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IGNACIO RANGEL,

DECIFRADOR DO BRASIL
Felipe Macedo de Holanda
Jhonatan Uelson Pereira Sousa de Almada
Ricardo Zimbrão Affonso de Paula
(Organizadores)

IGNACIO RANGEL,
DECIFRADOR DO BRASIL
homenagens pelo centenário de nascimento
(1914-2014)

São Luís

2014
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO


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Biblioteca Central da Universidade Federal do Maranhão

Ignacio Rangel: decifrador do Brasil / Felipe Macedo de Holanda,


Jhonatan Uelson Pereira Sousa de Almada, Ricardo Zimbrão Affonso
de Paula (Organizadores). _____ São Luís: Edufma, 2014.
352 p. ; 155x215 mm.
ISBN
1. Ignacio Rangel – biografia 2. Economia – História – Brasil I.
Holanda, Felipe Macedo de II. Almada, Jhonatan Uelson P. Sousa de
III. Paula, Ricardo Zimbrão Affonso de IV. Título

CDD 923.3
CDU 923:33
SUMÁRIO

13 17
Prefácio ,QWURGXomRjVDYRFDo}HV
2GHFLIUDGRUGR%UDVLO FRQMXQo}HVHLQFXUV}HVQDREUDGH
João Batista Ericeira Ignacio Rangel
Jhonatan Almada
Ricardo Zimbrão Affonso de Paula
Felipe Macedo de Holanda

I
IGNACIO RANGEL, avocações
37
Ignacio Rangel em São Luís
Bandeira Tribuzi

38
&RQÀVV}HVGH,JQDFLR5DQJHO
Vamireh Chacon

40
Ignacio Rangel
Marcelo Minterhof

II
IGNACIO RANGEL, conjunções
45
2FHQWHQiULRGDXVLQDGRSHQVDPHQWR
,JQDFLR5DQJHODFDSDFLGDGHGHGHFLVmRHRVDQWRGHFDVD
Raimundo Palhano

64
&DQomRG·DPLJRSDUD,JQDFLR5DQJHO
Rossini Corrêa
75
Ignacio Rangel e seus interlocutores
Armen Mamigonian

83
$GLDOpWLFDGDUHEHOGLDGHVGH5DQJHODWpKRMH
Fernando Pedrão

100
2YRRGDiJXLDUHPLQLVFrQFLDVVREUHRSHQVDPHQWRFUtWLFRGH,JQDFLR
Rangel
José Maria Dias Pereira

122
8PPHVWUHGDHFRQRPLDEUDVLOHLUD,JQDFLR5DQJHOUHYLVLWDGR
Luiz Carlos Bresser-Pereira
José Márcio Rego

III
IGNACIO RANGEL, incursões
153
2GHVDÀRGDVFRQFHVV}HVGHVHUYLoRVGHXWLOLGDGHS~EOLFD
DWXDOLGDGHGRSHQVDPHQWRGH5DQJHO
Felipe Macedo de Holanda

162
&RQYHUJrQFLDVHQWUH,JQDFLR5DQJHOH'HOÀP1HWWR
XPDOHLWXUDFRPEDVHHP/rQLQ
Paulo de Tarso Pesgrave Leite Soares

202
(OHPHQWRVGHHFRQRPLDGRSURMHWDPHQWR
Márcio Henrique Monteiro de Castro

229
$LPSRUWkQFLDKLVWyULFDGDWHRULDGH,JQDFLR5DQJHOXPEUHYHHQVDLR
Arissane Dâmaso Fernandes
248
$FDWHJRULDGXDOLGDGHEiVLFDFRPRXPDLQWHUSUHWDomRGR%UDVLO
Maria Mello de Malta

268
$FRQMXQWXUDRVHWRUSULYDGRHRFDPLQKREUDVLOHLUR
ao socialismo em Ignacio Rangel
Elias Jabbour

276
,JQDFLR5DQJHOHRSUREOHPDGDLQÁDomRQDPDFURHFRQRPLDEUDVLOHLUDGD
LQGXVWULDOL]DomR
Thiago Leone Mitidieri

292
5DQJHOHD*HRJUDÀDDOJXPDVFRQVLGHUDo}HV
José Messias Bastos

306
5DQJHOGXDOLGDGHHLQÁDomR
RULJLQDOLGDGHHLQGHSHQGrQFLDQRSHQVDPHQWREUDVLOHLUR
Celso Eugênio Breta Fontes
Felipe dos Santos Martins
Felipe Eduardo Lima Reina de Barros

333
1RWDVGHSHVTXLVDSDUDQRYRVFDPLQKRVLQYHVWLJDWLYRVHP,JQDFLR
Rangel
Ricardo Zimbrão Affonso de Paula
Jhonatan Almada

341
Os autores
Agradecemos ao Sr. Dorgival Pereira, à VALE e
ao Sr. Carlos Gaspar pelo apoio para publicação
deste livro
Sabemos, entretanto, que a história, precisamente
por ser história, isto é, desenvolvimento e
mudança, jamais se repete, não obstante o
caráter obviamente cíclico de muitos dos seus
processos. Uma coisa, porém, é certa: a de que a
nova geração, precisamente como a minha, deve
estar preparada para a luta, para rijos combates,
que exigem bravura e inteligência.

Ignacio Rangel
(Discurso como Patrono da turma de Economia da UFRJ, 1979)
Prefácio
O decifrador do Brasil
-RmR%DWLVWD(ULFHLUD

A portuguesa Maria da Conceição Tavares é uma das mais ferrenhas


nacionalistas do clube dos economistas. Os seus acessos de ira e os rasgos de
paixão pelo Brasil estão na memória das novas gerações, testemunhas dos seus
indignados depoimentos sobre o país, avassalado pela ganância do capitalismo
internacional e por suas sucessivas crises. A economista em depoimento prestado
aos estudantes da matéria citou Ignacio Rangel, como um dos seus mentores,
tanto nos estudos sobre a formação histórica brasileira quanto no persistente
culto aos valores da nacionalidade. É dos muitos exemplos de discípulos de uma
escola do pensamento econômico, depois adjetivada de rangeliana, centrada
em interpretar este país a partir de categorias próprias. Pagou caro pela ousadia,
não apenas com a prisão, mas com equívocos de interpretação dos radicais de
esquerda que o apelidavam de direitista, ao tempo em que os conservadores o
alcunhavam de socialista.
Suspeito que como Karl Marx não se disse marxista, Rangel não aceitaria
caber em nenhum desses rótulos. Era desenvolvimentista, a favor do crescimento
econômico com justiça social. Democrata e republicano era o cidadão e o
SURÀVVLRQDOFRPSURPHWLGRFRPDGHIHVDGRVLQWHUHVVHVQDFLRQDLVWDOFRPRRV IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
seus contemporâneos do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), Roland
Corbisier, Guerreiro Ramos, Hélio Jaguaribe, muitos deles ex-integralistas, ex-
comunistas, reunidos em torno do projeto ideológico do nacionalismo acoplado
ao desenvolvimento nacional. Participou com esse grupo da criação da Petrobrás,
da Eletrobrás, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, onde atuou
como funcionário exemplar, em um tempo que ainda havia amor e dedicação
ao serviço público. Contribuiu na coordenação do Plano de Metas do Governo
Juscelino Kubitschek, dele também participou Roberto Campos, de corrente
ideológica diametralmente oposta.
Viviam-se os anos da Guerra Fria, da divisão do mundo entre os blocos
capitalista e comunista, enquanto aparecia o ISEB, fundava-se a Escola Superior

D
D 13
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

GH*XHUUD (6* UHXQLQGRRÀFLDLVHFLYLVOLGHUDGRVSHORJHQHUDO*ROEHU\&RXWRH


Silva, agregados em volta da doutrina da segurança nacional e da inevitabilidade
GRFRQÁLWRHQWUH8QLmR6RYLpWLFDH(VWDGRV8QLGRVHPTXHR%UDVLOIDWDOPHQWH
acompanharia este último. Fincavam-se os compromissos políticos e ideológicos
SDUD D GHÁDJUDomR GR JROSH GH  GH PDUoR GH  $ VXD JHUDomR SDJRX
novamente o preço dos mal entendidos, da confusão entre desenvolvimentismo
e populismo e do nacionalismo com o comunismo.
1DVFHX GLD  GH IHYHUHLUR GH  QD FLGDGH GH 0LUDGRU YDOH GR
,WDSHFXUX VHUWmR GR 0DUDQKmR ÀOKR GR MXL] GH 'LUHLWR 0RXUmR 5DQJHO 9LXVH
pela tradição familiar direcionado a Faculdade de Direito, onde se bacharelou,
PDVQmRHUDDVXDVHDUD'HVSHUWDGRSDUDRVHVWXGRVGDÀORVRÀDGDVFLrQFLDV
sociais, nelas viu instrumentos para decifrar o Brasil. De uma região de homens
destemidos, na juventude, nos anos trinta, tocado pelas injustiças sociais
ÀOLRXVH DR 3DUWLGR &RPXQLVWD PLOLWRX QD $OLDQoD /LEHUWDGRUD 1DFLRQDO DWp
que a Intentona de 35 levasse a sua extinção e consequente prisão dos seus
membros. Amargou o cárcere, nele, aproveitou para aprofundar os estudos.
Trabalhou em São Luís, e depois migrou para o Rio de Janeiro, palco de sua
WUDMHWyULDSURÀVVLRQDOFRPRMRUQDOLVWDHHFRQRPLVWDSUROtÀFRSXEOLFDQGRWHVHV
ensaios, artigos que o consagraram como um os principais intérpretes do Brasil
moderno. Aposentado do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e
Social (BNDES), que ajudara a fundar, prosseguiu a pregação cívica em defesa
dos valores nacionais até falecer no dia 4 de maroRGHQR5LRDFLGDGHTXH
o acolheu e o viu brilhar nas letras pátrias. Sua geração de economistas ocupava
cargos de direção nos bancos estatais para servir os interesses públicos e não
para deles servir-se enriquecendo. Ele é um paradigma dessa postura ética.
Depois do triunfo nacional, Rangel, de volta a Província, viu-se empossado
QD$FDGHPLD0DUDQKHQVHGH/HWUDVQDFDGHLUDGDTXHOHVRGDOtFLR7HYHFRPR
antecessor José Jansen Ferreira, foi recepcionado por Josué Montello. Já se
transformara em unanimidade nos círculos intelectuais do país.
No Maranhão, os seus discípulos reunidos no Instituto de Pesquisas
Econômicas e Sociais (IPES), liderados por Raimundo Palhano, José Augusto
dos Reis, Rossini Corrêa, Maureli Costa, Pedro Braga, Ana Maria Saraiva, José
Caldeira, Saturnino Moreira, José Policarpo Costa Neto, publicaram “Um Fio
GH 3URVD $XWRELRJUiÀFD FRP ,JQDFLR 5DQJHOµ XP ORXYiYHO DQWHFHGHQWH GHVWD
publicação.
Agora, na passagem do seu centenário, a Editora da Universidade
)HGHUDO GR 0DUDQKmR SUHVWDOKH D VLJQLÀFDWLYD KRPHQDJHP GH SXEOLFDU HVWH

D
D 14
WtWXOR´,JQDFLR5DQJHOGHFLIUDGRUGR%UDVLOµ1RVVRVFRPSDQKHLURVQD(VFRODGH
Formação de Governantes (EFG), Raimundo Palhano, Rossini Corrêa, Jhonatan
Almada, estão à testa do merecido tributo.
5RVVLQLDXWRUGH´&DQomR'·$PLJRSDUD,JQDFLR5DQJHOµVXJHUHTXHD
8QLYHUVLGDGH)HGHUDOGR0DUDQKmROKHFRQFHGD´SRVWPRUWHPµRWtWXORGH'RXWRU
´+RQRULV&DXVDµ1DGDPDLVPHUHFLGR
Sem nunca ter sido professor universitário, era por excelência o
pesquisador, o acadêmico, a quem a cultura nacional deve muito. Sem adentrar
nas categorias rangelianas propostas para as ciências econômicas, reservadas
DRVHVSHFLDOLVWDVÀFRDSHQVDUFRPRRPHVWUHDYDOLDULDDSUHVHQWHFRQMXQWXUD
socioeconômica brasileira. O que diria a Guido Mantega, um dos seus discípulos.
Profundamente ético e buscando sempre o equilíbrio da Justiça, provavelmente
recomendaria aos atuais dirigentes: não deixem de ouvir as vozes das ruas,
ecoadas nas manifestações de junho do ano passado, naqueles dias que
abalaram o Brasil.

-RmR%DWLVWD(ULFHLUDpDGYRJDGRSURIHVVRUXQLYHUVLWiULRHGLUHWRUGD()*

IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

D
D 15
Introdução às avocações,
conjunções e incursões
na obra de Ignacio Rangel
-KRQDWDQ$OPDGD
5LFDUGR=LPEUmR$IIRQVRGH3DXOD
)HOLSH0DFHGRGH+RODQGD

Este livro nasceu da ideia de homenagear Ignacio Rangel pela passagem


GH VHX &HQWHQiULR GH 1DVFLPHQWR   KRPHQDJHP VHGLDGD QR VHX
Estado natal, o Maranhão. Ao longo das reuniões de organização das homenagens
a proposta de um livro foi lançada. A ideia para materializar-se demandou a
escolha e articulação dos colaboradores. Inúmeros acolheram o convite. Vindos
de vários estados do Brasil, diferentes gerações, contemporâneos, coetâneos e
admiradores de Rangel, aceitaram participar. Daí o livro veio ao mundo e instalou-
se no suporte de papel para assumir seu lugar entre os bens mais preciosos que
a humanidade lega às gerações atuais e vindouras: o conhecimento.
A iniciativa do Conselho Regional de Economia do Maranhão (CORECON-
MA), do Departamento de Economia e do Programa de Pós-graduação em
Desenvolvimento Socioeconômico da Universidade Federal do Maranhão IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
(PPGDSE/UFMA), reinicia um movimento de resgate do pensamento de Ignacio
Rangel em terras gonçalvinas, cuja retomada em 2008 foi abruptamente
LQWHUURPSLGDHP
A organização das homenagens pelo centenário de nascimento de Ignacio
Rangel reuniu um grupo de interessados sob a inspiração do valor imaterial que
esse trabalho representa e dos seus desdobramentos futuros. Sob a liderança do
CORECON-MA, Luís Spíndola, Felipe de Holanda, Raimundo Palhano, Saturnino
Moreira, Ricardo Zimbrão, Manoel Barros, Jhonatan Almada, dentre outros,
articularam este livro no âmbito da Comissão Organizadora do centenário.
As homenagens pela passagem do referido centenário no Maranhão
além do lançamento deste livro incluem a realização de um seminário sobre a

D
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IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

obra de Ignacio Rangel, a inauguração de sala no CORECON-MA com o nome


de Ignacio Rangel, a concessão do título de Doutor Honoris Causa SRVWPRUWHP
pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA) a Ignacio Rangel, sessão de
homenagem na Assembleia Legislativa do Maranhão, o lançamento de selo
pelos Correios e a criação da Medalha Ignacio Rangel pelo CORECON-MA.

O livro como nascimento

O presente livro tem dois antecessores dos quais é herdeiro e continuador.


