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Do cinismo antigo ao cinismo moderno: O que é racionalidade cínica?

Gabriel Vertulli1

Resumo: Tomando como ponto de partida a definição do cinismo dada por Peter Sloterdijk
em seu livro “Crítica da razão cínica” – isto é, o cinismo como “falsa consciência esclarecida”
– objetivo explorar a retomada dos motivos cínicos que ganham força no iluminismo,
avançam no século seguinte a partir das obras de Nietzsche e passam a ter notoriedade nas
últimas décadas como objeto de estudo com o trabalho do chamado “último” Foucault. A
partir desses autores, viso apresentar uma história do cinismo e compreender o que ficou
convencionalmente conhecido como “racionalidade cínica”.
Palavras-chave: Cinismo. Peter Sloterdijk. Michel Foucault. Historiografia da Filosofia.
Teoria da História.

Abstract: Taking as a starting point the definition of cynicism given by Peter Sloterdijk in his
book “Critique of cynical reason” – that is, cynicism as “false enlightened consciousness” – I
aim to explore the resumption of cynical motives that gain evidence in the Enlightenment,
advance in the next century from the works of Nietzsche and become known in recent decades
as an object of study with the work of the so-called “last” Foucault. From these authors, I
intend to present a history of cynicism and understand what was conventionally known as
“cynical rationality”.
Keywords: Cynicism. Peter Sloterdijk. Michel Foucault. Historiography of Philosophy.
Theory of History.

O que é cinismo? Qual a diferença entre cinismo antigo e moderno? O que é


racionalidade cínica? Essas são algumas das perguntas que perpassam nossa pesquisa. Não
temos a intenção de esgotá-las no espaço que nos é aqui reservado, pretendemos apenas
acenar para possíveis respostas. O nosso ponto de partida é a definição do cinismo dada por
Peter Sloterdijk – o cinismo como “falsa consciência esclarecida”2 – mas não podemos nos
limitar a este primeiro passo, pois acreditamos que uma definição pronta não é capaz de trazer
à tona as diferenças entre cinismo antigo e moderno. Com efeito, objetivamos explorar a

1
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura da Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro (PUC-Rio). CNPq. gabrielvertulli@gmail.com
2
SLOTERDIJK, Peter. Crítica da razão cínica. São Paulo: Estação Liberdade, 2012, p. 34.

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retomada dos motivos cínicos que ganham força no iluminismo, avançam no século seguinte a
partir das obras de Nietzsche e passam a ter notoriedade nas últimas décadas como objeto de
estudo com o trabalho do chamado “último” Foucault.
É sabido que a “Crítica da razão cínica” está explicitamente em diálogo com a teoria
crítica, quer dizer, Sloterdijk herda várias das questões levantadas por Adorno e Horkheimer.3
Não obstante, acreditamos que seja possível usar alguns argumentos destes dois últimos para
ir na contra mão da tese de Sloterdijk de que o cinismo moderno é uma forma degenerada do
cinismo antigo. Ao forjar a noção de “dialética cínica”, objetivamos demostrar que a auto
degeneração do cinismo é, na verdade, uma estratégia de manutenção que opera já no interior
do cinismo antigo. À vista disso, vamos problematizar o diálogo entre a “Crítica da Razão
cínica” e a “Dialética do esclarecimento” e, dessa forma, criar o solo necessário para fazer
uma “taxonomia do cinismo”.
Entendemos aqui por “taxonomia do cinismo” um estudo que não se limite a
apresentar o cinismo como mais uma escola helênica que ganha novos formatos no decorrer
da história dos discursos (como na época das luzes e no chamado Nietzsche “maduro”). Com
efeito, pretendemos esmiuçar os motivos e as condutas que podem ser entendidos como uma
espécie de “arquétipo” cínico e, na mesma esteira, apresentar em que medida este “arquétipo”
permeia várias práticas e formas discursivas da cultura europeia-ocidental. Sendo assim,
conceber uma taxonomia do cinismo significará apurar o modus operandi da racionalidade
cínica. Ao explorar as diversas facetas desta racionalidade, pretendemos demostrar a sua
conformidade com a dialética do esclarecimento. É justamente com o intuito de compreender
as nuanças desta racionalidade que cunhamos a noção de “dialética cínica”.4
À primeira vista, fazer do cinismo um objeto de estudo com o intuito de esmiuçar a
história do seu modus operandi pode parecer um empreendimento vago. Todavia, quando
Foucault nos diz que o cinismo faz parte de uma “experiência ética fundamental do
ocidente”5, defendendo ao mesmo tempo que é possível desenhar uma “história do cinismo”
que implica, é claro, “formas diversas, práticas diferentes, estilos de existência modulados de
acordo com esquemas diferentes”6, ele nos dá a garantia de adentrar um terreno sólido.

