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sem dúvida, um resultado interessante outros temas relacionados com o passado,


deste livro, é também porque abre pers- sua construção, narração e transmissão.
pectivas complementares. Na medida em Consegue destacar, desenvolver e ques-
que aceitemos que a institucionalidade tionar novas ideias úteis para a com-
formal do Estado somente se expressa em preensão dos processos de construção
configurações sobre as quais incide por da memória e da identidade dos povos
meio das interpretações que os próprios indígenas de hoje em dia, tanto no nível
atores fazem dela, também podemos político quanto no social.
supor que essa institucionalidade for- As sociedades indígenas, não apenas
mal surge de uma interpretação do que na Amazônia andina, mas no nosso mun-
a sociedade espera de suas instituições do conectado e globalizado, se posicio-
coletivas (afinal, os processos políticos nam agora politicamente pela escrita e na
e os valores que estão inscritos “na lei” escrita: escritas cotidianas, burocráticas,
também se constituem em tramas rela- livros escritos ou coescritos pelos mem-
cionais com suas próprias contingências bros da comunidade ou por ela solicitados
históricas e conjunturais). Desta forma, o respondem à necessidade de muitos po-
Estado seria um processo inacabado em vos de escreverem sua cultura, sua tradi-
seus dois extremos: porque a implemen- ção, seu patrimônio, sua memória para
tação de seus enunciados é parcialmente apoiar suas demandas políticas. Além da
contingente, e porque também existem escrita alfabetizada, existem as gravações
contingências na maneira com que são e os filmes realizados e dirigidos pelos
configuradas as pautas que resultam em indígenas; o registro da memória em um
seus enunciados formais. território, na paisagem, em pedras, em
sonhos ou em espaços que são reservató-
rios da memória. Em Tradición, escritura,
patrimonialización (Bilhaut & Macedo
RUBIO, François Correa; CHAUMEIL, Jean- 2012), os artigos evidenciaram o caráter
-Pierre & CAMACHO, Roberto Pineda (eds.). fundamentalmente político da escrita para
2013. El aliento de la memoria: antropolo­ os indígenas. Fora da Amazônia andina,
gía e historia en la Amazonia Andina. Lima/ Macedo mostrou que no caso wayãpi
Bogotá/ Paris: Institut Français d’Études An- (Brasil/Guiana francesa) a escrita, como
dines/ Universidad Nacional de Colombia/ modo de relação, reunia registros comuni-
Facultad de Ciencias Sociales/ Centre Na- cativos diversos, tanto do grafismo wayãpi
tional de la Recherche Scientifique. 518 pp. quanto do registro discursivo próprio da
escrita. Enfim, permitiria a presença, a
realização e o estabelecimento de relações
Anne-Gaël Bilhaut com seres visualmente ausentes.
Centro EREA de LESC (França) Em El aliento de la memoria, vários
textos tratam do uso político da escrita e
El aliento de la memoria: antropología e do escrito na construção ou na invenção
historia en la Amazonia Andina reúne da memória e da identidade – o foco desta
contribuições do congresso “Memória resenha. Identificamos várias maneiras
amazônica nos países andinos” (Bogotá, de usar a escrita e o escrito: como registro
4-6 de maio de 2011), abordando temas ou como objeto ritual; são expressões que
como a construção da memória, o papel funcionam como bases mnemotécnicas
da escrita e do escrito na construção da da memória social, bem como os mitos ou
identidade, a invenção da memória, entre as paisagens, aponta Hugh-Jones.
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Análises da escrita destacam a im- a Casa Arana, a violência – aquela dos


portância do livro como objeto ritual que senhores da borracha e aquela dos pró-
contribuiria com um sistema complexo prios indígenas com as correrias... Em
de intercâmbio ritual que estrutura as uma viagem para “a terra de sua origem”
sociedades do Alto Rio Negro. Neste feita por três anciãos muinane de três clãs
caso, a presença dos livros é resultado de diferentes, com nove jovens, Echeverri
anos de programas educativos e escolares conseguiu distinguir duas maneiras de
que estimulam uma produção escrita de reconstruir a identidade: enquanto os
livros e manuais escolares, associada a anciãos realizavam conversas nos lugares
uma organização política indígena e a mais emblemáticos da violência sofrida
uma produção documental crescente para por seus pais e avós, sem referir essa
redigir as candidaturas à patrimonializa- violência, mas focando nos jovens, apre-
ção de alguns bens culturais, como são sentando-os como a nova geração, esses
as Cidades de Iauarete, num contexto mesmos jovens redigiam seu diário, dese-
descrito por Oscar Calavia no capítulo nhavam esses mesmos lugares, sem levar
por ele desenvolvido. muito em conta o discurso dos anciãos.
A partir de uma reflexão ampla sobre Para o autor, “isto implica tanto modos
as biografias coletadas pelos antropólogos particulares da memória e da consciência
nas regiões orientais da Colômbia, Roberto histórica, como a construção de novas for-
Pineda Camacho salienta a contribuição mas de identidade coletiva” – identidade
para a antropologia da colheita de bio- que se constrói por meio da escrita e da
grafias dos “atores históricos”. Reivindica educação das gerações futuras.
esse trabalho desde o ponto de vista de A relação entre o antropólogo e o in-
um ator histórico contemporâneo, e de sua formante foi destacada em vários artigos.
própria recriação ou invenção do mundo. Este é o caso do texto de Jean-Pierre
Interessa-lhe a construção dessa história Chaumeil (1998), que explica por que seu
e narração. Aponta que existem razões livro Ver, saber, poder “funciona” e como
culturais que impedem os informantes de o informante tornou-se autor, e também
desenvolverem essa capacidade de narrar, como o livro serve de suporte para a me-
que tem, por exemplo, Juan Andoque. mória: Alberto Proaño copiou depois de
Ele deve essa capacidade à sua própria décadas seu próprio desenho e ajeitou-o,
condição de exiliado, à sua experiência da mostrando ao mesmo tempo que se o livro
modernidade e à necessidade de recriar lhe permite lembrar palavras, orações,
histórias pessoais depois da hecatombe da cantos para curar, ele é acima de tudo um
borracha, com a precisão de relembrar os suporte da memória que pode ser alterado
antepassados, ao contrário do que acontece por aquilo que aprendeu desde então.
com muitas sociedades amazônicas que Daí, a aparição do “mundo do senhor
negam seus defuntos. No caso apresentado Deus” na sua cosmologia. O poder do li-
por Pineda, essa reconstrução a partir da vro está relacionado com sua propriedade
biografia parece ser a que permite a sobre- de suporte da memória, uma ferramenta
vivência da memória do grupo como tal e mnemotécnica, especialmente dos can-
é eloquente a respeito das perspectivas de tos. Essa propriedade transformou o livro
pesquisa abertas por meio de um trabalho numa entidade agentiva, que pode ser
mais sistemático sobre biografias, especial- utilizada como um encantamento para
mente depois de traumas coletivos. curar ou para matar (:459).
Para Juan Álvaro Echeverri, os Mui- Sobre o “ser autor”, Chaumeil escreve
nane evitam lembrar a época da borracha, que Proaño não “produziu nenhum texto
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escrito, em troca, utilizou, transformou se sabia quem eram os informantes dos