2SULPHLURIRLROLYUR´)LRGHSURVDDXWRELRJUiÀFDFRP,JQDFLR5DQJHOµ  
entrevista com Ignacio Rangel conduzida por Raimundo Palhano, Rossini Corrêa,
Maureli Costa e Pedro Braga dos Santos, jovens intelectuais do Instituto de
Pesquisas Econômicas e Sociais (Ipes). Esse órgão de estudos e pesquisas
do Governo do Estado do Maranhão foi extinto três anos depois, no Governo
5RVHDQD6DUQH\GHYLGRDUD]RiYHOLQÁXrQFLDGRQHROLEHUDOLVPRUDGLFDOYLJHQWH
no Brasil de então. O livro seria o primeiro volume da Coleção Ignacio Rangel a
ser editada em parceria com a Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e o
6HUYLoRGH,PSUHQVDH2EUDV*UiÀFDVGR(VWDGR 6,2*( PDVFRPDH[WLQomRGR
Ipes, se tornou o único volume publicado.
Ressaltamos que as fotos daquela entrevista foram incorporadas ao
presente livro, rememorando aquele fato e recolocando-o como marco inaugural
da aproximação de Rangel com o Maranhão. Um Rangel maduro que colhia os
frutos de sua longa semeadura, um Maranhão dual e oligárquico como àquele em
que viveu nos seus moços anos. Além das fotos, a caricatura de Baron também
publicada no bojo daquela entrevista, foi base para a capa deste livro.
2VHJXQGROLYURIRL´$VLQJXODULGDGHGRSHQVDPHQWRGH,JQDFLR5DQJHOµ
(2008), lançado no âmbito do Instituto Maranhense de Estudos Socioeconômicos
H&DUWRJUiÀFRV ,PHVF yUJmRYLQFXODGRj6HFUHWDULDGH(VWDGRGR3ODQHMDPHQWR
e Orçamento do Maranhão, criado no Governo Jackson Lago em 2007. Raimundo
Palhano, um daqueles jovens intelectuais do Ipes, se tornou Presidente do
Imesc e retomou o plano editorial da referida Coleção Ignacio Rangel. O livro
foi o segundo volume da Coleção, publicado dezessete anos depois. Com a
LQWHUUXSomRGR*RYHUQR-DFNVRQ/DJRHPRSODQRHGLWRULDOGD&ROHomRIRL
novamente abandonado.
Parece-nos que os referidos livros obedeceram a um ciclo involuntário
GHSURGXomRRTXHFRPRHQVLQD5DQJHOQDHStJUDIHQmRVLJQLÀFDUHSHWLomRGD

D
D 18
KLVWyULD 2 SULPHLUR QRV DQRV  R VHJXQGR QD SULPHLUD GpFDGD GR VpFXOR
XXI e este na segunda década do século XXI. O primeiro nasceu no contexto
da recente democratização, de efervescência intelectual e social. Aqueles anos
testemunharam uma das últimas manifestações de força da sociedade civil
organizada e dos movimentos sociais, resultando no LPSHDFKPHQW de Fernando
Collor de Melo, primeiro presidente civil eleito democraticamente depois da
GLWDGXUDPLOLWDUGH2VHJXQGRVXUJLXHPXPPRPHQWRGHWUDQVLomRSROtWLFD
local e no bojo de um novo grupo no poder, surfava no apagar das luzes da
expansão econômica do segundo mandato do Governo Lula da Silva e no início
GDFULVHHFRQ{PLFDGH
Comparamos a publicação de um livro com o nascimento para Hannah
Arendt. Segundo ela, o recém-chegado tem a oportunidade de começar algo
novo, recolocando o mundo em relação à sua infância, isto é, à sua capacidade
de começar ou começar-se. Este livro emerge em um ano de transição carregado
da possibilidade da mudança, do começar algo novo. Também foi tocado pelos
ventos das mobilizações sociais que varreram o Brasil em junho de 2013 e
continuam a ocorrer de forma pulverizada. Mesmo que nasça no contexto dos
desdobramentos da crise econômica mencionada, sinaliza para a necessidade
de outros caminhos para o Brasil e para o Maranhão. Exige o pensar com a
SUySULD FDEHoD H D UHÁH[mR ULJRURVD H UHVROXWLYD GRV SUREOHPDV GH QRVVD
realidade, atentos às conexões entre o local e o global – característica essencial
da produção intelectual de Rangel.
Um quadro de Paul Klee representa um peixe diferente nadando em
água escura na companhia de outros. Ele se distinguia dos demais por sua
luminosidade dourada, enquanto os outros se confundiam com a água escura.
Ignacio Rangel entre os economistas foi um dos poucos intérpretes do Brasil, IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
entre estes, um dos poucos decifradores. Nesse sentido, tomando o conjunto
de textos dos colaboradores, entendemos que a luz própria do pensamento
rangeliano tem e terá um papel fundamental no dissipar das penumbras pairando
sobre as análises e decisões quanto aos problemas brasileiros e maranhenses.
Dessa forma, o livro está organizado três partes, reunindo dezoito
WH[WRV $ SULPHLUD IRL GHQRPLQDGD GH ´,JQDFLR 5DQJHO HYRFDo}HVµ H UH~QH
artigos de jornal, cujos autores avocam, no sentido de chamar para si, a defesa
da importância e atualidade do pensamento rangeliano. A segunda parte foi
GHQRPLQDGD ´,JQDFLR 5DQJHO FRQMXQo}HVµ UHXQLQGR WH[WRV HQVDtVWLFRV RX
acadêmicos que buscam uma análise de conjunto da obra rangeliana. A terceira
SDUWHIRLGHQRPLQDGDGH´,JQDFLR5DQJHOLQFXUV}HVµFRQJUHJDQGRRVWH[WRVTXH
incursionam em determinados aspectos da obra rangeliana, enfatizando esses

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

aspectos em relação ao conjunto.


Avocações

A primeira parte é constituída por três textos. O primeiro texto, intitulado


Ignacio Rangel em São Luís, de autoria de Bandeira Tribuzi, foi escrito em
TXDQGR5DQJHODOFDQoDUDSURMHomRQDFLRQDODGYLQGDGHVXDDWXDomRQRV
governos Vargas, Juscelino Kubistchek e João Goulart. Tribuzi destaca o renome
HDFDSDFLGDGHGH5DQJHOPHQRVSRUVXDDWXDomRSURÀVVLRQDOHPDLVSRUVXD
SURGXomRLQWHOHFWXDOVREUHWXGRSHOROLYUR´$,QÁDomR%UDVLOHLUDµ(QFHUUDRDUWLJR
fazendo um apelo ao Governo do Estado que convide Rangel a contribuir mais
com o Maranhão, instando-o a permanecer para uma ou mais conferências sobre
o planejamento e o desenvolvimento.
O segundo texto, intitulado &RQÀVV}HVGH,JQDFLR5DQJHO, de autoria de
9DPLUHK&KDFRQIRLHVFULWRHPHFRPHQWDRODQoDPHQWRGROLYUR´8PÀR
GHSURVDDXWRELRJUiÀFDFRP,JQDFLR5DQJHOµ(OHGHVWDFDTXH5DQJHOWHPRVHX
lugar na História das Ideias do Brasil. A combinação de marxismo e positivismo,
segundo Chacon, foi o caminho de Rangel para o desenvolvimentismo. Ainda que
tenha divergências quanto às propostas desenvolvimentistas, Chacon considera
que a visão dualista do Brasil, proposta por Rangel, continua interessante e
importante.
O terceiro texto, denominado Ignacio Rangel, é de autoria de Marcelo
Miterhof, escrito em 2013, referencia a contribuição de Rangel quanto ao
HQWHQGLPHQWRGRSDSHOGDLQÁDomRQRSURFHVVRGHGHVHQYROYLPHQWREUDVLOHLUR
Ressalta que as posições de Rangel mudavam, como ocorreu com a utilização
de empresas públicas para a expansão da infraestrutura~WLOQRVDQRVGH
mas incompatível com a capacidade de endividamento da União nos anos de
6HJXQGR0LWHUKRIHVVDPXGDQoDGHSRVLomRQXQFDLPSOLFRXQRDEDQGRQR
de sua convicção de esquerda e de sua heterodoxia. Conclui que ainda que se
discorde pontualmente de Rangel, se existissem mais economistas como ele, a
economia como teoria e política avançaria mais.

Conjunções

A segunda parte é constituída por seis textos. O primeiro se intitula O


FHQWHQiULRGDXVLQDGHSHQVDPHQWR,JQDFLR5DQJHODFDSDFLGDGHGHGHFLVmRH
RVDQWRGHFDVD, de autoria de Raimundo Palhano. O autor esclarece que o lugar

D
D 20
de Rangel se situa entre os intérpretes do Brasil pela originalidade, inovação
H FDSDFLGDGH IRUPXODGRUD $ÀUPD TXH DSHVDU GRV LQ~PHURV HVIRUoRV GH
sistematização dos últimos anos, ainda não dispomos de um dimensionamento
completo da obra ignaciana.
Rangel, segundo Palhano, permanece como um dos poucos economistas
que conseguiram produzir sistema teórico e conceitual abrangente, complexo
e articulado sobre a evolução e a realidade da economia brasileira. Palhano
ressalta que no Maranhão, Rangel não foi plenamente descoberto, permanece
privilégio de restritíssimos grupos sociais bem formados. Conclui que o resgate
GDREUDLJQDFLDQDTXHWHYHR%UDVLOFRPRGHVDÀRHODERUDWyULRFRQWULEXLUiSDUD
que o Maranhão saia da penumbra, exposta de forma crua pela violência do
presídio de Pedrinhas em São Luís, de repercussão nacional e internacional.
O segundo texto intitula-se &DQomR G·DPLJR SDUD ,JQDFLR 5DQJHO, de
autoria de Rossini Corrêa, destaca que as relações com Rangel, gradualmente
se tornaram menos institucionais até se tornarem uma amizade transgeracional.
5HFRQVWUyL D ELRJUDÀD GH ,JQDFLR 5DQJHO SDUD GHVWDFDU D XQLÀFDomR WHRULD H
SUiWLFDTXHOKHHUDPFDUDFWHUtVWLFDVHVXDVLQÁXrQFLDVLQWHOHFWXDLV(QWUHHODV
Rossini destaca a de Karl Marx, cujo instrumental teórico e metodológico, Rangel
se apropriou de forma criativa. Aponta que na sua atuação acadêmica busca
PDQWHUYLYRRSHQVDPHQWRGH,JQDFLR5DQJHOQDVRULHQWDo}HVGHPRQRJUDÀDV
dissertações e teses que realiza, colhendo de seus orientandos, surpresa e
deslumbramento, quando entram em contato com a obra rangeliana.
Muitos intelectuais, segundo Rossini, por temer a originalidade de
Rangel, o ignoravam ou silenciavam quanto às suas ideias, entre eles, cita Celso
)XUWDGR'HOÀP1HWWRH1HOVRQ:HUQHFN6RGUpFXMDYLJrQFLDLQWHOHFWXDODWXRX
em desfavor de Rangel. IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
Palhano e Rossini são dois dos intelectuais daquela geração pioneira
do Ipes que introduziram Rangel no Maranhão. Convergem ao apontar nos seus
textos a necessidade de um novo volume que se somará às Obras Reunidas de
Ignacio Rangel (2 volumes), organizada por César Benjamin e publicada pela
Editora Contraponto. Esse novo volume deveria resgatar artigos, entrevistas,
SDUHFHUHV SURMHWRV UHODWyULRV H HSLVWRORJUDÀD GH ,JQDFLR 5DQJHO GLVSHUVD
pouco conhecida ou mesmo inédita. Rossini organizou um pequeno almanaque
reunindo boa parte do material que está em seu acervo particular, dos quais
incorporamos com exclusividade para o presente livro: os textos de Bandeira
Tribuzi e Vamireh Chacon, além das capas dos livros publicados por Rangel.
O terceiro texto denomina-se Ignacio Rangel e seus interlocutores, cuja

D
D 21
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

autoria é de Armen Mamigonian, nas palavras de Palhano, “um rangeliano dos


PDLVIHVWHMDGRVHJXDUGLmRYDORURVRGROHJDGRGRDXWRUµ$UPHQDUJXPHQWDTXH
é uma tarefa difícil explicitar as relações de Rangel com seus interlocutores,
sobretudo pelo ostracismo que sofreu de tempos em tempos em face da
mercantilização das ideias que valoriza e se submete aos interesses políticos do
momento.
 $UPHQDÀUPDTXHRLUUDFLRQDOLVPRDFRPSDQKDRDYDQoRGRFDSLWDOLVPR
e afeta sobremaneira o trabalho intelectual. Os que antes poderiam ser
considerados artesãos das ideias que não negavam seus predecessores e
LQÁXHQFLDGRUHV DR ORQJR GR WHPSR SDVVDUDP D SLUDWDV GDV LGHLDV SURQWR D
HVFRQGHUVXDVLQÁXrQFLDVH[HPSORGLVVR)HUQDQGR+HQULTXH&DUGRVRH9DUJDV
Llosa.
Ignacio Rangel, segundo Armen, apontava que a desfaçatez da direita e a
incompetência das esquerdas, levaram o Brasil a inúmeros desastres. À medida
que o irracionalismo avançava na América Latina e no Brasil, crescia a “angústia
GDLQÁXrQFLDµHDPLVpULDGRVLQWHOHFWXDLVEUDVLOHLURVDPDUUDGRVDRGRJPDWLVPR
ou hábeis em omitir os créditos ou as fontes inspiradoras de suas ideias.
A contribuição de Rangel pirateada ou utilizada, mas omitida por muitos
ao longo das décadas, na visão de Armen, reforça a necessidade de estudar
de forma mais aprofundada os interlocutores declarados ou angustiados.
Armen conclui que enquanto Celso Furtado e Caio Prado Júnior foram grandes
intelectuais, Rangel foi um extraordinário profeta, cuja nobreza moral e estirpe
são singularidades no tempo.
$ GLDOpWLFD GD UHEHOGLD GHVGH 5DQJHO DWp KRMH de autoria de Fernando
Pedrão é o quarto texto. Pedrão compreende que a rebeldia de Rangel está
em sua luta contra a redução do planejamento a um horizonte de curto prazo
enquanto mero instrumento de governo, contraditoriamente a uma visão
estrutural histórica da sociedade brasileira que impele sua utilização como meio
de promover transformações sociais.
A rebeldia essencial de Rangel, segundo Pedrão, está em compreender
que as condições nacionais de desenvolvimento estão internacionalmente
situadas no ambiente cíclico da economia mundial. Colocando-o na linha de
frente da crítica às teorias de desenvolvimento patrocinadas pelas Nações
Unidas, subordinadas aos Estados Unidos e privatistas, bem como, as limitações
GDVSROtWLFDVNH\QHVLDQDVQDVXSHUDomRGRVXEGHVHQYROYLPHQWR
Segundo Fernando Pedrão, a crítica de Rangel ao Plano Trienal de
VHGHXMXVWDPHQWHSHORIDWRGHVWHLJQRUDURSDSHOGRFLFORGHSHQGHQWHQD

