tico, podemos encontrar no capítulo 2, terceira por realidades inseridas nele e prolongador
para do livro Do modo de existência dos ob- das mesmas realidades. Não se trata de imi-
jetos técnicos, a problematização do mesmo tar a vida, mas de estar contida nas relações
em relação ao pensamento técnico. Nele, Si- transdutivas que o homem e a natureza par-
mondon se estende em uma proposta transin- tilham. Logo, o pensamento estético constitui
dividual2 de complexificação dos modos das para Simondon uma escala do mundo natural,
obras de arte estarem no mundo. Nesta elabo- conjuntamente ao pensamento técnico e ao
ração simondoniana, o universo estético existe pensamento religioso. Tal direcionamento nos
como prolongamento do mundo, mas também permite vislumbrar uma coexistência e com-
independe deste. plementariedade de formas de elaboração do
mundo.
A obra, resultado desta exigência de Em relação ao objeto tecno-estético, já re-
criação, desta sensibilidade aos luga-
res e aos momentos de exceção, não ferenciado em sua correspondência a Derrida,
copia ao homem e o ao mundo, mas os nos parece essencial a identificação no Du
prolonga e se insere neles. Ainda as-
sim está separada, a obra estética não
provém de uma ruptura do universo ou 3 La obra, resultado de esta exigencia de creación, de esta
do tempo vital do homem. Provém de sensibilidad a los lugares y a los momentos de excepción, no
uma realidade já dada, fornecendo-lhe copia ao hombre o ao mundo, sino que los prolonga y se ln-
estruturas construídas, mas constru- serta en ellos. Aun si está separada, la obra estética no pro-
ída sobre bases que fazem parte do viene de una ruptura deI universo o del tiempo vital deI hom-
real e inseridas no mundo. Assim, a bre; proviene de la realidad ya dada, aportándo-le estructuras
construídas, pero construídas sobre fundamentos que forman
obra estética faz brotar o universo e parte de lo real e insertados en el mundo. De este modo, la
obra estética hace brotar el universo, lo prolonga, constitu-
yendo una red de obras, es decir, de realidades de excepción,
2 Bernard Stiegler (2010) elabora o conceito de transidividu- radiantes, de puntos-claves de un universo a la vez humano y
ação. Com base na filosofia Simondoniana, argumenta que a natural. Más separado deI mundo y del hombre que la antigua
transidividuação é oriunda dos movimentos de individuação red de puntos-clave deI universo mágico, la red espacial y
entre os sujeitos e que, no tocante às obras de arte, irá gerar temporal de las obras de arte es una mediación entre eI mun-
circuitos de circulação e interação. do y el hombre que conserva la estructura deI mundo mágico.

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mode d’existence des objets techniques da O universo de Shary Boyle é composto por
transição entre o objeto técnico, que se des- materialidades e técnicas múltiplas. É signifi-
loca de sua função no mundo por ser belo4, cativo notar que seus trabalhos alimentam a
adquirindo assim o status de objeto estético. discursividade sobre si, ao proporem além de
Ao ajustar sua elaboração do pensamento es- temas associados ao universo do feminino,
tético para as lentes de um movimento trans- uma variedade de suportes que destacam a
dutivo, Simondon estimula o entendimento de desvinculação de uma forma ordinária, asso-
deslocamentos pertinentes à apropriação de ciada àquela matéria prima. No catálogo ela-
valores estéticos a objetos que foram conce- borado pelo pavilhão canadense para a Bienal
bidos a priori para o uso puramente técnico. de Veneza, a curadora Louise Déry destaca a
Tal desvelamento do pensamento estético nos atenção dada ao trabalho de manipulação dos
permite compreender a transição das materia- materiais:
lidades usadas nos processos artísticos que
estudaremos neste ensaio. Tratamos inicial- Ela insiste na dimensão crítica repre-
sentada pela demanda feita hoje, em
mente de uma apropriação do mundo técnico uma série de competências equipara-
pelo pensamento estético. das com as atividades de decoração
e de lazer femininos e práticas artesa-
nais. Ela consequentemente leva os
principais desafios técnicos que justi-
ficadamente fazem uma forte impres-
Shary Boyle e sua poética analógica são: escultura em miniatura, com
instrumentos cirúrgicos e odontoló-
gicos; tornando-se hábil em pintura
Nos dedicaremos ao estudo dos processos a óleo à maneira dos antigos mes-
artísticos presentes no caso investigado nes- tres; estudando técnicas de porce-
lana na grande tradição europeia
ta pesquisa: Shary Boyle (Ontário-CA). Trata- de Messen, Dresden e Sitzendorf;
remos aqui de transbordamentos estéticos, adquirindo o trato manual para o
mosaico, fabricando, colorindo e
ações artísticas que avançam para além das
cortando a porcelana vitrificada ela
linhas traçadas por gêneros, formas de atua- mesma; tecendo as fitas, cabelo e
ção e formas de recepção. A referida artista foi fios de pérolas que adornam suas
sereias, mulheres-aranha e criatu-
destacada sob o critério de sua atuação criati- ras elefante. (Déry, 2013, p. 21. Grifo
va imbuída da tecnologia de imagem técnica e nosso)5.
uso da construção de imagens ao vivo, para a
criação de uma narrativa. Gostaríamos de pro- Shary usa a porcelana para propor escultu-
por que nesta leitura pensemos juntos acerca ras mórbidas, ou bizarras. Atravessa o óleo de
de algumas aproximações possíveis entre cor-
pos orgânicos ou constituídos dematerialida-
5 She range of skills equated with feminine leisure activi-
des diversas e seus jogos poéticos com a luz. ties-decorative and craft practices. She consequently takes o
major technical challenges that justifiably make a strong im-
Essa, que ao ser emitida com o direcionamento pression: sculpting in miniature, with dental and surgical in-
narrativo, compõem, enfim, a obra completa. struments; becoming adept at oil painting in the manner of the
Old Masters; studying porcelain techniques in the grand Eu-
ropean tradition of Messen, Dresden and Sitzendorf; turning
her hand to mosaic, fabricating, colouring and cutting the vitri-
4 Importante destacar que para Simondon, beleza não neces- fied porcelain herself; weaving the ribbons, hair and strands of
sariamente está associada a formas, mas também à elabora- beads that adorn her mermaids, spider-women and elephant
ção e concretização do objeto técnico. creatures.

