Você está na página 1de 33

EDIÇÃO 150 ​| MARÇO_2019- ​questões de arte e história

DUAS MENINAS: ​Renoir, Proust e os nazistas, por ​LORENZO MAMMÌ


É ​um dos quadros mais célebres da coleção do Museu de Arte de São Paulo (Masp).
Foi pintado por Pierre-Auguste Renoir em 1881 e retrata duas meninas, Alice e
Elisabeth, filhas de um riquíssimo banqueiro judeu de origem alemã, Louis Cahen
d’Anvers, e de Louise de Morpurgo, mas o título pelo qual é mais conhecido não faz
referência às retratadas: ​Rosa e Azul.​ Não está entre os trabalhos do artista que
prefiro, nem, a despeito de sua popularidade, entre aqueles que a crítica mais
rigorosa costuma elogiar. Remonta a um período em que Renoir, desiludido com o
insucesso das primeiras exposições impressionistas, tenta se afirmar como retratista
da alta burguesia parisiense. É comum ouvir, em relação a essa fase, adjetivos como
“açucarado” ou “amaneirado”, e a pecha de certa vulgarização do impressionismo. De
fato, em fins da década de 1870, Renoir parece recuar tanto da investigação aguda da
“vida moderna”, de que foram mestres impiedosos Manet e Degas, quanto da
aspiração (indissociável da poética de impressionistas mais rigorosos, como Monet
ou Pissarro, mas afinal irrealizável) de reproduzir a sensação imediata, anterior a
qualquer estilização. Nessa fase da arte de Renoir, a técnica impressionista se dobra a
um tratamento mais tradicional dos volumes e a uma reprodução das texturas
(veludos, cetins, cabelos, pele) emprestada de convenções antigas, que ele dominava
perfeitamente. São traços mais conservadores que podiam passar despercebidos
devido à falta de contornos definidos, ao leque cromático extremado e à
luminosidade esfuziante, que é o que resta, então, do impressionismo.

Mas, à medida que esses traços impressionistas viraram linguagem comum, as


dívidas de Renoir para com as convenções acadêmicas ficaram mais evidentes e hoje
justificam o olhar desconfiado com que abordamos essas obras. O mesmo vale
quanto à “vida moderna”: o extraordinário cronista de ​O Baile no​ ​Moulin de la
Galette​ parece ter cultivado, a longo prazo, uma atitude demasiado condescendente
em relação a seus objetos, se comparada à postura crítica que hoje é comum se
preferir. Suas telas, como observou o artista e crítico americano Walter Pach,
proporcionam a sensação de “saúde robusta e situação confortável” – e isso, pelo
gosto atual, não é exatamente uma virtude. A sociedade exuberante e informal que
ele retrata, as mulheres espirituosas e disponíveis, as danças e os piqueniques, por
transgressores e liberadores que possam ter sido quando foram pintados,
transformaram-se, talvez com docilidade excessiva, em chavões nostálgicos de certo
charme parisiense fossilizado e repetido à exaustão.

Por tudo isso, eu nunca teria pensado em escrever sobre ​Rosa e Azul​, não fosse uma
informação lida por acaso num catálogo do Masp: a menina à direita, a maior, a loira,
Elisabeth, morreu em 1944, aos 69 anos, no comboio que a levava a Auschwitz.

A​notícia não é apenas chocante: de certa forma é absurda. Qualquer um que a leia,
imagino, terá a mesma reação que eu tive: olhar de volta para a imagem que
acompanha o texto, para verificar se ela ainda está lá, se não foi substituída por
alguma outra coisa. Obviamente está lá, e não pode nos fornecer nenhum
esclarecimento. Qualquer premonição estava fora do alcance tanto do pintor quanto
das meninas. A própria ideia de Holocausto parece incompatível com Renoir: se
havia algo que ele não sabia pintar era a tristeza, quem diria a tragédia. À primeira
vista, nada da história diz respeito ao quadro, nada do quadro enriquece a história. O
que muda somos nós, nossa percepção da tela: entre os veludos e as rendas,
Auschwitz se instalou e não há como tirá-lo de lá. Porque houve o Holocausto e
porque o Holocausto atingiu esse Renoir tão de perto, porque se sabe disso e
justamente porque a obra não contempla essa possibilidade, de repente falar de uma
sem falar do outro parece fútil, senão moralmente duvidoso. Agora há uma tarefa a
cumprir, que pode e deve, acho, ser conduzida de duas formas: por um lado, entre
esse quadro e o extermínio há uma série de relações objetivas a tecer, encobrimentos,
atos falhos, reticências que ligam uma elite econômica mal tolerada a uma pintura
moderna que também custa a encontrar seu lugar; por outro, há o dado bruto do
impacto com que a história atinge nossa percepção estética, a consciência de que o
quadro, agora que sabemos disso, nunca mais será o mesmo. ​Rosa e Azul ​é um caso
extremado de como a apreciação de uma obra de arte depende do percurso histórico
que dela chega até nós.
Já se foi a ilusão (se é que alguma vez alguém a cultivou) de que seja possível julgar
uma obra exclusivamente a partir de suas características formais. Não apenas as
circunstâncias de sua feitura, mas também as circunstâncias em que nos
aproximamos dela, e a distância que decorre entre as duas, determinam sua
apreciação. A obra é atravessada por tudo, como as releituras que Picasso fez em
1957 de ​As Meninas ​de Velázquez (58 aulas magistrais sobre como ver um quadro)
são atravessadas pela luz do ateliê do mestre cubista e pelo gato que o frequentava,
simplesmente porque eles estavam lá enquanto ele pintava. No caso de ​Rosa e Azul​,
porém, as características da tela e as informações que temos sobre o destino de
Elisabeth são tão dissonantes que não parecem compatíveis. Tanto umas quanto as
outras estão presentes ao mesmo tempo no ato de percepção, mas nenhuma
articulação discursiva parece possível entre elas.

Talvez seja justamente esse o ponto do qual devemos partir: se algo se instalou no
quadro, é da ordem da incongruência. Quem sabe, então, ​Rosa e Azul ​não diga
alguma coisa sobre a relação entre arte e história, não como simples oposição, como
se a arte fosse um éden de onde o anjo da história nos expulsou, e sim como uma
fratura interna, uma impossibilidade do pensamento. A história em que a obra
continua vivendo a penetra, expõe contradições que nem sequer estavam ou
pareciam estar ali à época. A pintura, por sua vez, reescreve a história, julga o futuro
pelo passado, de maneira que tudo o que aconteceu após sua feitura se integra à sua
constituição e adquire ali um sentido mais evidente. Auschwitz racha a superfície
esfuziante de ​Rosa e Azul,​ e ​Rosa e Azul ​condena Auschwitz de forma bem mais
intensa e premente do que o repúdio que já nos acostumamos, quase
automaticamente, a proferir. A incongruência – essa incongruência – se torna a
razão de ser do quadro, lhe proporciona um sentido que não pretendia ter, mas que
parece emergir dele como de um ato falho. A incongruência, quase outro nome da
tragédia, nos obriga a recontar histórias.

A​história de Elisabeth, então. Minha segunda reação também foi bastante banal:
procurar na internet. No site ​Les Déportés Juifs de la Sarthe ​(​Os Deportados Judeus
de Sarthe)​ , encontro uma foto de Elisabeth em 1942. Veste roupas modestas: casaco
de tricô, xale claro, saia escura, chinelos. Apoia-se num andador. Está no vão de uma
porta, também muito simples, provavelmente uma entrada de serviço que se abre
numa parede de tijolos aparentes. Manchas claras nas bordas da foto, que parecem
folhas desfocadas, sugerem um jardim diante da entrada. O fotógrafo está numa
posição mais elevada e Elisabeth volta o rosto para ele, se esforçando para lhe
mostrar um vestígio do sorriso que ofereceu a Renoir em 1881. Parece ter ido até a
porta justamente para ser fotografada. Não é tão velha (67 anos), mas o andador
indica que está doente. De fato, um atestado médico disponibilizado no mesmo site
declara que ela sofria de artrite reumatoide.

Pelo site fico sabendo que Elisabeth se converteu ao catolicismo aos 20 anos, em
1895, antes de casar, no ano seguinte, com o conde e diplomata Marie Joseph
Antoine Jean de Forceville. Que teve com ele dois filhos e se divorciou em 1901. Que
em 1904 casou com Marie Alfred Emile Louis Denfert-Rochereau, do qual também se
divorciou em algum momento entre as duas guerras. Que nos primeiros tempos da
ocupação foi várias vezes interrogada por policiais franceses e oficiais alemães, mas
que o carimbo que atestaria sua procedência judaica não foi aposto a seu passaporte.
A outra menina do quadro, Alice, casara-se com um oficial inglês e morava em
Londres, a salvo do perigo. Irène, a irmã mais velha, conseguiu em 1941 o atestado de
“não judia”, declarando que os avós maternos eram católicos (o que, como veremos,
não era verdade) e que se convertera ainda jovem. Elisabeth não teve a mesma
precaução: foi presa por oficiais alemães em 27 de janeiro de 1944 e levada para o
campo de Drancy, aonde desembarcou no dia 30. Deportada em 27 de março,
morreu em 15 de abril, provavelmente antes de chegar a Auschwitz.

