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Este lio oferece uma introducio 3 teoria das elites o modelo de in- terpretasio da politica que supe que toda forma de organizagio dos homens requer adistingio entre minotiadirigente e maioria dirigida. ‘Com seguranga ¢ clateza, a autora apresenta os principais pensadoses « versbes do elitismo ao longo de sua histéria, além de seus ecos na formagio da Repiibica brasileira. © livro traz ainda textos inédites em portugués de Vilfiedo Pareto e Robert Michels, dois dos mais imporcantes nomes da teoria das elites LEIA TAMBEM: Em buscada politica ‘reason Bauman Forgas Armadas¢ politica no Brasil Jost Momo oe Carvin Histéria dasideias politias Frangoss Crate € ours ii i A ilosotia politica hoje Coss Devcasenane SALITA SVC VIMOFL Politica: uma brevissima introdugio ; Meat oe: MICHELS REPRESENTAC REDO PAREYO SUFRAGIO UNIVERSAL ROBERT [ ‘Addemocraciainesperada SO OLIVEIRA Y iiians s RALISMO DEN BTAGKO POLITICA SOBERANIA POPULAR IG! ot £ ( UNIVERSAL ROBERT DAHL ELITISMO CLASSICO JOSEPH SCHUMPETER ELITISA BATICO OLIVEIRA VIANNA REPUBLICA BRASILEIRA ASSIS BRASIL ELITISMO GAETAT MBERALISMO DEMOCRACIA LIBERAL ROBERT MICHELS REPRESENTAGSO POLITI PULAR IGUALDADE POLITICA VILFREDO PARETO SUFRAGIO UNIVERSAL R JSMO CLASSICO INCLUI TEXTOS DE JOSEPH SCHUMPETER ELITISMO L OLIVEIRA VIANNA REPUBLICA BRASILEIRA ASSIS BRASIL EUTISMO GABTAY (CRACIA LIBERAL VILFREDOPARETO E ROBERT MICHELS LIBERALISMO ROBE SENTACAO POLITICA SOBERANIA POPULAR IGUALDADE POLITICA VILFREI {AGIO UNIVERSALROBERT DAHL INEDITOS EM PORTUGUES ELITISBIO CLASSI “ER ELITISMO DEMOCRATICO OLIVEIRA VIANNA REPUBLICA BRASILE] ISMO GAETANO MOSCA LIBERALISMO DEMOCRACIA LIBERAL ROBERTI (TICA SOBERANIA POPULAR IGUALDADE POLITICA VILFREI IAL ROBERT DAHL ELITISMO CLASSICO JOSEPH SCHUMPET IVEIRA VIANNA REPUBLICA BRASILEIRA ASSIS BRASIL SLITSK Copyright © 2013 Cristina Buarque de Hollanda Copyright desta eigio © 2031: Jonge Zaher altar lid, rua Méaico 31 sobrdoj | 20033-144 Rio de Janeiro, RJ tel (21) 2108-0808 | fa (21) 2108-0800 ehtoca@zzhar.combr | wwwaahaccombr "Todos 0 ceitos reservados ‘A reprodugio nio autorizade desta publcao, no todo ‘over pare, consti volagio de dritesautoras (Lei 9610/98) Grafs stualizada respetando o nove ‘Acoedo Ortogrfica da Lingua Pertgues “Traduyo dos anexox: liana Aguiar (textos de Vitedo Preto) Vera Pereira (textos de Robert Miche) Revisio: Eduardo Farias, Tamara Sender (Capa: Bruna Benvegnt ‘CAP-BrasiCatalogasiona fone Sindicto Nacional dos Editors de Livros} Hollande, Cistina Buarque de, 1978 Hisst Teoria dat elites / Critina Buarque de Hollands, — Rio de Jani aha, 201, (Nova biblioteca de Cltncias Socials) Aanexos nl ibiograia MBN 978-85-378-0489:6 1. Elites (Cléncias socials). 2. Poder (Cidmcas soca). 1 Titulo, 1 Ske, so6o10 ou: 21649-05832 SUMARIO Introducao Gaetano Mosca Vilhredo Pareto Robert Michels Bases do elitismo democratico: Joseph Schumpeter e Robert Dahl ‘Marcas do elitismo nas origens da RepGblica brasileira Notas finais ‘Anexos Avulsos de Vitedo Pareto, 55 Avulbos de Robert Michels, 76 Referéncias efontes Sugestbes deleitura Fey 3 38 44 4“ 53 102 Introdugaio A controvérsia entre elitismo e democracia é to antiga quanto a tradiao da filosofia politica. A formulacao original de uma teoria das elites surgiu da critica de Sécrates ts rotinas da vida piblica na Atenas antiga, no século V a.C. Naquele tempo e lugar, os homens comuns assumiram a diregio dos negécios da cidade e abcliram a vontade dos deuses como origem legitima da organizagio social. Nesse movimento dupfo nasceram, juntas, democracia e politica Antes do experimento ateniense, existiam formas de governo, mas nio formas de politica, que envolvem ample negociagio e debate sobre a vida coletiva, Sema mediagdo de representantes, 0s cargos piblicos eram distribuidos por sorteio e, em casos ra- 10s, pelo voto. Além do direito a participacdo nas assembleias pliblicas deliberativas, todos os cidadios tinham chances iguais de ocupar postos na administragéo piiblica. A criagio ea execu- «io das leis eram tarefas desempenhadas diretamente pelo povo, sem