D
D 22
acumulação periférica, apontando a limitação de uma política de curto prazo ali
delineada com a verdadeira condição estrutural da economia periférica.
 3HGUmRDÀUPDTXHDDWXDOFULVHLQVWDODGDQRFHQWURGRVLVWHPDGRFDSLWDO
fragiliza sua capacidade de controle do poder, atualiza as críticas de Rangel às
políticas de curto prazo e torna inevitável a volta às análises de longo prazo e a
teoria dos ciclos. Isso demanda a superação do absolutismo lógico e a construção
da análise estrutural por um movimento de autoregeneração do marxismo.
2YRRGDiJXLDUHPLQLVFrQFLDVGRSHQVDPHQWRFUtWLFRGH,JQDFLR5DQJHO
de autoria de José Maria Dias Pereira é o quinto texto. O autor compara a
capacidade crítica e de largo alcance de Rangel, incompreendida à esquerda e
à direita, com a águia de Zeus. O pensamento rangeliano em único voo abrangia
a macro e a microeconomia, entendendo-a como processo histórico, cíclico e
dialético.
Pereira considera a teoria dos ciclos e a tese da dualidade como as
maiores contribuições de Rangel para a análise e compreensão da economia
brasileira, sobretudo por evidenciar a singularidade do caso brasileiro onde
existe uma interação entre o desenvolvimento das forças produtivas internas e
externas em face de sua dependência em relação às economias centrais.
Rangel, segundo Pereira, é tanto profeta como visionário, devendo ser
resgatado para inspirar as novas gerações de economistas. Profeta, como já
DÀUPDGRSRU$UPHQSRUSUHGL]HURIXWXURYLGHRFDVRGDFULVHQRVDQRV
HDUHFHVVmRGRVDQRVFXMDVROXomRDQWHFLSDDLGHLDGHSULYDWL]DomRGRV
VHUYLoRVS~EOLFRVSUDWLFDGDQDGpFDGDGH9LVLRQiULRSRUVRQKDUTXHR%UDVLO
caminharia para o socialismo, não o estatismo soviético, mas sua perspectiva de
socialismo, elemento a ser estudado na sua obra com mais precisão.
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
O cartão de visitas de Ignacio Rangel e a notícia de seu falecimento pelo
jornal Folha de São Paulo que ilustram o livro são achados de Pereira. O cartão
pOHPEUDQoDGHVHX~OWLPRHQFRQWURFRP5DQJHOHPSRURFDVLmRGHXPD
palestra na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) no Rio Grande do Sul.
Pereira nos chamou atenção quanto ao nome de Rangel.
 $JUDÀDGRQRPHGH,JQDFLR5DQJHOFRQIRUPHSHUFHELGRQDVFDSDVGH
seus livros e nas citações dos colaboradores deste livro muda bastante. Ignacio
p HVFULWR VHP DFHQWR DJXGR QD OHWUD ´Dµ $OJXPDV YHUV}HV HTXLYRFDGDPHQWH
SXEOLFDUDPQRFRPR,QiFLRVHPDOHWUD´JµHFRPDFHQWRQDOHWUD´DµRXFRPR
,JQDFLRFRPDFHQWRQDOHWUD´Dµ+á em Ignacio Rangel, uma escrita própria do
VHXQRPHFXMDHVSHFLÀFLGDGHUHFRQKHFHPRVHLQFRUSRUDPRV

D
D 23
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

O sexto texto é 8P PHVWUH GD HFRQRPLD EUDVLOHLUD ,JQDFLR 5DQJHO


UHYLVWDGR, de autoria de Luiz Carlos Bresser-Pereira e José Márcio Rego.
Inicialmente, os autores ressaltam a imaginação criadora de Rangel, a qual
provavelmente nunca será conhecida no exterior, bem como, o ostracismo
evidenciado pela falta de reedição de seus livros.
 7UDoDPXPSHUÀOELREOLRJUiÀFRGH5DQJHOEDVWDQWHULFRXPDERDSDUWH
LQVSLUDGDQDREUDXP)LRGH3URVD$XWRELRJUiÀFDFRP,JQDFLR5DQJHO(PJHUDO
as citações que encontramos a essa obra, já referenciada nesta Introdução,
citam-na como da autoria de Ignacio Rangel e não como obra sobre e com Ignacio
Rangel. Ao optar pela segunda forma, omitem-se os nomes dos intelectuais
PDUDQKHQVHVTXHÀ]HUDPDHQWUHYLVWD7DOYH]RIDWRGHVVHVQRPHVQmRHVWDUHP
na capa do livro, leve a esse equívoco de citação.
 2PpWRGRGH5DQJHOWDPEpPpGHVWDFDGRSHORVDXWRUHV$ÀUPDPTXHR
método histórico e dialético é utilizado por Rangel com bastante liberdade e como
arma heurística poderosa. O bom desenvolvimento da teoria econômica para
Rangel necessita tanto do estudo do estado atual da teoria como dos clássicos
do passado, aliado ao entendimento de que na ciência econômica tudo muda ao
mudar a realidade estudada.
Ressaltam, assim como Pereira, que os ciclos, a dualidade básica e a
LQÁDomR VmR DV PDLV UHOHYDQWHV FRQWULEXLo}HV GH 5DQJHO 4XDQWR j GXDOLGDGH
básica compreendem que sua ideia básica já existia no pensamento de Rangel,
FRQIRUPH VHX SUySULR GHSRLPHQWR GHVGH  TXDQGR WLQKD  DQRV GH
LGDGH0DVQHFHVVLWRXGHXPDORQJDPDWXUDomRDWpVXDSXEOLFDomRHP
2 SLRQHLULVPR GH 5DQJHO QR TXH WDQJH j LQÁDomR p GHVWDFDGR SHORV DXWRUHV
sobretudo por estabelecer as bases da teoria endógena da moeda e apontar as
OLPLWDo}HVGHVXDXWLOL]DomRFRPRLQVWUXPHQWRGHSROtWLFDHFRQ{PLFD LQÁDomR
galopante ou depressão econômica). Além disso, também destacam o fato da
´FXUYD GH 5DQJHOµ FRPSURYDU TXH D LQÁDomR VXUJH RX VH H[DFHUED TXDQGR D
economia desaquece e desparece ou reduz sua intensidade quando a economia
se aquece.

Incursões

A terceira parte é constituída por nove textos. O primeiro, intitulado


2 GHVDÀR GDV FRQFHVV}HV GH VHUYLoRV GH XWLOLGDGH S~EOLFD DWXDOLGDGH GR
SHQVDPHQWRGH5DQJHO, de autoria de Felipe de Holanda, parte do diagnóstico

D
D 24
GH,JQDFLR5DQJHODUHVSHLWRGDFULVHEUDVLOHLUDQDGpFDGDGH7DOFULVHIRL
avaliada como um período de superposição da fase descendente do quarto ciclo
GH .RQGUDWLHII LQDXJXUDGD FRP D FULVH GR SHWUyOHR HP  TXH GHX OXJDU
uma crise mundial sincronizada, com impactos maiores nos países importadores
de petróleo, a exemplo do Brasil) com uma crise interna. Esta se caracterizava
FRPRXPDFULVHGRSDGUmRGRÀQDQFLDPHQWRGRVHWRUS~EOLFREUDVLOHLURWHQGR
FRPRGHFRUUrQFLDRDSURIXQGDPHQWRGRGHVFRQWUROHLQÁDFLRQiULR'HVVDIRUPD
o diagnóstico de Rangel apontava a contraposição entre um setor privado
superinvestido, principalmente nos segmentos de bens de capital e de insumos
intermediários, e um setor público subinvestido, principalmente nos segmentos
GRV VHUYLoRV GH XWLOLGDGH S~EOLFD WDLV FRPR FRPXQLFDo}HV HOHWULÀFDomR
transportes, saneamento básico, entre outros. A solução para o desbloqueio dos
investimentos seria a conversão da concessão dos serviços de utilidade pública
das empresas públicas para empresas privadas, as quais poderiam acessar
fontes de crédito públicas e privadas de forma mais barata e com menores
condicionalidades do que as empresas públicas.
O mecanismo proposto por Rangel para permitir às empresas privadas
concessionárias o acesso ao crédito público e privado seria o aval do Estado
brasileiro, com base em garantias hipotecárias sobre as instalações e
equipamentos das concessionárias dos serviços públicos. Neste arranjo,
impunha-se a prática de um realismo tarifário, que tivesse como referência o
custo da execução dos referidos serviços, considerando-se a soma das despesas
FRUUHQWHV GD SUHVWDomR GRV UHIHULGRV VHUYLoRV D GHSUHFLDomR GR FDSLWDO À[R
investido e um lucro legalmente autorizado referenciado no custo de capital, de
acordo com as condições do mercado acionário e de títulos internos. Tal era, em
suma, segundo a formulação de Rangel, o mecanismo que permitiria a superação
da crise recessiva de então e a geração de um novo ciclo de crescimento. IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
De acordo com Holanda, hoje, um quarto de século após, é impressionante
como a análise de Rangel e suas prescrições permanecem pertinentes. O tema
das concessões dos serviços públicos às empresas privadas transformou-se na
grande aposta para a aceleração dos investimentos e a consequente viabilização
de uma taxa de crescimento do produto menos modesta em comparação
DR SDWDPDU TXH YLJRUD DSyV D HFORVmR GD FULVH ÀQDQFHLUD LQWHUQDFLRQDO GH

O texto de Paulo de Tarso Pesgrave Leite Soares, &RQYHUJrQFLDV HQWUH
,JQDFLR5DQJHOH'HOÀP1HWWRXPDDQiOLVHFRPEDVHHP/rQLQ, se divide em
três partes. Na primeira parte mostra o consenso entre autores marxistas,
estruturalistas e até liberais de que a agricultura brasileira entravava o

D
D 25
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

desenvolvimento do país.
$VHJXQGDSDUWHPRVWUDTXH'HOÀP1HWWRH,JQDFLR5DQJHOVHRSXVHUDP
a esse discurso consensual, negando-o ponto por ponto. Isto é, negaram que a
agricultura não respondia aos preços do mercado; negaram que a oferta agrícola
era inelástica; negaram que a agricultura atrapalhava o desenvolvimento da
indústria; negaram que faltasse ao país uma revolução agrícola e/ou agrária;
negaram que a agricultura tivesse qualquer responsabilidade pela crise em
TXHRSDtVSDVVRXQRVDQRVHlast not but least negaram que houvesse
qualquer perspectiva estagnacionista para a economia brasileira. Para o autor,
mais surpreendente é ver que os argumentos dos dois obedecem a uma matriz
teórica em estreita concordância com a de Lênin.
A terceira parte cumpre três objetivos. Em primeiro lugar, que a
FRQYHUJrQFLD HQWUH DV SRVLo}HV GH 5DQJHO H GH 'HOÀP 1HWWR WHP VXD UDL] QD
maneira como eles entendem o relacionamento entre a cidade e o campo no
GHVHQYROYLPHQWRGRFDSLWDOLVPR'RPHVPRPRGRTXH/rQLQ5DQJHOH'HOÀP
Netto entendem que o movimento da transformação da economia se dá da
cidade para o campo e não do campo para a cidade. É a cidade que transforma
o campo.
(PVHJXQGROXJDUPRVWUDTXHKDYLDHQWUH5DQJHOH'HOÀP1HWWRXPD
convergência tática e uma oposição estratégica. A acentuação do desenvolvimento
GR FDSLWDOLVPR SDUD 5DQJHO HUD WiWLFD H SDUD 'HOÀP 1HWWR HUD HVWUDWpJLFD
5DQJHO UHSUHVHQWDYD RV LQWHUHVVHV GR SUROHWDULDGR 'HOÀP 1HWWR UHSUHVHQWDYD
os interesses da grande burguesia progressista. O consenso ao que eles se
opunham representava o interesse da pequena burguesia. Um confronto que foi
tão bem descrito por Lênin no embate contra os populistas russos.
Em terceiro lugar, sugere que a diferença entre Rangel e os demais
notórios marxistas também está em que estes, ao que parece, subestimavam
a capacidade do capitalismo para submeter formas sociais pretéritas e/ou
superestimavam a capacidade para, no Brasil, se transformar o desenvolvimento
GR FDPSR SDVVDQGR GD YLD ´SUXVVLDQDµ SDUD D YLD ´IDUPHUµ 8PD yEYLD
contradição coerente com a matriz pequeno-burguesa que se vê como marxista.
Em (OHPHQWRV GH HFRQRPLD GR SURMHWDPHQWR, assinado por Márcio
Henrique Monteiro de Castro, o autor faz uma leitura do homônimo escrito
por Ignacio Rangel com o objetivo de servir de material didático num curso da
8QLYHUVLGDGH)HGHUDOGD%DKLD 8)%$ HPHSXEOLFDGRHP2REMHWLYR
de Castro é incentivar a leitura e a avaliação de um texto que foi mantido hibernado
pela ausência de debate, bem como provocar uma aprofundada investigação do

D
D 
legado rangeliano.
Segundo Castro, o objetivo de Rangel com (OHPHQWRV GH HFRQRPLD
GR SURMHWDPHQWR foi construir uma teoria econômica para um novo modo de
produção que estava tomando corpo com as transformações do capitalismo do
VpFXOR;;HSULQFLSDOPHQWHFRPDHFRQRPLDSODQLÀFDGDVRYLpWLFD
Para tanto, Rangel utilizou-se de um ecletismo teórico econômico
LQVWUXPHQWDLV NH\QHVLDQR QHRFOiVVLFR FOiVVLFR  FRPELQDGR FRP XPD
profunda concepção historicista, típica de um autor que vê o mundo pela lente do
PDU[LVPR5DQJHOVHMXVWLÀFDDÀUPDQGRTXHRSRQWRGHSDUWLGDSDUDRHVWXGRGD
economia é a história, pois a ciência econômica varia com o modo de produção
e este muda ininterruptamente. Assim, nômeno (história) e fenômeno (teoria) se
complementam.
$ SDUWLU GHVVD DERUGDJHP HFOpWLFDKLVWRULFLVWD R DXWRU GHÀQH
SURMHWDPHQWR, como uma prática que se desenvolve em paralelo com uma teoria
que evolui no tempo e se alimenta com os problemas e soluções enfrentadas por
aproximações sucessivas e sistematizando, quando for possível, experiências dos
analistas que, naturalmente, são de diferentes escolas teóricas e de diferentes
SURÀVV}HV
A HFRQRPLDGRSURMHWDPHQWR, segundo Rangel, seria um modo de produção
que está em desenvolvimento, no ocidente e no oriente. Seu objetivo é produzir
valor de uso (como é universal na atividade econômica qualquer que seja o modo
de produção) regulado pela vontade consciente e racional, através de um cálculo
econômico. A categoria utilidade, apesar de seus problemas de medida, é a nova
base para o cálculo econômico. Plano e projeto, através de seleção de técnicas
e alocação de recursos, são seus instrumentos fundamentais. Isto difere do
capitalismo onde a produção de valores de uso é regulada pelo mercado através IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
do valor, seja ele explicado pelo trabalho, para os clássicos, ou pela utilidade
marginal, para os neoclássicos.
Rangel, com isso, desenvolve a categoria utilidade afastada da categoria
valor, isto é, o autor elabora uma categoria nova: a XWLOLGDGHDEVWUDWD. O valor como
nômeno e a categoria teórica valor como fenômeno estão relacionados a uma
economia mercantil. A HFRQRPLDGRSURMHWDPHQWR, que começa a tomar corpo, é
o devir, está relacionada a outro momento histórico, outro nômeno, portanto. A
utilidade está relacionada com essa problemática, ou seja, se exprime no fato de
que todos os objetos úteis atendem a uma necessidade humana e social.
Castro conclui que hoje a HFRQRPLD GR SODQHMDPHQWR está superada.
(PSULPHLUROXJDUDSHUHVWUyLFDRÀPGD8566HDWUDQVLomRDFHOHUDGDSDUDR