Entre essa história e o quadro, a única ligação que consigo enxergar de imediato é a
tentativa desbotada, na foto de 1942, de repetir o sorriso de ​Rosa e Azul​, num rosto
de resto irreconhecível. Certos traços de expressão nunca se perdem de todo.
A​história de Paris. Incongruência é um termo muito explorado por T. J. Clark, em
seu já clássico ​A Pintura da Vida Moderna.​ Aproveito algumas de suas teses como
ponto de partida, ainda que de maneira simplificada e um tanto imprecisa. Clark
argumenta que, a partir de 1860, mudanças importantes no sistema de circulação das
mercadorias começam a alterar as configurações sociais na França, especialmente em
Paris. Os artesãos passam a trabalhar para grandes lojas de departamentos, que lhe
emprestam material e máquinas. A relação deles com colaboradores e aprendizes, até
então familiar, se torna semelhante à de um pequeno empresário com seus operários.
À medida que seus produtos são absorvidos pelo sistema de vendas em grande
escala, se enfraquece a relação com a clientela do bairro e a rede de solidariedade que
garantia sua segurança (fidelidade da freguesia, comprar fiado, negociações olho no
olho).

De imediato, no entanto, nada disso é evidente: o artesão continua trabalhando em


seu ateliê e, ao contrário do que em geral se imagina, o êxodo das classes humildes
ainda é pequeno, mesmo depois da grande reforma urbana do barão Georges-Eugène
Haussmann. O novo sistema não estabelece relações totalmente novas, nem oferece
uma imagem evidente de si. Talvez nem precise: vive de reconfigurações e
deslocamentos contínuos das relações antigas, que mudam de posição e de sentido
sem perder de todo a forma tradicional. À primeira vista, tudo ainda está aí; nada,
porém, ficou no lugar.

A reestruturação de Haussmann é certamente, no momento que nos interessa, uma


tentativa poderosa de criar uma nova imagem da cidade. A abertura de grandes
avenidas retilíneas corta os velhos bairros com o intuito de proporcionar condições
ideais de visibilidade e circulação e, com isso, ser instrumento de uma racionalização
das relações sociais. Mas a tentativa não alcança seu objetivo: nessa visibilidade
retilínea e potencialmente ilimitada, muitos comentadores contemporâneos não
veem nada, a não ser a desolação de um vazio sem identidade. Ao invés de uma
sociedade claramente organizada, o que se enxerga é uma terra de ninguém invadida
por ​flâneurs​, prostitutas, artistas de rua, toda uma população gerada pelo
desmantelamento da antiga economia de bairro. A convivência entre diferentes
camadas e tipos sociais – que, nos recém-inaugurados ​boulevards,​ encontra seu
lugar privilegiado na nova moda dos cafés-concertos – é vista não como conciliação e
fusão, mas apenas como promiscuidade. Não uma sociedade mais organizada, e sim
mais confusa, fragmentária e caótica – que perdeu o chão sobre o qual se assentava,
sem que a modernidade lhe tenha oferecido um novo. A imagem mais perfeita disso
talvez seja o cisne que fugiu da gaiola e vaga capenga entre canteiros de obras, no
poema de Baudelaire “O Cisne”, de ​As Flores do Mal.​ [1]

Se à reforma Haussmann se atribuiu a perda de identidade e o esgarçamento do


tecido social urbano (dos quais ela não foi o agente principal, mas o símbolo mais
evidente), a mesma hostilidade foi dirigida contra a nova elite financeira, em grande
parte judia, que se instalara na cidade nesse período: além dos Rothschild, que já
residiam em Paris havia tempo, os Péreire (além de banqueiros, os maiores
empreendedores imobiliários da reforma Haussmann), os Cattaui, os Ephrussi, os
Camondo, os Cahen d’Anvers. Dominando a economia e a vida social, representativos
como ninguém da nova França e da nova Paris, cultivavam laços de solidariedade e
tradições próprias, vistos com suspeita tanto pela antiga aristocracia quanto pela
pequena burguesia emergente. Hábeis e muitas vezes impiedosos nas transações
comerciais, são ao mesmo tempo temidos e reverenciados, badalados e hostilizados.
São, eles também, como os ​flâneurs​ das avenidas, desenraizados – pelo menos
geograficamente –, portanto modernos. A tempestade antissemita que varreria a
França durante o caso Dreyfus (1894-1906) começa a se esboçar.

O desafio declarado da nova geração de artistas era pintar as novas formas de vida: o
campo moderno, mais turístico que rural, meta dos parisienses no fim de semana
graças ao desenvolvimento das estradas de ferro; os espetáculos, as pistas de turfe, as
avenidas, os cafés-concertos. Mas essa nova paisagem era ambígua e desconjuntada.
De certa forma, argumenta Clark, os impressionistas fracassaram em suas tentativas,
pois não foi possível estabelecer para a vida moderna códigos de representação
análogos aos da pintura tradicional. Por outro lado, esse fracasso foi também seu
triunfo, na medida em que a incompletude e a fragmentação estrutural da nova
realidade são transpostas para a tela sem disfarces, até se converterem em seu
problema central e sua própria razão de ser. Se, na pintura moderna, o tema vira um
motivo que vale, não pelo referente, mas como pretexto para uma reflexão formal,
não é por desinteresse pelo real, mas porque houve um descolamento entre signos e
significados que tornou a transição de uns para outros um problema a ser
compensado por maior coerência formal dentro da obra. É só na obra que o mundo
adquire uma imagem, se não plena, pelo menos capaz de um grau razoável de
coerência. Mas essa imagem já não coincide completamente com o que vemos pela
janela. Numa linha de raciocínio que me parece compatível com a de Clark, o filósofo
Jacques Rancière defende, em ​O Destino das Imagens​, que na raiz da representação
moderna não está o mergulho do artista em seus próprios meios, como quer a
tradição hegeliana, mas as novas exigências de autenticidade impostas pelo realismo.
Seria o realismo que, ao abolir as mediações linguísticas tradicionais entre o mundo e
suas representações, obrigaria o artista a uma luta constante com seus objetos. E,
afinal, o próprio embate entre pintura e realidade, seus êxitos e fracassos, passa a ser
o movente principal da obra.

A​história de Renoir. Em paralelo ao ensaio de Clark, vale ler a biografia do pintor


escrita por seu filho, o cineasta Jean Renoir. De fato, a família Renoir ilustra quase à
perfeição as mudanças sociais descritas pelo crítico americano. Os Renoir pertenciam
à classe de artesãos mais diretamente atingida pelas mudanças econômicas:
provenientes de Limoges, moraram de início no bairro popular do Louvre – na antiga
corte do palácio –, desmantelado no Segundo Império para criar o novo complexo
Louvre-Tulherias; mudaram-se então para o Marais e, mais tarde, para o subúrbio de
Louveciennes. O pai, Léonard, era alfaiate, e dos sete filhos que teve, cinco
sobreviveram. O mais velho, Pierre-Henri, começou a trabalhar como ourives numa
oficina do bairro, mas logo foi contratado pelo célebre Jean-Baptiste-Claude Odiot,
fornecedor da casa imperial, instalado na praça Madeleine. Henri levou uma vida
abastada e bem adaptada aos novos tempos – ele, apaixonado pelos cafés-concertos;
a mulher, pelos saldos das lojas de departamentos. Sua irmã Marie-Elisa, militante
socialista, casou com um gravurista que fornecia ilustrações para as revistas de
moda. Léonard-Victor, o terceiro, seguiu a profissão do pai, porém trabalhando como
costureiro numa loja dos grandes ​boulevards.​ Elegante e namorador, parece, na
descrição do sobrinho, um exemplo perfeito dos galantes ​calicots ​(empregados de
lojas de moda) que povoam os romances e as crônicas da época. Mais tarde,
emigraria para São Petersburgo e abriria uma firma própria, que chegou a obter
bastante sucesso. O caçula, Edmond-Victor, será escritor e jornalista, por um tempo
diretor de ​La Vie Moderne,​ revista que se notabilizou pelo apoio à jovem pintura e
literatura.

Pierre-Auguste era o sexto dos sete filhos. Começa como pintor de porcelanas –
trabalho promissor, do ponto de vista financeiro, mas logo interrompido pela moda
das louças industriais de fabricação inglesa. Depois, vive um período de
indeterminação profissional, em que trabalha como pintor de cortinas em tela
impermeável (cujos maiores consumidores eram os missionários no Extremo
Oriente, que as utilizavam como substitutos dos vitrais de igreja) e decorador de duas
dezenas de cafés em torno dos novos mercados dos Halles. Finalmente decide
investir na carreira de pintor e entra no ateliê de Charles Gleyre. Ali encontra Bazille,
Monet e Sisley, que o levam às reuniões dos “intransigentes”, mais tarde apelidados
“impressionistas”. Nos anos de velhice, repetia ao filho Jean, como singela filosofia
de vida, a metáfora do ​bouchon​ – a rolha de cortiça que segue a corrente desviando
apenas um pouco à esquerda ou à direita, sem nunca se opor ao fluxo.