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traços contemporâneos próximos à colagem principalmente pela primazia de execução na


ou ao Grafitti. Retoma os retroprojetores, apa- tecnologia analógica. O que vemos em suas
relhos ligados ao ambiente acadêmico ou pro- obras, nas instalações e performances, são
fissional, para que funcionem como “portais” uma apropriação do mapeamento manual de
que conduzem à elaboração de suas sereias, imagens virtuais a serviço da narrativa.
iluminadas e repletas de imagens contempo- O contato com a obra de Shary7 ocorreu
râneas. O estudo da técnica dos materiais é inicialmente a partir de suas instalações, am-
usado por Boyle para deslocá-los com prima- bas pertencentes ao acervo permanente da
zia das expectativas funcionais e artísticas que coleção pública na National Gallery of Canada
eles poderiam gerar em um primeiro momento. (Ottawa). Na seção onde se destacavam os ar-
Como propõe Déry, a artesania é para Shary tistas canadenses é possível vislumbrar a pri-
um discurso político em sua obra. Manter-se meira obra, Vírus - White Wedding (2009).
atenta ao manual, respeitando os processos
Figura 2: Obra Vírus
e técnicas alcançáveis pelo desenvolvimento
de habilidades nas diferentes matérias primas,
retomando muitas vezes aptidões que diziam
respeito ao sentido do feminino, alimentam a
proposta do desfazimento das expectativas
sob a figura da mulher e as “práticas artesa-
nais”.

Figura 1: Arrependimento de 2015. Porcelana, pintura


chinesa, cabelo sintético e de cavalo, veludo.

Fonte: Site da artista8

Trata-se de uma instalação composta por


uma escultura de gesso, rendas, temporizador,
retroprojetor, acetato impresso, gelatinas de
teatro, ventilador, papel, linha com 153 x 153 x
123cm de medida.
Fonte: Site da Artista6 Ao entrar na sala destinada a esta instala-
ção, observamos a escultura de uma criatura/
Ao longo desta pesquisa nos deparamos
com inúmeros artistas que se utilizavam de 7 Shary Boyle, nascida em Ontário em 26 de maio de 1972,
imagens técnicas mapeadas para a com- é anglo-canadense. Tive a oportunidade de conhecer seu tra-
balho durante o período de estágio sanduíche, realizado na
posição das suas narrativas. No entanto, o Universidade de Concórdia em Montréal, Canadá. A entrevis-
ta concedida a essa pesquisa foi possível porque, no ano de
destaque sobre o trabalho de Shary se deu 2015, Shary atuou como professora convidada na disciplina
de pintura na mesma universidade em que eu desenvolvia mi-
nha investigação.
6 Acesso em: http://www.sharyboyle.com/sculpture/#jp-carou-
sel-349 . 8 http://www.sharyboyle.com/installation/#jp-carousel-432 .