3
Como bem observa Sharon A. Stanley: “Sloterdijk’s masterful study was deeply rooted in his German context,
taking up German historical experiences and philosophical dilemmas largely adopted from the tradition of
German critical theory.” STANLEY, SHARON A. The French Enlightenment and the Emergence of
Modern Cynicism. Cambridge: Cambridge University Press, 2014, p. 3.
4
Como se pode perceber pelo termo “dialética”, a noção que cunhamos já carrega em si uma problematização
entre a razão cínica e a dialética do esclarecimento.
5
FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2011, p. 253.
6
Ibid., p. 157.

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Ademais, continua ele, seria possível então “mostrar a existência permanente de algo que
pode aparecer como o cinismo através de toda a cultura europeia”7. Nesse sentido, seguiremos
a indicação de Foucault de analisar a “história do cinismo” não como a história de uma
“doutrina”, mas muito mais como uma análise das “atitudes e maneiras de ser”.8
Além disso, o filósofo francês, ao dedicar os últimos anos de sua vida ao estudo do
cinismo, percebeu a dificuldade que é “defini-lo”. Ora, o estado da arte nos mostra que
sempre houve o problema de como “identificar o cinismo”9. Não obstante essa dificuldade,
Foucault não é o único a dar um lugar imponente ao cinismo no interior da cultura europeia.
Estudiosos do tema chegam inclusive a afirmar que o cinismo seria “a ramificação mais
original e influente da tradição socrática na Antiguidade.”10 Diante disso, cabe então
perguntar: como o cinismo poderia ser tão influente se ele ganha tão pouco destaque nos
grandes manuais de história da filosofia?
Para além do fato de que o cinismo é o “primo pobre da história da filosofia antiga”
(dado que a “soma de estudos que lhe foi consagrada é ridiculamente magra, se comparada
com a concernente ao epicurismo, ao estoicismo e até ao ceticismo”11), deve-se ter em mente
também que a tarefa de fazer dele um objeto de estudo sempre encontrará dificuldade no que
diz respeito ao mapeamento de suas fontes. Este é um ponto reconhecido por todos os que se
debruçam sobre o tema. Aliás, um aspecto digno de nota é que “o estudo do cinismo –
diferentemente, digamos, do estudo do platonismo – é inseparável do estudo da sua
recepção.”12 Este aspecto se torna claro quando lembramos que a principal fonte sobre o
cinismo antigo é a obra de Diógenes Laércio (“Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres”13). Ou
seja, a principal fonte sobre o cinismo já é uma etapa da sua recepção – ou melhor, podemos
dizer que o cinismo é a sua própria recepção.
Não obstante as dificuldades que se apresentam, no que diz respeito aos mais recentes
estudos sobre o cinismo em um registro filosófico, os dois grandes marcos que vem à tona

7
Ibid.
8
Ibid., p. 156.
9
Cf. GOULET-CAZÉ, Marie-Odile & BRANHAM, R. Bracht. Os cínicos: O movimento cínico na
Antiguidade e o seu legado. São Paulo: Edições Loyola, 2007, p. 31-38.
10
Ibid., p. 11.
11
À vista disso, Frédéric Gros localiza o estudo do “último” Foucault como um grande avanço para amplificar
na França o interesse por “essa corrente que permaneceu marginalizada”. Cf. GROS, Frédéric. Situação do
curso. In: FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2011, p. 310.
12
Cf. GOULET-CAZÉ, Marie-Odile & BRANHAM, R. Bracht. Os cínicos: O movimento cínico na
Antiguidade e o seu legado. São Paulo: Edições Loyola, 2007, p. 24.
13
O livro VI de Diógenes Laércio é intitulado “A escola cínica” e é inteiramente dedicado ao cinismo. Neste
livro ele apresenta em sequência as figuras de Antístenes, Diógenes, Mônimos, Onesícritos, Crates, Metrócles,
Hiparquia, Mênipos e Menêdemos – bem como traços importantes da filosofia destes cínicos. Cf. LAÉRCIO,
Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1977.