De fato, para os Renoir, e principalmente para Pierre-Auguste, a enchente da


revolução econômica, entre o Segundo Império (1852-70) e a Terceira República
(1870-1940), propiciou uma nova identidade, mais próspera: entre artesanato e
indústria, alfaiataria e loja de departamento, atividade intelectual e habilidade
manual, havia um espaço a preencher, e Pierre-Auguste sempre se orgulhou de saber
aproveitar as ocasiões, não por submissão passiva (se fosse assim, não seria um
“intransigente”), mas por curiosidade atenta, apreço pela habilidade artesanal e
desconfiança de qualquer teoria e ideologia. Em conversas com o filho ou com o
galerista Ambroise Vollard, fica evidente que para ele o impressionismo era,
sobretudo, uma mudança de gosto – pintura clara e de toques no lugar da escura e de
contornos nítidos da geração anterior. Julgava que as telas pintadas ao ar livre
devessem ser corrigidas no ateliê, em condições de iluminação mais próximas dos
interiores onde seriam penduradas. Não considerava seu estilo uma novidade
absoluta, e sim a retomada de uma tradição francesa de pinceladas sensíveis e
difusas (Watteau, Fragonard), interrompida pelo neoclassicismo. Enfim, não se
sentia um revolucionário, mas isso não o impedia de perceber, talvez antes e mais do
que seus companheiros, a força inovadora de Cézanne e de tentar, a seu modo,
incorporar seu estilo.

A​s dificuldades iniciais pelas quais passaram os impressionistas são notórias e foram
muitas vezes narradas e romanceadas. O leilão do Hôtel Drouot, promovido pelos
próprios artistas em 1875, foi um desastre do ponto de vista econômico. Em 1877,
quando da terceira exposição impressionista (a primeira a assumir oficialmente esse
nome), com tantas obras que se tornariam canônicas – ​O Baile no Moulin de la
Galette ​e ​O Balanço,​ de Renoir; ​A Aula de Dança, d
​ e Degas; a série ​A Estação
Saint-Lazare​, de Monet; ​Os Telhados Vermelhos​, de Pissarro, além de um conjunto
consistente de Cézanne –, a maioria das críticas continua negativa. Um galerista
revolucionário tanto no gosto quanto na estratégia de vendas, Paul Durand-Ruel, já
começara a adquirir grande parte da produção dos jovens pintores. Mas ainda se
tratava de uma aposta. Renoir, mais dotado como pintor de figuras do que muitos de
seus companheiros (com exceção de Degas), tinha circulação um pouco melhor como
retratista, mas seus clientes pertenciam a uma classe burguesa de parcos recursos.
Por ocasião da terceira mostra, considerava-se satisfeito ao vender uma tela por 200
ou 300 francos, enquanto pintores da moda podiam obter dezenas ou (se Zola não
exagerou em ​A Obra)​ até centenas de milhares de francos por quadro.

Já nessa época, porém, um punhado de intelectuais e escritores influentes se


empenhava em introduzir seus amigos pintores em ambientes sociais e intelectuais
mais prestigiados. Um deles era o salão de Marguérite Charpentier, mulher de
Georges Charpentier, editor dos autores da nova escola naturalista e fundador da
revista ​La Vie Moderne​, que Edmond Renoir virá a dirigir. Além dos escritores que
ele publicava, como Flaubert, Zola, Maupassant, Goncourt e Turguêniev,
frequentavam o salão jornalistas e políticos liberais, críticos, colecionadores e,
naturalmente, artistas. Renoir decerto conhecia Charpentier já havia algum tempo,
porque em 1869 pintara um retrato, ainda convencional, da mãe do editor. A
exposição de 1877 incluía um pequeno e belo retrato da mulher dele, Marguérite,
hoje no Museu d’Orsay. Logo em seguida, Marguérite Charpentier encomendou
outro, de grandes dimensões, onde aparece em sua casa com dois filhos e um
cachorro. Por este, Renoir recebeu a cifra, não extraordinária, porém mais
consistente, de 1 500 francos. Mas madame Charpentier fez mais: convenceu a amiga
Jeanne Samary, atriz no ápice da fama, a encomendar um retrato de figura inteira.
Finalmente, conseguiu que as duas telas fossem aceitas no Salon de 1879. Para
Renoir, após as reiteradas recusas dos anos anteriores, foi uma chancela importante:
sinalizava, para uma nova burguesia ainda em busca de estilo, que comprar ou
encomendar um quadro dele já não era um ato temerário. Estava pronto para voos
mais altos.

Segundo Théodore Duret, crítico de arte e amigo de Renoir desde a década de 1870,
foi graças a Charles Ephrussi que o pintor conseguiu ascender do salão burguês e
liberal dos Charpentier até as altas cortes da elite financeira, à qual pertenciam os
Cahen d’Anvers. Nascido em Odessa, Ephrussi chegou a Paris em 1871 aos 21 anos,
vindo de Viena, onde passara a adolescência. Ainda mais ricos do que os Cahen
d’Anvers, os Ephrussi, cujos ramos se espalhavam pela Europa entre Odessa, Viena e
Paris, eram chamados “reis do trigo”, por, entre outras coisas, deterem o controle do
mercado dos cereais na Europa, graças a um acesso quase monopolista às
riquíssimas plantações do Leste Europeu.

Ephrussi nunca se ocupou dos negócios da família; preferiu a carreira de intelectual,


historiador da arte e colecionador. Escreveu uma monografia sobre os desenhos de
Albrecht Dürer, à qual Erwin Panofsky, na bibliografia anexa a seu célebre ​The Life
and Art of Albrecht Dürer ​(1943), atribuiu o asterisco reservado às obras
especialmente relevantes. Foi redator, depois diretor, finalmente proprietário da
prestigiosa ​Gazette des Beaux-Arts,​ a mais importante revista de arte na França.
Durante as décadas de 1870 e 80, foi um dos principais colecionadores de obras
impressionistas (em seguida, passou a se interessar pelos simbolistas). Protegeu e
incentivou jovens escritores e críticos em início de carreira, como Jules Laforgue, que
foi seu secretário, e Marcel Proust. Foi, aliás, uma das fontes de Proust para construir
a personagem de Charles Swann de ​Em Busca do Tempo Perdido,​ cujo modelo
principal, como se sabe, é Charles Haas, o “judeu do Jóquei Clube”. Renoir retratou
Charles Ephrussi em um de seus quadros mais famosos, ​Le Déjeuner des Canotiers
(​O Almoço dos Remadores),​ pintado no mesmo ano de ​Rosa e Azul.​ Sua presença
naquela pintura, e o modo como ela se dá, me parece crucial para as relações que
estou investigando.

O Almoço dos Remadores ​poderia ser definido como retrato de grupo disfarçado de
cena de gênero. Na varanda de um restaurante à beira-rio, homens em trajes
informais (alguns de regata, muitos de chapéu de palha) e mulheres com roupas
coloridas se entretêm entre mesas com restos de comida e garrafas meio vazias. A
garota que brinca com um cachorrinho no primeiro plano é a modelo Aline Charigot,
futura mulher de Pierre-Auguste e mãe de Jean Renoir; Jeanne Samary está à direita,
mais discreta em sua veste escura (parece ter acabado de chegar, e é a única a usar
luvas). Alguém lhe passa a mão na cintura, provavelmente o mesmo homem (de
camiseta listrada e chapéu de palha) que aproxima seu rosto ao dela (é o jornalista
Paul Lhôte, que além de erotômano compulsivo era extremamente míope, conforme
as lembranças de Pierre-Auguste recolhidas pelo filho). Ephrussi é a figura ao fundo
à esquerda, de costas, de casaca preta e cartola, conversando com Jules Laforgue.

Edmund de Waal, que escreveu ​A Lebre com Olhos de Âmbar,​ um livro sensível
sobre a família Ephrussi (da qual ele descende), estranha esse traje formal em
ocasião tão descontraída. Não é o primeiro: em ​O Caminho de Guermantes,​ terceiro
volume de ​Em Busca do Tempo Perdido,​ há uma cena em que Marcel, antes de
sentar pela primeira vez à mesa dos duques, é deixado a sós, a seu pedido, para
contemplar uma coleção de quadros de Elstir. Costuma-se identificar Elstir com
Monet, mas é um personagem que resume aspectos de vários impressionistas, e até
(em sua fictícia fase juvenil) do simbolista Gustave Moreau. Entre as obras da
coleção Guermantes, uma figura retratada em dois quadros chama a atenção de
Marcel. Na primeira tela, o homem aparece de fraque e cartola em um salão; na
segunda, de casaca e cartola, “numa festa popular à beira d’água”. Kazuyoshi
Yoshikawa, estudioso das obras de arte no romance de Proust, ainda que com
argumentos que não me parecem conclusivos, reconhece no primeiro quadro um
retrato de Charles Ephrussi pintado em 1895 por Léon Bonnat, um retratista da
moda. Quanto ao segundo, é opinião unânime que Proust tenha se baseado
livremente no ​Almoço dos Remadores​. A descrição que o escritor faz desse quadro –
ou melhor, da variante que ele próprio elabora a partir dele – é uma das leituras mais
sensíveis das cenas populares de Renoir, capaz de dissolver toda pátina de
banalidade com que o tempo possa ter recoberto sua obra, mas é também, como
quase sempre acontece quando Proust descreve um quadro, uma declaração pessoal
de poética. Cito o trecho na tradução de Mário Quintana:

Aquela festa à beira-rio tinha qualquer coisa de encantador. O rio, os vestidos das
mulheres, as velas dos barcos, os reflexos inumeráveis de uns e outras achavam-se
em vizinhança naquele quadrado de pintura que Elstir havia recortado de uma
tarde maravilhosa. O que encantava no vestido de uma mulher que deixara um
momento de dançar por causa do calor e da sufocação era igualmente cambiante, e
da mesma maneira, no pano de uma vela parada, na água do pequeno porto, no
pontão de madeira, nas folhagens e no céu. Da mesma forma, num dos quadros que
eu tinha visto em Balbec, o hospital, tão belo sob o céu de lápis-lazúli como a
própria catedral, parecia, mais atrevido que o Elstir teórico, que Elstir homem de
gosto e enamorado da Idade Média, clamar: “Não há gótico, não há obra-prima, o
hospital sem estilo vale o glorioso portal.” Da mesma forma, eu ouvia: “A dama um
tanto vulgar que um diletante em passeio evitaria olhar, excluiria do quadro
poético que a natureza compõe diante dele, essa mulher é bela também, seu vestido
recebe a mesma luz que a vela do barco, e não há coisas mais ou menos preciosas, o
vestido comum e a vela por si mesma linda são espelhos do mesmo reflexo; todo o
valor está no olhar do pintor.” Pois bem, este soubera imortalmente deter o
movimento das horas naquele instante luminoso em que a dama sentira calor e
deixara de dançar, em que a árvore estava cercada de um contorno de sombra, em
que as velas pareciam deslizar sobre um verniz de ouro. Mas justamente porque o
instante pesava sobre nós com tamanha força, aquela tela tão fixa dava a
impressão mais fugitiva, sentia-se que a dama ia em breve voltar-se, os barcos
desaparecerem, a sombra mudar de lugar, a noite descer, que o prazer acaba, que a
vida passa e que os instantes, mostrados ao mesmo tempo por tantas luzes que se
lhes avizinham, não tornamos a encontrá-los.

N​o quadro de Elstir/Renoir, como na prosa de Proust, é na anedota à primeira vista


irrelevante que se encontra o significado universal, o gesto pequeno é que se eterniza.
E a operação que extrai de detalhes banais seu sentido profundo consiste justamente
em suspender o tempo em que tudo transcorre, numa representação imóvel (ou pelo
menos, na prosa de Proust, em câmara lentíssima) daquilo que é efêmero. Mas,
mesmo nesse encantamento ecumênico, em que as pessoas e as coisas, não importa
se sublimes ou vulgares, são irmanadas pelo pertencimento a um mesmo instante
que a tela transforma numa totalidade fora do tempo, mesmo aí o homem de casaca e
cartola destoa. Marcel se interroga sobre quem poderia ser: um amigo, talvez um
protetor, como antigamente os contemporâneos notáveis que os pintores
renascentistas costumavam incluir em suas histórias sagradas. À mesa, pergunta ao
duque a identidade daquela figura. A resposta é reticente:

[…] “​sei que é um homem que não é um desconhecido nem um imbecil na sua
especialidade, mas confundo os nomes. Tenho-o na ponta da língua, senhor…
senhor… enfim, pouco importa, não sei mais. Swann lhe diria isso, foi ele quem fez
com que a senhora de Guermantes comprasse essas coisas, ela que é sempre muito
amável e tem muito medo de contrariar se recusa o que quer que seja; entre nós,
creio que ele nos impingiu umas porcarias. O que posso dizer é que esse cavalheiro é
para o senhor Elstir uma espécie de Mecenas que o lançou, e muita vez o tirou de
dificuldades, encomendando-lhe quadros. Por gratidão, se chama a isso gratidão,
depende dos gostos, ele o pintou naquele lugar onde, com o seu olhar endomingado,
ele causa um efeito bastante cômico. Pode ser um medalhão muito importante, mas
ignora evidentemente em que condições se usa uma cartola.​ ”

O nome do célebre Charles Ephrussi emperra na língua do duque de Guermantes


para dar lugar ao de Swann, a quem Ephrussi serviu de modelo. É Swann quem
convence a duquesa a adquirir os quadros de Elstir e até a lhe encomendar um
retrato – tal como Ephrussi convenceu os Cahen d’Anvers. Reticências sempre dão o
que pensar. É possível que Renoir quisesse prestar homenagem a seu poderoso
mecenas, como Proust sugere, sem envolvê-lo numa promiscuidade excessiva. E o
pudor de Renoir se desdobra no pudor de ​Em Busca do Tempo Perdido,​ desta vez
por meio do desdém do senhor de Guermantes. Ephrussi permanece entre os
quadros de Elstir, a salvo da feira de vaidades a que se reduz o jantar da duquesa, na
sala afastada onde Marcel o contemplou em duas obras. Ele não tem nome no
romance, assim como, retratado de costas, não tem rosto no quadro de Renoir.

Mas o respeito é também uma forma de distanciamento: Charles Ephrussi é bem


recebido no círculo boêmio, que afinal conta com ele. Mas não é um deles. Charles
Swann também circula com desenvoltura em todos os ambientes (a família burguesa
de Marcel, o salão dos novos ricos Verdurin, as recepções principescas), mas não
pertence a nenhum deles. Qualquer deslize (como será seu mau casamento) pode
levar não a um afastamento declarado, mas a uma tomada de distância, que o
próprio Swann, com sua atenção costumeira às convenções, aceita e cultiva. Parece
​ adesão,
fazer parte do destino trágico das grandes dinastias judias do ​fin de siècle a
amiúde levada até o entusiasmo, às mesmas convenções que acabam por excluí-las. A
cartola no balneário talvez seja o primeiro rastro, o primeiro ato falho da
incongruência ainda encoberta que procuro desvendar.

A​casaca e a cartola de Ephrussi, porém, não são apenas indícios de uma integração
social mal resolvida. Há outra costura, esta estética, que está sendo difícil de realizar:
entre fidelidade mimética e técnicas de representação, realismo e equilíbrio formal,
algo definitivamente se rompeu. Lembremos como Zola, em seu romance ​A Obra,​
descreve a pintura ​Plein Air (​ ​Ao Ar Livre)​ , do protagonista Claude Lantier, paráfrase
com variações de ​Le Déjeuner sur L’Herbe (​ ​O Almoço na Relva​), de Manet: no fundo
de uma clareira, duas mulheres (e não uma, como em Manet) brincam num espelho
d’água; à meia distância repousa uma mulher nua, deitada e de olhos fechados; em
primeiro plano, um homem de casaco marrom (e não dois, como em Manet). Assim
Zola explica a presença desta personagem: “Como, no primeiro plano, o pintor
precisava de um contraste preto, considerou-se satisfeito ao colocar aí um senhor
vestindo um simples casaco de veludo. Esse senhor estava de costas, e dele só se via a
mão esquerda, sobre a qual se apoiava na grama.” Utilizara o mesmo argumento em
1867, no artigo dedicado a Manet para a ​Revue du XIXe​ ​ Siècle:​ o público se
equivocara ao atribuir uma intenção obscena à combinação de uma mulher nua e
dois homens vestidos, no grupo principal de ​O Almoço na Relva​, uma vez que “o
artista procurou apenas oposições vivas e massas generosas”. Com certeza,
justificativas desse tipo eram compartilhadas pelos artistas próximos a Zola. Fazem
parte da transformação do tema em motivo, já referida – transformação, aliás,
defendida repetida e explicitamente nos depoimentos tardios de Renoir ao filho e a
Vollard. O que conta, para um pintor moderno, é a coerência do quadro enquanto
unidade formal, não a da cena que ele descreve.

Mas por que deveriam divergir? Questões de equilíbrio cromático são corriqueiras na
pintura desde, pelo menos, o tonalismo veneziano do século XVI; até Manet, porém,
elas nunca obrigaram os artistas a renunciar às convenções narrativas. Agora, ao
contrário, os diferentes códigos da representação (o equilíbrio formal, a legibilidade
da história, a expressão imediatamente compreensível dos afetos) deixaram de
coincidir entre eles, de convergir para um resultado único. O que está em jogo em ​O
​ e Manet, não é apenas um equilíbrio de cores, e sim a
Almoço na Relva, d
impossibilidade de compromisso entre a nova aspiração ao realismo e os gêneros
tradicionais, que só podem ser recuperados por justaposição e contaminação, como
numa colagem – alusão mitológica no grupo central, inspirado em Rafael; quadro de
gênero para as personagens modernas; natureza-morta embaixo, à esquerda.
Acredito que Manet tivesse consciência de quanto tal contaminação erodia barreiras
de segurança, convencionalmente estabelecidas: entre nu clássico e pornografia, por
exemplo; entre presença quase tátil dos objetos e platitude do tratamento pictórico
(talvez já mediada pela experiência da fotografia); entre vida moderna e tradição
figurativa. Não foi buscando apenas contrastes de cores e de massas que o artista
enfrentou o escândalo de ​O Almoço na Relva​, e ainda mais o de ​Olympia.​

No entanto, as questões formais que Zola levantava faziam sentido, preenchiam os


vazios que o abalo das convenções deixava a descoberto. As novas poéticas brotavam
nas frestas de relações sociais rachadas, mas ainda em vigor. A casaca preta de
Ephrussi, em ​O Almoço dos Remadores​, pode ser justificada por razões tonais: em
contraste com a regata branca do homem sentado em primeiríssimo plano, no canto
inferior direito do quadro, marca o limite último do grupo (a mancha marrom de
Laforgue, atrás dele, já quase se confunde com as árvores). Quatro personagens
intermediárias (duas mulheres e dois homens) graduam cromaticamente a transição
e formam uma diagonal que, junto com a diagonal oposta do parapeito, estabelece os
eixos composicionais do quadro. Dessas quatro figuras, uma é apenas o perfil de um
rosto masculino, espremido entre o casaco de Ephrussi e um outro, creme, do
homem em pé atrás da primeira mesa (o jornalista Adrien Maggiolo). Narra a lenda
que seria um autorretrato, e que Renoir o teria acrescentado já em fase avançada,
quando percebeu que sem ele os comensais seriam treze, número de azar. Sem esse
perfil, o contraste de claros e escuros seria ainda mais acentuado, e Ephrussi estaria
jogado ainda mais para o fundo. Mas não deixa de instigar essa aparição tão tímida
do artista (se é que o retratado é ele), apenas esboçado, espremido entre a presença
espalhafatosa de jornalistas e modelos e seu presente/ausente mecenas.

