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E NÓS, QUE PENSÁVAMOS QUE TÍNHAMOS LUGAR

GARANTIDO…

1. A profecia de Isaías (66,18-21), hoje lida e escutada, rompe os nossos estreitos e falsos
privilégios e alarga em muito a estrada da salvação, pondo todos os povos, como nossos
irmãos, festivamente a caminho de Jerusalém, cidade da fraternidade e da paz! Enfim, aí
está de novo a fechar o Livro de Isaías a ideia grande de missão: urge levar a glória de Deus
às nações (verdadeira dimensão missionária do Povo de Deus), em vez de nos deixarmos
seduzir pela glória das nações (Isaías 66,19)! E a ideia revolucionária de alargar o
sacerdócio, para além das cerradíssimas fronteiras sadoquitas e levíticas, para todas as
nações (Isaías 66,21), refina, de certo modo, a comunidade do culto já entretanto aberta,
para espanto nosso, a eunucos e estrangeiros (Isaías 56,3-7)! Sempre para espanto nosso, o
grande Isaías tinha já posto Deus a pronunciar a seguinte bênção: «Bendito o meu povo, o
Egipto, e a Assíria, obra das minhas mãos, e Israel, minha herança» (Isaías 19,25). E já
antes, no cântico de Sião do Capítulo 2,2-3, Isaías põe todas as nações a caminho de
Jerusalém, para aí experimentarem a alegria de saborear, como filhos e irmãos, o pão da
Palavra de Deus. E o profeta aproveita esta imensa procissão de esperança para gritar aos
ouvidos dos seus concidadãos: «Vem, Casa de Jacob, vem, caminhar na luz do Senhor!»
(Isaías 2,5).

2. Também a palavra do Evangelho proclamado neste Domingo XXI (Lucas 13,22-30) se


dirige fortemente a NÓS, os que nos consideramos de dentro, e continua a desconcertar a
nossa miopia no que às coisas de Deus diz respeito. «Comemos e bebemos contigo»,
«ouvimos os teus ensinamentos» (Lucas 13,26)! É como quem diz: frequentámos a Igreja e
os sacramentos, comungámos tantas vezes, ouvimos proclamar a tua Palavra, conhecemos-
Te muito bem, somos praticantes de longa data e até talvez… beatos!

3. Ficaremos espantados quando percebermos bem que os títulos que orgulhosamente


ostentamos são falsos, há muito caducados, e não garantem o acesso a lugar nenhum no
banquete do Reino dos Céus, pois não basta dizer «Senhor, Senhor!». É preciso «fazer a
vontade do meu Pai que está nos céus!», diz-nos Jesus (Mateus 7,21).

4. Salta à vista que o texto de Lucas 13,22-30 se divide claramente em duas partes; Lucas
13,22-24 e Lucas 13,25-30. A primeira parte abre com o aceno ao caminho crucial de Jesus,
que, desde Lucas 19,51, como já vimos, se dirige sem hesitação para Jerusalém. Lucas
13,22 apresenta-nos a segunda menção deste caminho para Jerusalém. É neste contexto do
caminho, que surge a nossa pergunta: «Senhor, é pequeno o número dos que se salvam?»
(Lucas 13,23). Como é seu hábito, Jesus não responde diretamente «sim» ou «não». Em vez
disso, deixa uma forte interpelação (Lucas 13,24) e conta uma parábola (Lucas 13,25-30).

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5. Eis a interpelação: «Lutai com todas as forças (verbo agonízô) por entrar pela porta
estreita» (Lucas 13,24). O verbo empregado (agonízô) implica luta e empenho extremo, não
assim-assim. A parábola é ainda mais desconcertante para nós. É mesmo tão
desconcertante, que corremos o risco de nem sequer levarmos a sério o que ouvimos. Da
porta estreita, Jesus passa para a casa, e para o dono da casa que fecha a porta (Lucas
13,25). E, pelos vistos, nós não estamos dentro da casa, estamos fora, a bater à porta e a
gritar: «Senhor, abre-nos!». E, de dentro, vem a resposta do dono da casa: «Não vos
conheço!» (Lucas 13,25).
6. Ao contrário, e para novo e ainda maior espanto nosso, NÓS, de fora, veremos a casa
cheia de gente que vem de longe, do norte, do sul, do nascente e do poente (Lucas 13,29).
E perguntaremos atravessados por um último espanto: então, NÓS, que somos padres,
sacristães, ministros da comunhão, catequistas, acólitos, leitores, membros do conselho
económico, do conselho pastoral, do grupo coral e não sei de quantas irmandades, NÓS, que
estávamos sempre do lado de dentro, como é que agora estamos do lado de fora?! Então, e
estes desconhecidos, pagãos, não praticantes, que antes tinham de nos pedir licença para
entrar, como é que agora estão lá dentro, e nós cá fora?!