D
D 27
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

capitalismo dos países da antiga cortina de ferro eliminaram, naquelas plagas,


qualquer elemento de uma economia de projetamento.
'DPHVPDIRUPDRNH\QHVLDQLVPRDUPDPHQWLVWDGRVQRUWHDPHULFDQRV
se distanciou da convergência, esperada por Rangel, na produção de utilidades
GHQWURGHXPDSROtWLFDGHHPSUHJR3RU~OWLPRDFRQYHUVmRGD&KLQDHPRÀFLQD
GRPXQGRFRPHPSUHVDVJOREDLVHVWUDQJHLUDVRXQDFLRQDLVHDDÀUPDomRGD
economia de mercado em condições de capitalismo selvagem atuam em sentido
contrário a qualquer coisa próxima a uma economia de projetamento, pois já
GHYHHVWDUFODURTXHDH[LVWrQFLDGHSODQRVTXLQTXHQDLVRXQmRpLQVXÀFLHQWH
SDUDGHÀQLURSURMHWDPHQWRSURGXWRUGHXWLOLGDGHV
A HFRQRPLD GR SURMHWDPHQWR também entrou em colapso nos países
SHULIpULFRV$IRUPDIRLDLQWHJUDomRÀQDQFHLUDHSURGXWLYDGHQWURGRSURFHVVRGH
globalização contemporâneo. Os estados perderam a capacidade de programar
RV LQYHVWLPHQWRV H GHÀQLU D XWLOL]DomR GRV IDWRUHV QDFLRQDLV 2V EDQFRV GH
desenvolvimento se transformaram em bancos de investimentos. O projeto como
instrumento de avaliação de investimentos e alocação de recursos cedeu a vez
para operações de mercado onde os usos e as fontes são desprezadas tendo em
YLVWDDVSHUVSHFWLYDVGHYDORUL]DomRÀFWtFLDV
$LPSRUWkQFLDKLVWyULFDGDWHRULDGH,JQDFLR5DQJHOXPEUHYHHQVDLR, de
Arissane Dâmaso Fernandes, tem como objetivo apresentar a teoria rangeliana
como uma interpretação da realidade brasileira que tinha uma intenção concreta,
qual seja, de intervir nessa realidade, através de uma análise que buscava
propostas efetivas de ação. Daí sua importância histórica.
Para a autora, Rangel desenvolveu um modelo teórico de fato original
o qual representava não somente sua percepção sobre a realidade brasileira,
mas a defesa de seus próprios interesses (enquanto integrante de uma classe
social) no aparelho de Estado. Sua teoria apresenta uma leitura da chamada
´UHYROXomREUDVLOHLUDµ1HOD5DQJHOQmRDSHQDVGHPRQVWURXVXDLQWHUSUHWDomR
acerca desse processo como defendeu que o grupo ao qual ele pertenceu, os
quais podem ser denominados de intelectuais nacionalistas, deveria ocupar uma
posição privilegiada na condução (ou assessoria) das decisões políticas do país.
&RQVLGHUDQGRHVVHDVSHFWR)HUQDQGHVDÀUPDTXHXPDDQiOLVHTXHVH
SURSRQKDDFRPSUHHQGHURVLJQLÀFDGRKLVWyULFRGDWHRULDGH,JQDFLR5DQJHOEHP
como a importância de sua atuação político-institucional, não pode desconsiderar
o contexto no qual esse intelectual atuou e as relações institucionais que ele
GHVHQYROYHX DV TXDLV LQHJDYHOPHQWH LQÁXHQFLDUDP VXD SURGXomR WHyULFD 2X
VHMD,JQDFLR5DQJHORFXSRXXPHVSDoRGH´REVHUYDomRµSULYLOHJLDGRGHQWURGR

D
D 28
DSDUHOKR GH (VWDGR H VXD WHRULD UHÁHWH LQHYLWDYHOPHQWH VHX SRVLFLRQDPHQWR
dentro desse espaço.
'HQWURGHVVHFRQWH[WRDDXWRUDUHODWLYL]DD´LQGHSHQGrQFLDLQWHOHFWXDOµ
de Rangel, uma vez que foi a partir das temáticas discutidas pelo grupo da
Assessoria, do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) e da CEPAL
(Comissão Econômica da América Latina e Caribe) que ele desenvolveu as bases
da sua teoria.
O texto de Maria Malta, $ FDWHJRULD GXDOLGDGH EiVLFD FRPR XPD
LQWHUSUHWDomR GR %UDVLO, tem por objetivo mergulhar na compreensão da tese
rangeliana da GXDOLGDGHEiVLFDSDUDYHULÀFDUDSRVVLELOLGDGHGHUHFXSHUiODFRPR
uma rica chave de leitura, no campo da economia política, para a interpretação
do Brasil.
Para tanto, divide sua análise em três etapas. Na primeira discute
o método da GXDOLGDGH EiVLFD. Segundo Malta, consiste numa adaptação
original do materialismo histórico e da teoria econômica para a análise do
caso brasileiro. Desta análise Rangel pretendia retirar leis gerais da formação
histórica e de funcionamento da economia brasileira, descrevendo o processo de
desenvolvimento do país, no campo da economia política.
Na segunda parte do texto, Malta discute a GXDOLGDGHEiVLFD enquanto
FDWHJRULDHHQTXDQWRWHRULD(QTXDQWRFDWHJRULDFXPSUHRSDSHOGHLGHQWLÀFDU
os modos de produção (articulação dinâmica entre estrutura e superestrutura)
existentes no Brasil em cada época. A condição histórica de se ter constituído
como nação tardiamente em relação aos países do centro capitalista, na
compreensão de Rangel, trazia a necessidade de apreciar sempre o movimento,
de forma simultânea, de uma perspectiva interna e externa. Assim, cada
dualidade da economia brasileira como um todo seria originada a partir da dupla IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
determinação das relações internas e externas, que também vão consubstanciar
a dualidade presente em todas as instituições econômicas brasileiras.
Enquanto teoria, ao descrever a história, fala de algo que já está
determinado e aponta para uma dinâmica que pode ser mantida ou rompida.
Porém, permanece a questão de se o rompimento teria que também vir do
centro do capitalismo, ou se está aberto um movimento nacional ou da periferia
articulada como possível saída.
3RUÀPQDWHUFHLUDSDUWH0DOWDGLVFXWHFRPRHVWHFRPSOH[RHVTXHPD
teórico deu origem a uma interpretação do Brasil. Para a autora, a GXDOLGDGH
básica tem a função de representar os modos de produção tipicamente
brasileiros, por meio de uma combinação delicada entre formas estruturais e

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

formas superestruturais.
A autora conclui questionando o porquê de uma interpretação do Brasil
tão rica e articuladora de teoria e história pôde ser tão amplamente abandonada.
As respostas, para Malta, encontram-se na seguinte forma: em primeiro
lugar, a GXDOLGDGHEiVLFD tem o limite de sua época, pois representava uma visão,
um modo de pensar, que era irreconciliável com o movimento real que Rangel
pretendia revelar e explicar. Neste sentido, uma teoria que não representasse a
visão de nenhum dos grupos sociais mais destacados na política e na economia
brasileira cairia no campo das curiosidades, muitas vezes incômodas, que
pensamentos de vanguarda podem carregar.
Também, a visão de Rangel não encontrava base nas formulações dos
dominados e de suas vanguardas representativas. Seu marxismo era mais
brasileiro que universal, mais original que ortodoxo. Sua dialética era mais
evolucionista que dinâmica e carregava a ordem de um cientista do seu tempo.
3RUÀPDDXWRUDVHQWHQFLDVHPEDVHVRFLDOFRQFUHWDDKHWHURGR[LDGH
5DQJHOVXDFULDWLYLGDGHHVHXHFOHWLVPRIRUDPDRPHVPRWHPSRDIRQWHGHVXD
LQRYDomRLQWHUSUHWDWLYDTXHGHXRULJHPDXPDDXWrQWLFDLQWHUSUHWDomRGR%UDVLO
HRPRWLYRGHVHXRVWUDFLVPR.
O texto $FRQMXQWXUDRVHWRUSULYDGRHRFDPLQKREUDVLOHLURDRVRFLDOLVPR
em Ignacio Rangel, de Elias Jabbour, tem por objetivo a tentativa de atualização
das ideias de Ignacio Rangel no Brasil contemporâneo.
O texto está dividido em cinco partes. Na primeira o autor discute a taxa
de investimento e o setor privado no período pós-Plano Real. Defende que o setor
SULYDGRpLPSRUWDQWHSDUDRGHVHQYROYLPHQWRGRSDtVPDVQmRFRPRXPÀPHP
si. Em seguida, aborda capital estatal e capital privado na complexa formação
social brasileira, defendendo que o socialismo brasileiro será construído a
partir do FDSLWDOLVPR GH (VWDGR por meio de um 1RYR 3URMHWR 1DFLRQDO GH
'HVHQYROYLPHQWRVHQGRTXHHVVH131'GHYHUiQDVFHUFRPRFDSLWDOÀQDQFHLUR
nacional e, por conseguinte, não prescinde da unidade de contrários entre o
grande conglomerado privado e sua congênere estatal.
Na terceira parte, o autor discute a reorganização das atividades
econômicas sob a estratégia do NPND. Em resumo, Jabbour defende que o
VLVWHPD ÀQDQFHLUR EDQFRV SULYDGRV H HVWDWDLV H EROVD GH YDORUHV  GHYHVH
fundir com a grande empresa, viabilizando a reprodução ampliada e o próprio
FDSLWDOLVPR QDFLRQDO VXEVWLWXLQGR IRUPDV DUFDLFDV GH ÀQDQFLDPHQWR SHOD YLD
do endividamento externo e da simples utilização de recursos do tesouro e do

D
D 30
RUoDPHQWRJDUDQWLQGRRÀQDQFLDPHQWRGR131'
Na quarta parte, seguindo o caminho de construção do NPND, o autor
propõe um 1RYRSDSHOGR(VWDGR, qual seja, a institucionalização do monopólio
estatal sobre as instituições que gerenciam os instrumentais macroeconômicos.
Ou seja, o Estado exercerá centralidade numa estratégia de fortalecimento dos
conglomerados nacionais (estatais e privados), conformando uma teia onde
pulsarão os dois elementos constituidores de uma forte nação moderna: grandes
empresas baseadas e fundidas com um poderoso sistema de intermediação
ÀQDQFHLUD
3RU ÀP GLVFXWHVH D UHYROXomR EUDVLOHLUD QR GHVHQYROYLPHQWR QD TXDO
DÀUPDTXHDHVWUDWpJLDGR131'pGHVXPDLPSRUWkQFLDSDUDDFRQVWUXomRGR
socialismo no Brasil.
Thiago Mitidieri, no texto ,JQDFLR 5DQJHO H R SUREOHPD GD LQÁDomR QD
PDFURHFRQRPLDEUDVLOHLUDGDLQGXVWULDOL]DomR, discute o livro $LQÁDomREUDVLOHLUD,
SXEOLFDGRSRU5DQJHOHPIRFDQGRRVWUrVREMHWLYRVSULQFLSDLVGDUHVSHFWLYD
obra: fazer uma análise estrutural da economia brasileira, ser uma crítica do
Plano Trienal e traçar as linhas gerais para uma política econômica alternativa.
Segundo o autor, $ LQÁDomR EUDVLOHLUD p XP SURGXWR GD UHÁH[mR GH
Rangel nas circunstâncias políticas em que se encontrava o país naquele
PRPHQWR VLWXDGR QXP LQWHUUHJQR FUtWLFR HQWUH R ÀP GR FLFOR SURPRYLGR SHOR
3ODQRGH0HWDVHRJROSHPLOLWDUHPFRPDHFRQRPLDSUHVVLRQDGDSHOD
DFHOHUDomRLQÁDFLRQiULDGHXPODGRHDUHFHVVmRSRURXWURWXGRLVVRDPSOLÀFDGR
pelo desejo popular de se avançar no processo de modernização da estrutura
socioeconômica brasileira.
Para Mitidieri, $LQÁDomREUDVLOHLUD é essencialmente uma obra com um IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
objetivo político. Ao demonstrar os equívocos teóricos que fundamentavam o
GLDJQyVWLFRGR3ODQR7ULHQDOVREUHRSUREOHPDGDLQÁDomR5DQJHOGHVHQYROYHX
conceitos originais e fez abordagens inovadoras sobre a estrutura e funcionamento
da economia brasileira.
Em 5DQJHOHD*HRJUDÀDDOJXPDVFRQVLGHUDo}HV, de José Messias Bastos,
FRQWD FRPR ,JQDFLR 5DQJHO VH DSUR[LPRX GD JHRJUDÀD EUDVLOHLUD QR FRQWH[WR
da crise estrutural da década de 80, através de debates, cursos, conferências
HWF $ SDUWLU GH  HP SUDWLFDPHQWH WRGRV RV DQRV HVWHYH HP )ORULDQySROLV
GHEDWHQGRQD6HPDQDGH*HRJUDÀDPLQLVWUDQGRFXUVRHSDUWLFLSDQGRGHEDQFD
QR3URJUDPDGH3yVJUDGXDomRHP*HRJUDÀDGD8QLYHUVLGDGH)HGHUDOGH6DQWD
Catarina (PPGG-UFSC) ou concedendo entrevista para a Revista Geosul no

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D 31
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

Departamento de Geociências da UFSC. Segundo Messias é importante por em


HYLGrQFLDTXHGXUDQWHXPDGpFDGDD*HRJUDÀDGD8)6&UHFRQKHFHXDH[FHOrQFLD
das ideias de Rangel para decifrar a crise estrutural da economia
Messias, após uma síntese das principais ideias de Rangel, conclui que
estas estiveram presentes na formação e construção dos trabalhos de dissertação
HWHVHVREUHRFRPpUFLRGHP~OWLSODVÀOLDLVGHIHQGLGDVSHORDXWRUGHVWHDUWLJR
reconhecendo que a formação de uma rede urbana concentrada, consequência
do desenvolvimento industrial oligopolista, e a integração do território nacional
pelas rodovias, viabilizadas pra valer com a terceira dualidade (pacto de poder
QDFLRQDOLVWDYLWRULRVRFRPD5HYROXomRGH IRUDPjVEDVHVPDWHULDLVSDUD
RHVWDEHOHFLPHQWRGDVUHGHVGHORMDVGHP~OWLSODVÀOLDLVFRPHUFLDVQR%UDVLO
3RUÀP5DQJHOGXDOLGDGHHLQÁDomRRULJLQDOLGDGHHLQGHSHQGrQFLDQR
SHQVDPHQWR EUDVLOHLUR, Celso Fontes et ali, analisam a importância de Ignacio
Rangel para o pensamento econômico brasileiro, tomando como base sua teoria
GDGXDOLGDGHHVXDDQiOLVHVREUHDLQÁDomR
Concluem que, para compreender a contribuição de Ignacio Rangel
ao desenvolvimento do pensamento brasileiro, é necessário ter-se em conta a
UHDOLGDGHQDFLRQDOHLQWHUQDFLRQDOGDGpFDGDGHHDVVLPFRPRRPRGR
como os brasileiros se posicionavam sobre as questões nacionais e internacionais.
Ricardo Zimbrão e Jhonatan Almada escreveram como fecho do livro,
o texto 1RWDV GH SHVTXLVD SDUD QRYRV FDPLQKRV LQYHVWLJDWLYRV HP ,JQDFLR
Rangel $ SDUWLU GRV WH[WRV FROLJLGRV QR OLYUR RV DXWRUHV EXVFDUDP LGHQWLÀFDU
caminhos pouco ou ainda não explorados na obra rangeliana. Esses caminhos
VmRH[SOLFLWDGRVQDIRUPDGHQRWDVGHSHVTXLVDHVFULWDVFRPRÀWRGHHVWLPXODU
a produção de novos estudos e pesquisas sobre Rangel.
0LOLWDQWHSROtWLFRSRULQGLJQDomREDFKDUHOHPGLUHLWRÀOyVRIRHKXPDQLVWD
por formação; economista autodidata por escolha e por vocação, Ignacio Rangel,
sem ter tido uma carreira acadêmica convencional, foi dos mais brilhantes e
destacados intérpretes e decifradores do Brasil no século XX. A riqueza e
RULJLQDOLGDGHGHVXDVFRQWULEXLo}HVVHUHÁHWHPQRDPSORSDLQHOTXHVHRIHUHFH
neste livro, na certeza de que um maior conhecimento do pensamento rangeliano
por parte de nossos acadêmicos e planejadores muito tem a contribuir para a
solução dos dilemas econômicos, sociais e políticos de nosso tempo.