​ phrussi
A rede de relações, porém, é mais densa. Se ​Em Busca do Tempo Perdido E
serviu de modelo para Swann, é corrente entre os pesquisadores que sua amante,
Louise Cahen, contribuiu para definir a figura de Odette de Crécy, amante e depois
mulher de Swann. Não pelo status social – Louise sempre foi riquíssima, enquanto
Odette tem um passado de ​demi-mondaine –,​ mas por certos traços físicos e
posturas. A respeito de Louise, Edmond de Goncourt escreve, numa entrada de seu
diário, em fevereiro de 1880:

Os judeus conservam, de sua origem oriental, uma especial displicência. Hoje eu


acompanhava encantado os movimentos de gata preguiçosa com os quais Mme.
Louise Cahen pescava do fundo de uma vitrine suas porcelanas e lacas, para
colocá-las em minhas mãos. Quando as judias são loiras, em seu loiro há um fundo
como o ouro da pintura da amante de Ticiano. Concluído o exame, a judia se largou
sobre uma espreguiçadeira; e, deixando cair a cabeça de lado e mostrando, em
cima dela, um emaranhado de cabelos semelhante a um ninho de serpentes,
queixou-se indolente, com toda sorte de interrogação divertida no rosto e na ponta
do nariz, dessa pretensão dos homens e dos romancistas que exige que as mulheres
não sejam criaturas humanas e não tenham no amor as mesmas fraquezas e os
mesmos desgostos dos homens.

E assim Proust descreve o surgimento da paixão de Swann por Odette:

Estava um pouco adoentada; recebeu-o com um ​peignoir​ de crepe da China de cor


malva e tinha no colo, à guisa de abrigo, um estofo ricamente bordado. De pé ao
lado de Swann, deixando pender ao longo das faces os cabelos soltos, dobrando
uma perna em leve atitude de dança para poder curvar-se sem fadiga sobre a
gravura que estava mirando, de cabeça inclinada, com os seus grandes olhos tão
cansados e inexpressivos quando nada a excitava, ela impressionou a Swann por
sua presença com aquela figura de Céfora, a filha de Jetro, que se vê num afresco
da Capela Sistina. ​[…]​ Não mais apreciou o rosto de Odette segundo a melhor ou
pior qualidade de suas faces ou a suavidade puramente carnal que lhes supunha
encontrar nos lábios, se jamais ousasse beijá-la, mas sim como uma meada de
linhas sutis e belas que seus olhares dobravam, seguindo a curva de seu
enrolamento, ligando a cadência da nuca à efusão dos cabelos e à flexão das
pálpebras, como num retrato dela em que seu tipo se tornava inteligível e claro.​

Há coincidências suficientes para pensar num empréstimo, por parte de Proust, ou


pelo menos numa memória involuntária: os objetos orientais (o ​peignoir c​ hinês de
Odette, as porcelanas e lacas de Louise); a mulher que se debruça (sobre a gravura,
sobre as porcelanas); o movimento sedutor da cabeleira; finalmente, a analogia com
uma pintura: Louise lembra a Goncourt uma modelo que aparece em vários quadros
atribuídos a Ticiano (Flora, Salomé, Violante) e que se supunha amante do pintor;
Odette lembra a Swann a Céfora do afresco ​As Provações de Moisés​, de Botticelli.
Descontadas as diferenças de estilo, a semelhança entre Violante e Céfora é suficiente
para que possam ser comparadas a uma mesma pessoa: lineamentos delicados, pele
diáfana, cabelos amarelo-palha. Traços análogos se encontram no retrato que
Carolus-Duran, um pintor bastante prestigiado na época, realizou de Louise em
meados da década de 1870.

Antissemita extremado, Goncourt não consegue disfarçar, sob um tom de aparente


superioridade, o medo de ser paralisado pela ticianesca Louise, judia-medusa, cabeça
de serpente. Proust domina melhor os códigos da sedução, com todas as suas
mediações artísticas e literárias. Mas tudo indica que a mulher seja a mesma.

Louise começa a namorar Charles Ephrussi já casada, com quatro filhos. Contava-se
que, terminado o ​affaire,​ ela teria sido amante, em 1902, de Afonso XIII, rei da
Espanha, embora a união pareça improvável: à época, Louise tinha 57 anos, e Afonso
apenas 16. Essa intensa vida amorosa não a impediu de se manter firme no
casamento, do qual teve mais um filho durante o caso com Ephrussi. Ela descendia
da família Morpurgo, riquíssimos judeus sefarditas de Trieste, fundadores da maior
companhia de seguros da Itália, a Assicurazioni Generali. Seu marido era Louis
Cahen d’Anvers. Era a mãe das duas meninas de ​Rosa e Azul.​

O​s Cahen tinham fama de arrogantes. A alta sociedade francesa não lhes perdoava a
ostentação de um título de nobreza estrangeiro (o patriarca da família, Meyer-Joseph
Cahen, foi feito conde pelo rei do Piemonte-Sardenha em retribuição ao apoio
financeiro à primeira guerra italiana de independência); tampouco perdoava o uso do
topônimo d’Anvers, prerrogativa proibida aos judeus por uma antiga lei; e ainda
menos perdoará a aquisição, em 1895, do Château de Champs-sur-Marne, que
pertencera a uma filha de Luís XIV e fora moradia de veraneio de Madame de
Pompadour – um sinal explícito, para muitos, da ambição judaica de se substituir à
aristocracia castiça. Floresciam trocadilhos sobre as pretensões aristocráticas dos
Cahen: ​comtes à l’envers​ (condes ao contrário), ​comtes courants ​(trocadilho entre
condes e contas-correntes).
Nem a comunidade judaica apreciava essa húbris incontida. Conta-se que o velho
Meyer Joseph teria desistido de assinar “C. d’Anvers” quando o banqueiro
Oppenheim, estabelecido em Colônia, respondeu ironicamente com um “O. de
Cologne” (que em francês soa como “água de colônia”). Em 1881, na versão impressa
do discurso pronunciado nas exéquias do patriarca, o grão-rabino de Paris fez
questão de colocar o “d’Anvers” entre parênteses. As grandiosas recepções dos
Cahen, às quais se dignavam comparecer membros das famílias reais da Europa
inteira (Espanha, Sérvia, Grã-Bretanha), além da imperatriz Eugênia, viúva de
Napoleão III e amiga pessoal de Louise, também eram criticadas pelo excesso de
luxo: muita ostra, muita orquídea, muito ouro. Isso não impedia, naturalmente, que
todos fizessem questão do convite, e que o jornal mundano ​Le Gaulois ​as comentasse
extensivamente.

Quanto dessas festas entrou na descrição proustiana da ceia na casa Guermantes,


onde Marcel contempla os quadros de Elstir? Não descobri nenhum indício de que
alguma vez Proust tenha sido convidado para aqueles banquetes, nem que Louise
possa ter servido de modelo para Oriane, a duquesa de Guermantes, como o foi para
Odette. É verdade que, na opinião comum, outra grande dama judia – Geneviève
Halévy, filha do compositor de ​La Juive​ e mulher de Émile Straus, advogado dos
Rothschild – serviu de inspiração para a duquesa, mas isso não relaciona
necessariamente Oriane a Louise. Mesmo assim, me parece razoável supor que a
relação que liga Elstir, Swann e Oriane seja calcada na que ligou Renoir, Ephrussi e
Louise, ainda mais pela alusão indireta ao ​Almoço dos Remadores​.

Nos escritos de Proust, encontrei apenas uma referência explícita a Ephrussi, numa
crônica mundana de 25 de fevereiro de 1903, depois incluída nos ​Salões de Paris:​

Bonnat observa-o com esse olhar bondoso que brilha diante da bela pintura [​ um
retrato da princesa Matilde por Ernest Hébert]​ e troca reflexões de especialista com
Charles Ephrussi, diretor da ​Gazette des Beaux-Arts​, autor do belo livro sobre
Albrecht Dürer, mas em tom tão baixo que as pessoas mal os ouvem​.

Parece que o diretor da ​Gazette s​ ó pode aparecer apagado: de costas no quadro de


Renoir, com o nome esquecido em ​O Caminho de Guermantes,​ quase inaudível aqui.
De resto, é um traço que combina com a extrema discrição característica de Swann,
pelo menos até o casamento com Odette. Como vimos, Bonnat pintou um retrato de
Ephrussi, talvez modelo de um quadro que Marcel vê na casa dos Guermantes. É
também autor de um delicado desenho da cabeça de Louise Cahen, realizado a
pedido de Ephrussi.