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são, claro, o livro do próprio Sloterdijk (“Crítica da razão cínica”) e o de Foucault (“A
coragem da verdade”). Por outro lado, em um registro historiográfico, as grandes referências
são “A History of Cynicism: From Diogenes to the 6th century A. D.” de Donald Dudley, “Der
Kynismus des Diogenes und der Begriff des Zynismus” de Heinrich Niehues-Pröbsting e um
livro organizado por Marie-Odile Goulet-Cazé e Bracht Branham que reúne vários ensaios
sobre o cinismo e leva o título “Os cínicos: O movimento cínico na Antiguidade e o seu
legado”. Este último é a leitura obrigatória para a introdução ao tema do cinismo, pois ele nos
oferece diferentes perspectivas de vários autores sobre a recepção do cinismo em diversas
épocas.
Não se pode deixar de mencionar também o livro de Sharon Stanley, intitulado “The
French Enlightenment and the Emergence of Modern Cynicism”. Da mesma forma como os
livros citados acima, ele também é um grande marco na história da recepção do cinismo –
dado que é um dos estudos mais profundos sobre os elos entre a filosofia francesa do período
das luzes e o cinismo. Todavia, a riqueza do seu trabalho está em não se limitar a apontar os
momentos em que os filósofos franceses do século XVIII meditaram deliberadamente sobre a
relação entre as suas reflexões filosóficas e o cinismo antigo. O que torna o seu estudo de
grande relevância é, com efeito, argumentar que algumas das características do iluminismo
providenciaram um solo fértil para o advento do cinismo moderno.14 Desta maneira, Stanley
está aprofundando um tema que já havia sido lançado por Louisa Shea em seu “The Cynic
Enlightenment: Diogenes in the Salon” e defendendo que na filosofia do iluminismo seria
possível “refletir sobre uma constelação de crenças e práticas que poderíamos identificar
como cinismo”15. É com vista para esse ponto que ela, em certo sentido indo na mesma rota
de Sloterdijk, cunha a noção de “cinismo esclarecido” [“enlightenment cynicism”].16
Se seguirmos de forma atenta o caminho delineado pela historiografia, podemos
enumerar tendências e pensadores que adotaram uma postura cínica, endossaram o seu
discurso ou colocaram em prática motivos cínicos. É por isso que, doravante, apresentaremos
rapidamente esse cenário historiográfico – este se revela como a nossa primeira tentativa de
delimitar uma história do cinismo.
Em uma lista rápida que segue a tradição, podemos dizer que, na Antiguidade grega,
Antístenes, Diógenes de Sínope e Crates formam o que é considerado a “matriz” do cinismo
(entendido aqui enquanto uma filosofia helênica que emerge, entre outras coisas, a partir de

14
Cf. STANLEY, SHARON A. The French Enlightenment and the Emergence of Modern Cynicism.
Cambridge: Cambridge University Press, 2014, p. 7.
15
Ibid.
16
Cf. Ibid., p. 14.

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um diálogo íntimo com o socratismo). Diógenes de Sínope, em especial, é considerado o
grande modelo para os cínicos e cinismos posteriores – o seu estilo polêmico e as suas frases
mordazes se tornariam uma marca registrada. Chamado pelos atenienses de “o cão”, ele
buscou estabelecer o cinismo como uma “filosofia prática”17, é por esse motivo que costuma-
se estipular a razão pela qual ele não se dedicou à tarefa de escrever tratados filosóficos. Um
dos principais motores dessa sua filosofia era a chamada prática da “parresía”, que, grosso
modo, quer dizer a “fala franca”18 – em suma, o “parresiasta” (ou seja, o cínico) é aquele que
desvela aquilo que a cegueira dos homens não os permite enxergar.19 Diógenes ficou muito
conhecido por defender que, enquanto um indivíduo verdadeiramente feliz vive de acordo
com a physis (que costuma ser traduzida por “natureza”20), os infelizes e ignorantes vivem de
acordo com o nomos (que quer dizer “lei”, “convenção” ou “norma”.) O que ele quer dizer a
partir da ideia de uma vida que siga a physis é que uma vida feliz necessita de muito pouco e,
por conseguinte, a autossuficiência é uma virtude a ser buscada caso se queira evitar os
caprichos da “fortuna”. A sua crítica ao nomos deixa transparecer o eudemonismo e, logo, a
ética cínica: onde fica estabelecido que as leis sociais que regem a polis ou qualquer
sociedade são de sobremaneira superficiais e, por isso, não são capazes de conduzir os
indivíduos à verdadeira felicidade. Em linhas gerais, o nomos seria uma espécie de ilusão que
afasta os indivíduos de uma vida virtuosa regida pela physis. O grosso do material que nos foi
legado desta matriz cínica foi compilado por Diógenes Laércio no livro VI de seu “Vidas e
doutrinas dos filósofos ilustres”.
Seguindo com a cronologia, entramos no Império Romano. Os romanos viveram uma
relação intensa com o cinismo (principalmente em função de sua relação de “amor e ódio”
com o estoicismo – a escola helênica que alcançou grande popularidade no período imperial).
Um dos exemplos paradigmáticos da manifestação das práticas cínicas nesse período é, sem
dúvida, a sátira menipéia – atividade literária “sério-cômica” que encontra o seu auge nos
escritos de Luciano de Samósata21. Pode-se dizer que, assim como Diógenes, Luciano foi um

17
DOBBIN, Robert. Anecdotes of the Cynics. Great Britain: Penguin Books, 2016, p. 14.
18
Foucault caracteriza a parresía da seguinte maneira: “A parresía é, portanto, em duas palavras, a coragem da
verdade naquele que fala e assume o risco de dizer, a despeito de tudo, toda a verdade que pensa, mas é também
a coragem do interlocutor que aceita receber como verdadeira a verdade ferina que ouve.” FOUCAULT,
Michel. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2011, p. 13.
19
Cf. Ibid., p. 16.
20
Heidegger criticou veementemente a tradução latina do termo physis por “natureza”. Cf. HEIDEGGER,
Martin. Introdução à metafísica. Rio de janeiro: Tempo brasileiro, 1978, p. 91, 128, 129 e 209.
21
Não obstante, não podemos esquecer também a importância de Epicteto – que é um estoico que também tem
uma relação ambígua com o cinismo. Sobre o tema, Cf. GRIFFIN, Miriam. Cinismo e romanos: atração e