distingio de origem social. Esse envolvimento estreito com avida da cidade definia a condigio da liberdade no mundo ate- niense: eram livres os homens que gozavam da possibilidade de constituir a vida piiblica. Apenas por vicio um cidadéio daria mai importAncia A vida privada que aos interesses do coletivo. Benja- ‘min Constant, escritor ¢ politico francés, define a liberdade antiga como participacio politica, em contraste com a liberdade mo- derna, associada as ages no mundo privado. Embora a escravidao fosse um limite claro ao principio iso- ‘nomico ~ isto é, 2 ideia de igualdade ~ na Atenas antiga, a conces- 8 Teoria daselites sio de direitos politicos a pequenos comerciantes e artesios era uma novidade radical daquele sistema de governo. A desigualdade estava concentrada no oikos, ambiente doméstico com relagSes assimétricas entre pais e filhos, maridos e mulheres, senhores ¢ escravos. Entre os cidadaos na pélis, havia oportunidades iguais de participagao politica. Nao se conhecia, até entéo, um regime organizado nessas bases, Na Republica, Plato condena a pélisateniense por sua premissa deigualdade politica. Para ele, a condigo da harmonia social era o reconhecimento das desigualdades naturais entre os homens. A partir disso, propés o modelo da cidade perfeita, governada por uma elite de sdbios, os filbsofos, que tham acesso privilegiado a0 conhecimento e 4 moral. Moldadas em ouro, prata ou bronze, as almas dos homens deveriam cumprir destinos espectficos na so- ciedade. Toda subversio da hierarquia natural ameacava a justiga, A condenacao de Sécrates & morte foi a imagem-sintese do mal implicado no principio igualitério, 4 filosofia politica platénica nasce, portanto, contra a injustiga da pélis incapaz de reconhecer a sabedoria socritica, A tensio entre elites e democracia extrapolou esse momento original e alcangou importante projecdo na reflexio politica mo- derna e contemporinea, Passado 0 apogeu grego, o modelo demo «eético viveu longo tempo de ostracismo politico, As bases dessa rejeigdo eram de natureza substantiva e formal, isto é somava-se ‘20 incémodo com a ideia do povo na vida politica a suposigao de ‘que 0 modelo democrético era incompativel com a realidade social moderna. Associada a experiéncia de cidades pequenas e pouco populosas, a democracia nao poderia organizar a vida publica em grandes extensdes de terra eaglomerados urbanos. Marcado por esse sentido de inadequagao, o regime democri- ‘ico nao foi incorporado a versio original do liberalismo politico, Introdugio 9 em meados do século XVIII. Na sua forma grega, a tinica que se conhecia, a democracia nio previa um instrumento bisico do arranjo liberal: a representagao politica, isto é, a constituigao de um soberano que fala e age em nome do corpo representado. No liberalismo inaugurado pelo fil6sofo inglés John Locke como reagao aos regimes de absolutismo politico, a ideia de li- berdade supde o avesso da forma grega. Na concep¢ao liberal, homens livres sio aqueles que se afastam do cotidiano da cena pablica, entregem-se ao mundo privado e dele extraem 0 sen- tido da existéncia. Nesse paradigma, a representagdo constitui condigio necesséria da politica, pois libera os individuos para a vida privada. No modelo de Locke, o voto esporddico substitui a necessidade democratica da dedicagao quase permanente a vida pliblica. Ao instituirem representantes, os individuos eximem-se dos sacrificios ao coletivoe invertem o paradigma grego:a cidade passa.a existir em funcio do homem, e ndo o homem ema fungo da cidade, Nesse modelo, todos esto autorizados a liberdade pri- vadaee sujeitos a um minimo de interferéncia da polttica As diferencas acentuadas entre as verses originais dos mode- los liberal e democrético constituiram as bases de um encontro tenso. Até meados do século XIX, democracia e liberalismo eram nogées politicas conilitantes e até mesmo antagOnicas. Pouco a pouco, mediados pelo principio representativo, acomodaram-se na férmula da democracia liberal, que hoje organiza boa parte da vida politica no mundo, sobretudo no Ocidente. Essa nova arquitetura