7. A razão é clara: o dono da casa não nos conhece (Lucas 13,25). Reside, então, aqui o
problema. Estamos tantas vezes dentro das igrejas, tagarelamos uns com os outros,
ocupamos ciosamente os nossos lugares, mas será que prestamos alguma atenção ao dono
da casa? Será que chegamos a dar pela Presença que habita aquela Casa e que dá sentido à
nossa vida? Falamos com Ele? Fazemos com Ele aquele caminho crucial?

8. É neste caminho que acontecem coisas importantes, e não podemos andar nele distraídos,
inativos, de braços caídos. A página de Mateus 25 explicita bem o tom do Evangelho de hoje:
«Afastai-vos de MIM (…), pois tive fome e não ME destes de comer, tive sede e não ME
destes de beber, era estrangeiro e não ME acolhestes, nu e não ME vestistes, estive doente e
na prisão e não ME visitastes. (…) Em verdade vos digo: cada vez que não o fizestes a UM
(hení) destes, os mais pequenos, também a MIM o não fizestes”» (Mateus 25,42-43.45).

9. Salta à vista que é urgente começar AGORA a compreender que é preciso validar, com a
vida, o bilhete que dá acesso à mesa do Reino dos Céus. A compreender e a fazer. É a
inação que nos desclassifica. Jesus manda-nos lutar: «Lutai com todas as forças, até
agonizar (verbo agonízô), por entrar pela porta estreita» (Lucas 13,24). Podemos ouvi-lo, de
outra maneira, da boca de Pedro em Cesareia Marítima: «Na verdade, Deus não faz aceção
de pessoas, mas em qualquer nação, quem o teme e pratica a justiça é bem aceite por Ele»
(Atos dos Apóstolos 10,34-35).

10. Hoje, como sempre, é de santos e de justos que o nosso mundo precisa. Deles é o Reino
dos Céus. E NÓS? Eles não perdem tempo em acudir às necessidades dos seus irmãos,
sejam eles quem forem. E NÓS? Alguém dizia, não há muito tempo, que «os cristãos
meramente praticantes estão em fim de linha. Hoje, precisamos de cristãos enamorados!».
O cristão meramente praticante é aquele que está sempre a dizer: «Posso estar descansado:
hoje cumpri todos os meus deveres». O cristão enamorado é aquele que não para de dizer:
«Sim, fiz alguma coisa; mas ainda tenho tanta coisa para fazer!».

11. Lutai com todas as vossas forças em todos os momentos. A porta é estreita e está aberta
pouco tempo. É o espaço e o tempo da nossa vida. Sede cristãos enamorados! E não vos
esqueçais que o amor verdadeiro (agápê) é uma luta (agôn), sendo que agápê e agôn têm a
mesma etimologia.

12. A lição de hoje do sermão da Carta aos Hebreus (12,5-7.11-13) é mesmo uma lição,
uma instrução ao jeito do Livro dos Provérbios 3,11-12, que cita, para nos dizer e ensinar
que Deus nos trata como filhos, e é por isso que nos ama e pedagogicamente nos corrige. É
nesta ótica que devem ser lidas todas as situações da vida, sobretudo as mais difíceis.

13. O Salmo 117, o mais pequeno do Saltério, apenas 17 palavras hebraicas, é semelhante a
um «ponto», sendo, por isso, chamado o punctum Psalterii. Por ser tão pequeno, já houve
quem o quisesse juntar ao anterior (116) ou ao seguinte (118). Mas este é o caso em que o
pequeno é belo e ao mesmo tempo imenso, porque reclama para o louvor de Deus todas as
nações e todos os povos! E põe em realce dois dos mais belos atributos de Deus: o amor fiel
(hesed) e a fidelidade (ʼemet). Soa, no Saltério, como o nosso «Glória ao Pai…». É citado na
Carta aos Romanos 15,11, pelo seu elevado e concentrado teor universalista e missionário. É
por isso também que a sua tonalidade se ajusta bem à liturgia ecuménica deste Domingo.

António Couto

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