359
dos expoentes que conseguiu levar o discurso cínico às últimas consequências – uma vez que
ele era “tanto um cínico como um satirizador dos cínicos”.22
Já o período medieval viveu um grande diálogo tácito com o cinismo. O cristianismo,
ou, mais precisamente, as ordens dominicana e franciscana, encontraram no ideal de
mendicância, da vida simples e da completa indiferença a qualquer espécie de luxo – isto é,
nos tópicos marcantes da ética e da “estética da existência” cínica23 – os grandes vetores de
legitimação do seu ascetismo religioso.24 Com o crescente abrandamento do paganismo dos
antigos gregos, o monaquismo toma a imagem de Diógenes como um modelo de perfeição
moral e espiritual a ser seguido.
Como sabido, o cinismo também rendeu grandes frutos ao Renascimento. Para citar
um bom exemplo, basta lembrar a “Utopia” de Thomas More. Neste livro, More retoma o
estilo “sério-cômico” característico da sátira menipéia – o estilo distintivo do cinismo que
ganha novo ímpeto no período renascentista. Ademais, como bem constatou Daniel Kinney:
“há muito para ser dito sobre a Utopia como uma invenção cínica.”25
Seguindo com a nossa breve digressão, o uso dos motivos e práticas cínicas continuam
a sua marcha no período das luzes – e é justamente nesse período que essa história começa a
de fato ser do interesse da nossa pesquisa. Vladimir Safatle constata com agudeza que “há
uma complexa história que envolve a recuperação dos motivos do cinismo antigo pelo
Iluminismo francês.”26 Ora, existem vários estudos que assinalam a importância da filosofia
do iluminismo para a “retomada” do cinismo. Dentre eles, os mais consideráveis são o já
mencionado “The French Enlightenment and the Emergence of Modern Cynicism” de Sharon
Stanley e o excelente artigo de Heinrich Niehues-Pröbsting, intitulado “A recepção moderna
do cinismo: Diógenes no Iluminismo”. O interessante destes estudos é que eles não se limitam

repulsa. In: GOULET-CAZÉ, Marie-Odile & BRANHAM, R. Bracht. Os cínicos: O movimento cínico na
Antiguidade e o seu legado. São Paulo: Edições Loyola, 2007, p. 211-226.
22
NIEHUES-PRÖBSTING, Heinrich. A recepção moderna do cinismo: Diógenes no Iluminismo. In:
GOULET-CAZÉ, Marie-Odile & BRANHAM, R. Bracht. Os cínicos: O movimento cínico na Antiguidade e o
seu legado. São Paulo: Edições Loyola, 2007, p. 377. Como ficará claro mais adiante, essa sátira do cínico por
ele mesmo faz parte da dinâmica trágica do seu discurso, ou seja, da sua “dialética”.
23
Foucault chama os franciscanos de “os cínicos da cristandade medieval”. FOUCAULT, Michel. A coragem
da verdade: o governo de si e dos outros II. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011, p. 160. Sobre a
noção de “estética da existência” cínica, conferir: Ibid., p. 141.
24
Cf. Ibid., p. 160-161. E também: MATTON, Sylvain. Cinismo e cristianismo da Idade Média ao
Renascimento. In: GOULET-CAZÉ, Marie-Odile & BRANHAM, R. Bracht. Os cínicos: O movimento cínico
na Antiguidade e o seu legado. São Paulo: Edições Loyola, 2007, p. 265-290.
25
KINNEY, Daniel. Herdeiros do Cão. Identidade cínica na cultura medieval e renascentista. In: GOULET-
CAZÉ, Marie-Odile & BRANHAM, R. Bracht. Os cínicos: O movimento cínico na Antiguidade e o seu legado.
São Paulo: Edições Loyola, 2007, p. 351.
26
SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 49.

