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ESTADO E ECONOMIA DURANTE A REVOLUGAO FRANCESA: © conjunto das reivindicagées econémicas e sociais de Hébert/Pére Duchesne JOseMAR MACHADO DE OLIVEIRA :M OUTROS ASPECTOS DA CRISE DO ANTIGO REGIME, 0s diversos setores do ‘Terceiro Estado poderiam encontrar um ponto de confluéncia, nas questbes econdmicas e sociais existia em seu interior claras diferengas. Como salienta Ernest Labrousse, “se 0 advento nacional radicaliza ¢ coliga as forcas revoluciondrias, o advento social radicaliza-as, mas divide-as"". Por um lado, a burguesia constituince, os feullantse os girondinos tentaram afirmar um projeto baseado no que mais tarde veio a ser chamado de liberalismo econémico, herdeiros que eram do pensamento dos fisiocratas, ao mesmo tempo que leitores vorazes de Adam Smith*, Por outro lado, os setores populares, adentrando a arena politica no momento da explosio da revolugao popular, defenderam ‘um programa social ancorado na defesa do igualitarismo social. ( igualitarismo social dos sens-culotes, 0 esteio do projeto que esse grupo social contrapés 20 liberalismo dos setores burgueses, era baseado na experiéncia de vida que possufam, profundamente enfronhada na tradigao do Antigo Regime. E nesse aspecto que o sans-culottismo possui um cardter passadista. A forma como a sans-culotterie almejou a institucionalizagio desse programa 1, LABROUSSE, Emest. © século XVI In; CROUZET, Maurie. Hive gerl das civilize. Sto Paulo, Difusto Europeis do Livro, 1961. Tomo V; Volume, I, pg 85 2. HOBSBAWN, Erich J. Fos de Marler. Rio de jancio, Pax e"Tera, 1996, Pg, 27-28 150 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPIRITO SANTO - Depatamente de Hina social passa por aquilo que Higonnet chama de “sua recusa de qualquer ‘modernizacio da ordem econdmica”’, ou, dizendo com outras palavras, passa por sua oposigéo cm accitar que a liberdade de empreendimentos pudesse resolver a questo das subsisténcias e que a nio-interferéncia nos assuntos da economia bastaria para garantir o direito 20 trabalho e outros. A pritica da sans-culotterie desemboca, portanto, naquilo que alguns historiadores chamam de economia ditigida. Assim, verios que determinadas diferenciagoes de programas dentro do processo da Revolucao nao escaparam a certas clivagens sociais. E importante ressaltar a consciéncia que tiveram disso os préprios militantes seciondios. Para esses militantes, havia a consciéncia, mesmo que incipiente, de uma passagem do conflito burgués-nobre — na formulagao estabelecida no processo mesmo da Revolugio, cujo exemplo mais recuado foi o de Siey’s — para 0 conilito sans-culottelburgués, que explode a partir do ano I. As vésperas da insurrei¢do do 31 de Maio, as reivindicagées sociais da sans-culotterie se afirmam cada yez mais a partir do conflito entre os que defendem a Revolugio ¢ os que estéo do lado da contra-revolugio, af agora inclusos os girondinos. Portanto, a partir de junho de 1793, também os setores do topo do ci-devant Terceiro Estado sio vistos como inimigos da Revolucio. Esse processo é uma evolugio do contflico bisico da Revolugao: nobre/burgués. Higonnet corretamente afirma que os sans-culortes inham na nobreza 0 seu oposto social. Porém, podemos acrescentar que, a partir de 1793, 0 malaise social empurra a sans-culotterie a superar a dicotomia nobre/burgués, substicuindo-a, como que antecipando-se ao futuro conflito operirio/burgués, pela dicotomia sans-culottesiricos’ Hébert pinta com todas as tintas esse conflito no Pére Duchesne. Tal confliro estén raiz do conjunto de idéias sociais veiculadas pelo Pere Duchesne, caracterizado, basicamente, por