Sobre Louise, salvo uma alusão fugidia nos ​Salões de Paris​, pela qual apenas ficamos
sabendo que a ​exquise (​ deliciosa? refinada?) madame Cahen era amiga da condessa
Potocka, há uma anotação que destaca sua atitude altiva no assim chamado ​Carnet I
de 1908, um conjunto de anotações para ​Em Busca do Tempo Perdido​: “Mulheres
idosas (Cahen) que não mandam cartões de visitas às jovens, enquanto Mme. Émile
Halphen…”

E só. Mas podemos levar mais adiante o jogo de alusões, apenas a título de
experimento: se Ephrussi foi um dos modelos de Swann, e Louise Cahen d’Anvers, de
Odette, a menina loira do quadro, Elisabeth, não poderia ser uma fonte para
Gilberte? Elisabeth certamente não era filha de Ephrussi, e a intimidade de Proust
com a família Cahen devia ser escassa. Mas a idade bate: se o Marcel de​ Em Busca do
Tempo Perdido ​tinha a mesma idade de Proust, que é de 1871, Elisabeth, nascida em
1874, seria quase sua coetânea. E, ao ler o trecho que descreve Gilberte ou, melhor, a
lembrança de Gilberte por Marcel apaixonado, quase no fim de ​O Caminho de
Swann​ – “​se desde a véspera trazia eu na memória dois olhos vivos em faces cheias
e brilhantes, o rosto de Gilberte me oferecia agora com insistência alguma coisa de
que precisamente não havia me lembrado, certo afilamento do nariz que,
associando-se instantaneamente a outros traços, tomava a importância desses
caracteres que em história natural definem uma espécie, e transmutava-a numa
menina do gênero das de focinho pontudo”​ –, não posso evitar associá-lo à
expressão viva e espirituosa e à junção de faces rechonchudas e focinho pontudo, que
agora me parece estrutural no rosto da menina de ​Rosa e Azul​.

Se Gilberte casou com Saint-Loup, Elisabeth passou por dois casamentos igualmente
infelizes com membros da aristocracia, casamentos que muito provavelmente
deveriam garantir a plena integração dos Cahen na alta sociedade francesa, como o
de Gilberte garantiria a dos Swann, enquanto, poucos anos antes, o casamento da
irmã mais velha, Irène, como logo veremos, selava a aliança com outra importante
família judia, os Camondo. E é irônico pensar que, ao fugir do casamento e se
converter ao catolicismo por amor a um obscuro aventureiro, Irène, a que deveria
garantir a continuidade da família na tradição judaica, tenha escapado da
perseguição, enquanto foi justamente Elisabeth, a destinada a integrar a nobreza gói,
que se tornou vítima dela. Por inconsistente que seja o paralelo, ele traz consigo a
constatação de que se Gilberte, como qualquer personagem de ficção, não tivesse
desaparecido junto com seu autor, ela poderia ter morrido em Auschwitz. É outra
variante da relação complexa que as obras de arte entretêm com a história, dessa vez
por mediação de outra obra: pintado quando Proust tinha 10 anos, ​Rosa e Azul,​
graças a uma identificação talvez improvável, mas possível, prolonga ​Em Busca do
Tempo Perdido ​para a tragédia que seu autor não chegou a presenciar, mas que de
certa maneira pressentira na viagem ao fim da noite da primeira parte de ​O Tempo
Redescoberto​.

V​amos então à história de Irène. Em um curto período, Renoir pintou três retratos
de membros da família Cahen d’Anvers. Um dele, hoje no Paul Getty Museum, em
Los Angeles*, foi feito em 1881 e representa Albert Cahen d’Anvers, compositor de
algum renome e tio paterno de Elisabeth. Um ano antes, porém, Renoir já realizara o
retrato da filha mais velha de Louise e Louis Cahen. Conhecido também como ​A
Menina da Fita Azul ​(​Portrait de Mademoiselle Irène Cahen d’Anvers​), é um quadro
famoso, não apenas pela qualidade pictórica, como pelo charme da garota de então 8
anos, enormes olhos azuis e uma cascata de cabelos castanho-arruivados que lhe
​ e delicadas
recobre inteiramente os ombros e permite a Renoir um ​tour de force d
transições cromáticas. Os cinéfilos devem se lembrar dele: está no pôster que Jean
Seberg cola na parede do banheiro, quase um ​alter ego​ de seu charme delicado, no
quarto de hotel onde se encontra com Jean-Paul Belmondo, em ​Acossado,​ de
Jean-Luc Godard (“Gosta deste pôster?”; “Acha que ela é mais bonita do que eu?”).

Aos 19 anos, em 1891, a linda Irène casa com o banqueiro Moïse de Camondo, doze
anos mais velho e caolho por um acidente de caça. Leva o quadro consigo. Com
Moïse tem dois filhos, Nissim e Béatrice, mas o casamento entra em crise quando ela
se apaixona por Charles Sampieri, um conde italiano com fama de aventureiro que
cuidava dos estábulos dos Camondo. Casos extraconjugais nunca tinham sido um
problema em ambas as famílias, mas Irène faz questão de se divorciar. Em 1902,
converte-se ao catolicismo e se torna a condessa Sampieri.

O quadro fica com Moïse até 1918, ano do casamento da filha Béatrice com León
Reinach, descendente de outra grande família judia e filho do famoso helenista
Théodore Reinach. Béatrice leva o quadro consigo. O irmão Nissim já morrera
heroicamente na Primeira Guerra Mundial. O pai lhe dedicará um museu, que ainda
hoje abriga sua coleção de obras e peças de antiquário francesas do século XVIII.

Béatrice e Léon tiveram dois filhos, Fanny e Bertrand. Na época da ocupação alemã,
já estavam divorciados. O retrato de Irène foi confiscado pelas tropas alemãs junto
com outras obras de colecionadores judeus que tinham sido confiadas aos museus
nacionais da França. Léon Reinach chegou a reclamar junto ao diretor da Réunion
des Musées Nationaux, na França, lembrando as muitas doações feitas pelas famílias
Cahen e Camondo e, inoportunamente, o papel heroico de Nissim na Primeira
Guerra contra os alemães. Béatrice, Léon, Fanny e Bertrand foram deportados para
Auschwitz entre 1943 e 1944 e morreram logo depois.

Irène, como já disse, foi poupada. Ao fim da guerra era, pelo primeiro casamento, a
única remanescente dos Camondo e uma das poucas Cahen d’Anvers ainda vivas. No
verão de 1946, por ocasião da mostra ​Obras-Primas das Coleções Francesas
Recuperadas na Alemanha e na Suíça,​ organizada pelos Aliados no Museu da
Orangerie, ela reconheceu seu retrato e reivindicou a restituição. Poucos anos depois,
porém, assoberbada por dívidas de jogo, vendeu-o ao industrial e colecionador
alemão, naturalizado suíço, Emil Georg Bührle. Depois da morte do industrial, em
1956, a viúva e os filhos criaram em 1960 a Fundação Bührle, em Zurique, onde está
depositada grande parte de sua coleção, incluindo o retrato de Irène.

Mas a história é mais complicada e mais obscura: Bührle fabricava armas,


principalmente para a Wehrmacht, o Exército alemão. Sua coleção foi formada
durante a guerra, sobretudo graças à amizade com Goering – que, como se sabe, foi o
principal beneficiário do comércio das obras saqueadas nos países ocupados. Depois
da guerra, o colecionador foi obrigado a devolver treze telas. O retrato de Irène
estaria entre elas? Ou ele teria apenas recomprado o que já lhe pertencera? É o que
defende Pierre Assouline em seu livro ​Le Dernier des Camondo [​ ​O Último dos
Camondo​], e encontro a mesma afirmação em muitos sites.

Um deles, porém, apresenta uma reconstrução alternativa: o quadro teria ficado com
Goering, que o teria obtido de Gustav Rochlitz – galerista alemão residente em Paris
–, dando em troca um tondo florentino não identificado. Em 1975, o governo
americano tornou pública toda a documentação relativa à famosa Art Looting
Intelligence Unit (Aliu), unidade de investigação sobre arte saqueada (que inspirou o
filme ​Caçadores de Obras-Primas,​ de George Clooney). Hoje, ela está disponível na
internet. No relatório “Activity of the Einsatzstab Reichsleiter Rosenberg in France”,
de agosto de 1945, existe de fato uma referência à troca realizada em 10 de março de
1942 entre Rochlitz e as autoridades alemãs, na qual o galerista teria recebido quatro
telas (dois Matisses, um Modigliani e o Renoir que o documento cita como ​Portrait
of a Girl)​ contra a cessão do tondo. Segundo o interrogatório a que foi submetido em
1945, Rochlitz teria vendido um Matisse e ficado com os demais até o fim da guerra.
O retrato de Renoir ainda estaria, na época, em sua residência em Hohenschwangau,
na Alemanha.
A Einsatzstab Reichsleiter Rosenberg (Força-tarefa do Reichsleiter Rosenberg, cuja
sigla é ERR) foi uma organização liderada pelo ideólogo do partido nazista Alfred
Rosenberg, principal responsável pelas teorias raciais do regime, com o intuito de
“coletar” bens culturais nos países ocupados. Inicialmente, esses bens se destinariam
a um centro de estudos do Partido Nazista e a instituições alemãs, como o planejado,
mas nunca realizado, Museu do Führer, em Linz. O projeto, no entanto, foi
desvirtuado pela ingerência de Goering, que dele se aproveitou para criar uma
enorme coleção pessoal (1 375 pinturas, 250 esculturas, 108 tapeçarias, 200 peças de
mobiliário, 60 tapetes persas e franceses, 75 vitrais e 175 objetos de arte, segundo o
relatório da Aliu) e enriquecer a si e a seus colaboradores comerciando o restante.