360
a simplesmente apresentar pontos de contato entre o iluminismo e o cinismo27. Com efeito, a
tese central de Stanley é que uma nova forma de cinismo emerge no iluminismo francês, e
Niehues-Pröbsting, por sua vez, defende que o estudo da recepção do cinismo é fundamental
para uma melhor compreensão tanto do iluminismo como do contra-iluminismo.28
Para Niehues-Pröbsting, seria no entendimento do cinismo que os filósofos e
pensadores do iluminismo perceberiam os perigos da razão ser pervertida – quer dizer, o
perigo da razão atingir um grau tão alto de esclarecimento que seria capaz de demostrar a
irracionalidade dos seus próprios protocolos29 – nas suas palavras: “o iluminismo toma
consciência dessa ameaça para si mesmo por conta de sua afinidade com o cinismo”.30 Além
disso, apesar de ser Rousseau quem foi alcunhado por seus contemporâneos de o “novo
Diógenes”31, é digno de nota que tanto Stanley como Niehues-Pröbsting apontam a obra de
Denis Diderot (mais especificamente “O sobrinho Rameau”) como o exemplo paradigmático
do acento cínico da razão esclarecida. Endossando o argumento desses dois autores, Safatle
nos diz que foi Diderot quem percebeu que, na aurora das luzes, “uma crítica inspirada nos
móbiles do cinismo grego poderia nos levar a um impasse.”32 – ora, é justamente este impasse
que visamos expor com a nossa noção de “dialética cínica”.
Aliás, não é por acaso que é justamente “O sobrinho de Rameau” o exemplo
paradigmático do cinismo no iluminismo francês – afinal, esta obra é um “diálogo-filosófico”.
Mais especificamente, pode-se dizer que é justamente pelo cinismo ser uma “filosofia prática”
– que se coloca em uma posição contrária a exposição filosófica por meio de tratados – que
ele encontra na narrativa literária uma forma adequada de exposição. Essa perspectiva nos
ajuda a caminhar para a parte final dessa breve história da recepção do cinismo: quer dizer,
não podemos deixar de mencionar a obra de Nietzsche, dado que o próprio estilo de escrita do
filósofo alemão é uma questão filosófica em si mesma33. Não é equivocado afirmar que o
estilo aforístico e literário nietzschiano é uma reprodução dos motivos cínicos. Com efeito,
Nietzsche trabalha em cima dos aspectos formais do cinismo para criar um espaço de crítica

27
Pontos estes que seriam, dentre os mais evidentes, o cosmopolitismo, a autonomia intelectual, a descrença nas
práticas religiosas, o ideal de liberdade, a rejeição ao senso comum a partir de uma reflexão crítica, entre outros.
28
Cf. NIEHUES-PRÖBSTING, Heinrich. A recepção moderna do cinismo: Diógenes no Iluminismo. In:
GOULET-CAZÉ, Marie-Odile & BRANHAM, R. Bracht. Os cínicos: O movimento cínico na Antiguidade e o
seu legado. São Paulo: Edições Loyola, 2007, p. 363.
29
Como se pode perceber, este é um ponto central da dialética do esclarecimento da forma como analisada por
Adorno e Horkheimer.
30
Ibid.
31
Cf. Ibid., p. 370.
32
SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 52.
33
Derrida foi um dos que assinalou a importância de se levar em questão o estilo de escrita de Nietzsche.
Conferir: DERRIDA, Jacques. Esporas: Os estilos de Nietzsche. Rio de Janeiro: NAU, 2013.

361
às filosofias que se reduzem a modos de exposição convencionais. Ademais, o autor de
“Assim falou Zaratustra” é considerado por muitos o responsável pela eclosão de um suposto
“neo-cinismo” – assim como pelo desvelamento do alicerce cínico do niilismo europeu.34
Não são poucas as vezes que Nietzsche demostra a sua veia cínica, por exemplo, ele
começa o seu livro “A vontade de poder” (publicado apenas postumamente) com a seguinte
frase: “Grandes coisas exigem que nos calemos a seu respeitou ou que falemos com grandeza:
grandeza quer dizer: com inocência, – cinicamente.”35 Na mesma esteira, podemos mencionar
também uma passagem bem conhecida de “Além do bem e do mal”, em que ele nos diz em
seu característico tom aforístico que “o cinismo é a única forma pela qual as almas vulgares
tocam de leve naquilo que é a honestidade; e o homem superior tem de aguçar seus ouvidos
para todo o cinismo grosseiro ou refinado”.36
Além de tudo, não podemos esquecer a clara referência a Diógenes que Nietzsche faz
em um de seus textos mais famosos, a saber: o parágrafo 125 da “A gaia ciência”, intitulado
“O homem louco”. Não custa lembrar que, nesse texto, o personagem que anuncia a “morte
de Deus” acende uma lanterna em plena luz do dia para procurar Deus. Ou seja, exatamente
como Diógenes fazia em Atenas. No entanto, este último procurava um “homem” (o seu
intuito era ridicularizar a moral reinante na polis, dizendo que, em função dela, ninguém ali
vivia conforme à physis). A figura do “homem louco” nietzschiano é fundamental porque
demostra que o filósofo alemão não tinha apenas admiração e um interesse histórico-
filológico pelo cinismo, com efeito, pode-se dizer que ele incorporou vários de seus
preceitos.37 Diga-se de passagem, é revelador que Nietzsche chame sua personagem de
“homem louco”, dado que o próprio Platão se referia a Diógenes como um “Sócrates
enlouquecido”.38
Por fim, não se pode desconsiderar também o recente interesse pelo estudo dessa
recepção. Quer dizer, consideramos aqui que as mais novas análises sobre a recepção do
cinismo também formam uma etapa relevante dessa história – principalmente para os fins da