politica foi objeto da critica de Gaetano Mosca (1858-1941), Vilfredo Pareto (1848-1923) e Robert Michels, (2876-1936), autores que constituem o canone do que se conven- cionou denominar teoria das elites. Apesar das nuances ¢ até im- portantes distincias nas visdes politicas desses trés pensadores, todos convergem na descri¢ao da democracia liberal como regime ut6pico cuja rotina institucional nao guarda vinculos com sua 0 ‘Teoria das elites motivasao ideal, Nessa perspectiva, as idetas de soberania popular, igualdade politica e sufrégio universal compdem um universo abstrato de discurso, sem sustentacio real. Na percep¢io elitista, todo exercicio da politica, alhefo is suas justificativas formais,esté fadado a formagio de pequenos grupos que subordinam a maior parte da populagio. A reagio intelectual do elitismo ao avango da democracia nio foi isolada. No final do século XIX, teorias médicas e psicolégicas apontavam para o comportamento irracional das massas ¢ as hie- rarquias naturais entre os homens, Na contramao da ideologia de- mocritica igualitéria, essa retérica cientifica condenava a presenga dos homens comuns na politica. Diluidos na multidao e protegi- dos pelo anonimato, os individuos tendiam & agio mediocre. Para Gustave Le Bon, socidlogo francés, os rituais eleitorais obedeciam uma dindmica irracionalista eo voto ampliado condenava a cena publica aos impulsos primitivos do povo desordenado. Oalitismo esteve afinado com esse clima de insatisfagio quanto aos caminhos da politica. Embora nao constituam uma escola bem- definida, com um corpo rigido e coerente de doutrinas politicas, ‘Mosca, Pareto ¢ Michels compartilhavam o diagnéstico de que toda forma politica produ distingio entre minorias dirigentes e maioria dirigida. Nessa perspectiva, a retorica democritica, destituida de vinculos com a realidade social, serviria apenas & legitimacio do poder de minorias que mobilizavam um discurso universalista com vistas a garantir seu préprio beneficio, Importante notar que a critica elitista nao se volta para os Principios democréticos e socialistas em si mesmos, mas para as, possibilidades de eles, efetivamente, organizarem ¢ realidade so- cial, Para 0s clitistas, todos os sistemas politicos, apesar de seus discursos de justificacao, instituem uma relagao de dominagéo entre os homens. Michels sintetiza essa percepgo com a tese da lei de ferro das oligarquias, que destina toda organizagéo a um Introdugao 1 regime necess4rio de subordinagio da maior parte pela menor. Os elitistas opunham as ficgdes democritica e socialista 0 que consideravam uma investigacio criteriosa da realidade social. A marca forte do realismo politico aproxima os elitistas do pen- samento de Nicolau Maquiavel, pensador florentino do Renasci- mento que deslocou as visdes sobre a natureza humana e sobre 4 politica do vicio idealista para a observagio do possivel. Nessa perspectiva, que inaugura a politica moderna, homens comuns e politica deixam de ser pensados na sua forma desejada para se- rem compreendidos na sua existéncia real. Os individuos nao séo pensados como deveriam ser, mas como efetivamente sao. Assim como Maquiavel, os autores eitistas recusam 0 campo abstratoe infértil das ideias puras em favor da adesio forte ac principio de realidade como meio para o conhecimento. Poderiam também ser chamados realistas. Maguiavel dirige a critica realista & sobrevivéncia, na vida pi- blica, de nocées da teologia politica medieval. Entre os elitistas, 0 objeto da insatisfagao era o racionalismo da época iluminista.Os ‘homens teriam substituido a crenga no sobrenatural por exercicios abstratos da razio, igualmente alheios aos termos concretos da realidade social. O século XIX, animado pele ficeao igualitdtia, testemunhou a expansio do sufrigio ea incluso do povo 10s rituais da politica. A democracia representativa produziu espa¢o institucional para a expansio do socialismo. Conforme o diagnés- tico elitista, um equivoco acolheu e fortaleceu 0 outro, Jean-Jacques Rousseau, Frangois Fourier, Pierre-Joseph Prou- dhon e Karl Marx compunham o cendrio intelectual rejeitado pelos elitistas, por seu forte irrealismo. 