Filosofia e, em certos casos, afastadas.
(CHAUI,
1) Formas de conhecimento:
1.1) Conhecimento mitológico: foi a primeira
tentativa de explicação do mundo feita pelo
homem, ainda que de maneira fantasiosa. Os
mitos são carregados de imaginação e crença,
o que nos leva a concluir que não passam pela
sistematização do conhecimento.
1.1.1) A questão da crença inclusive aproxima
o mito da religião. O mito é uma
representação coletiva, transmitida por
meio de várias gerações e que relata
uma explicação do mundo. Trata-se de
uma maneira de a sociedade explicar os
fenômenos que a cercam, assim como
uma tentativa de explicar a si próprio.
1.1.2) Mito: relato fabuloso, de caráter
religioso, que diz respeito a seres que
personificam agentes naturais, O mito
tende a fornecer uma resposta e uma
explicação satisfatórias. Possui
igualmente uma função que assegura a
coesão social.
1.2) Conhecimento filosófico: trata-se de um tipo
de conhecimento essencialmente teórico,
adquirido por quem o pratica por meio de uma
exaustiva reflexão crítica acerca da realidade,
da ação humana e dos seus valores.
1.2.1) O filósofo não se contenta em “contar
uma história” sobre as origens do
mundo e do ser humano; ao contrário,
busca entender e explicar
racionalmente essas origens, por meio
da sistematização do pensamento.
Este raciocínio está ligado ao
encadeamento lógico que visa não
cair em contradições. É a razão
tentando buscar a realidade e a
verdade das coisas.
1.3) Conhecimento científico: desenvolvido a
partir do conhecimento filosófico, é uma
forma de conhecimento elaborada por meio
dos métodos rigorosos de investigação, entre
eles a utilização da experiência, que busca
obter leis de explicação racional e de validade
universal para os fenômenos analisados.
1.3.1) Antes de mais nada, a ciência desconfia
da veracidade de nossas certezas, de
nossa adesão imediata às coisas, da
ausência de crítica e da falta de
curiosidade. Por isso ali onde vemos
coisas, fatos e acontecimentos, a atitude
científica vê problemas e obstáculos,
aparências que precisam ser explicadas
M. Filosofia. São Paulo: Ática, 2003, p. 111.)
2) Passagem do pensamento mítico-religioso para o
pensamento filosófico:
Se quisermos entender um pouco dessa relação entre
a mitologia e filosofia, devemos lembrar que a
mitologia grega anunciou uma posição diferenciada
do homem no universo, ao presentar um mundo
conduzido por deuses que demonstravam as mesmas
fraquezas humanas e que se desentendiam
constantemente, criando dificuldades à vida humana.
Decorre daí que o conhecimento tem um preço, que
necessariamente não se define como um bem ou um
mal, mas, sim, como um instrumento para o homem
compreender e dominar a natureza e os outros
homens ao seu redor.
O uso do conhecimento pode tanto incentivar o
desenvolvimento e a prosperidade dos povos quanto
levá-los à submissão ou extinção.
A narrativa mítica é atemporal, estando deslocada
do espaço-tempo conhecido por nós, como se
vivesse em um “eterno presente”. Tal caráter resulta,
principalmente, da forma como o mito se reproduz,
por meio da tradição oral, que vai reforçando a
existência de várias narrativas, muitas vezes
contraditórias, o que não impede a veracidade da
narrativa mítica. Ou seja, o mito procura ser uma
primeira forma de explicação do homem para tudo o
que existi e para o que ele considera existir, ainda
que seja etéreo; no caso da narrativa mítica, o que é
“etéreo” passa a assumir a forma dos seres
fantásticos que interferem na existência da
humanidade.
A mitologia foi, portanto, criada para nos auxiliar a
lidar com as dificuldades humanas mais
problemáticas. Ela ajudou as pessoas a encontrarem
seu lugar no mundo e sua verdadeira orientação.
Todos queremos saber de onde viemos, mas, como
os primórdios se perderam nas brumas da pré-
história, criamos mitos sobre nossos antepassados,
que não são históricos, porém ajudam a explicar
atitudes atuais em relação ao nosso ambiente, nossos
semelhantes, nossos costumes.
Também queremos saber para onde vamos, por isso
elaboramos histórias que falam de uma existência
póstuma. (...) E queremos explicar os momentos
sublimes, quando parece que somos transportados
para além de nossas preocupações ordinárias. Os
deuses nos ajudavam a explicar a experiência da
transcendência.
3) O pensamento filosófico contrapondo-se ao mundo
fantástico:
Ao contrário do mito, a filosofia procura tratar das
questões da origem de tudo de forma distinta,
 eliminando as explicação e seres fantásticos, assim
como o caráter atemporal do mito; para o
conhecimento filosófico, existe necessidade de
entender as coisas como eram e como são; assim, a
filosofia procura se servir de alguns instrumentos
como a lógica e a razão para cumprir seus objetivos,
instrumentos que podem ser manuseados por
qualquer ser humano, já que são comuns e externos
a todos.