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mulher em tamanho natural, de joelhos, que na, mantendo uma relação de descoberta das
executa ação de esticar uma teia que parte de suas potencialidades, nos remete a Simondon
sua vagina, percorrendo seu umbigo e boca. em sua carta acerca da técno-estética: “Mas
Sobre a referida obra, Brisebois (2014) em ma- a técno-estética não tem como categoria prin-
terial produzido para a apresentação da artista cipal a contemplação. É no uso, na ação, que
na Bienal de Veneza de 2014, chama a atenção ela se torna orgásmica, meio tátil e motor de
para o fato de se tratar de uma das primeiras estímulo” (1998, p.256).
investidas de Boyle no uso do retroprojetor em Nas obras de Boyle, o entendimento sobre
instalações. Ainda nesta peça, permanecem a materialidade em que pretende desenvolver
características do seu trabalho, a partir do ser sua peça alimenta a composição da mesma.
esculpido que transita entre o humano e a na- Além do cuidado, e da precisão na projeção,
tureza, a hibridez das técnicas empregadas há uma preocupação em manter o controle
para sua execução e ainda os temas impres- nas etapas de execução da obra. O sentido de
sos na imagem através da projeção. Esses re- abdicar do mapeamento digital reflete a pre-
tomariam seu interesse pelo detalhe do traço ferência pela execução manual, característica
das porcelanas tradicionais chinesas, figuras e que permanece em grande parte de seus tra-
grafismos africanos e ainda imagens de inse- balhos e independe da materialidade.
tos. Observar o trabalho de Boyle através de
Na sequência podemos observar a imagem uma ótica simondoniana, implica em dizer que
da escultura “desnuda” e posteriormente “ves- a mesma se mantém protagonista nas etapas
tida” pelas projeções. Shary investe na técnica de concretização dos seus objetos técno-esté-
de mapeamento manual que desenvolveu. ticos. Suas obras em questão, quando concre-
tizadas, apresentam-se como “ser” no mun-
Eu faço tudo à mão, então eu estou do, saltando de seu estado abstrato, para sua
fazendo pela mão, eu estou olhando
para eles (suposta escultura), eu es- concretização em invenção.
tou traçando os contornos, mas eu
não estou olhando para isso (mostra Figura 3: Sequência de imagens da Obra Vírus
o possível acetato no retroprojetor),
porque isso é, na verdade, o inverso.
Então, se eu começar a olhar para isso
(faz menção com o rosto de que irá
se perder) eu apenas sigo... é tão fácil
que você vá, é sua mão querendo ir, é
reverso, é como um sinal. É apenas,
um estilo bem antigo. Eu fico fazen-
do estes desafios para mim mesma
que são desnecessários, se você vai
ao computador e ele simplesmente-
faz tudo... (Entrevista cedida para esta
pesquisa. Grifo nosso).

Retomamos o processo de artesania para


a composição de uma obra técno-estética. A Fonte: Elaborada pela autora
precisão dos contornos, a escolha pela pro-
cessualidade de aproximação com a máqui-

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As etapas da concretização da instalação No trecho, verificamos seu entendimen-


Vírus nos permite perceber uma organização to da cena performativa como algo associa-
consciente dos efeitos possíveis através da do ao narrativo, muito próximo a um contex-
materialidade técnica disponível. O tempo- to dramático de teatro. Porém, a cena teatral
rizador é ativado para pensar o movimento. contemporânea reelabora a necessidade da
Shary Boyle propõe que a formatação maquí- representação, e expõe em primeiro plano o
nica intervenha por uma ação pontual que liga próprio “dar a ver”, sendo a performatividade
o retroprojetor/ventilador e posteriormente os da tecnologia um de seus elementos mais pro-
desliga. Trata-se de uma ação em circuito que fícuos (Féral, 2013). O que verificamos em suas
implica conjuntamente na execução da obra, performances musicais é a elaboração de uma
uma atitude possível a partir do reconhecimen- teatralidade performativa. No entanto, Boyle
to e apropriação das fases estabelecidas para apresenta em sua fala o descompromisso com
a concretização de sua obra. filiações estéticas, e sua formação oriunda das
O objeto tecno-estético em questão se artes visuais acaba por afastar seu discurso de
apresenta potente de um discurso coerente um reconhecimento da sua ação performativa
com a trajetória estética, ensaiada pela artis- como pertencente ao contexto da cena con-
ta até então. Boyle, ao apresentar seu trabalho temporânea. Seu investimento criativo na per-
com retroprojetores argumenta que, partindo formance musical esta associado ao desenvol-
da mesma materialidade técnica, desenvol- vimento de uma narrativa pictórica, composta
ve pesquisas em diferentes linguagens. Seus por enredos dentro dos padrões aristotélicos,
trabalhos de instalação presentes na National suas instalações flertam com demandas da
Gallery, sob o título de Virus (2009) e Marmeid’s arte contemporânea. Duhem (2011) nos chama
Cave (2013) são considerados por ela como a problematizar o lugar desta produção artísti-
arte contemporânea, no entanto, suas perfor- ca:
mances desenvolvidas em parceria com Cris-
tiane Fellows denominadas Everything Under Ponto da virada tecnológica da arte
que acabo de me referir nos seus as-
the Moon (2012), representam para ela uma pectos mais gerais, repousa sobre a
investida no que ela denomina de performance seguinte hipótese: este ponto da vi-
rada tecnológica da arte tem o valor
musical. de sintoma de uma mudança profunda
de situação no modo de produção, de
F: Mas seu trabalho exposto na Natio- existência e de apreciação de obras de
nal Gallery é arte contemporânea, em arte em todas as áreas, mas, implica
sua opinião? S: Sim. F: Mas a perfor- principalmente em uma reconside-
mance não? S: Não. Porque a perfor- ração das categorias estéticas que
mance é teatro. [...] É performance art, prevaleceram para compreender e
mas surge de um fonte diversa, mais avaliar obras de arte na época da
narrativa. É mais... mais musical... mu- sensibilidade técnica. (Duhem, 2011,
sical e narrativa. Não está tão dentro p. 8. Tradução nossa. Grifo nosso).
dos parâmetros da arte contemporâ-
nea. Vêm de uma tradição diferente.
(Entrevista cedida para esta pesqui- the performance is live theater [...] that contemporary art per-
sa)9. formance. Their contemporary art performance, but this is kind
of coming out from a different thing more narrative, it’s more...
Some music, right. It is a musical performance, musical and
9 F: But the work in the national gallery is contemporary art for narrative it’s a, not really in the round of contemporary art, so
you?S: Yeah.F: But the performance, no?S: Yeah. Because much. It’s come from a different tradition.