D
D 32
Entrevista com Ignacio Rangel
em São Luís, Maranhão

Os entrevistadores Rossini Corrêa, Raimundo Palhano, Pedro Braga e


Maureli Costa (esquerda para direita) com Ignacio Rangel (centro).

IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

O entrevistado

D
D 33
IIGNACIO RANGEL,
avocações
Ignacio Rangel em São Luís*
%DQGHLUD7ULEX]L

Encontra-se em São Luís um dos maranhenses de maior envergadura


intelectual, que aqui desembarcou a serviço do Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico, para participar do Seminário sobre Políticas Governamentais, no
capítulo referente a Programação do Desenvolvimento: Ignacio Rangel. Seu
FRQFHLWRFRPRXPGRVPDLVGHVWDFDGRVHFRQRPLVWDVEUDVLOHLURVpÀUPHDXWRU
de importantes obras entre as quais cumpre distinguir um dos mais relevantes
enfoques de nossa problemática: ,QÁDomR%UDVLOHLUD.
Técnico que soma renome e capacidade, com conhecimento da
realidade e dos problemas de nossa terra, Ignacio Rangel pode prestar ao
Maranhão uma contribuição preciosíssima e esperamos que o Governo dele
cobre essa contribuição.
0DV KRMH QmR p SURSULDPHQWH GLVVR TXH TXHUR IDODU 4XHUR DSHQDV
pedir à Superintendência do Desenvolvimento do Maranhão, à Secretaria de
Administração, ao Governo, a quem quer que deva pedir, que solicite ao Dr.
Ignacio Rangel, aproveitando uma oportunidade que nem sempre se oferece,
faça uma ou duas conferências abordando assunto de sua especialidade e ao
qual trazer o esclarecimento da sua competência inquestionável.
Estou certo de que essa iniciativa for tomada o Dr. Rangel não se recusará IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
e o Maranhão terá oportunidade de ouvir um técnico de alto gabarito que tem
RTXHGL]HUVREUHDVPDLVUHOHYDQWHVTXHVW}HVFRPRLQÁDomRGHVHQYROYLPHQWR
economia regional e integração nacional etc.
Fica, portanto, aqui consignado este modesto pedido na esperança
de que, posto seja modesto, não deixará de ser atendido já que visa objetivo
superior: o contato de quantos se interessam pelo progresso do Estado com um
economista maranhense, que, justamente e por sua alta capacidade, tem lugar
marcante no panorama nacional.
*
Publicado originalmente no Jornal do Dia, São Luís-MA, 29 de março de 1967, p. 3 (Coluna ASSIM
É... Se Lhe Parece, assinada por Leucipo Teixeira) e gentilmente cedido por Rossini Correia, organiza-
dor do livro “Canção d’amigo para Ignacio Rangel: pequeno almanaque comemorativo do seu primeiro
centenário”.
D
D 37
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

&RQÀVV}HVGH,JQDFLR5DQJHO*
9DPLUHK&KDFRQ

2 %UDVLO WHP XP ÀOmR LQWHOHFWXDO FDUDFWHUtVWLFR WDQWR TXDQWR RXWURV


VRFLDLVHHFRQ{PLFRVRÀOmRSRVLWLYLVWDFRPYiULDVUHHQFDUQDo}HV$WHQWDWLYDGH
associar positivismo e marxismo é uma delas. Inclui professores da Faculdade
de Direito do Rio de Janeiro na primeira metade do século – Castro Rebello e
Leônidas de Resende – e até um dos fundadores do Partido Comunista, Cristiano
Cordeiro. Da minha parte só posso ter, para com eles, empatia metodológica
:HEHULDQDDVVLPSDWLDVYmRQRXWUDGLUHomRQDGRFXOWXUDOLVPRFRPUDt]HVHP
+HJHOH.DQW3DUDPLPDFXOWXUDVLJQLÀFDRVLVWHPDHFRQRPLDQmRSDVVDGH
um subsistema, não o contrário. Daí meu interesse pela História das Ideias.
Nela no Brasil Ignacio Rangel tem o seu lugar. Rossini Corrêa, Maureli Costa,
Pedro Braga e Raimundo Palhano prestam um grande serviço cultural na longa
HFRPHQWDGDHQWUHYLVWD´8PÀRGHSURVDDXWRELRJUiÀFDFRP,JQDFLR5DQJHOµKi
pouco publicada pela Universidade Federal do Maranhão e Instituto de Pesquisas
Econômicas e Sociais presidido pelo governador Edison Lobão. Uma espécie de
FRQÀVV}HVLQWHOHFWXDLV
O próprio Ignacio Rangel não faz segredos. Confessa ter começado por
$XJXVWR&RPWHPDLV/LWWUpR/DIÀWHRTXHRUHYHODSHUFRUUHQGRWRGDDJDPDGR
FRPWLVPRGDKHWHURGR[LDjRUWRGR[LD$LQÁXrQFLDGD(VFRODGR5HFLIHGH7RELDV
Barreto, chegando ao Maranhão com Benedito Leite, não foi bastante forte para
H[RUFL]DURSRVLWLYLVPR8PGRVSLRQHLURVGD*HRJUDÀD+XPDQDQR%UDVLO$QW{QLR
Lopes, prosseguiu em busca de uma síntese entre Comte e Spencer avessa ao
SUySULR6tOYLR5RPHURTXHSUHIHULDPHVPR6SHQFHUDSyVDLQÁXrQFLDDOHPmTXH
recebera de Tobias.
A combinação positivismo mais marxismo foi o caminho de Ignacio
Rangel rumo ao desenvolvimentismo. Outros para ali convergiram vindo do
integralismo: Roland Corbisier, Guerreiro Ramos, Rômulo de Almeida e Neiva

*
Publicado originalmente no jornal Correio Brasiliense, Brasília-DF, 6 de janeiro de 1992 e gentil-
mente cedido por Rossini Correia, organizador do livro “Canção d’amigo para Ignacio Rangel: pequeno
almanaque comemorativo do seu primeiro centenário”.

D
D 38
Moreira, entre muitos. Uma das questões consiste em saber se os marxistas
continuaram internacionalistas num ambiente em que o nacionalismo
HFRQ{PLFRDXWDUTXL]DQWHHUDRGHQRPLQDGRUFRPXPHQWUHWDQWDVGLYHUVLÀFDGDV
procedências. Uma espécie de nacional-socialismo, termo evitado no Brasil
por suas conexões racistas alemãs, no caso brasileiro um nacional-estatismo
desenvolvimentista com toques sindicalistas a que não faltaram, na prática,
PXLWRVFRUSRUDWLYLVPRVRÀFLDOL]DGRVSRU*HW~OLR9DUJDVFRP-RmR*RXODUWFRPR
EHQHÀFLiULR
Todo esse modelo vem sendo posto em questão. O próprio Marx
apontava, com uma das missões da burguesia internacionalizar o capital,
criando um mercado mundial. É na ex-União Soviética a fórmula estatizante
jamais conseguiu socializar-se, seus adeptos estão agora prometendo outra
tentativa, da próxima vez sem Stálins, como se eles não fossem produtos dos
/rQLQV20DU[TXHVREUHYLYHUiWHQGHDVHURMRYHP0DU[ÀOyVRIRKHJHOLDQRQmR
o inimigo do socialismo humanista de Proudhon e do anarquismo de Bakunin
que, para combatê-los, teve de começar a criação de uma máquina burocrática,
daí em diante em marcha tirânica, irreversível porque sem contrapesos internos
ou externos.
( QR %UDVLO R GHVDÀR WHFQROyJLFR QmR SRGH YHUVH UHVSRQGLGR SRU
repartições públicas. Ao Estado terá de caber a ajuda indireta mediante
ÀQDQFLDPHQWRVHQTXDQWRLQYHVWLPHQWRHSURWHFLRQLVPRDGXDQHLUROLPLWDGRQR
tempo, para evitar mais outro parasitismo.
Mesmo assim continua interessante e importante a visão dualista do
Brasil por Ignacio Rangel, ao mesmo tempo capitalista e feudal, uma síntese das
perspectivas de Caio Prado Júnior e Paulo Cavalcanti outro em polêmica.
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

Ignacio Rangel*
0DUFHOR0LWHUKRI

Antecipo as homenagens pelo centenário de Ignacio Rangel que se


iniciam em fevereiro de 2014. Faço isso porque distintos temas fazem lembrar
dele, em especial sua capacidade de aliar uma criatividade aguda para elaborar
conceitos com um senso de realidade raro entre economistas.
8VRWH[WRVFRPR´2SDSHOGDLQÁDomRµSXEOLFDGRQD)ROKDGH
indicação do economista Thiago Mitidieri, com quem discuti sobre Rangel.
Nos anos 30, Rangel entendia que a industrialização precisaria vir junto
com a reforma agrária. Mais tarde, reconheceu que no Brasil a industrialização, se
não fosse um projeto de lideranças dos proprietários rurais, teria sido natimorta.
No entanto, isso não ocorreria sem graves problemas. A mecanização
do campo sob uma estrutura fundiária concentrada jogaria muitas pessoas nas
FLGDGHVVHPTXHKRXYHVVHRFXSDomRVXÀFLHQWHQDLQG~VWULDHQRVVHUYLoRVSDUD
absorvê-las, o que favoreceu a repressão salarial, travando o adensamento do
mercado interno, o motor da industrialização brasileira.
Avançar na industrialização -dos bens leves para os de consumo duráveis
e daí para a indústria pesada- era o jeito de continuar criando perspectivas.
Porém os avanços ocorriam por saltos na estrutura produtiva em ciclos mais ou
menos decenais, prósperos na primeira metade e recessivos na outra.
Não era tarefa fácil. Havia capacidade ociosa, por conta das grandes
economias técnicas de escalas, e também estrangulamentos produtivos, fruto
de desequilíbrios próprios de uma mudança estrutural e de restrições de divisas
externas.
$ LQÁDomR WLQKD DWp RV DQRV  XP FRPSRUWDPHQWR LQHVSHUDGR VH
LQWHQVLÀFDQGR QD UHFHVVmR 2V EDL[RV JDQKRV VDODULDLV ID]LDP D GHPDQGD
agregada no Brasil ser estruturalmente deprimida, pois dependente do
investimento.

*
Este artigo foi publicado originalmente pelo autor no jornal Folha de São Paulo, dia 9 de maio de
2013, o qual foi gentilmente cedido pela empresa Folha da Manhã S/A para este livro.

D
D 40
3DUD5DQJHODLQÁDomRWLQKDRXWUDIRQWHGHDFHOHUDomRXPDHVWUXWXUDGH
mercado cartelizada, que elevava seus lucros espremendo tanto os consumidores
ÀQDLVTXDQWRRVSURGXWRUHVHPHVSHFLDOQRVEHQVDJUtFRODV&RPRDSURFXUDGH
alimentos é pouco elástica, o aumento de seus preços fazia cair o consumo de
outros bens pelos assalariados, aprofundando a recessão.
0DVDLQÁDomRHUD~WLO$RSHQDOL]DUDOLTXLGH]LQFHQWLYDYDLPRELOL]Do}HV
–tanto pela antecipação da compra de bens duráveis pelos mais ricos quanto em
investimentos incrementais – quando um ciclo de mudança estrutural dava sinais
de excesso de capacidade.
Essa imobilização especulativa mitigava a recessão e permitia alinhar as
condições institucionais e o planejamento dos investimentos que fariam parte da
nova fase de expansão industrial.
5DQJHO QmR YLWXSHUDYD FRQWUD D LQÁDomR PDV WDPSRXFR DGHULX D HOD
sabendo que seu papel foi circunstancial. A retomada do desenvolvimento viria
pela realização de aperfeiçoamentos institucionais que o novo status de nação
LQGXVWULDOH[LJLD3DUDLVVRRFDSLWDOÀQDQFHLURSUHFLVDYDVHLQWHJUDUDRLQGXVWULDO
o que permitiria melhor coordenar os investimentos, algo que o país ainda está
longe de ter.
Também estava claro que a capacidade de expandir a infraestrutura por
meio de empresas públicas tinha se esgotado. Rangel tinha apontado nos anos
TXHHVVHPRGHORHUD~WLOPDVHVEDUUDULDQDOLPLWDomRGHHQGLYLGDPHQWRGD
8QLmRRTXHÀFRXSDWHQWHQRLQtFLRGRVDQRV(QWmRHUDSUHFLVRUHJHQHUDURV
sistemas de garantias, o que envolvia mudar o direito das concessões e realizar
privatizações.
+RMHDLQIUDHVWUXWXUDQR%UDVLOVHH[SDQGHSRUPHLRGR´SURMHFWÀQDQFHµ
HPTXHVRFLHGDGHVGHSURSyVLWRVHVSHFtÀFRVFRPFRQWUROHSULYDGRÀQDQFLDPRV IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
projetos com base na receita esperada. Nisso, a ideia de Rangel vingou.
Rangel não se furtava a mudar de posição, mas sem trocar uma crença
idealizada no desenvolvimentismo e na cooperação por outra igualmente idealizada
no liberalismo e na competição. Ele se manteve de esquerda e heterodoxo.
Isso não o impediu de transigir em questões concretas, defendendo que
DLQGXVWULDOL]DomRSDUDVHYLDELOL]DUSUHFLVRXGDHOLWHDJUiULDHTXHDLQÁDomRQmR
HUDXPPDODEVROXWR4XDQGRRSURMHWRLQGXVWULDOPRVWURXVLQDLVGHHVJRWDPHQWR
defendeu as privatizações, antes de elas virarem uma efetiva bandeira liberal.
É possível discordar de Rangel em vários pontos, mas, houvesse mais
economistas como ele, a economia avançaria bem mais, tanto como teoria quanto
na política.
D
D 41
II
IGNACIO RANGEL,
conjunções
O centenário da usina do pensamento:
Ignacio Rangel, a capacidade de
decisão e o santo de casa
5DLPXQGR3DOKDQR