A origem de tudo estaria, então, associada a forças
que poderiam ser compreendidas pelo homem,
motivo pelo qual os primeiros filósofos procuraram
observar a natureza ao seu redor e identificar que
elementos naturais seriam responsáveis pela
composição de tudo: elimina-se a explicação
fantástica e procura-se uma explicação natural, fruto
da observação humana.
Sendo distintos, devemos, então, perguntar: o que
leva o homem a abandonar as explicações míticas e
aderir ou avançar rumo às explicações filosóficas?
Onde e de que forma, afinal, surgiu a filosofia?
O conhecimento filosófico não admite uma
explicação única para a realidade, exigindo que se
questione esta realidade em direção a um
conhecimento contemplativo, metafísico, que
minimize os riscos de sermos tragados pelo senso
comum e pelo imediatismo de nossas conclusões.
Conhecer não é aceitar o que existe, mas questionar-
se e espantar-se continuamente com tudo aquilo que
nos cerca. É alimentar e atiçar nossa curiosidade.
4) O conhecimento na antiguidade oriental e na
ocidental:
O conhecimento assume formas distintas. Sua
primeira forma de manifestação, no entanto, foi
prática, resultante da necessidade dos primeiros
grupos humanos de sobreviverem, o que acabou por
levar ao desenvolvimento de ferramentas e à
necessidade de dominar certos elementos, como o
fogo.
Este período denominado por historiadores como a
pré-história da humanidade, foi superado quando os
primeiros grupos humanos aprenderam a domesticar
plantas, desenvolvendo a agricultura e inaugurando
o período neolítico.
O trabalho camponês realizado às margens dos rios
para o cultivo envolveria, entre outros aspectos, a
mistura da água e da terra, resultando em lama, de
acordo com sua densidade, poderia ser moldada e
assumir formas variadas que, como resultado do
calor do sol e, mais, tarde, do fogo, adquiriria uma
dureza fixadora.
Esse conhecimento agrícola e artesanal é base para o
surgimento das primeiras civilizações no Antigo
Oriente, as quais se constituíram e se organizaram
em instituições religiosas, políticas, sociais e
econômicas complexas.
Estas primeiras civilizações, em especial a egípcia e
a mesopotâmica, constituíram os primeiros Estados
que centralizaram tais instituições e justificaram sua
existência por meio do sobrenatural, da esfera
religiosa: eram os Estados teocráticos de regadio.
A sacralidade do soberano era proclamada de muitas
maneiras. Chamavam-lhe “rei do país” (isto é, do
mundo) ou “das quatro regiões do Universo”, títulos
reservados originariamente aos deuses. Tal como
nos deuses, uma luz sobrenatural brilhava-lhe em
volta da cabeça.
Já antes do seu nascimento, os deuses o haviam
predestinado à soberania. O rei, ainda que
conhecesse a sua progenitura terrestre, era tido como
“filho de deus” (...). Essa dupla descendência fazia
dele o legítimo intermediário entre os deuses e os
homens.
O soberano representava o povo perante os deuses, e
era ele quem expiava os pecados dos seus súditos.
De quando em quando tinha de sofrer a morte pelos
crimes do seu povo; é por esse motivo que os
assírios tinham um “substituto do rei”.ELIADE,
Mircea.
A centralização política era necessária como forma
de organizar o trabalho agrícola e garantir a
sobrevivência da coletividade que, para tanto,
precisava se dedicar à construção de diques de
contenção de água, de canais de irrigação para
regiões mais distantes das margens dos rios e ao
assoreamento de pântanos, práticas que procuravam
ampliar a área fértil e o sustento da sociedade em
geral.
Tais conhecimentos, dentre os quais podemos
incorporar a astronomia – voltada para a prevenção
de enchentes –, ainda que exigissem o domínio de
princípios matemáticos e físicos, eram voltados
essencialmente para as necessidades práticas destas
sociedades. Uma vez solucionado o problema, não
haveria por que ir além no desenvolvimento daquele
conhecimento.
Essas características eram limitadoras do
desenvolvimento de um pensamento lógico e
racional e de uma atitude questionadora, ações do
pensar e do conhecimento filosófico. Seja pela
inexistência de um elemento que incentivasse a
ampliação do conhecimento, seja pela existência de
um soberano divinizado, o predomínio da visão
religiosa e a existência de uma estrutura sacerdotal
acabaram por fortalecer as tradições e dogmas,
inviabilizando o questionar e “condenando” tais
sociedades à manutenção de uma visão cosmogônica
do mundo.