uma clara defesa da “democratizacio da 3.CE supra, pe. 48 4, HIGONNET, Patice. Op. cit, pg. 413, 5. fa de ua para que possua uma preciso ietoctvel uso a plae (in) de qu 0 pepio Héhertsuslinaa pra dsgnaaqules que cram ose lv preltida ete 1792-84, ous, ox Binancas, sgandes comercantes, propio de tetra ee, equ denies mesma eidade voc que expresso burpucsia do Antigo Regine (Regine Rabin) de clase média (Hobsbawn) ox no-nabres (Calin Lc). ‘Ver HOBSBAWN, Eich J Bo de Menelna. Ri de janeiro, Pate Tes, 1996, Pp 24 ¢ FURET, Fangs Peano « Rela Pon. Rio de Jani, Pes Ter, 1989, pe, 138 DDIMENSOES — Reva de Hira du Ur * Vou. 10 Jain 2000, 151 propriedade” (“Jamais, foutre, nous ne serons libres tant qu'il existera en France des fortunes de fermier général [..]"9), ipica da sant-culotterie, Portanto, & a repercussio do conflito entre os sans-culottese os sctores abastados dla burguesia que aparece com a radicalizagio provocada pelo “advento social”, que vamos encontrar no Pére Duchesne. E nesse conflito que podemos observar alguns clementos que nos permitem identificar 0 esboco de um programa social em Hébert. Esse conflito se manifesta no Pere Duchesne através da identificagio dos setores do topo do ci-devant Terceiro Estado & contra-revolugao e ao inimigo de sempre, a aristocracia: “Il n'y a pas, foutre, d'aristocrates plus puants et plus dangereux, que ce qu’on appeloit la bourgeoisie renforcée. Ces gros boutiquiers, entrepeneurs, manufacturiers (...]"”. A esse respeito, Hébert nio podia ser mais claro, Segundo Hébert, esses grupos desejavam destruir a Revolugao através da disseminagio da fome, daf que a forma mais caracteristica que assumia a contra- revolugio no panfleto periddico de Hébert era a do agambarcador, o agente da contra-revolugio, um dos inimigos que Hébert diz temer mais que os inimigos estrangeiros (“Nous avons dans l’intérieur des ennemis mille fois plus redoutables [..]"9). Tal conflito é vazado na verve tipica do grand marchand de fourneaux, em tons que lembram a palavra de ordem: “Les riches ne songent 4qu’a leur intérét; la république n'a pas des plus grands ennemis qu’cux; ils détestent la Révolution [...]” e “presque tous les riches sont aristocrates, tous les gros marchands sont des voleurs”.” E, no momento em que a execugio do rei parecia ter dado um novo folego & Convensio girondina, ele apontava, a esta altima, a maneira como ela poderia restabelecer sua honra: “elle doit chasser les accapareurs, empécher tous le tripotage des banquiers et des gros 6. Le Pace Duchesne. N* 198, p. 5. ("Nunca pora. ads seremos livres enquanta existirem ma Franga foranas de fermier général [arrendatirio geal”) 7, Le Pie Duchesne. No 236, pg 2. CNio hi, por, arstcratas mas infecose perigosos, que 0 que se shama de burgucsa exabelecida, Esses grandes comercantes, negocianes, manufaurecos, 8. Le Pére Duchesne. N° 273, pg. 5-6. (°Nés vemos no interior inimigos mil vees mas perigoses (.") 9. Le Pie Duchesne. N* 273, pg. 4 e N° 322, pg. 4. ('Os seas sé pensar em seu interes: replica ‘nfo tem mares iniigos que eles: eles detetam a Revels [.." "quae todos os rces io arntocraca, todos os grandes comerciantes so ladrSex.") 152 UUNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPIRITO SANTO ~ Departamencs de Hiss boutiquiers (...]””