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Seu discurso apresenta um tensionamento Retomamos, como base nesta fala de Boyle,
relativo à crise nas categorias estéticas/estáti- que para justificar seu incômodo em oferecer
cas, como apresentado por Duhem. A possibili- cursos para artistas visuais sobre as técnicas
dade de deslocar o aparelho maquínico de sua desenvolvidas para os projetores, mencionan-
função concebida pelas ordens de mercado é do termos como estilo e descobertas de mate-
apenas um dos trasbordamentos executados riais, a artista vai ao encontro de um dos pri-
pela produção de Boyle. Seus investimentos meiros argumentos acionados por Duhem para
sobre a “essência técnica” dos retroprojeto- justificar seu seminário sobre o tema da arte e
res avançam em direções provocadoras, há tecnologia na perspectiva simondoniana: “com
o desenvolvimento de uma técnica própria, efeito,é a realidade artística que parece ago-
e pouco difundida pela artista. Em entrevista ra inseparável da tecnologia, como suporte,
cedida a esta pesquisa, deixa claro que não como instrumento e discurso” (Duhem, 2011,
oferece formação a artistas sobre a técnica p. 1)11. Ambas as falas alimentam a hipótese
que desenvolveu para o uso nos projetores e de que os processos transdutivos entre artista
ainda apresenta a clareza sobre o investimento e realidade pré-individual, presentes com mais
técnico em uma tecnologia obsoleta. Relata, força após a virada maquínica da sensibili-
entre outras coisas, a possibilidade de cons- dade, para além das alterações no modo de
truir um retroprojetor pessoal, pois o acesso a apreciação e produção artística, incorporaram
equipamentos de boa qualidade estaria cada também a noção de valor sobre o conheci-
vez mais raro. mento técnico, verificando na máquina, e nos
O conhecimento sobre a materialidade téc- procedimentos criados sobre ela, potências
nica, o estudo de um retroprojetor em obsoles- criativas, passíveis de gerar valia sobre a obra
cência e a técnica própria desenvolvida per- e sobre o portfólio do artista.
passa a fala da entrevistada: Outro ponto que nos parece relevante para
destaque na obra da artista é o trabalho de
Você desenvolve o seu estilo, sua ma- curadoria de imagens digitais presente em sua
neira de trabalhar com ele e agora está
com outro artista. Porque o retroproje- instalação Marmeid’s Cave (2013). Quando
tor ainda permite muito em inovação. questionada em nossa pesquisa sobre o uso
Como um pintor, você não tem muito
como inovar, os materiais são os ma- da tecnologia digital, Boyle deixou claro que a
teriais. Você apenas tem que ficar bom única etapa em que faz uso do digital em seus
neles. Todos têm que fazer da sua
própria maneira, ao longo do tempo. trabalhos com instalação e retroprojetores, foi
Mas o retroprojetor, se alguém lhe der nesta obra.
todos os truques... (Entrevista cedida
para esta pesquisa)10.
F: Eu pensei que você fizesse algum
mapeamento? Tirasse a foto de de-
pois enviasse para um software? S:
Apenas analógico. Manual. Comple-
tamente. Os processos inteiros são
10 Now you develop your style, your way to work with it, now
manuais. O único momento que que
that is with another artist. Because just, the overhead projec-
tor relays some much on innovation. As a painter you are not
innovating so much, the materials are the materials. You just
have to get good at it. Everybody has to do in their own way, 11 En effet, c’est que la réalité artistique semble aujourd’hui
over time. But the overhead projector, if someone gave you all indissociable de la technologie, comme support, comme ins-
the tricks. trument et comme discours.