34
Sobre a questão da filosofia de Nietzsche como um “neo-cinismo”, conferir: NIEHUES-
PRÖBSTING, Heinrich. Der „Kurze Weg“: Nietzsches „Cynismus“. In: Archiv für Begriffsgeschichte, vol.
XXIV, caderno 1, Bonn, 1980, p. 121.
35
NIETZSCHE, Friedrich. A vontade de poder. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008, p. 23.
36
Id. Além do bem e do mal. Porto Alegre: L&PM, 2008, p. 52. (Parágrafo 26).
37
Cf. CARVALHO, Daniel Filipe. Nietzsche e a lanterna de Diógenes. In: Artefilosofia, Ouro Preto, n.13, p.
3-16, dezembro 2012. E também: NIEHUES-PRÖBSTING, Heinrich. Der „Kurze Weg“: Nietzsches
„Cynismus“. In: Archiv für Begriffsgeschichte, vol. XXIV, caderno 1, Bonn, 1980, p. 103-122.
38
Sobre a referência de Platão a Diógenes de Sínope como “Sócrates enlouquecido”, conferir: NIEHUES-
PRÖBSTING, Heinrich. A recepção moderna do cinismo. Diógenes no Iluminismo. In: GOULET-CAZÉ,
Marie-Odile & BRANHAM, R. Bracht. Os cínicos: O movimento cínico na Antiguidade e o seu legado. São
Paulo: Edições Loyola, 2007, p. 363.

362
nossa pesquisa. Os marcos dessa etapa mais recente são os já citados “Der Kynismus des
Diogenes und der Begriff des Zynismus” [“O cinismo de Diógenes e o conceito moderno de
cinismo”] (1979) de Heinrich Niehues-Pröbsting, “Crítica da razão cínica” (1983) de
Sloterdijk e “A coragem da verdade” (1983-1984) de Foucault e, por último, o hodierno “The
Making of Modern Cynicism” (2007) de David Mazella.
Esse sucinto mapeamento histórico que delimita a recepção do cinismo é importante
para apresentar uma diferenciação conceitual que marca de forma significativa a história do
cinismo: a diferenciação entre os conceitos de “Kynismus” e “Zynismus”39. Essa marca surge
no mundo de língua alemã e praticamente se limita a este meio40, todavia, ela guarda o mérito
de abrir o espaço para o que ficou conhecido como o “cinismo moderno”. Deste modo,
podemos dizer que ela introduz o debate sobre a retomada do cinismo a partir do período das
luzes. Em linhas gerais, o Kynismus seria “exclusivamente a filosofia de Antístenes e
Diógenes e de seus sucessores clássicos”. E o Zynismus, por sua vez, seria “a atitude que não
reconhece nada como sagrado e que insulta valores, sentimentos e o decoro
provocativamente, com o sarcasmo mordaz, ou mesmo por meio de indiferença deliberada”.41
De tal maneira, quando Sloterdijk define o cinismo como “falsa consciência esclarecida”, ele
está se referindo ao “Zynismus”.
Pode-se dizer que essa diferenciação se tornou clássica a partir do livro “Der
Kynismus des Diogenes und der Begriff des Zynismus” de Niehues-Pröbsting. Não obstante a
sua pertinência42, visamos aqui problematizá-la. Ou melhor, visamos problematizar em última
instância a atitude que vemos, por exemplo, na “Critica da razão cínica” de Sloterdijk de
idealizar o suposto cinismo antigo em detrimento do cinismo moderno. Mais especificamente,
visamos mostrar que, do mesmo modo que no interior do esclarecimento já se encontra o seu
poder de auto alienação (como argumentam Adorno e Horkheimer na “Dialética do
esclarecimento”), nos pressupostos do cinismo antigo (Kynismus) já estão dadas as condições

39
Cf. NIEHUES-PRÖBSTING, Heinrich. Der „Kurze Weg“: Nietzsches „Cynismus“. In: Archiv für
Begriffsgeschichte, vol. XXIV, caderno 1, Bonn, 1980, p. 115-116.
40
Cabe aqui fazer uma breve nota sobre a questão que Foucault nos deixou como legado, dado que ele faleceu
antes de pormenorizá-la. Quer dizer, ele constata que é no seio da filosofia alemã contemporânea que surge a
“problematização do cinismo em suas formas antigas e modernas”, deste modo, ele afirma que é necessário
investigar “por que e em que termos os filósofos alemães contemporâneos colocaram esse problema”. Cf.
FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2011, p. 157 e 169-170.
41
NIEHUES-PRÖBSTING, Heinrich. A recepção moderna do cinismo. Diógenes no Iluminismo. In:
GOULET-CAZÉ, Marie-Odile & BRANHAM, R. Bracht. Os cínicos: O movimento cínico na Antiguidade e o
seu legado. São Paulo: Edições Loyola, 2007, p. 361.
42
Até mesmo Foucault, que está apartado da discussão que ocorre no seio da filosofia alemã contemporânea,
adota essa diferenciação, conferir: FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros
II. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011, p. 156-157 e 169-170.