3DUD-KRQDWDQH(UQHVWR$OPDGD
QRYR H UHFpPQDVFLGR SHOD FRQVWUXomR GH
´XPPXQGRVyµ

Um Mestre na capacidade de interpretar o Brasil

Chegamos a 2014 com uma grande motivação: celebrar a obra de


Ignacio de Mourão Rangel, no momento em que se reverencia o centenário do
seu nascimento. Um legado precioso e dos mais ricos em termos de análise da
IRUPDomRHFRQ{PLFDHVRFLDOGR%UDVLO&HOHEUDUVLJQLÀFDQGRSRUHPGHVWDTXH
suas ideias e pensamentos, que ainda hoje estão a exigir leituras e releituras,
graças aos conteúdos de suas interpretações.
(P  GH IHYHUHLUR GH  HP 0LUDGRU 0DUDQKmR HP XP VtWLR
denominado Flor de Lima, nasceu Rangel, vulto destacado de um seleto grupo
GH LQWHOHFWXDLV FODVVLÀFDGRV FRPR LQWpUSUHWHV GR %UDVLO GR TXDO ID]HP SDUWH
&HOVR)XUWDGR&DLR3UDGR-XQLRU'DUF\5LEHLUR*LOEHUWR)UH\UH-RVXpGH&DVWUR
Milton Santos, Sérgio Buarque de Holanda, Joaquim Nabuco, Manuel Correia de IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
Andrade, entre outros.
No âmbito da história do pensamento econômico brasileiro e latino-
americano, Rangel ocupa um dos patamares mais elevados, principalmente pela
sua originalidade, inovação e capacidade formuladora.
Em termos maranhenses destaca-se, de maneira isolada e solitária,
como a mais fecunda matriz intelectual produzida pelo torrão gonçalvino em
termos de criação e elaboração de ideias no campo das ciências econômicas e
da economia política.
Os pioneiros da propagação do pensamento rangeliano no Maranhão,
dentre os quais orgulhosamente nos incluímos, sonharam e lutaram muito pela
popularização de sua obra e publicação do seu legado intelectual.

D
D 45
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

Impossível traduzir a alegria que sentimos quando do lançamento das


´2EUDV5HXQLGDVµGH5DQJHOHP6mR/XtVQRDXGLWyULRGR3DOiFLR&ULVWR5HLVHGH
da reitoria da Universidade Federal do Maranhão, em 2005.
Ali nos reencontramos para atender ao honroso convite do Conselho
Regional de Economia do Maranhão, presidido então por Dilma Pinheiro; da
Academia Maranhense de Letras, liderada por Jomar Moraes; e da Universidade
Federal do Maranhão, sob o reitorado de Fernando Ramos.
Em nosso discurso de apresentação da aludida obra destacamos o
privilégio imerecido, pois ali poderiam estar Rossini Corrêa, Pedro Braga dos
Santos Filho, Maureli Costa, jovens intelectuais apaixonados por Rangel, que se
SURSXVHUDPDSDUWLUGHLQtFLRVGRVDQRVDGLIXQGLUDREUDUDQJHOLDQDH
torná-la conhecida em sua terra natal.
Poderiam estar ali também José Augusto dos Reis, João Evangelista
da Costa Filho, Hiroshi Matsumoto, Alberto Arcangeli, Benjamin Mesquita,
-RPDU0RUDHV%HQHGLWR%X]DU&DUORV*DVSDU-RDTXLP,WDSDU\5REHUWR*XUJHO
Rocha, Cursino Moreira e Saturnino Moreira, e outros estudiosos coetâneos; ou
LQWHJUDQWHVGRDQWLJR*UXSRGH5HÁH[mR,JQDFLR5DQJHO6REUHR'HVHQYROYLPHQWR
como Tetsuo Tsuji, Flávia Mochel, Niomar Viegas, Raimundo Arruda, Sebastião
0RUHLUD'XDUWH/XLV$XJXVWR0RFKHO+D\PLU+RVVRp(PDQRHO*RPHVGH0RXUD
entre tantos que formavam o referido movimento.
1DTXHOD QRLWH R TXH UHDOPHQWH LPSRUWDYD HUD UHDOoDU R VLJQLÀFDGR H
a importância do lançamento, entre nós, os conterrâneos de Rangel, de suas
´2EUDV 5HXQLGDVµ HGLWDGDV H RUJDQL]DGDV SRU &pVDU %HQMDPLQ HP DOHQWDGRV
dois volumes, primorosamente editados pela Contraponto, com o apoio do Banco
Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), sob a presidência de
Carlos Lessa, no contexto de uma coleção voltada ao resgate da memória do ciclo
GHVHQYROYLPHQWLVWD QR %UDVLO ´2EUDV 5HXQLGDVµ TXH PXLWR GHYHP WDPEpP DR
WUDEDOKRVLOHQFLRVRHHVPHUDGRGH/LXGPLOD5DQJHO5LEHLURVXDÀOKDHKHUGHLUD
espiritual, que se fazia presente na ocasião.
1D ,QWURGXomR GR 9ROXPH  GDV ´2EUDV 5HXQLGDVµ RV OHLWRUHV VmR
brindados com o ensaio de Márcio Henrique Monteiro de Castro, economista do
%1'(6GHQRPLQDGR´1RVVR0HVWUH,JQDFLR5DQJHOµTXHLQYHQWDULDHDQDOLVDGH
modo primoroso e didático, o conjunto da obra e sua contribuição ao pensamento
econômico brasileiro.
Tanto em extensão, quanto em conteúdo, devemos destacar, não
dispomos ainda de um dimensionamento completo da obra ignaciana, no
sentido do resgate pleno do seu valor histórico para a cultura brasileira e para o

D
D 
pensamento econômico e social latino-americano. Tal fato, longe de desmerecer,
atribui às interpretações passadas e presentes um extraordinário mérito:
justamente o de terem evidenciado a necessidade do preenchimento de várias
ODFXQDV2TXHFRQVWLWXLVHPG~YLGDXPQRYRGHVDÀRjFDSDFLGDGHGDVQRYDV
gerações de economistas e cientistas sociais brasileiros.
,QFRUSRUDQGR R SRQWR GH YLVWD GH 5LFDUGR %LHOVFKRZVN\ HP VHXV
HVWLPXODQWHV WUDEDOKRV VREUH R KRPHQDJHDGR R ´SULQFtSLR RUJDQL]DGRUµ GR
pensamento de Rangel é a sua Tese da Dualidade.
Trata-se de engenhosa construção analítica que articula contribuições do
materialismo histórico marxista, de economistas clássicos como A. Smith, de J.M.
.H\QHVGDWHRULDGRVFLFORVHGDVFULVHVGH/.RQGUDWLHIIH-XJODUjIRUPDomR
HFRQ{PLFDEUDVLOHLUDQRLQWXLWRGHHQWHQGHUVXDGLQkPLFDHHVSHFLÀFLGDGHVD
SDUWLUGDFRQMXJDomRGHGRLVSRORVGHÀQLGRUHVXP´LQWHUQRµ DWUDVDGR HRXWUR
´H[WHUQRµ FDSLWDOLVWD 
4XDQGRDUHGLJLXRULJLQDOPHQWHHPRDXWRUGD7HVHGD'XDOLGDGH
WLQKDDQRV(PFRPDOJXQVUHWRTXHVIRLSXEOLFDGDSHODSULPHLUDYH]
Inscreve-se como uma resposta penetrante de Rangel ao tema focal colocado à
VXDJHUDomRFODULÀFDURVLJQLÀFDGRGDTXHVWmRDJUiULDSDUDRGHVHQYROYLPHQWRGR
país e a maneira em que se daria a revolução brasileira, no sentido da evolução
e superação do capitalismo.
(PPDLVVHJXURGDYDOLGDGHGHVXDVSUHPLVVDV5DQJHOSXEOLFD
na Revista de Economia Política - REP 1 (4), out./dez., o artigo “A História
GD 'XDOLGDGH %UDVLOHLUDµ QR TXDO FRP H[WUDRUGLQiULD FODUH]D GHVHQYROYH
apropriadamente, as articulações entre a dinâmica da Dualidade e os princípios
teóricos de Kondratieff.
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
O resultado último desse esforço intelectual foi a construção de uma
verdadeira teoria do desenvolvimento brasileiro, algo inédito no tempo em que foi
esboçada e, ainda hoje, extremamente raro nos quadros da produção acadêmica
sobre economia, no Brasil.
3DUD HIHLWRV DQDOtWLFRV YDOH OHPEUDU VmR FODVVLÀFDGDV HP FLQFR DV
grandes teses de Rangel, expressões de suas interpretações sobre a economia
brasileira, a teoria econômica e o desenvolvimento econômico, social, político,
FODVVLÀFDomRHVWDFRQVWUXtGDSRUHVWXGLRVRVGRVHXSHQVDPHQWRFRPR0RQWHLUR
GH&DVWUR%HOVFKRZVN\*XLGR0DQWHJD'DYLGRII&UX]7ROPDVTXLPHQWUHRXWURV
[1] Tese da Dualidade Básica, que conjuga e sistematiza as leis gerais
da formação histórica (em Marx), à estrutura e funcionamento da economia
brasileira;

D
D 47
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

[2] Tese da Dinâmica Capitalista, que articula as teorias dos ciclos, das
crises e a questão tecnológica ao movimento da economia brasileira e mundial;
>@7HVHGD,QÁDomR%UDVLOHLUDFRQWLGDHPVHXIDPRVROLYURGRPHVPR
nome, transformada, pela sua densidade analítica, nível de formulação e grau de
XQLYHUVDOLGDGHHPXPDYHUGDGHLUDWHRULDGD,QÁDomRIHLWRLQLJXDOiYHOQDKLVWyULD
do pensamento econômico brasileiro;
>@ 7HVH GD 4XHVWmR $JUiULD TXH LQWHUSUHWD RV GHWHUPLQDQWHV GD FULVH
agrária brasileira e suas consequências para o desenvolvimento do capitalismo
no Brasil;
[5] Tese sobre a Intervenção do Estado e Planejamento, que analisa
o valor do planejamento do setor público como fator de equilíbrio econômico
global e de redução de ociosidades setoriais na economia, campo este do qual
VHYDOHSDUDGHPRQVWUDURVLJQLÀFDGRSRVLWLYRGHXPYLJRURVRVLVWHPDÀQDQFHLUR
mobilizador de recursos ociosos para os setores produtivos, com ênfase nos
investimentos em serviços de utilidade pública e infraestrutura.

Rangel, inquestionavelmente, foi o maior dos pioneiros, dentre os que


estudaram a economia brasileira a partir de seu relacionamento com a teoria
dos ciclos, apoiados em Kondratieff.
3RUDQRVDÀRUHÁHWLXVREUHRFRPSRUWDPHQWRGR.RQGUDWLHIIQRVYiULRV
países e suas articulações com os avanços tecnológicos, de onde extraiu
fundamentos metodológicos para suas teses sobre o Brasil, o desenvolvimento e
o subdesenvolvimento econômico.
Desse esforço resultou a construção de outros marcos teóricos centrais,
FRPR D ´GLDOpWLFD GD RFLRVLGDGHµ FHQWUDGD QR TXH GHQRPLQRX ´H[RQHLGDGHµ
do Kondratieff brasileiro. Mecanismo este que fez de Rangel produtor de um
FRQFHLWRRULJLQDOGHVXEGHVHQYROYLPHQWRFRPRTXDOGHÀQLDRGHVHQYROYLPHQWR
de um país relacionando-o a outro. É de Rangel a tese de que o “atraso de um
SDtVpUHODWLYRDXPHVWiJLRVXSHULRUGRVHXSUySULRGHVHQYROYLPHQWRµ
Assim, passados 100 anos do seu nascimento, continua plenamente viva
a certeza de que Ignacio Rangel permanece sendo o mais original analista do
GHVHQYROYLPHQWRHFRQ{PLFREUDVLOHLUR6HXVLQWpUSUHWHVQmRKHVLWDPHPDÀUPDU
que ele materializa um dos poucos, bem poucos, economistas brasileiros que
conseguiram produzir um sistema teórico e conceitual abrangente, complexo e
articulado sobre a evolução e a realidade da economia brasileira.

D
D 48
O intelectual a serviço da capacidade de decidir

Em Rangel era visceral a obstinação em desenvolver a capacidade de


decidir sobre os destinos do Brasil, levando-o a mergulhos profundos, sem
WUpJXDHPHVWXGRVHSHVTXLVDVTXHLDPGDÀORVRÀDjVPDWHPiWLFDV
Márcio de Castro ilumina algo que singulariza a produção intelectual de
Ignacio Rangel: foi um exemplo raro de teórico não acadêmico.
Todas as suas questões teóricas foram condicionadas pela busca de
VROXo}HVDRVSUREOHPDVTXHDÁLJLDPRSDtVVREUHWXGRRVHFRQ{PLFRVVHJXLQGR
se os sociais e políticos.
Um criativo produtor de ideias, nascidas da combinação do prático com a
busca de soluções adequadas às necessidades nacionais.
)iELR&RPSDUDWRRJUDQGHMXULVWDEUDVLOHLURDÀUPDTXHDHFRQRPLDQmR
pode ser vista como uma ciência exata. “A Economia, como a Política e o Direito
pXPDVDEHGRULDGHGHFLV}HVeDVDEHGRULDGHWRPDUGHFLV}HVµ1DHFRQRPLD
portanto, o essencial é saber quais devem ser os objetivos das decisões tomadas.
Muito antes de Comparato, Rangel já havia chegado a essa constatação
ao ir fundo na resolução dos enigmas da formação social brasileira e a não se
contentar em apenas formular explicações meramente acadêmicas, geralmente
LQFDSD]HV GH GDUHP FRQWD GD UHVROXomR GRV SUREOHPDV GHVDÀDGRUHV H
recorrentes.
5DQJHOSDVVRXDYLGDLQWHLUDSURFXUDQGRWUDGX]LUDVHVSHFLÀFLGDGHVGD
formação nacional e do seu desenvolvimento. Recusou de imediato a condição
de transformar-se em apenas um adaptador de teorias importadas, comum na IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
LQWHOHFWXDOLGDGHGRVDQRVHIHQ{PHQRTXHDLQGDSHUPDQHFHDWXDO
As teses em vigor à época, tanto da direita como da esquerda, a seu
juízo, precisavam ser revistas criticamente. Por isso teve que assumir posições
fortes no debate intelectual e político da ocasião, a ponto de sua contribuição
representar um novo olhar e uma nova interpretação sobre o Brasil e sua história.
Segundo Rangel, a dinâmica histórica brasileira não poderá ser
compreendida se for pensada como os casos clássicos da história econômica
dos países desenvolvidos.
Os processos internos da formação brasileira, sejam econômicos,
sociais e políticos, dependem das relações que se estabelecem com os centros
dinâmicos da economia internacional.