0 elitismo inverte a su posigao de Rousseau a respeito da desigualdade como artificio ‘humano, resultado de am movimento de deturpagio da naturece igual: para os elitistas, a desigualdade & condigao necesséria de toda sociedade, e a ideia de igualdade é inadequada para com- preender os termos reais de funcionamento da politica. 2 Teoria daselites Outra importante marca compartilhada pelos autores do eli- tismo fot a busca comam pela produgao de critérios cientificos para o estudo da sociedade. O objetivo desses pensadores nio era ‘opor ume utopia a outra, mas produzir meios seguros de enten- dimento da realidade. A ciéncia, nessa perspectiva, é mobilizada como antidoto ao pensamento abstrato e aos devaneios retéricos. A adogao dos métodos das ciéncias da natureza deveria ser capaz de tornara politica ea sociedade objetos de interpretagao rigorosa, imunes a toda impreciséo e preconceito social. Nesse aspecto, ha importante afinidade entre o elitismo eo po- sitivismo de Augusto Comte, que organiza os percursos cognitivo politico da humanidade em trés estigios necessérios: teolégico, metalisico e positivo, Positivismo e elitismo integram, portanto, um movimento de cientificizacao do saber sobre a sociedade, sentido predominante do pensamento politico desde meados do século XIX, A disputa pelo reconhecimento cientifico foi justamente uma caracteristica forte do conflito entre Mosca ¢ Pareto, Mosca tran- sitou entre os mundos politico e académico e foi menos bem- sucedido que Pareto na produgio da imagem de imparcialidade necessria a um cientista, Embora pioneiro na formulagio do ar- gumento das elites como destino necessario das sociedades, seu exercicio cientifico, marcado pelas rotinas da politica congres- sual, acabou relegado a um reconhecimento marginal, ofuscado pelo protagonismo de Pareto, Michels, décadas mais jovem que ‘8 dois, esteve deslocado dessa disputa pelo pioneirismo cientifico ¢ foi, declaradamente, um seguidor de Mosca, com quem travou. contato na Universidade de Turim, A novidade que propos foi a aplicagao do preceito clitista & observacio minuciosa do cotidiano do Partido Social Democrata Alemio. A partir de um estudo de caso, autor sugeri um padrao universal de reprodugio das or- ganizagoes. Gastano Mosca 8 Este livro percorre os tragos gerais da biografia e do pensa- mento politico da triade elitista ~ Mosca, Pareto e Michels -, com atencio para as linhas de continuidade e afastamento entre suas obras. Em seguida, investiga os ecos do elitismo clissico na ver~ sao contemporinea denominada elitismo democrético, de Joseph Schumpeter (1883-1950) e Robert Dahl (1915- ). Nessa nova acepgio, as elites passam de obsticulo a condigao da democracia. Supera- se, portanto, 0 antagonismo antigo entre elites e democracia, bem expresso no conflito insuperivel entre Platio e a polis, Por fim, aponta sinais do elitismo na formagao da Repiblica brasileira, com atengio as obras politicas de Oliveira Viana (1883-1951) € As- sis Brasil (1857-3938), figuras-chave do pensamento republicano autoritirio e liberal, respectivamente. A associagéo do dlitismo com matrizes politicas distintas ilustra sua notvel capacidade de ajuste politico. Gaetano Mosca Mosca nasceu em familie letrada de Palermo, na Sicilia, em 1858, antes do tardio processo de unificagao italiana. Sem origemaristo- critica, tampouco experimentou as condigdes médias de vida dos italianos meridionais & época:filho de servidor pubblico, escapou do analfabetismo predominante na regio. Graduou-se na Uni- versidade de Palermo no curso de Direito, carreita promissora em tum tempo de formagio do Estado italiano e criagao de estrutturas administrativas. A época da unificagao, a expansio dos quadros piiblicos e do ensino universitério constitufa um cendrio fayorével aos jovens com boa formagio. ‘A vida profissional de Mosca foi marcada pela tensio entre @ carreira politica e o percurso académico, Preterido em disputas, pela cétedra de direito constitucional em universidades na Sicflia, 4 Teoria des elites afinal retornou