As obras impressionistas e em geral toda a arte moderna constituíam um problema à


parte: enquanto “arte degenerada”, elas não podiam ser incluídas nas coleções
alemãs, nem comercializadas diretamente pelos agentes de Goering. Por outro lado,
eram obras que se valorizaram enormemente durante a guerra. Criou-se então um
sistema de intermediários pró-forma – marchands coniventes que recebiam um
número expressivo de obras modernas valiosas em troca de uma quantidade muito
menor de obras antigas, anônimas ou de pequenos mestres, muitas vezes
enobrecidas por atribuições extravagantes. Em seguida, esses marchands vendiam as
obras modernas no mercado privado, dividindo o lucro com os oficiais e funcionários
alemães que intermediaram a troca. Rochlitz era um desses marchands: seu primeiro
grande negócio foi receber da ERR onze obras modernas (um Braque, um Corot, um
Cézanne, um Degas, três Matisses, dois Picassos, um Renoir e um Sisley) em troca de
um retrato atribuído a Ticiano e uma cena de caça de Jan Weenix, pintor holandês do
fim do século XVII.

No relatório da Aliu estão anexadas duas cartas de funcionários da ERR


recomendando encarecidamente a realização imediata da troca, que seria de extrema
valia para os museus alemães. Em suas considerações finais, o oficial dos Aliados que
interrogou Rochlitz não foi da mesma opinião e recomendou sua prisão por crimes
de guerra.

Ao que tudo indica, portanto, ​A Menina da Fita Azul f​ icou com Rochlitz até o fim da
guerra. Bührle não teria sido seu proprietário antes de adquiri-la de Irène Sampieri,
como defende Assouline. Mas tanto faz. Ele era um dos receptadores que compravam
quadros impressionistas de marchands como Rochlitz, e continuou comprando, após
a guerra, dos herdeiros falidos da antiga elite judaica. É o que diz um relatório da
Aliu: “BÜHRLE, Emil: Alemão residente na Suíça há vinte anos e nacionalizado
suíço. Proprietário da fábrica de armas Oerlikon e na lista negra desde o início da
guerra. HOFER entrou em contato com ele através de WENDLAND, que o visitou
para adquirir pinturas para a coleção dele. Em 1942 visitou Paris e adquiriu pinturas
de DEQUOY, duas das quais foram enviadas à Suíça por Goering via mala
diplomática. HOFER diz que Bührle comprou pinturas francesas confiscadas só após
ter a garantia de que isso seria perfeitamente legal.”

A exigência de “legalidade” talvez seja o detalhe mais sinistro desse resumo. Walter
Andreas Hofer era o principal agente de Goering nesse sistema de trocas de obras
modernas. Hans Wendland o assessorava para o mercado suíço. Roger Dequoy era
um marchand francês ligado ao esquema. O relatório final do Aliu repete mais ou
menos as mesmas informações, acrescentando: “Importante receptor de obras
saqueadas.” A polêmica sobre a origem da coleção Bührle ressurge ciclicamente – a
última vez foi em 2015, quando se decidiu que parte dela seria hospedada num
museu público, o Museu de Belas-Artes de Zurique, numa nova ala a ser inaugurada
em 2020. O grosso da coleção permanecerá na casa do magnata, transformada, como
vimos, em fundação. Não sei onde ficará Irène.

A​história de ​Rosa e Azul​. Inicialmente, Renoir deveria pintar três quadros, um para
cada menina Cahen d’Anvers. Mas os pais não devem ter gostado muito do retrato de
Irène, pois decidiram reduzir o resto da encomenda a um retrato duplo. Tampouco
gostaram deste, e as duas telas ficaram relegadas aos quartos dos criados: ​A Menina
​ té o casamento de Irène, como vimos; o retrato de Alice e Elisabeth até
da Fita Azul a
1900, quando foi exposto pela primeira vez na Galerie Bernheim-Jeune, em Paris. O
texto do catálogo do Masp, escrito por Eugênia Gorini Esmeraldo, nos informa que
os galeristas, seguindo indicação do próprio Renoir, encontraram o quadro
“aparentemente esquecido, no 6° andar de uma casa da avenida Foch” (que então se
chamava avenida do Bois de Boulogne). Com efeito, nos edifícios de luxo, o 6° andar
era reservado aos aposentos dos criados. O texto não menciona o proprietário da casa
(o único endereço dos Cahen d’Anvers que achei é da época em que o retrato foi
realizado: avenida Montaigne, 66). Porém, há na internet uma lista de obras –
redigida por ocasião de um empréstimo do Masp à Fundação Pierre Gianadda, na
Suíça, em 2014 – na qual se encontra uma informação mais precisa: o quadro foi
adquirido da própria senhora Cahen d’Anvers, em 14 de janeiro de 1909, por um dos
proprietários da galeria, Gaston Bernheim de Villiers. Exposto de novo em 1913,
passou a fazer parte da coleção particular de Villiers, até ser vendido para um
colecionador americano, Sam Salz Daber. Em seguida foi posto em leilão na galeria
Wildenstein, em Nova York, onde o Masp o adquiriu, em 7 de julho de 1952. Dessa
vez, o percurso é limpo.

Foi na exposição da Bernheim-Jeune em 1900 que a obra recebeu pela primeira vez o
nome ​Rosa e Azul​. Na ocasião, tanto Elisabeth quanto Alice já tinham se casado
(Elisabeth em 1896, Alice em 1898) e evidentemente nenhuma das duas manifestou
interesse em levar o quadro consigo. Talvez o título tenha sido ditado por certa
reserva em expor numa galeria comercial – e quem sabe colocar à venda – um
retrato de família de uma dinastia tão poderosa. Mas, com isso, a identidade das
meninas desaparece: o tema se torna motivo, e o título da obra sugere que Elisabeth
e Alice sejam lidas como estudo de cor, do mesmo gênero das “massas generosas” de
O Almoço na Relva,​ conforme a leitura de Zola. A história, no entanto, parece ter
sido outra.

Renoir não deve ter gostado do corte na encomenda. Muito menos do atraso de mais
de um ano no pagamento (1 500 francos, como o retrato de madame Charpentier,
mas dos Cahen d’Anvers talvez Renoir esperasse mais). Com o insucesso do segundo
retrato, que no entanto foi exposto no Salon de 1881, sua tentativa de se firmar como
retratista da elite judaica fracassara definitivamente. Mesmo na velhice, ele não
escondia o ressentimento por esse malogro, inclusive com tiradas antissemitas, como
aquela em que, em conversas com Ambroise Vollard, afirma que Gustave Moreau
pintava com cores de ouro “para atrair os judeus” – seguida por uma alusão ácida a
Ephrussi, que no final da vida (morrera prematuramente em 1905) deixara de lado os
impressionistas para colecionar simbolistas. Mas na época em que pintou ​Rosa e
Azul,​ bem que ele havia se esforçado em se adequar ao que imaginava ser a
expectativa de seus clientes. O retrato de Irène já concede algo à tradição, mas em
linhas gerais ainda responde ao gosto impressionista, nem que seja pela ambientação
simples, ao ar livre. Em ​Rosa e Azul​ o quadro de referências muda, remetendo à
pintura do ​Ancien Régime​.

A valorização da pintura francesa pré-revolucionária, em especial do século XVIII, foi


crescente a partir mais ou menos de 1860, quando Philippe Burty, um crítico que
mais tarde apoiará os impressionistas, organizou uma exposição sobre o tema na
Galerie Martinet, em Paris. Edmond de Goncourt e Renoir também foram defensores
apaixonados por esses estilos. É por volta desse momento que Watteau se transforma
numa estrela de primeira grandeza, não apenas entre os pintores, mas em toda a
cultura francesa – “Uma viagem à Citera”, de Baudelaire (1857), e ​Festas Galantes,​
de Verlaine (1869), por exemplo, são títulos inspirados em quadros do pintor.
Tratava-se, fundamentalmente, de uma reação ao neoclassicismo e à sua maneira
“industrial” de proceder por etapas: primeiro o desenho, depois o claro-escuro, enfim
a cor aplicada separadamente, área por área, dentro dos contornos. A isso se opunha
a leveza e delicadeza refinada dos mestres do século XVIII, que resolviam a obra
diretamente no toque do pincel. Em Renoir, orgulhoso de seu pertencimento a uma
classe de trabalhadores manuais, esse interesse renovado era acompanhado de um
grande apreço pelo artesanato francês de outrora, o mobiliário e a manufatura de
objetos, em contraste com a produção industrial de matriz inglesa. Algo parecido
ocorria ao mesmo tempo (ou até um pouco antes) na Grã-Bretanha, com o ​revival
neogótico liderado por John Ruskin, em oposição à arquitetura neoclássica baseada
em módulos repetíveis ao infinito (coluna, capitel, frontão etc.) e, portanto, associada
ao industrialismo.