5) Civilização Grega: o nascer da filosofia
Assim como no caso das civilizações da
Antiguidade Oriental, a civilização grega surgiu
decorrente de migrações populacionais em busca de
clima e de recursos naturais adequados à
sobrevivência.
Apesar da escassez de terras férteis na península
Balcânica, a agricultura tornou-se originariamente a
atividade econômica principal desta sociedade,
elevando os grandes proprietários de terra a uma
condição política superior, contribuindo para a
formação de uma aristocracia que se apoderou do
controle das instituições que organizavam as
Cidades-Estado gregas.
A Diáspora Grega ocorrida a partir do século VIII
a.C., colocou os gregos em contato com egípcios e
babilônicos, passando a ter acesso aos
conhecimentos matemático e astronômico destes
povos.
Simultaneamente, a expansão comercial também
contribuiu para a melhora das condições de vida da
sociedade, garantindo-lhe maior bem-estar e
libertando-a das necessidades básicas de existência,
dando-lhe tempo livre, primeira condição para um
campo fértil ao pensar filosófico.
O surgimento de uma classe comercial que
começava a disputar o poder com a aristocracia rural
foi outro componente importante; o grupo comercial
procurava romper com os valores monárquicos e
introduzir princípios republicanos; o choque entre
estes dois grupos foi responsável por produzir um
conjunto de instituições políticas que iriam
institucionalizar a liberdade, dando um sentido
amplo e profundo à república.
Dentro deste contexto, o escravismo teve papel
relevante no mundo grego. A adoção da escravidão
como modo de trabalho no Ocidente liberou parte da
população de cumprir determinadas tarefas físicas,
permitindo-lhe espaços para atividades imateriais,
consideradas pelos antigos como “mais nobres” e
dentre as quais se encontrava a filosofia.
Por fim, outro fator que contribuiu para o
surgimento da filosofia na Grécia Antiga derivava
desta liberdade política, que se manifestara também
na esfera religiosa, caracterizada pela inexistência de
uma estrutura clerical-religiosa que viria a impor
valores dogmáticos aos cidadãos gregos.
A forma peculiar pela qual os gregos organizaram
um politeísmo descentralizado e marcado por
narrativas míticas muitas vezes contraditórias reflete
a força da história oral neste período, apenas
superada pelo surgimento dos poetas (ou aedos),
responsáveis por preservar e dar forma final ao mito.
Todos estes elementos em conjunto –
transformações socioeconômicas e políticas, o
naturalismo e a transcendência religiosa – criaram
um cenário adequado para o nascimento do pensar
filosófico, a se iniciar pela liberdade resultante das
transformações políticas que levaram à democracia
grega.
O livre questionamento do mito permitiu aos
primeiros filósofos buscarem respostas que
satisfizessem sua curiosidade e que estivessem
ligadas a uma realidade compreensível, motivo que
ocasionou o surgimento do logos, ou seja, a razão;
esta, ao observar a natureza, procura respostas que
possam ser compreendidas pelo homem, sem que
este tenha de recorrer à fantasia, ao mito ou aos
dogmas presentes na religião.
O logos confere cientificidade à filosofia, sempre
em busca de relações de causa e efeito que procurem
a origem de tudo, o que só pode ser possível a partir
do instante em que nos libertamos de nossas
necessidades básicas de sobrevivência.
Com isso, poderíamos manter nossa atenção em
outros acontecimentos, tais como o movimento da
maré, do Sol, da Lua e de outros fenômenos
naturais. Daí decorria o “espanto” grego ou thauma,
a capacidade do filósofo de questionar tudo
buscando respostas lógicas e racionais, como nos
esclarece o filósofo Karl Popper:
O que é novo na filosofia grega, o que é
acrescentado de novo a tudo isso, parece-me
consistir não tanto na substituição dos mitos por
algo de mais “científico”, mas sim em uma nova
atitude em relação aos mitos. Parece-me ser
meramente uma consequência dessa nova atitude o
fato de que seu caráter começa então a mudar.
A nova atitude que tenho em mente é a atitude
crítica. Em lugar de uma transmissão dogmática da
doutrina (na qual todo o interesse consiste em
preservar a tradição autêntica), encontramos uma
tradição crítica da doutrina. Algumas pessoas
começam a fazer perguntas a respeito da doutrina,
duvidam de sua veracidade, de sua verdade.
A dúvida e a crítica existiram certamente antes
disso. O que é novo, porém, é que a dúvida e a
crítica tornam-se agora, por sua vez, parte da
tradição da escola. Uma tradição de caráter superior
substitui a preservação tradicional do dogma.
6) Era pré-socrática: descobrimento da razão
Considerar os primeiros passos da filosofia não é
conhecer questões relativas ao Bem e ao Mal, à
estética e à ética quando o assunto é filosofia grega.