. Os trés fragmentos citados sio de diferentes momentos € server para demonstrar que a “ambicio” de Hébert era persistente: o primeiro é do verio (17 de agosto de 1793), 0 segundo é do ano Il (14 de dezembro de 1793) eo tiltimo fragmento ¢ de dias depois da execusio do rei (23 de janeiro de 1793). Vemos, assim, Hébert fazer derivar da crise politica mais geral suas preocupagées em matéria social eeconémica. Nee, a “questio das subsisténcias” sé faz sentido no contexto mais geral da politica revolucionaia. O Pére Duchesne acompanha, assim, o movimento progressivo que leva a san-culotterie a identificar a contra-revolucio, a principio, com os atistocratas ¢ padres refratarios e depois também com aqueles que detinham 18 postos-chaves na economia: negociantes ¢ comerciantes, na cidade, e os grandes proprietarios, no campo. Numa palavra, com todos os que, genericamente, podiam ser chamados de ricos. © Pére Duchesne ataca indiferentemente a estes tltimos, ele dé “seus bons conselhos" “[..] & la Convention pour quielle te Pautorité aux riches [..)", os quais, segundo ele, apertam “|...] plus que jamais, les cordons de leurs bourses [e fazem] du pis quills peuvent pour ramener ancien régime”.!” Mais uma vez, podemos norara progressio ¢ a continuidade das criticas ao longo do tempo, realizadas pelo panfleto. Os fragmentos de texto selecionados sio de mimeros que safram respectivamente no dia 1° de setembro ¢ 19 de outubro de 1793”. ‘Assim, o Pére Duchesne realiza uma clara diferenciagio social: de um lado, 0s gros boutiquiers, do outro, os petits: ‘ “complé da fome”, a questio das subsisténcias, leva o panfleto de Hébert a passar de um combate cujo ceme é a luta contra os aceapareurs, a uma luta generalizada contra 0 topo do antigo Terceiro Estado, movimento progressive «que podemos acompanhar & medida que avangam os mimeros do seu panfleto. No processat-se desse combate, vemos, em Hébert, a ultrapassagem da dicoromia habitual a0s revolucionatios no momento do “advento nacional” — nagio que, 10. Le Pare Duchesne. N° 213, pg. 7.’ deve elimina os agambarcadores,impedir todas as negocatas dos banqusrose grandes comerciantes J") 11, Le Pere Duchesne. N°279, pg 1eN® 300, pp 2. CL] 4 Convengio para que ela cetire x auoridade os iat (1) Cel mais do que nunca, os cores de suas bolas [e faze] 0 pior que ees podem para terner de volta 0 antigo regime”) 12, Daag esabelecida por: GUILHAUMOU, Jacque. Dater le Pie Duchesne d Hébert (ile 1793- ‘mars 1794) Paris, Annales histoiques de la Revolution Frangase, pu67-75, 1996, DIMENSOES - Revs de Hissin dx Ur * Vou. 10~ Jaf 2000, 153 para Hebert, é claramente identificada aos sans-culbits!® A dicotomia nobre/ burgués ¢ substituida pela dicotomia que caracteriza 0 momento do “advento social”, sans-culottes!ricos. Isso se pode perceber pela mudanca no estilo combatente de Hébert. Durante todo 0 percurso do panfleto sio not6rios os ataques a facciosismo, a0 federalismo ¢ ao partidarismo, aqucles que o Ptre Duchesne chama de inimigos internos. Essas expressGes condenatérias serviam para distinguir 0s que estavam do lado da Revolucio dos setores contra-revolucionatios. Tais expresses — tio habituais todos os grupos que tiveram um papel relevante durante a Revolugao, af inclusos 0 prdprios montanheses, que também se utilizaram largamente dessas expresses condenatérias, inclusive contra Hébert — estabelecem clivagens a partir de uma concepgio filoséfica e moral, e néo social. Hebert, porém, modifica a tipologia dos conflitos que estiveram por tris do processo da Revolucio, medida que, em seu panfleto, 0 conflito social, 6 conflito de “classes”, assume uma dimensio fundamental. Nele se estabelece um contraste cexplicito entre os que traem a Revolusio, “hommes de los”, “accapareurs’, e os que a defendem, “péres de familles”, “des bons artisans’, “des ouvriers”, ou seja, “Jes deux espéces d’homme qui sont en guerre maintenant”. A consciéncia do

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