O gosto pela arte do ​Ancien Régime ​também recebia boa acolhida entre a nova elite
econômica, que nela via ocasião de se identificar com a antiga aristocracia e
reafirmar sua adesão aos valores nacionais franceses. Já citei a aquisição, por parte
dos Cahen d’Anvers, da vila onde Madame de Pompadour passava os veraneios; e a
grande coleção de arte e artesanato do século XVIII de Moïse Camondo, hoje no
museu dedicado ao filho Nissim. Mas ​Rosa e Azul​ não remete aos estilos, afinal já
burgueses, do século XVIII, como ocorre no retrato pintado por Renoir, em 1879, de
Marthe Bérard, filha de um amigo abastado, mas não milionário, que também está
no Masp, e cujas cores delicadas e ambientação simples lembram a pintura de
Jean-Baptiste Chardin ou Lyotard. ​Rosa e Azul​ alude à retratística suntuosa do
século XVII, de Rigaud e Van Dyck. Na aproximação tão explícita entre grande
burguesia do século xix e realeza do século XVII está, me parece, um passo em falso:
em ​Rosa e Azul​, Renoir exagera.

Mais uma vez Marcel Proust nos fornece uma pista, nas páginas iniciais de ​O Tempo
Redescoberto​:

No despertar do amor pela beleza no artista que tudo pode pintar, pela elegância
na qual poderá descobrir motivos tão belos, seu modelo lhe será proporcionado por
gente um pouco mais rica do que ele, junto à qual encontrará aquilo a que não está
acostumado em seu ateliê de homem de gênio desconhecido que vende suas telas
por 50 francos, um salão com móveis forrados de seda antiga, muitas luminárias,
belas flores e belos frutos, belas roupas – gente relativamente modesta ou que
assim pareceria a gente realmente de posse (que nem sequer sabe de sua
existência), mas que por causa disso está mais à altura de conhecer o artista
obscuro, apreciá-lo, convidá-lo, adquirir suas telas, do que pessoas da aristocracia
que se fazem retratar como o papa ou chefes de Estado por pintores acadêmicos. A
posteridade não encontrará a poesia de um lar elegante e de belas toaletes de nosso
tempo no salão do editor Charpentier pintado por Renoir, mais do que no retrato
da princesa de Sagan ou da condessa de La Rochefoucauld, por Cotte ou Chaplin?
[​tradução minha​]

Conhecesse ou não os retratos das meninas Cahen d’Anvers, que poderia muito bem
ter visto nas exposições da Galerie Bernheim-Jeune, a referência ao retrato de
madame Charpentier com os dois filhos (porque, evidentemente, é disso que se trata)
nos permite arriscar uma linha interpretativa. Com efeito, examinados pela
perspectiva de ​Rosa e Azul,​ tanto esse quadro (que atualmente está no Museu
Metropolitan de Arte, em Nova York) quanto o retrato de Jeanne Samary (hoje no
Hermitage, em São Petersburgo) parecem marcar uma progressão. O retrato da
família Charpentier é, por muitos aspectos, encantador, apesar de as crianças já
serem aquelas loirinhas edulcoradas a que Renoir nos acostumou em seguida. A
representação do interior é marcada por uma atenção ao valor cromático e decorativo
de cada detalhe – o tapete, a tapeçaria com motivos japoneses, a mesinha e a cadeira
no fundo – que antecipa Bonnard e até Matisse (talvez via Bonnard), pelo gosto da
justaposição de padrões decorativos. O retrato de Jeanne Samary de corpo inteiro
retoma o jogo de padrões decorativos, ainda que mais homogêneos. Se comparadas à
atmosfera pacata e burguesa do quadro anterior, as tintas são mais encorpadas,
dramáticas. O contraste entre o branco acetinado do vestido e o vermelho escuro do
fundo, denso e aveludado, antecipa algo das relações cromáticas fundamentais de
Rosa e Azul​. Mas aqui tudo funciona melhor, porque Samary é uma atriz, e a
teatralidade do conjunto lhe é congenial. A sensualidade quente do fundo a projeta
para o primeiro plano, oferecida e aparentemente ingênua como uma Marilyn
Monroe do século XIX, o busto inclinado numa postura meio enrijecida que lembra a
garçonete (bem mais misteriosa) de ​Um Bar no Folies Bergère,​ de Manet, mas que
provavelmente depende apenas do uso então corrente de espartilhos. Rigidez, de
resto, que a atriz compensa pela postura estudada dos braços e das mãos, e pela leve
inclinação do pescoço. A atriz veste perfeitamente o quadro, e o quadro a reveste sem
esforço. É certamente um Renoir de aparato, longe tanto da descontração e do
experimentalismo das primeiras aventuras impressionistas quanto da elegância
declaradamente burguesa de madame Charpentier, mas, pelo que posso julgar a
partir de reproduções, ainda é um quadro bem-sucedido.

​ assa do ponto. O domínio da vibração luminosa, que percorre a tela


Rosa e Azul p
inteira sem nunca estancar, numa sucessão constante de transições cromáticas, é
algo que poucos pintores, de qualquer época, poderiam produzir. A sutileza na
elaboração dos diferentes tecidos, dos veludos quentes no fundo ao brilho das sedas e
das rendas no primeiro plano, atesta um conhecimento aprofundado dos mestres
antigos e uma capacidade incomum de traduzi-los para a nova linguagem. Mas o
resultado, até, talvez, por excesso de virtuosismo, soa falso. Não há convicção nas
posturas – a menina mais velha imita um contraposto estilo Luís xiv; a outra traz o
polegar na cintura como um burguês de Frans Hals –, nem credibilidade na
descrição do ambiente. As variações cromáticas que envolvem as meninas, embora
extraordinárias, se tornam, por isso mesmo, gastronômicas: não parecem emanar
das retratadas, como expressões de sua personalidade ou condição, mas
encobrem-nas quase apesar delas, como um creme recobre um bolo. O que se vê,
afinal, são duas meninas fantasiadas de pequenas Madame de Pompadour (a menor,
Alice, lembraria muito mais tarde que o tédio das sessões de pose era compensado
pelo prazer de vestir roupas tão bonitas), num lugar que, até pela convenção barroca
da cortina levantada para mostrar outro ambiente, custamos a acreditar que seja a
casa delas.

E, no entanto, talvez esteja justamente aí a verdade mais profunda da obra, nesse


compromisso malsucedido entre a soberba de uma família no ápice da potência, em
busca de uma integração definitiva no país que a hospeda, e a ambição de um artista
de origem humilde com aspirações burguesas – extremos de uma escala social que se
pretende harmoniosa, ou ao menos permeável, mas que na verdade está prestes a se
romper. Alice e Elisabeth estão no meio disso, aprisionadas entre o brilho excessivo
das roupas e o fundo quente e sombrio, levemente inquietante, com seus veludos
antigos e objetos que mal se distinguem, como entre uma adulação excessiva e uma
hostilidade surda e encoberta. Mal conseguem perfurar esse bloqueio: Elisabeth pelo
sorriso levemente irônico que ainda persiste na fotografia de 1942; Alice, pelo olhar
choroso.

E​m 1882, um ano após Renoir pintar ​O Almoço dos Remadores ​e ​Rosa e Azul,​ a
Union Générale, um banco católico, declarou falência. Embora o processo
demonstrasse a conduta fraudulenta dos administradores, parte da imprensa acusou
grandes famílias judias, em particular os Rothschild e os Ephrussi, de estarem por
trás da bancarrota. Quatro anos mais tarde, o jornalista Édouard Drumont publica o
libelo antissemita ​La France Juive,​ imediato sucesso de vendas. E um jornal sugere
que os Ephrussi estão levando a economia russa à falência, em retaliação aos
pogroms ​de 1881. É o ensaio geral do caso Dreyfus.

O salto para trás do gosto burguês do século XVIII para a onipotência aristocrática
do XVII, a mudança do ar livre e os cabelos soltos de Irène para a cortina de veludo e
as toaletes elaboradas de Alice e Elisabeth são os atos falhos que, depois de
Auschwitz, talvez tenham se tornado o principal motivo de interesse do quadro. As
obras de arte emitem sinais que eram incompreensíveis quando foram feitas, mesmo
​ e Goethe já prefigurasse os desastres ambientais
para seus autores. Talvez o ​Fausto d
dos séculos XIX, XX e XXI; talvez ​Anna Kariênina ​já encenasse a morte de Tolstói
numa estação de trem. Mas só entendemos depois.

[1]​
​Paris muda! Mas nada em minha melancolia/mexeu! Palácios novos, andaimes,
blocos/Antigos bairros, tudo para mim se torna alegoria/E as queridas lembranças
pesam mais que pedra.//Assim, diante do Louvre, uma imagem me oprime/Penso
nos gestos loucos do grande cisne/Como os exilados, ridículo e sublime,/Roído sem
repouso de desejo! E então em vós..​. [tradução minha].

*Na versão impressa, o museu J. Paul Getty Museum foi localizado erroneamente
em Paris.
LORENZO MAMMÌ

Professor de filosofia medieval na USP e autor de ​A Fugitiva: Ensaios sobre Música


e ​O Que Resta: Arte e Crítica de Arte

Você também pode gostar