363
de possibilidade para o cinismo moderno (Zynismus). No nosso entender, o cinismo moderno
é o cinismo antigo levado às últimas consequências. É com vistas para esse ponto que
visamos defender que o próprio cinismo, ou a racionalidade cínica, opera a partir de uma
dinâmica trágica43.
Na nossa perspectiva, a racionalidade cínica consegue impor a sua manutenção na
medida em que busca, em uma atitude deliberadamente sério-cômica, “pular a própria
sombra”. Isto é, o cinismo avança em uma dinâmica trágica dado que é preciso “desvalorizar
e desprezar a independência cínica quando ela própria se torna um valor aceito e
respeitado”44. Hegel já havia apontado o caminho para a percepção dessa dinâmica do
cinismo ao escrever que “Diógenes no seu tonel está condicionado pelo mundo que procura
negar”.45 É por esse motivo que afirmamos mais acima que os escritos de Luciano de
Samósata são um exemplo paradigmático do discurso cínico, pois ele é um cínico que, ao
mesmo tempo, satiriza o cinismo. Assim, pela lógica das práticas discursivas do cinismo, o
cínico é verdadeiramente cínico ao ironizar o seu próprio cinismo.
Na nossa perspectiva, a atitude cínica de querer “pular a própria sobra” é, com efeito,
uma estratégia de manutenção. Com isso, os seus postulados se tornam metalinguísticos:
como no caso do principal motor da obra do chamado Nietzsche “maduro”, isto é, o seu lema
de “transvaloração de todos os valores”. Este leitmotiv nietzschiano é um ornato cínico por
excelência – como nos mostra Niehues-Pröbsting em seu artigo “Der „Kurze Weg“:
Nietzsches „Cynismus“” [“O ‘caminho mais curto’: O ‘cinismo’ de Nietzsche”]46. Sloterdijk,
que é nitidamente um leitor de Niehues-Pröbsting, também corrobora esse ponto de vista ao
escrever que Nietzsche “sabia muito bem que o seu grito de guerra filosófico: ‘transvaloração
de todos os valores’ tinha origem num fragmento característico da estratégia de protesto de
Diógenes de Sínope: trocar os valores da moeda”.47 A partir desta perspectiva, podemos dizer
que o constante exercício da filosofia nietzschiana de inverter todos os valores e ir na
contramão de toda espécie de conduta moral cristalizada pelo senso comum é, portanto, uma

43
Usamos aqui o adjetivo “trágico” não para fazer alusão ao “gênero dramático”, isto é, a tragédia. Na verdade,
usamos o termo “trágico” para clarificar a dinâmica de manutenção do cinismo que consiste em negar a si
mesmo. Isto é, visamos mostrar que o cinismo mantém-se ao negar ou ao ironizar a si próprio – eis o seu aspecto
trágico: eis a dialética cínica.
44
NIEHUES-PRÖBSTING, Heinrich. A recepção moderna do cinismo. Diógenes no Iluminismo. In:
GOULET-CAZÉ, Marie-Odile & BRANHAM, R. Bracht. Os cínicos: O movimento cínico na Antiguidade e o
seu legado. São Paulo: Edições Loyola, 2007, p. 381.
45
HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito., cit., par. 524, apud SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência
da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 51.
46
Cf. NIEHUES-PRÖBSTING, Heinrich. Der „Kurze Weg“: Nietzsches „Cynismus“. In: Archiv für
Begriffsgeschichte, vol. XXIV, caderno 1, Bonn, 1980, p. 120-121.
47
SLOTERDIJK, Peter. O quinto “Evangelho” de Nietzsche: É possível melhorar a Boa Nova?. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004, p. 69.

364
motivação cínica. Nietzsche encontrou uma forma de manutenção do seu discurso filosófico a
partir dessa dinâmica paradoxal – mais uma vez, não custa enfatizar, é essa dinâmica que
denominamos “dialética cínica”.
Convêm destacar que Foucault chegou muito perto de desenvolver o que
denominamos aqui “dialética cínica”. Em seu último curso dado no Collège de France48, ele
tentou definir o cinismo como uma “espécie de careta que a filosofia faz para si mesma, esse
espelho quebrado em que o filósofo é ao mesmo tempo chamado a se ver e a não se
reconhecer. É esse o paradoxo da vida cínica.”49 Porém, como sabido, devido ao seu
falecimento, Foucault não chegou a desenvolver essas ideias.
É importante destacar também que Vladimir Safatle, seguindo o mesmo tom de
Foucault, deu mais um passo na análise desse “paradoxo da vida cínica”. Em seu texto
intitulado “Was ist Zynismus?” [“O que é cinismo moderno?”]50, ele constata que:

O cinismo é uma contradição posta que é, ao mesmo tempo, contradição resolvida ou, antes,
aproveitando a formulação de Žižek, uma estranha “discordância legitimada”. Este é o ponto
realmente central: compreender como é possível ao cinismo sustentar-se como essa
paradoxal discordância legitimada.51