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eu uso digital é quando eu faço uma e históricas, injustiças políticas e emocionais


colagem fotográfica para essas proje-
que a tocaram profundamente. Quando proje-
ções. […]Mas para essa em particular,
a que você viu, é tudo fotografia. E es- tados sobre a cena, a colagem transforma de-
tou recolhendo e pesquisando sobre licadamente a ainda sereia em um contorcido
estas fotografias vintages. Em seguida
eu coloco as imagens no photoshop, ser carnal”.13 Há na obra uma combinação de
e as transformo em transparências. discursos, um híbrido entre tecnologia digital e
Encaixo-as no topo do mapa. E então
eu posso encolher, fazer ajustes para analógica que agem como mais uma etapa de
ficar maior, apenas como eu quero que concretização desta peça. Shary Boyle transita
caibam na estalagmite. Mas eu tenho
que pesquisar imagens que tanto se intencionalmente pela impossibilidade de per-
encaixam na forma, como vertical, manência: a sereia alva é apenas uma etapa
como vai ter uma cabeça lá, alguma
coisa assim. Então, é bastante com- da ontogênese de sua obra, muito brevemen-
plicado, para obter as imagens certas te será atravessada por imagens do passado,
e depois encolhe-las o quanto neces-
sário para que se encaixem lá. Depois que irão distorcer qualquer possibilidade de
limpo, corto todas as bordas, e coloco crença na “pureza das sereias”. Na entrevista,
lá. Você meio que utiliza o contorno do
a artista menciona “estou recolhendo e pes-
mapa no photoshop. (Entrevista cedi-
da para esta pesquisa)12 quisando sobre estas fotografias vintages”,
para posteriormente “[colocar] as imagens no
Em Marmeid’s Cave (2013) está empregada photoshop, e transformo elas em transparên-
a mesma técnica usada com retroprojetores e cias. Encaixo-as no topo do mapa. E então eu
temporizador analógico já mencionada em Vi- posso encolher, fazer ajustes para ficar maior,
rus (2009), no entanto, como se trata de uma apenas como eu quero que caiba na estalag-
peça escultórica de 301 x 427 x 457cm, houve mite”. Concretizar esta peça exige de Boyle
a necessidade de organizar um mapeamento um entendimento da materialidade técnica
das imagens a serem projetadas em três retro- como discurso.
projetores, formando uma parede de luz. O feminino como questão aparece ainda
Brisebois (2014, p. 42) menciona a coleta com mais força nesta peça que expõe uma se-
de centenas de imagens digitais seleciona- reia deitada sobre o chão, executando o gesto
das pela artista como um arquivo de silêncios de alimentar um bebê com o leite que o mesmo
“elaborado a partir de maravilhas científicas extrai de seu seio. Ambos estão em uma ca-
verna alva, tais figuras são brutalmente trans-
12 F: I thought that you did some mapping. Take a picture and
formadas quando atravessadas pela projeção
software? S: Only analogical. Manual.Completely. The entire das imagens selecionas por Boyle. Simondon
processes are manual. The only place that I go digital is when
i use a collage photography for this projections. [...] But, for (2013) chama atenção para o fato da invenção
that particular one that you saw, it’s all photography. And i’m
da obra artística se constituir como:
collecting and researching on this vintage photographs that i
want. And them, i’m taking them into photoshop, images. And
i’m making them transparencies. And fit them on top of the [...] dimensão de porvir ao gesto tran-
map. And them i can shrink, maker bigger to fits, just how i sitório, o universaliza temporalmente;
want on the shape of the stalagmite i can fit on there. But i entrega também uma dimensão de
have to research images that so much fit on the shape, like
a verticle, like is gonna have a head there, something. So
is quite complicated , to get the right pictures and them you 13 drawn from scientific wonder and historial , political and
shrink to, however, it fits in there, and them you clean up, cut emotional injustices that have deeply mover her. When pro-
way all the edges, and pastel in there. You kind of use the jected onto the scene, the collage transforms the smooth, still
black outline of the map on the photoshop. mermaid into a writhing, carnal being.

14 Oliveira // Tecno-estética Contemporânea:


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universalidade espacial a uma realida- Figura 4: Sequência de imagens da Obra Marmeid’s Cave
de local inserindo-a em um conjunto
no qual desempenha um papel com-
pleto, eminente, única em sua espé-
cie naquele lugar. (Simondon, 2013, p.
204)14.