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

Com base em fontes seguras, a sua obstinação pelo aprimoramento


da capacidade de decidir sobre os caminhos do desenvolvimento econômico
EUDVLOHLUR HUD WmR JUDQGH TXH OHYRX RV DGPLUDGRUHV GH VXD REUD D DÀUPDUHP
que Rangel só reconhecia como superiores apenas três autores: Marx, Lênin e
Aristóteles.
Um exagero, sem dúvida, pois, em mais de uma vez, pudemos ouvi-lo
DÀUPDU D UHOHYkQFLD HP VXD IRUPDomR GDV LQÁXrQFLDV UHFHELGDV GR SUySULR
pai, José Lucas Mourão Rangel, e de Antonio Lopes, estudioso que exerceu a
liderança intelectual no Maranhão por quase toda a primeira metade do século
XX.
6HPHVTXHFHUXPIDWRUHFRUUHQWHDÀUPDYDHPSHTXHQRVFtUFXORVTXHR
VHXSULPHLURJUDQGH´SURIHVVRUGHHFRQRPLDµKRXYHUDVLGRDHPSUHVD0DUWLQV 
,UPmRVRQGHWUDEDOKRXQRLQtFLRRVDQRVQDFDSLWDOPDUDQKHQVH
Rangel, por sua privilegiada capacidade de gerar ideias, era
FDULQKRVDPHQWH FKDPDGR GH ´XVLQD GR SHQVDPHQWRµ SHORV FRQIUDGHV GR
,QVWLWXWR6XSHULRUGH(VWXGRV%UDVLOHLURV ,6(% FULDGRHPYLQFXODGRDR
Ministério da Educação e Cultura, na presidência Café Filho, importantíssimo
durante o governo de Juscelino Kubitschek e seguintes, logo fechado pelo regime
PLOLWDUHP
A revelação é de Gilberto Paim, durante exposição feita no I Simpósio
1DFLRQDO VREUH R 3HQVDPHQWR GH ,JQDFLR 5DQJHO UHDOL]DGR HP  QD
cidade de Florianópolis, Santa Catarina, imediatamente após o falecimento do
homenageado, no Rio de Janeiro, onde residia, cujos anais foram publicados pela
8QLYHUVLGDGH)HGHUDOGH6DQWD&DWDULQD 8)6& VREDIRUPDGHOLYURHP
trabalho organizado por Armen Mamigonian, um rangeliano dos mais festejados
e guardião valoroso do legado do autor.
Por último, duas características, pelo menos, marcam a produção do
intelectual maranhense: de um lado, a erudição, a criatividade e a originalidade,
e, em seguida, a profunda sintonia com a realidade nacional, sua conjuntura
H GHVDÀRV HVWUXWXUDLV RQGH DÁRUDYD R FRPSURPLVVR GR SHQVDGRU FRP D
construção de uma agenda que possibilitasse incrementar a capacidade de
decidir internamente, com precisão, sobre a melhor maneira de desenvolver a
economia brasileira.

D
D 50
Rangel: um tesouro a descobrir no Maranhão

&RQÀUPDQGRRGLWRSRSXODU´VDQWRGHFDVDµQmRRSHUDPLODJUHV5DQJHO
continua sendo um ilustre desconhecido entre os seus conterrâneos. Círculos
UHVWULWtVVLPRV SRVVXHP DOJXPD LQIRUPDomR VREUH R SHQVDGRU 2 GHVDÀR GH
popularizar a sua contribuição à cultura local e nacional ainda permanece
atual, a despeito dos muitos esforços já feitos por admiradores e seguidores
maranhenses, com o objetivo de desmentir o adágio popular.
Com efeito, desde o início dos anos 80 do século anterior, um grupo de
economistas e representantes de outras áreas das ciências sociais, vinculados
ao ex-Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais (IPES) e ao Departamento de
Economia da Universidade Federal do Maranhão, vêm promovendo e divulgando
a obra de Ignacio Rangel no Estado.
(P  KRXYH R SULPHLUR FRURDPHQWR GDTXHOD LQLFLDWLYD 5DQJHO
passou a ter seu nome em salas do IPES e Departamento de Economia/UFMA,
emprestando-o também aos concludentes do curso de Especialização em
Economia do Setor Público.
0DLV WDUGH IRL DJUDFLDGR FRP R WtWXOR GH ´(FRQRPLVWD GR $QRµ SHOR
Conselho de Economia do Maranhão, acontecendo uma grande cobertura da
mídia na ocasião de sua passagem por São Luís.
A partir daí tornou-se um colaborador regular da revista FIPES, do IPES.
1R '(&218)0$ QR LQtFLR GRV DQRV  LPSODQWRXVH XP SURMHWR
visando estudos sobre desenvolvimento econômico que levou seu nome, tendo
como um dos seus objetivos preservar a documentação e a memória intelectual
do autor. IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
Além disso, realizou-se um convênio tripartite, envolvendo UFMA, IPES
HR6HUYLoRGH,PSUHQVDH2EUDV*UiÀFDVGR0DUDQKmR 6,2*( TXHVHSURS{V
DGHVHQYROYHUXPDOLQKDHGLWRULDOGHQRPLQDGD´&ROHomR,JQDFLR5DQJHOµFXMR
sentido era difundir, através de livros, a obra do economista.
Os frutos daquele trabalho de divulgação apareceram ainda mais nítidos
HP  VHQGR R VHX QRPH ODQoDGR D XPD YDJD QD $FDGHPLD 0DUDQKHQVH
de Letras, por iniciativa de intelectuais e literatos da terra, e o Governo do
Maranhão, por intermédio da Secretaria de Cultura, evidenciando seu interesse
em conceder-lhe uma comenda, pelo valor de sua contribuição cultural ao Brasil
e ao Maranhão.

D
D 51
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

Ignacio de Mourão Rangel foi um homem sólido de caráter, ideário,


LGRQHLGDGH H FRQYLFo}HV SROtWLFDV H ÀORVyÀFDV 1mR DSHQDV QR GLVFXUVR EHP
construído, mas na ação prática cotidiana.
2 HVStULWR GH OXWD KHUGDGR GRV IDPLOLDUHV IH] FRP TXH DRV  DQRV
SDUWLFLSDVVHGD´5HYROXomRGHµHDRVGDWHQWDWLYDGHWRPDGDGRSRGHU
pela Aliança Nacional Libertadora (ANL).
Atuou como um dos organizadores da luta dos trabalhadores rurais
espoliados do Alto Sertão maranhense e piauiense contra o poder do latifúndio.
'HUURWDGR HP  SDVVRX RV GH] DQRV VHJXLQWHV HQWUH SUHVtGLRV
QR 5LR GH -DQHLUR RQGH IRL ´UHLWRUµ GH XPD XQLYHUVLGDGH SRSXODU IRUPDGD SRU
presidiários políticos, e em São Luís, onde viveu sob intensa vigilância e com
direitos de ir e vir cerceados.
5DQJHO WHP OXJDU JDUDQWLGR QR 3DQWKHRQ RQGH ÀJXUDP RV JUDQGHV
SHQVDGRUHV GD IRUPDomR VRFLDO EUDVLOHLUD 6HX OLYUR ´$ ,QÁDomR%UDVLOHLUDµ XP
clássico do pensamento econômico, está cotado pela Câmara Brasileira do Livro
- CBL como um dos 50 mais importantes livros brasileiros do século XX.
Rangel não fez carreira acadêmica como docente, nem como
pesquisador. Foi o maior dos economistas sendo formado em Direito e um dos
maiores intérpretes do Brasil sem ter atuado no meio universitário. Respeitava
as questões que a academia pautava, muito embora preferisse dar seus próprios
mergulhos, profundos, nos problemas do desenvolvimento brasileiro.
A independência intelectual, somada à coragem política, bem como o fato
GHQmRWHUVLGRXPDFDGrPLFRSURÀVVLRQDOGLÀFXOWDUDPDGLIXVmRGHVXDREUD
sobretudo por não ter tido a oportunidade de convivência permanente com alunos
e seguidores que se encarregassem de difundi-la sistematicamente, impondo-
lhe uma angustiante solidão intelectual, que o próprio Rangel denominava de
´FRQVSLUDomRGRVLOrQFLRµ
Embora tenha estudado com rigor as teorias de autores clássicos da
OLWHUDWXUD HFRQ{PLFD WDLV FRPR 6PLWK 0DU[ (QJHOV .H\QHV /X[HPEXUJ
Kalecki, Hilferding, Harrod, Robinson, Schumpeter, Kondratieff, Juglar, entre
os principais, se valeu de muitos deles na estruturação de suas teses sobre a
Dualidade Básica.
3RU RXWUR ODGR FRPHQWDQGR VREUH DV JUDQGHV LQÁXrQFLDV LQWHOHFWXDLV
de sua vida, referia-se aos grandes do seu tempo de Maranhão, a começar
pelo próprio pai, já mencionado, seguindo-se Antonio Lopes da Cunha, com
TXHP DSUHQGHX 'LUHLWR 0DWHULDOLVPR 'LDOpWLFR )LORVRÀD D TXHP FKDPDYD

D
D 52
UHVSHLWRVDPHQWHGH´PHVWUHµ$ULPDWpLD&LVQHFRPTXHPDSUHQGHX/DWLPDOpP
de outros fora do ambiente intelectual, como João Vasconcelos Martins e Caio
&DUYDOKRGLUHWRUSUHVLGHQWHHFKHIHGRHVFULWyULRGDÀUPD0DUWLQV,UPmRV &LD
sua primeira e grande escola de aprendizagem da ciência econômica.
$SHVDUGHWHUFRQVWUXtGRXPGRVPDLVFRPSOH[RVHVRÀVWLFDGRVVLVWHPDV
explicativos do desenvolvimento da formação social brasileira, presente na
7HRULDGD'XDOLGDGH%iVLFDRÀRGH$ULDGQHGHVXDREUDFRPRFRVWXPDYDGL]HU
Rangel jamais confundiu a ciência econômica com os fundamentos do equilíbrio
neoclássico, ou com as matemáticas, ou com a econometria, tendência esta,
segundo alguns, uma das mais importantes causas do empobrecimento do
SHQVDPHQWR HFRQ{PLFR EUDVLOHLUR QRV ~OWLPRV DQRV UHÁHWLGR QD FULVH H QD
decadência por que passam as escolas e faculdades de economia.
O desenvolvimento capitalista criou uma enorme periferia, da qual
R %UDVLO EXVFD VDLU D WRGR FXVWR WHQGR DQWHV TXH VXSHUDU GpÀFLWV KLVWyULFRV
de infraestrutura e de desigualdades. Para decifrar o país, seus problemas e
crises, não basta examinar o desenvolvimento econômico como se observa o
comportamento dos modos de produção clássicos. É fundamental antes de tudo
TXHVHGHFLIUHDGLQkPLFDHDVHVSHFLÀFLGDGHVGDSHULIHULDHGHVXDVUHODo}HV
FRPRVSDtVHVFHQWUDLVGRFDSLWDOLVPRDÀUPDYD5DQJHO
'R LQtFLR GRV DQRV  DWp PHDGRV GRV DQRV  GR VpFXOR DQWHULRU
quando vem a falecer, Ignacio Rangel foi quem melhor explicou os fundamentos
da formação social e do desenvolvimento econômico do Brasil, de maneira
DUWLFXODGDHO~FLGDGHQWURGHXPHVFRSRWpFQLFRFLHQWtÀFR
A despeito da conspiração do silêncio e dos impactos produzidos pelo
SURFHVVR GH JOREDOL]DomR HFRQ{PLFD H ÀQDQFHLUD VXDV WHRULDV FRQWLQXDP
plenamente válidas e assim permanecerão por muito tempo, pois não se trata IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
de uma contribuição datada e localizada e sim de uma obra que agrega valores
imensuráveis ao pensamento humano.
Em sua última visita a São Luís, falando a um grupo de admiradores,
HQWUHPRGHVWRHRUJXOKRVRFKHJRXDDÀUPDU´3DUHFHTXHHQÀPPLQKDYR]
ID]HFRµ
Não temos dúvidas que os ecos da presença rangeliana no Maranhão
existem, ainda que difusos, aqui e ali. É também verdadeiro admitir que são
ecos muito tênues, fracos, distantes, ainda privilégio de restritíssimos grupos
sociais bem informados presentes no meio maranhense, portanto muito aquém
do esperado como divulgação para uma obra seminal como a do brilhante
economista.

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IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

Mesmo nos dias que correm, é possível perceber, nos círculos culturais e
sociais mais institucionalizados e destacados da maranhensidade, que Ignacio
5DQJHODLQGDQmRIRLSOHQDPHQWHGHVFREHUWRÀJXUDQGRSDUDPXLWRVFRPRPDLV
um nome a integrar o pantheon de barro em que se transformou a memória
cultural maranhense.
Trata-se pois de um tesouro que precisa ser descoberto pelas escolas
GHHFRQRPLDVRFLRORJLDSROtWLFDJHRJUDÀDHKLVWyULDGHVWH(VWDGRHWDPEpPGR
País, sobretudo pelos seus estudantes, para quem Rangel tinha uma verdadeira
predileção, pois acreditava que seriam eles os fecundadores das sementes de
um novo Brasil.