à sua maneira, como ‘autor’, os escritos antropólogos. A generalização do sistema
dos antropólogos para produzir de algu- educativo nas comunidades indígenas,
ma maneira uma história ou uma obra a formação de professores indígenas e a
pessoal” (:454). Sem ter escrito nenhum constituição política dos dirigentes con-
texto, Proaño consegue se apropriar do tribuíram, aos poucos, para a autonomia
livro Ver, saber, poder, já que ele próprio, de sua expressão.
como informante, produziu a maioria Algumas perguntas surgem sobre essa
dos dados. produção escrita indígena: A quem são
O texto apresentado por Oscar Calavia dirigidos esses textos? Qual é o públi-
sobre os relatos autobiográficos indígenas co? Quem compra esses livros? Quem
propõe várias perguntas: o autor tukano os lê? Pela falha do sistema educativo
Gabriel Gentil, depois de ter publicado nas comunidades indígenas, apesar de
vários artigos e dois livros, nunca encon- valorizarem o escrito, são poucos os indí-
trou um editor para sua autobiografia, genas que podem ler de maneira fluente
apesar de os manuscritos biográficos dos e entendendo o que leem. Quando os
indígenas serem esperados pelas edito- livros são publicados em espanhol ou em
ras. Depois de apresentar uma biografia português, o que pensar do público es-
social de Gentil, lembrando-nos que perado? Em qual língua escrever quando
ele tinha nascido sem pai e de não ter o público procurado é “a minha própria
realizado a iniciação, Calavia indica que comunidade” [...] que não é uma comu-
muitas vezes os escritos indígenas são nidade de leitores? Mas sim, tratando-se
publicados para a coletividade e por ela, de um livro sobre eles, ou escrito por um
por meio da dupla mais comum do pai e deles, muitos vão querer um exemplar
filho, formando um consensus de “pes- e guardá-lo como se fosse o cimento da
soas autorizadas” que representariam a sua tradição. Aqueles que irão comprá-lo
transmissão do saber que pode ser difun- são os universitários, inclusive – talvez
dido. Mas Gentil não tinha a aspiração em primeiro lugar – os antropólogos.
de escrever um livro sobre os Tukano, Estamos interessados nessa escrita, na
como era esperado pelas editoras e pelo estrutura do texto, no conteúdo, mas
público de leitores; tratava-se de um texto também na forma. Interessa-nos confron-
pessoal – outro argumento para não ter tar o que eles escrevem com o que nós
sido publicado. Através desse exemplo, sabemos: como é escrito por eles, com
Calavia pôde distinguir aquilo que é quais palavras e ilustrações. Nós nos
publicado daquilo que não é publicado perguntamos como foi editado o texto
dentro dos escritos indígenas. original e quem o fez. E, enfim, por meio
Os artigos reunidos neste livro tratam dessas perguntas, quem escreveu, quem
da relação entre antropologia, história e participou da escrita, da construção da
memória. A produção de escritos realiza- narração, da construção da memória?
dos por autores indígenas ou apropriados O livro El aliento de la memoria responde
por eles representa um novo campo da a algumas dessas perguntas que faltam
antropologia que ainda falta pesquisar e pesquisar na antropologia amazônica.
analisar como tal. Conforme salientado Esse novo campo da escrita indígena
em vários dos artigos deste livro, a voz dos me parece essencial para entender como
indígenas não se deixava ouvir há déca- agora, no mundo globalizado onde mo-
das atrás: não lhes era passada a palavra, ramos, os povos constroem e manifestam
também não escreviam; muitas vezes não sua identidade.

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