Em The Marmeid’s Cave, tratamos do uni-


versal, constituído a partir do gesto singular, de
camadas de individuação expostas, coletadas,
redimensionadas com a intenção de caber na
completude precisa das figuras de Boyle. Essa
formalização em invento só é possível através
de um processo de compatibilidade com a Fonte: Elaborada pela autora
realidade pré-individual, que permite sua ma-
nifestação pela materialidade que a expõe. A Outro segmento do trabalho de Boyle com
composição desta instalação, repleta de ima- os retroprojetores são suas performances. Em
gens-afetivas (colagem fotográfica), executa- ocasião da entrevista cedida a esta pesquisa,
da por reconhecimentos de imagens-percep- a artista havia encerrado uma turnê percor-
tivas (incorporação de diversas técnicas para rendo a costa canadense com apresentações
sua execução pela artista), e representante de de Spell To Bring Lost Creatures Home (2015).
imagens-motoras (figuração da ação mater- Acerca das performances, podemos descrevê-
nal da sereia), pode ser dimensionada com -las como apresentações que englobam músi-
uma alegoria para o entendimento do ciclo das cas, artes visuais e teatro, que ocorrem para
imagens que geram a invenção15, neste caso, grandes audiências de faixas etárias diversifi-
obra de arte concretizada. Seu estar no mun- cadas. Partem de uma narrativa cantada, que
do, como objeto artístico, se alimenta do ciclo é acompanhada pelas projeções manipuladas
como temporalidade, da impermanência como por Boyle. Nessa poética interdisciplinar, o es-
estado, dos atravessamentos visuais como pectador é tomado por sonoridades, imagens
discurso. e narrativas. Dentro de um formato delicado,
analógico e muito significativo para a imersão
do mesmo no ambiente proposto pela histó-
ria contada. Nosso interesse neste recorte so-
bre a produção da artista está em lançar luz
sobre escolhas cênicas em uma performance
intermedial, onde efeitos de presença16, am-
14 [...] dimensión de porvenir al gesto transitorio; lo universa- pliação de corpos, jogo entre performers e for-
liza temporalmente; entrega también una dimensión de uni-
versalidade espacial a una realidade local insertándola en un
conjunto en el que juega un rol pleno, eminente, único en su
especie en dicho lugar. 16 Para maiores informações sobre o ciclo das imagens ver:
ISAACSSON, Marta. Cena Multimídia, poéticas tecnológicas
15 Para maiores informações sobre o ciclo das imagens ver: e efeitos intermediais. In: Cena Corpo e dramaturgia: entre
SIMONDON, Gilbert. Imaginación e Invención.Buenos Aires: tradição e contemporaneidade. Rio de Janeiro: Ed.Pão e
Cactus, 2013. Rosa, 2012

15 Oliveira // Tecno-estética Contemporânea:


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mas animadas compõem a dramaturgia a ser assim, é tudo, pequenos efeitos mági-
cos que são muito simples. (Entrevista
explorada. Nos aproximamos do conceito de
cedida para esta pesquisa)17
teatro performativo, onde Féral destaca a ex-
ploração dos efeitos possíveis das máquinas
em cena, expondo sua elaboração: “Estamos Figura 5: Sequência de Shary Boyle em Performance.
aqui diante de uma performatividade da tecno-
logia que desmonta habilmente a teatralidade
do processo para trazer à luz sua performati-
vidade” (FÉRAL, 3013, p. 206). O “dar a ver”
é elaborado na construção do jogo de repre-
sentação, a manipulação dos objetos, a cons-
trução das máscaras e os efeitos intermediais
são apresentados em primeiro plano na execu-
ção desta cena. Há um protagonismo da tec-
nologia, algo feito por Boyle como elemento de
aproximação de sua relação com a platéia.
Fonte: Site pessoal da artista18