Universidade de Palermo como docente, em 1885, Apesar disso, nao foi admitido em posto regular e experi mentou fortes dificuldades financeiras, com escasso apoio farni- liar. O vinculo precério com a universidade levou-o a abandons la e seguir para Roma, onde foi aprovado em concurso piblico para o cargo de revisor parlamentar da Camara dos Deputados. Da fase siciliana da sua vida resultou sua primeira obra, Sobre a teoria dos governas ¢ sobre 0 governo parlamentar, publicada em 1881 € marcada por forte insatisfagdo com as rotinas da politica italiana sob o governo parlamentar. Jé nesse texto Mosca esboga as linhas gerais de seu sistema tedrico e propde um estatuto de ciénciaa reflexao sobre a politica. Para autor, 0s maus hébitos intelectuais produziam obstaculos 4 formagio do verdadeiro saber cientifico, ento confinado aos estudos da natureza e da fisica. A constituigao de um método cien- tifico rigoroso, inacessivel As mentes comuns, deveria libertar 0 estudo da politica e da sociedade do juizo vulgar e desqualificado. Era essa a ordem de motivagdes que impelia Mosca 20 mundo académico. Tal como Emile Durkheim, Max Weber e Vilfredo Pareto, seus contemporineos, o jovem siciliano pretendia fundar uma nova ciéncia, dedicada ao esclarecimento dos principios de organizagio da sociedade e da politica. A ciéncia proposta por Mosca era avessa a sedugio das aparén- cias e das formulas ficeis. No primeiro capitulo da obra, 0 autor critica a permanéncia injustificada das classificagbes de governo de Arist6teles no cendrio politico-intelectual. As diferengas de forma entre monarquia, aristocracia e politeia seriam irrelevantes para o entendimento das dinamicas reais da politica, Para Mosca, a tinica distingao politica que importava era aquela entre governantes - minoria que acumulao poder ~ e governados = grupo numeroso sobre 0 qual incide o poder. A maioria, apesar das crengas que tenha sobre si propria, jamais participa de fato Gaetano Mosca 5 do governo. Sempre haverd uma classe politica organizada que se impée, por superioridade moral, aos numerosos fortes. Na Idade Média, havia os bardes, 0 clero e os cOnsules das corporagdes; no tempo dos monarcas esclarecidos, havia a burocracia e anobreza de corte; época de Mosca, havia os empregados ¢ 0s representan- tes do povo, Em sintese: extensos corpos desordenados, incapazes de autonomia politica, subordinam-se as elites de seu tempo. © processo de diferenciagio que constitui minorias privilegia- das em meio & maioria subordinada baseia-se, segundo Mosca, em trés critérios de distingdo. O primeiro deles, a riqueza, teria migrado de uma prevaléncia de direito a uma prevaléncia de fato, que seria sua caracteristica moderna. Isto é, embora os movimen- tos de democratizacdo do liberalismo tenham abolido a riqueza como critério formal e explicito de participagio 2a vida politica, indo ameacaram sua permanencia como critério real. O segundo ctitério distintivo, o lugar social do nascimento, teria importin- cia crucial na definigo das biografias individuais Para Mosca, 0 nascimento situa os homens em um universo de conhecimentos, valores e posturas que 0s aproxima ou nio dos modes de vida da ‘minoria dominante. Entre os bem e os malnascidos haveria dis tancia significativa nas chances de incorporagio as elites. Apenas em sociedades avancadas o mérito, terceito operador de distincao, poderia superar os efeitos sociais das mareas de origem. Este no seria o caso da sua Itilia meridional, onde riqueza e nascimento ‘ram obsticulo as qualidades individuais como meio de ascensio social, Para Mosca, a tendéncia natural & constituigio de elites nio garante, portanto, a qualidade delas. Vale notar que @s justificagées das elites para o lugar privi- legiado que ocupam sto indiferentes aos critérivs reais de sua formagio ¢ sustentagao, isto , elas nao anunciam a riqueza, 0 nascimento ou 0 mérito pessoal como definidores éa sua condigio de elite: estes marcadores sociais operam de mods tacito € esca- 6 ‘Teoria das elites pam ao discurso politico. Para tratar da retérica da elite politica ‘com vistas a legitimar