Como se pode perceber, não foi por acaso que começamos o nosso texto citando a
definição do cinismo dada por Sloterdijk – isto é, o cinismo como “falsa consciência
esclarecida”. Com efeito, ele está apontando para a dinâmica dessa “paradoxal discordância
legitimada” característica do cinismo. De fato, Sloterdijk admite que essa caracterização é
eminentemente cínica, pois, como ele mesmo diz: “é lógico que se trata de um paradoxo”52.
Diante disso, podemos perceber que o discurso cínico é sempre caracterizado, tacitamente ou
não, como um discurso paradoxal – ou, como dissemos mais acima, um discurso que tenta
“pular a própria sombra”. Em suma, é esse fenômeno “paradoxal” que denominamos
“dialética cínica”. Pormenorizar este movimento dialético que opera entre o cinismo antigo e
o cinismo moderno é a tarefa que colocamos como eixo central de nossa futura tese – cabe
dizer aqui que nossa pesquisa está apenas no início, logo, este é apenas o primeiro passo de
um longo caminho a ser percorrido.

48
Portanto, um curso que passa a ser considerado como o seu “testamento filosófico”. Cf. GROS, Frédéric.
Situação do curso. In: FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II. São
Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011, p. 303.
49
Ibid., p. 238.
50
Título em alemão no original, o que ratifica a relevância do tema para o debate filosófico alemão
contemporâneo – como assinalou Foucault, conferir a nota 40 mais acima.
51
SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 84.
52
SLOTERDIJK, Peter. Crítica da razão cínica. São Paulo: Estação Liberdade, 2012, p. 34.

365
Antes de encerrar, resta lembra que o “esclarecimento” exposto nos moldes de Adorno
e Horkheimer possui uma dimensão trágica na medida em que está fundado numa dinâmica
(ou, caso prefiram, numa dialética) que tem como próprio fim a incessante reprodução dos
meios que possibilitam a manutenção dos mecanismos de dominação. Em síntese, o
esclarecimento possui uma lógica trágica por possuir um fim em si mesmo, “emulando a
máquina que ele próprio produz para que ela possa finalmente substituí-lo. O esclarecimento
pôs de lado a exigência de pensar o pensamento”.53
Fazendo a ponte entre esta temática e o cinismo, pode-se argumentar que a lógica do
esclarecimento avança a partir do exercício da racionalidade cínica. Como dissemos algumas
linhas mais acima, o cinismo seria uma “paradoxal discordância legitimada”, que garante a
sua manutenção a partir do constante velamento e desvelamento do seu saber. Sendo assim, a
sabedoria cínica é uma sabedoria que opera a partir de uma dinâmica trágica porque, para ser
verdadeiramente cínica, em certo momento precisará ironizar a si mesma. Deste modo, o fato
a ser levado em conta é que o esclarecimento encontra nesse modelo de racionalidade a forma
para a sua própria manutenção: o esclarecimento se converte em cinismo na medida em que
ele serve-se da racionalidade cínica para garantir a sua manutenção. Assim, o cinismo é o
motor da razão esclarecida. Em outros termos, o cinismo é o modus operandi da dialética do
esclarecimento: a cultura esclarecida encontra os seus meios de subsistência na racionalidade
cínica.
Enfim, podemos dizer que tornar-se verdadeiramente esclarecido significa perceber os
limites da própria razão (por isso a primeira crítica de Kant é um ponto expressivo do
esclarecimento: Koselleck expõe esse fato de maneira clara ao afirmar que, na “Crítica da
razão pura”, a “crítica volta-se contra a própria razão”54). Em última instância, o cínico se
torna uma figura do esclarecimento por excelência: um indivíduo plenamente esclarecido
torna-se um cínico, pois ele percebe a motivação autocentrada das diretrizes normativas da
razão. Diante deste cenário, é possível amplificar o comentário de Niehues-Pröbsting de que o
esclarecimento toma consciência da ameaça que ele fornece para si mesmo por conta da sua
“afinidade com o cinismo”.55 A racionalidade cínica seria a lógica paradoxal da dialética do
esclarecimento. Cinismo e esclarecimento caminham lado a lado.

53
ADORNO, Theodor & HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p.
33.
54
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e Crise: Uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de
Janeiro: EDUERJ: Contraponto, 1999, p. 96.
55
Cf. NIEHUES-PRÖBSTING, Heinrich. A recepção moderna do cinismo: Diógenes no Iluminismo. In:
GOULET-CAZÉ, Marie-Odile & BRANHAM, R. Bracht. Os cínicos: O movimento cínico na Antiguidade e o
seu legado. São Paulo: Edições Loyola, 2007, p. 363.

366
Em resumo, a noção de esclarecimento como apresentada por Adorno e Horkheimer
nos possibilita defender que o cinismo não seria uma saída para a dialética do esclarecimento,
como tenta argumentar Sloterdijk na “Crítica da razão cínica”. Com efeito, o cinismo faz
parte da “patogênese” (usando aqui um termo caro a Koselleck) da dinâmica trágica do
esclarecimento. Em última instância, nos protocolos do cinismo antigo (Kynismus) já
podemos vislumbrar a lógica esclarecida. Enfim, é chamando a atenção para esse parentesco
que cunhamos a noção de “dialética cínica”.

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