F: Eu estava pensando sobre a recep-


ção. Como o público recebe a pro- A performatividade gerada pela demons-
jeção? Quando eu estava na Natio-
nal Gallery, as pessoas tomavam um tração dos efeitos intermediais desta cena é
tempo para observar, dar uma olhada. para a artista um elemento potencializador de
Eu ouvi algo como “isso é muito old
fashion e muito interessante”. Eles empatia. Esse pressuposto é alimentado pela
estavam muito curiosos sobre os re- ideia de reconhecimento e interação possíveis
troprojetores. E eu gostaria de saber,
como isso acontece com a performan- a partir da criação/revelação do efeito peran-
ce? S: Eu acho que é uma das razões, te os espectadores; “Eles também começam
porque... uma das coisas que conti-
nuam dando sentido em trabalhar com a ver minhas mãos, cortando coisas, tirando
eles, porque tem... As pessoas têm
uma verdadeira afeição por este obje-
17 F: I was thinking about the reception. How the public re-
to. Porque eles se conectam com sua
ceive the projection? When i was in the National Gallery, peo-
infância [...] O digital pode lhe colocar ple take a time to observe, take a look. I heard about some-
distante, um espectador passivo [...] thing like it is very old fashion, and very interesting. It was very
Oh, meu deus! Eu fico impressionada curious about that. And i would like to know how it happens
com efeitos de vídeo games, filmes e with the performance? S: I think that is one of the reasons,
nas coisas que eles são capazes ago- why... One of the things mean to me to continuous to work with
ra. Mas a pessoa comum nunca pode- it, because it has such... People have a real affection for this
rá chegar perto de entender como foi object. Because they connect with their childhood [...] Digital
feito, é puro entretenimento passivo. can push you away, a passive spectator, because [...] Oh, my
god!, i can’t believe in the effects of the video game, film and
[...] Eles estão observando ali. (falan-
every thing that was capable of, now. But the common person
do de sua performance) Estou bem could never come close to understand how that was made, its
aqui e o público está ali. Então, isso just purely passive internment . (...) They are watching right
me conecta ao público de uma forma there. I’m right here and the audience is right there. So, they
doméstica. Eles não se sentem inti- give, connects to the audience in a domestic way. They don’t
midados, eles se sentem inspirados. feel intimidated, they feel inspired. Because they think: I could
Porque eles pensam: eu poderia fazer do that, look that. They also get to see my hands, cutting out
isso, olha isso. Eles também começam things, drawing things, putting things on like this, and it’s all,
a ver minhas mãos, cortando coisas, little magical effects that arevery simple.
tirando coisas, colocando as coisas 18 Disponível em: http://www.sharyboyle.com/performance/.

16 Oliveira // Tecno-estética Contemporânea:


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coisas, colocando as coisas assim, é tudo, o interesse por um “espectador agenciador”


pequenos efeitos mágicos que são muito sim- em sua performance. Para isso, reconhece a
ples” (op. cit.). Boyle se vale da sua proprie- importância de expor em sua cena toda a pro-
dade com o retroprojetor para gerar efeitos cessualidade narrativa que desenvolve pelo
inimagináveis, colocando o protagonismo em jogo com a máquina. Ele seria um dos princi-
sua ação sobre a máquina, na mesma esfera pais elos de aproximação desta participação,
na narrativa desenvolvida. através do reconhecimento e exposição das
As transições nas funções exercidas pela possibilidades de efeito do retroprojetor, um
performer são constantes. Em alguns momen- encantamento via agenciamentos de reconhe-
tos é personagem condutor da narrativa, em cimento de arte e tecnologia. Na perspectiva
outros dá suporte técnico a uma história que de Duhem (2011), estaríamos vivendo resso-
é projetada ao fundo, e ainda permite fazer de nâncias da mudança de regime técnico para o
seu corpo suporte de extensão do efeito inter- tecnológico no fenômeno artístico, alterações
medial quando, por exemplo, se veste de ma- nos regimes de julgamento estético:
lha negra e investe em jogos corporais que irão
interagir com as luzes do retroprojetor. Como O que muda com a arte tecnológica
em comparação com a arte técnica, é
ela mesma aponta na entrevista, há uma clara que o julgamento técnico se iguala ao
herança da narrativa teatral em sua performan- estético, sem, contudo, qualquer sen-
timento de prazer ou desprazer seja
ce: vemos desenhos de personagens compos- excluído. Ao contrário, não é impos-
tos com elementos de figurino e maquiagem, sível que o julgamento estético, que
muitas vezes precede o julgamento
temas pertinentes ao mundo mágico e inveros- técnico, seja reforçado pelo julgamen-
símil que perpassa também sua produção em to técnico, na medida em que temos
prazer em fazer comunicar sensações
artes visuais, mas aqui, trabalham conduzidos e conhecimentos e descobrir uma
pela perfomatividade e efeitos de espectação. inesperada forma de moldar este co-
nhecimento. Existe, portanto, um con-
Monteiro (2016), em seu artigo acerca da dicionamento recíproco entre estética
cena expandida, argumenta sobre a possi- e técnica, e o paradoxo é que este
condicionamento recíproco é o que
bilidade deste teatro propor ao espectador o
faz a liberdade da arte, dá liberdade a
papel de “agenciador da obra”. Tal modifica- origem da obra e de nosso julgamen-
ção estaria associada à base intermedial desta to. (Duhem, 2011, p. 4)19.