seu lugar social, Mosca propde o conceito de formula politica. Destinada a ocultar 0 verdadeiro sentido da dominago, essa retérica pode ser de tres tipos. ‘Um deles associa a origem da autoridade a um principio so- brenatural ao qual os homens devem obediéncia e temor. Nesse regime de legitimacdo, a subordinagao tem fundamento teolégico. O segundo tipo de justificagao baseiz-se na abstragio racional,, bem ilustrada pelo principio de soberania popular, referido’ su- posigdo inverossimil do poder emanando de todos os homens: nos termos da fice representativa moderna, os homens teriam igual participacéo na politica e pautariam as ages do governo por seus desejos e interesses. Por fim, hé ainda a possibilidade de um. modelo discursivo hibrido que associa o sobrenatural eo racional. Este seria 0 caso da Itdlia, onde o lugar do soberano € devido “A graga de Deus e & vontade da Nagao”. Em todas as estratégias de justificagio, as bases reais de susten- tagio da elite politica permaneceriam ocultas pela sedugio reli- giosa e/ou racionalista. Os homens nao se subordinam apenas pela forga eso suscetiveis a crencas que produzem sentido para o lagar inferior que ocupam. Governantes e governados estariam, nesse sentido, ligados por lagos comuns de sentimentos e valores. ‘Além de um exercicio de andlise cientifica, posteriormente ama- durecido, a fase siciliana original de Mosca teve ainda marca forte de dentincia e condenacio das priticas politicas locais. So- brea teoria dos governos foi obra representativa dessa motivacio. Nesse texto, a rotina do sistema parlamentar italiano, distante do ideal da formula politica democratica, é narrada como pritica de corrupsao ¢ imoralidade, Ministros e deputados, ligados por obscuras redes de reciprocidade, conduziriam a vida politica por Gaetano Mosca i um caminho alheio ao interesse ptiblico, uma vez que as maiorias parlamentares providenciadas aos mi 10s para o livre curso de seus projetos politicos seriam trocadas por cagos e favores pessoais a deputados. As classes politicas, diretamente ligadas 20 mundo institucional da demoeracia, garantiam seus interesses em detrimento das expectativas de seu cleitorado. O governonio aderia aos principios formais da politica, e a Camara dos Deputa- dos constituia um corpo de representa¢ao ficticia, 0 liberalismo, nessa perspectiva, nao havia instituido ruptura funda como Axtigo Regime e mantinha importantes linhas de continuidade com de. © antropélogo Mario Grynszpan localiza a primeira obra de Mosca no universo de expectativas e frustragées pessocis dojo- vvem sicliano, Origindrio de um segmento subordinado das classes dominantes, o autor veria sua dificuldade em ingressar na carrsira jema fechad, vicizdo pelo privilégio e incapar de reconhecer asvirtudes técnicase cientificas dos indivicuos, Excluido ele proprio dos marcadores de inclusio do nascimento e da riqueza, no encontraria modos de fazer pre- valecer seu mérito pessoal. A transfertncia para Roma, em 1888, teria inaugurado novo percurso da trajetéria profissional de Mosca. Ali permaneceu de anos ¢ conciliou o reingresso na carreira universitiria, em: 1893, com 0 acesso privilegiado ao Parlamento, objeto central da saa rellexio politica, Para Ettore Albertoni, um dos principais intés- pretes de Mosca, esse momento marcou a autonomizacéo pro- agressiva do autor com relagdo A cena politica da Itil'a meridtoral € também, de forma associada, 0 amadurecimento do seu arga- ‘mento cientifico, O final do periodo romano assinalatia, conforme cronologia proposta por Albertoni, a passagem de Mosca para ‘uma fase intermedidria da sua obra, menos associada a0 exercicio de dentincia. A publicagéo de Flementos de ciéncia politica, texto universitaria como sintoma de um, B ‘Teoria das olites premiado que rendeu a Mosca uma cétedra na Universidade de ‘Tarim, seria a expressio mais evidente desse novo momento. Nesse livro, ele identifica o despotismo como contraface neces- séria do socialismo, formula politica que encontrou livre curso na democracia liberal. Ele também incrementa seu vocabulirio politico ‘com 0 conceito de