A primeira filosofia se preocupava com o mundo
material, com a physis (natureza), mais
precisamente com a explicação da origem do mundo
material.[...]
[...] É importante entender que a natureza estudada
por estes filósofos não corresponde àquilo que
entendemos como natureza hoje. Ela apresentava
outro sentido, devendo ser entendida como a
realidade primeira que se mostra a nós.
Quem foram os pré-socráticos?
 Primeiros filósofos da história (secs. VI
e V a.c).
 Investigaram a physis (natureza) e, por
isso são chamados de físicos.
 Procuravam o princípio constitutivo do
cosmo. Os gregos usavam a palavra
arché para designar esse princípio.
 Heráclito e Parmênides estão entre os
principais pré-socráticos.
Os primeiros filósofos, portanto, não recorriam ao
fantástico como a narrativa mítica, mas também não
praticavam a metafísica (além do mundo material).
Quem, afinal, eram eles?
Os físicos, ou physiologos (filósofos da natureza),
foram homens que se ocuparam da cosmologia,
abandonando a explicação do Universo que apelava
para os deuses. Tais pensadores procuraram
formular ideias sobre a gênese (origem e
desenvolvimento dos seres. conjunto de fatos ou
elementos que contribuíram para produzir uma
coisa), do cosmos a partir da observação da
realidade imediata.
Como isso seria possível? Ao olhar para a natureza,
para o mundo material, começaram a se perguntar
quanto à existência de um elemento que pudesse ter
dado origem causa final da existência, assim como
também o meio através do qual tudo existe. Nesse
sentido, haveria um princípio material do Universo,
uma arché originária do cosmos.
É neste ponto que esses pioneiros vão discordar,
desenvolvendo as primeiras linhas de raciocínio em
busca da compreensão da realidade e do princípio
gerador, que pode ser a água, o ar, a terra, o átomo,
o infinito, representantes da physis que compõem a
arché.
Tales de Mileto, Heráclito de Éfeso, Parmênides de
Eleia, Pitágoras de Samos e Demócrito de Abdera
são alguns dos nomes associados à filosofia da
physis, ou pré-socrática.
É comum nos equivocarmos com o termo,
relacionando-o a um elemento temporal, como se
todos estes filósofos antecedessem Sócrates, mas a
verdade é que o método investigativo destes
filósofos, pautado na busca e na compreensão da
arché, difere da dúvida socrática e de seu método
investigativo.
Repare, também, que seus nomes vêm
acompanhados das pólis das quais eram cidadãos, o
que reforça a ideia de que a filosofia nasceu com as
Cidades-Estado, fruto do debate, da palavra, da
política, do universo monetário e de uma vida
coletiva complexa que permitiu a alguns de seus
moradores o tempo necessário para a reflexão
filosófica.
A seguir, procuraremos nos deter às principais
afirmações destes pensadores a respeito da origem
do Universo, afastando-se da explicação mítica e
inaugurando um novo tipo de conhecimento.
6.1) Tales de Mileto:
Tales é considerado o primeiro filósofo. Sua
ruptura com o conhecimento mítico se situa na
afirmação da água (hýdor) como a arché do
Universo. O pensador de Mileto buscou um
elemento que poderia ser considerado a base de
todas as coisas do Universo. Quais foram as
razões que moveram o filosofo a entender a
água como este elemento?
Sua vivência e capacidade de observação foram
essenciais para tanto. Tales conheceu o Egito,
viveu um tempo neste lugar e acompanhou as
cheias e vazantes do rio Nilo, compreendendo a
importância da água para a vida. Teria chamado
a água de deus inteligente, fundamento da vida
e do porvir, do movimento do Universo; ainda
assim, a água era matéria: a filosofia nascia aí!
De acordo com Tales, só algo que pudesse
ocupar qualquer forma existente poderia ter
dado origem às coisas que possuem diversas
formas; da mesma forma, só algo que pudesse
ser encontrado em todos os estados em que se
encontravam as coisas poderia ter produzido
tais coisas.
Disso, observou que a água podia ocupar
qualquer forma e que se encontrava nos estados
sólido, líquido e gasoso, o que lhe garantia uma
condição especial no mundo, sendo identificada
enquanto a matéria primeira do Universo, a
physis, aquela que teria dado origem a todo o
existente.
Toda matéria, portanto, seria dotada de certa
umidade que lhe conferiria vida. A inexistência
de umidade, a completa seca, corresponderia à
não existência, à morte.
A importância de Tales para o nascimento da
filosofia está em afirmar a ideia de que “Tudo é
um”. A esta proposição de unidade
denominamos unitarismo. Além de Tales,
podemos considerar unitaristas Heráclito de
Éfeso e Parmênides de Eleia, responsáveis pela
primeira grande disputa filosófica, cujo impasse
seria resolvido por Sócrates.