cena, que partiria de um fundo metaestável de


possibilidades, deslocando o mesmo do lugar Neste contexto, podemos vislumbrar o jul-
de passividade e o tornando presentificado gamento técnico intervindo sobre o estético na
na cena, acionando princípios de chamada à
19 Ce qui change avec l’art technologique par rapport à l’art
participação. Tal ação se localizaria no movi-
technique, c’est que le jugement technique égale le jugement
mento de percepção das transições da cena esthétique, sans que pour autant tout sentiment de plaisir ou
de déplaisir ne soit supprimé. Au contraire, il n’est pas impos-
em seu contexto intermedial e narrativo. Boyle, sible que le jugement esthétique, qui précède souvent le juge-
quando em nossa entrevista, retoma o cinema ment technique, soit renforcé par le jugement technique, dans
la mesure où l’on prend plaisir à faire communiquer sensation
repleto de efeitos especiais, como entreteni- et connaissance et à découvrir une mise en forme inattendue
de cette connaissance. Il y a ainsi un conditionnement réci-
mento cativante, porém, alimentador de uma proque entre esthétique et technique, et le paradoxe est que
atitude passiva em seu espectador, conclama ce conditionnement réciproque est ce qui fait la liberté de l’art,
liberté à l’origine de l’œuvre et de notre jugement.

17 Oliveira // Tecno-estética Contemporânea:


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relação de apreciação, presente nos especta- ________________. Simondon y la cuestión es-


dores “agentes” das performances de Boyle. tética. DEMARCACIONES v. 4,maio, p. 78–84,
Há uma alteração significativa em processos 2016.
artísticos que conclamam o espectador a um
entendimento de sua materialidade técnica. FÉRAL, Josette. Por uma poética da perfor-
Féral chama a atenção para espetáculos que matividade: o teatro performativo. Sala Preta,
colocam em primeiro plano a demonstração, Revista do Programa de Pós-Graduação em
a expressividade do processo sendo realiza- Artes Cênicas, ECA/USP, São Paulo, n. 08,
do: “o desenrolar da ação e a experiência que 2008, p.197-210.
ela traz por parte do espectador são bem mais
importantes do que o resultado final obtido” ISAACSSON, Marta. Cena Multimídia, poé-
(2013, p.209) Estes seriam recorrentes na cena ticas tecnológicas e efeitos intermediais.In:
contemporânea, herdeiros de uma cena que Cena Corpo e Dramaturgia: entre tradição e
não se permite à fidelização da representação. contemporâneidade. Rio de Janeiro: Ed.Pão e
Performar em uma proposta intermedial, Rosa, 2012.
para nosso entendimento, também é propor
cenas capazes de “agenciar” espectadores, MONTEIRO, Gabriela. A Cena Expandida.
desmistificando a ideia da máquina como ele- ARJ, Brasil , V. 3, n. 1, jan. / jun. 2016. p. 37-49
mento de rompimento das relações entre a SIMONDON, Gilbert. L’individu et sa genèse
cena e espetador. Relembrando Boyle: “Eles phisico-biologique. Paris: PUF, 1964.
estão observando ali. Estou bem aqui e o pú-
blico está ali. Então, isso me conecta ao públi- ________________. Du mode d’existence des
co de uma forma doméstica” (op. cit.). objets techniques. Paris: Aubier, 1989.

________________. L’individu et sa gênese


Referências physico-biologique. Grenoble, France: Jérôme
Millon, 1995.
BRISEBOIS, Josée. Shine a Light. Ottawa: Na-
tional Gallery of Canada , 2014. ________________. Imaginación e Invención.
Buenos Aires: Cactus, 2013.
DÉRY, Louise. Music for Silence. Ottawa: Na-
tional Gallery of Canada , 2013. ________________. La individuación a la luz de
las nociones de forma y de información. 1 ed.
DUHEM, Ludovic. Art Et Technologie. Texte Buenos Aires: Ediciones La Cebra y Editorial
intégral d’un séminaire donné à l’ISELP (Ins- Cactus, 2009.
titut Supérieur d’Étude du Langage Plastique)
à Bruxelles en mai 2011 avec pour titre : Art
et technologie. Une approche philosophique
avec Gilbert Simondon. p. 1–50 , 2011.

18 Oliveira // Tecno-estética Contemporânea:


Shary Boyle e transbordamentos
Revista Cena, Porto Alegre, n. 25, p. 6-19 mai./ago. 2018
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena
cena n. 25

________________. Sobre a tecno-estética:


Carta a Jacques Derrida. In: Tendência e Cul-
tura: ensaios sobre o tempo presente. Herme-
tes R. de Araújo (Org.). Trad. Stella Senra. São
Paulo: Estação Liberdade,1998.

STIEGLER, Bernard. Le tournant machinique


de la sensibilité musicale. les cahiers de mé-
diologie, 2004 v. 18, p. 7–17 , 2004.

________________. ROGOFF, Irit. Transindivi-


duation. e-flux journal #14 p. 6 , 2010.

Recebido: 22/10/2017
Aprovado: 03/05/2018

19 Oliveira // Tecno-estética Contemporânea:


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Revista Cena, Porto Alegre, n. 25, p. 6-19 mai./ago. 2018
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