defesa juridica, uma espécie de referéncia ética para. politica. A premissa de fundo dessa ideia é a de que os ho- ‘mens so dotados, simultaneamente, das poténcias de moralidade eimoralidade. O sentido da defesa juridica, considerado esse pano- rama da natureza humana, ¢ 0 deinstituir contréle e limitagao dos movimentos egoistas que desviam a sociedade dos seus objetivos. Desse modo, a responsabilidade pelo equilibrio moral necessério a0 bom andamento da vida piblica nao é tarefa exclusiva dos in- dividuos, mas compartilhada com 0 Estado. A produgio de har- ‘monia entre as razées do individuo e as da sociedade é justamente o objetivo desse mecanismo proposto por Mosca. O Estado, nessa perspectiva, deve ser um instrumento de ponderagao entre as pai- xdes individuais ea razao da sociedade, Esse é um aspecto central da utopia conservadora de Mosca, que concebe um Estado racional capaz de proteger 0 corpo social e garantit melhores condigoes de formagiio e renovagao A classe politica. Vale notar que o principio de defesa juridica marca a passagem de uma postura critica ereativa do autor ~ caracteristica de sua fase original - para uma atitude normativa, atenta As possibilidades reais da resistencia aos cursos de degeneragio da politica Emboraa obra politica de Mosca nao seja marceda por rupturas, significativas, os tons de um certo idealismo realista sio definidos ‘com clareza na fase mais madura do autor. Animado por um im- peto denunciativo, o jovem Mosca ndo chegou a propor um mo- do de escapar da associacdo indesejivel entre liberalismo e de- mocracia. Os passos seguintes de sua trajetéria, marcados pelo Geetano Mosea stano Me # ingresso na politica parlementar, combinam diagnéstico e prog- néstico politico, [sto é, Mosca somou & observacio da realidade a imaginagio de formulas para corrigi-la. Se a visio realista tende ao lamento € a paralisia, o ideal poli- tico descola-se da realidade imedista e associa-se a especulagao de outro mundo possfvel. Para superar a condigaio degenerada da vida piblica italiana, Mosca imaginava a formagao de uma nova classe politica, original dos extratos médios da sociedade, com autonomia econdmica e consisténcia moral. Seria ela o lu- gar social de defesa jar das estruturas estatais ainda frageis na [télia pos-unificacao. Seria ela, por fim, 0 motor necessrio transformagao da politica Encerrado 0 capitulo Roma, a ida para Turim marcoumeior projegio da figura piblica de Mosca. Além de palestras na uni- versidade e artigos em jornais de grande circulagiio, o politico alcangou um assento no Parlamento, em 1909. Emboraeleito pelo Partido Liberal, dizia-se conservador. Em tempos de hegemonia democritica, foio nico deputado a manifestar-se contrariamente a0 sufrigio universal masculino, por consideré-lo mais uma fr- mula demagégica e anticientifica do governo parlamentar. Pouco depois, Mosca exerceu ainda outro mandato parlamentar, foi subsecretdrio do governo Salandra, de 1914 a 1916, eleito senador, em 1919. A busca de orientagdes para a acio politica deu a sua iniciativa cientifica forte dose de pregmatismo. Para Grynsepan, se a ciéncia de Mosca transferia legitimidade para sua atuagao politica, a reciproca nao era verdadeira, O re- conhecimento produzido no exercicio da vida publica nio era transportado com facilidade para o campo da ciéncia, A dupla insergo de Mosca ~ nos campos da prética eda reflexdo politica — teria ofuscado seu protagonismo intelectual na proposiao de um novo campo do saber humano. Pareto, de uma geracio posterior ae Teoria das elites a de Mosca, acumnulou maior reconhecimento pela produgio de tum olhar cientifico para a sociedade, avesso a ficgio metafisica € atento as dindmicas reais de constituigio da politica. 0s sinais de formagao do fascismo arrefeceram a critica de Mosca, jé em idade madura, a0 modelo parlamentar, que entio assumia novo sentido hist6rico para ele. Com a crise do Estado moderno, observada desde principios do século XX, trés percursos politicos anuunciavam-se, para o autor, como provaveis etemivels. O primeiro deles era aditadura do proletariado, conforme 0 ex- perimento soviético. O segundo, o retorno ao governo absolvto. O terceiro, por fim, era 0 sindicalismo. Refratirio a todas essas possibilidades, Mosca passa a identifi- car o governo representativo como o menor dos males politicos, como um caminho desefével, portanto. Nessenovo momento, rejeita a critica indistinta a democracia e ao socialismo e destaca a expe- ritncia democritica como legitima. A condenago ao socialismo detxa de envolver seu principal meio de expansio politica: a democracia. “Apesar dos equivocos, a formula politics que vinculow os sistemas emocriticoe liberal teria aleangado importante mérito civilizat6r ‘No final da vida, 0 autor siciliano deslocou, portanto, 0 foco do seu antagonismo intelectual para o fascismo e chegou a promover a defesa do liberalismo como antidoto 20 avanco autoritario. Depois de o filésofo Giovanni Gentile publicar o Manifesto dos intelectuais fascistas, Mosca aderiu ao Manifesto dos intelectuais aantifascistas,iderado pelo intelectual e politico Benedetto Croce ‘em maio de 1925: Em discurso no Senado, anuncia a transforma- do profunda de seu diagndstico politico: ‘Eu jamais teria acreditado ter de sero inicoa fazer o elogio flnebre do regime parlamentar. Bu, que sempre critiquei duramenteo govern parlamentarsta, devo agora lamentar sua queda. Reconhego que esse Gaetano Mosca a sistema deveria softer modificagdes sensfveis, mas nio creio que tenha chegado.o momento de empreender sua transformacio radical. A produgio intelectual de Mosca no permaneceu imune aos efeitos dessa nova fase do seu envolvi jento com a politica. A segunda edigao dos Elementos de ciéncia politica, publicada em 1923, trouxe novidades substantivas, Nela o autor afestou-se da ri- gidez.conceitual da primeira versio, baseada na observagio estrita do sistema politico, e substituiu o conceito de classe politica pela denominagio mais ampla de classe dirigente. A nova designagao refere-se ao conjunto de forgas que orienta a sociedade em todos os niveis, incluindo as minorias dirigentes nos campos da economia, da religido, da tecnologia, sendo a politica uma variavel ligida ao exercicio do poder. Esse foi um importante ajuste para o entendimento de uma re- alidade que se mostrava mais diversificada e estraificada em elites ce diversas espécies. Mosca migrou, portanto, de uma preocupa- sao estritamente politica para uma elaboragio mais abrangente, atenta as dinamicas sociais que escapam ao mundo politico. Ao fim da vida, o autor afastou-se do sentido fortemente instituciona- lista que marcou sua obra e admitiu um tratamento mais flextvel da questio politica. Albertont atribui esse movimento & influtncia, de Pareto, ligado a uma visio mais geral do fendmeno politico e ‘menos atento a questio especifica do governo. Os ecos da obra de Pareto no texto de Mosca nao excluem o movimento inverso, de recepgaio de Mosca por Pareto, Ainda que a rivalidade manifesta entre esses autores tenhe resultado em es- ‘cassas referéncias miituas,a influéncia de um na obra do outro néo, escapa a um olhar mais observador. Mosca foi o primeito autor a sistematizar a interpretagao elitista do fenémeno politico e in- fluenciou as geragoes sucessivas de intelectuais atentos ao tema. PF Teoria das elites Vilfredo Pareto Vilfredo Pareto nasceu em Paris, no ano de 1848, em familia da aristocracia italiana, Seu pai, Raffaele Pareto, exilou-se na Franga devido ao envolvimento estreito com 0 movimento nacionalista italiano liderado por Giuseppe Mazzini. Em fins da década de 1850, o avango do processo de unificagao nacional produziu um cenéio politico favorivel ao retorno da familia & Italia, Bm Tarim, Pareto concluiu os estudos secundarios e ingressou na universidade local, onde dedicou-se ao estudo da fisica e da matematica e, afinal, gra duou-se em engenharia, Seu longo percurso intelectual em diego sociologia teve importante influéncia dessa formagao original. 0 objetivo de produzir reconhecimento cientifico para os estuclos da sociedade mobilizou os métodos e os hébitos intelectuais das cién-

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