Os caminhos do caminhante lapidam uma obra instigante

O corpo teórico produzido pelas ideias originais de Ignacio Rangel sobre


o Brasil no mundo precisam ser revividas para que o país não pague um preço
muito alto por essa omissão histórica.
&RQYLYHPRV SUy[LPRV D 5DQJHO GHVGH R LQtFLR GRV DQRV  DWp D
VXDPRUWHHPGHPDUoRGHMXVWDPHQWHQRV~OWLPRVDQRVGHVXDYLGD
temporal. Ele, no bairro das Laranjeiras, no Rio e nós, em boa parte, em São
/XtVSRLVHQWUHHUHVLGLPRVHPVRORFDULRFDFXPSULQGRSURJUDPDGH
formação acadêmica.
Nunca sentimos nele a menor pretensão de constituir discípulos
HQÀOHLUDGRVHPERUDWHQWiVVHPRVGHWRGRVRVPRGRVTXHQRVDFHLWDVVHFRPR
tais, a nós os orgulhosos divulgadores de sua obra no Maranhão naqueles
tempos.
Apresentava-se sempre como um pregoeiro destemido e sério, um
anunciador corajoso, um decifrador de enigmas, que teve o Brasil como maior
GHVDÀRHODERUDWyULR
Fica assim evidente que o maior de todos os seus compromissos
era mostrar caminhos novos aos jovens, sobretudo economistas, sobre o
enfrentamento dos obstáculos postos ao desenvolvimento do Brasil.
Partia sempre da ideia de que os seus interlocutores podiam acompanhar
o seu raciocínio e suas explicações a respeito de como superar os problemas do
País. Ele nos levava, em expedições fantásticas, à convicção de que o mundo
das desigualdades tinha saída, à pátria haveria um futuro promissor e que a

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D 54
humanidade viria a ser plenamente evoluída e feliz.
A maior de todas as suas utopias: a certeza de que todos os povos da
7HUUDFDPLQKDULDPSDUDXPDFRPXQLGDGH~QLFD²SDUD´8P0XQGR6yµ
$ÀUPDPRVQRGLDGRODQoDPHQWRGDV´2EUDV5HXQLGDVµTXH5DQJHOQmR
havia morrido.
Estava vivo e pulsando nas páginas do referido livro.
Estava mais belo do que nunca porque ressuscitara por mãos femininas,
como as de Liudmila e Ana Rangel, sua sobrinha e de muitas outras que ali se
encontravam.
Encerramos nosso pronunciamento com uma alegoria, que bem
representa a alma ignaciana.
Não seria surpresa para nós, se, ao chegarmos em nossos lares, o
Velho, de beijos e abraços com Aliete, sua inspiradora e combativa esposa, José
/XFDV H $OEHUWR REVHUYDGRV SRU 6RORQ 6\OYLR 3DXOR GH -HVXV (YDQGUR /XFDV
Celso Augusto, José Aldo e Dirceu Carmelo nos mandasse, como presentes por
aquela festa comovente, uma bússola, um compasso, um relógio e uma régua de
FDOFXODURVPHVPRVTXHGHUDGHSUHVHQWHSDUDRVÀOKRV-RVp/XFDVH/LXGPLOD
quando fazia o curso da CEPAL no Chile.
Seria, sem nenhuma dúvida, mais um convite desse bravo “sobrevivente
GD GLJQLGDGH QHVWHV WHPSRV GH FDQDOKLFH RUJDQL]DGDµ FRPR GLULD 5RVVLQL
Corrêa, para não desistirmos de decifrar e reinventar o Brasil.
Rangel foi um caminhante incansável que se fez ao caminhar.
Autodidata, estudou, com rigor, História e Economia. Cursou Direito na
antiga Faculdade de São Luís. No imediato pós-guerra radicou-se no Rio de Janeiro, IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
RQGH SHUPDQHFHX DWp R ÀQDO GH VXD YLGD $WXRX LQLFLDOPHQWH FRPR MRUQDOLVWD
tendo sido secretário da United Press e como tradutor e, posteriormente, como
jurista, historiador e, principalmente, como economista.
A partir dos anos 50 esteve presente, lúcida e ativamente, nas instituições
e nas trincheiras de luta pelo desenvolvimento nacional, a saber: Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico (BNDE), hoje BNDES, Comissão Econômica
para a América Latina (CEPAL), Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB),
Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política (IBESP), Assessorias de
Vargas e Goulart, Plano de Metas de Juscelino, Clube dos Economistas, Conselho
Regional de Economia do Rio de Janeiro, Instituto de Economistas do Rio de
Janeiro (IERJ) e, por último, na Academia Maranhense de Letras.

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D 55
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

Foram instituições nas quais atuou e realizou inúmeras trabalhos,


conferências e ministrou cursos, além das várias exposições que fez a convite de
universidades e instituições educacionais do país, tendo sido ainda colaborador
permanente das principais revistas e publicações especializadas em economia,
como a Revista de Economia Política, sendo um dos seus patronos, e dos maiores
jornais do país, em especial a Folha de São Paulo.
$SDUWLUGHPHDGRVGRVDQRVPLQLVWUDFXUVRVHPYiULDVIDFXOGDGHVH
Universidades do país. Nessa época torna-se colaborador regular e conferencista
em cursos e seminários sobre economia, promovidos pelo Instituto Superior de
Estudos Brasileiros-ISEB, pelo Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e
Política-IBESP e pelo Clube de Economistas.
Nos últimos anos de sua vida passou a militar no Conselho Regional de
(FRQRPLDGR5LRGH-DQHLURGRTXDOIRLSUHVLGHQWHQRLQtFLRGRVDQRVHQR
Instituto de Economistas do Rio de Janeiro-IERJ, onde ocupou a função de membro
consultivo.
4XHP VH DSUR[LPD GH VXD REUD FHGR SHUFHEH TXH HP ,JQDFLR FRDELWDP
vários Rangéis:
1.Há o Rangel intérprete da economia brasileira. Seu lado mais conhecido.
Dono de uma obra monumental, original e inovadora. Um dos formuladores
do modelo de substituição de importações na economia brasileira;
2. Há o Rangel pensador. O criador original. O pioneiro. Aquele que vai fundo
QRVHXWUDEDOKRLQWHOHFWXDO4XHGHUHSHQWHVHGiFRQWDTXHSURGX]LXXPD
maneira nova de se posicionar no debate. A forma peculiar com a qual
trabalha a UHDOLGDGH EUDVLOHLUD DWULEXLOKH D FODVVLÀFDomR GH ´SHQVDGRU
LQGHSHQGHQWHµ6mRHYLGrQFLDVGHVWDFDUDFWHUtVWLFDLQWHOHFWXDODWHVHGD
GXDOLGDGH D WHRULD GD LQÁDomR RV SULQFtSLRV UHODFLRQDGRV j SROtWLFD GH
privatização de serviços de utilidade pública, as análises sobre reserva de
mercado, as propostas pioneiras à época, referentes à instituição de um
VLVWHPDGHFRUUHomRPRQHWiULDHGHHVWUXWXUDomRGHXPVLVWHPDÀQDQFHLUR
e de um mercado de capitais para o desenvolvimento do Brasil, ou as
demonstrações acerca da importância estratégica do comércio exterior
para a economia brasileira;
3.Há o Rangel erudito. Sua face reconhecida, mas pouco destacada. Em seus
textos é fácil encontrar não só um analista profundo, mas, igualmente, um
HVFULWRUUHÀQDGRGRQRGHXPHVWLORLQYHMiYHO6XDVDQiOLVHVTXDVHVHPSUH
YrPUHFKHDGDVGHHUXGLomRKLVWyULFDÀQDLURQLDULFDVPHWiIRUDVTXHHP
conjunto imprimem a seu trabalho uma atraente e fecunda expressão

D
D 
literária;
4.Há o Rangel militante. Tanto aquele que optou pela militância intelectual
como uma forma de atuação, como o militante político, autêntico e
GHVWHPLGR$TXLWDPEpPVXDELRJUDÀDpH[SUHVVLYD&RPDSHQDVDQRV
SDUWLFLSRX HP 6mR /XtV GR PRYLPHQWR GH  GH RXWXEUR GH  (P
meados daquela década integrou a ANL. Como consequência do levante
GHSHJRXGRLVDQRVGHSULVmRHHPVHJXLGDDQRVGH´GRPLFtOLR
FRDFWRµGHGRPLFLOLRIRUoDGRHP6mR/XtVSURLELGRSRUWDQWRGHDWUDYHVVDU
os Mosquitos e de outros direitos fundamentais, como o de tornar público
o seu pensamento. Igualmente notável sua militância na burocracia e
planejamento governamentais. Atuou e ajudou a construir instituições
básicas ao desenvolvimento brasileiro do pós-Segunda Guerra, como
GHVWDFDGRDQWHULRUPHQWHQHVWHWH[WR'RLQtFLRGRVDQRVDWp
Rangel ocupou posição privilegiada nos principais centros de decisão
econômica do Brasil. Ele próprio escreveu, deixando evidente sua peculiar
PRGpVWLDQDLQWURGXomRGHVHXOLYUR´(FRQRPLD0LODJUHH$QWL0LODJUHµ
“Fui testemunha atenta de fatos importantes de nossa história por pura
VRUWHPLQKDµ
5.Há ainda o Rangel missionário. O Rangel conselheiro. O Rangel profeta.
Neste particular, aliás, ele se caracterizou como um analista que se
houve sempre bem como antecipador dos desdobramentos históricos da
economia brasileira;
6.Há ainda um Rangel muito especial, do qual Ignacio Rangel se orgulhava
muito. O Rangel funcionário público. Aquele que tem a consciência e
YHUGDGHLUD QRomR GR TXH VLJQLÀFD VHU XP VHUYLGRU S~EOLFR 2 KRPHP
íntegro que não foi seduzido pelas alturas, preferindo semear na planície. O IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
cidadão que soube dizer sim, quando era para dizer e disse não, quando foi
preciso. Instado pelo então presidente Goulart, no dia em que completava
seus 50 anos, de vida, a escolher entre os cargos de Ministro Extraordinário
da Moeda e do Crédito, a SUMOC, hoje Banco Central, Rangel, honrado
e agradecido, recusou o convite, demonstrando ao Presidente que seria
mais útil ao país continuando como servidor público, temeroso do poder
imobilizador da alta burocracia e, como ele mesmo confessaria, da crise
que cercava o Governo Goulart naquele momento.
Sua produção intelectual é vasta, não se limitando apenas a livros e
PRQRJUDÀDV HQVDLRV H DUWLJRV )RL UHVSRQViYHO SRU FRSLRVD HODERUDomR GH
pareceres técnicos, planos de desenvolvimento, projetos institucionais e tantos
outros.
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D 57
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

7RPDQGRSRUEDVHDELEOLRJUDÀDRUJDQL]DGDSRU*LOEHUWRGH&DUYDOKRH
)HUQDQGR 3LQWR GH ´/LWHUDWXUD (FRQ{PLFDµ FRUUHVSRQGHQWH DR SHUtRGR 
 DPSOLDGD H DWXDOL]DGD DWp ÀQV GRV DQRV  SHOR DXWRU GHVWH WH[WR
através de levantamentos em outras fontes, são estes os livros e principais textos
avulsos de Rangel:
>@ ´$ 'XDOLGDGH %iVLFD GD (FRQRPLD %UDVLOHLUDµ HODERUDGD HP 
apresentada à Assessoria Econômica da Presidência da República e publicada
HPQR5LRSHOR,6(%
>@´(O'HVDUROOR(FRQRPLFRHQ%UDVLOµGHPRQRJUDÀDGHFRQFOXVmR
de curso na CEPAL;
>@ ´,QWURGXomR DR (VWXGR GH 'HVHQYROYLPHQWR (FRQ{PLFR %UDVLOHLURµ
FRQIHUrQFLDV SURQXQFLDGDV HP  QR ,%(63 H SXEOLFDGDV HP  SHOD
Livraria Progresso de Salvador-BA;
>@ ´'HVHQYROYLPHQWR H 3URMHWRµ GH  WUDEDOKR GHFRUUHQWH GH VXD
passagem pelo Departamento Econômico do BNDE;
>@ ´(OHPHQWRV GH (FRQRPLD GR 3URMHWDPHQWRµ FXMD SULPHLUD HGLomR p
GH  SURGXWR GH FXUVR PLQLVWUDGR QD )DFXOGDGH GH &LrQFLDV (FRQ{PLFDV
da Universidade da Bahia, obra pela qual Rangel reserva grande apreço, tendo
merecido edição da Editora Bienal, de São Paulo;
>@ ´9LVmR GR 'HVHQYROYLPHQWR H GD (FRQRPLD %UDVLOHLUD 3URJUDPD H
3ROtWLFD²23URJUDPDGH0HWDV(FRQ{PLFDVGR*RYHUQRµGHSXEOLFDGD
no Rio pelo BNDE;
>@ ´5HFXUVRV 2FLRVRV QD (FRQRPLD 1DFLRQDOµ GHFRUUrQFLD GH DXOD
LQDXJXUDOSURIHULGDHPQR,6(%
>@´$SRQWDPHQWRSDUDR6HJXQGR3ODQRGH0HWDVµGHSXEOLFDGR
pelo CONDEPE, Recife-PE;
>@´$4XHVWmR$JUiULD%UDVLOHLUDµGHIUXWRGDVDQiOLVHVHUHÁH[}HV
desenvolvidas em grupo de trabalho pela Presidência da República, visando
apontar soluções ao problema agrário brasileiro, publicado pelo Conselho de
Desenvolvimento da Presidência da República, no Rio de Janeiro-RJ;
>@´$,QÁDomR%UDVLOHLUDµRULJLQDOPHQWHGHHGLWDGRSHOD7HPSR
Brasileiro, reeditado posteriormente pela Zahar, Brasiliense e Bienal, estando
próximo da 10ª edição, sendo o trabalho mais divulgado de Rangel e hoje um
clássico do pensamento econômico brasileiro;
>@´5HFXUVRV2FLRVRVH3ROtWLFD(FRQ{PLFDµGHSXEOLFDGDSHOD

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HUCITEC, São Paulo, compreendendo uma reedição revista dos trabalhos
´5HFXUVRV 2FLRVRV QD (FRQRPLD 1DFLRQDOµ H ´$SRQWDPHQWRV SDUD R 6HJXQGR
3URJUDPDVGH0HWDVµDWXDOPHQWHQDHGLomR
>@ ´&LFOR 7HFQRORJLD H &UHVFLPHQWRµ GH  UHXQLmR GH DUWLJRV
FRQIHUrQFLDVHWH[WRVSURGX]LGRVHQWUHSXEOLFDGRSHOD&LYLOL]DomR
Rio (RJ);
>@´(FRQRPLD0LODJUHH$QWL0LODJUHµGHLQWHJUDQWHGDFROHomR
´2V $QRV GH $XWRULWDULVPRµ GD =DKDU (GLWRUD 5LR GH -DQHLUR5- DERUGDQGR D
economia brasileira durante o regime militar;
>@ ´(FRQRPLD %UDVLOHLUD &RQWHPSRUkQHDµ GH  UHXQLQGR WH[WRV
selecionados, publicados em jornais e revistas de circulação nacional, período
GHDSXEOLFDGRSHOD(GLWRUD%LHQDO
$LQGD QD ELEOLRJUDÀD RUJDQL]DGD SHORV DXWRUHV D TXH QRV UHIHULPRV
anteriormente, estão arrolados, como contribuição intelectual de Rangel:
>@ WUDEDOKRV SXEOLFDGRV HP SHULyGLFRV GH UHQRPH QR FDPSR GD
Economia e das Ciências Sociais, tais como Digesto Econômico, Cadernos do
Nosso Tempo, Desenvolvimento e Conjuntura, Revista do BNDE, Revista da
Civilização Brasileira, Estudos CEBRAP, Revista Agrária, Ensaios FEE e Revista de
Economia Política;
[7] trabalhos de fôlego, como contribuição em coletâneas organizadas por
HQWLGDGHVFXOWXUDLVHFLHQWtÀFDVFRPRR,6(%D8)0*D(GLWRUDGRV(QFRQWURV
FRPD&LYLOL]DomR%UDVLOHLUDHR&RQVHOKR1DFLRQDOGH'HVHQYROYLPHQWR&LHQWtÀFR
e Tecnológico;
[3] teses sobre o pensamento de Ignacio Rangel, elaboradas por
Manoel Francisco Pereira (EASP/FGV/SP), Paulo Davidoff (UNICAMP) e Ricardo IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
%LHOFKRZVN\HPFXMDWHVHGHGRXWRUDGRGHIHQGLGDQD8QLYHUVLGDGHGH/HLFHVWHU
,QJODWHUUDÀJXUDPFDStWXORVVREUHDFRQWULEXLomRGH5DQJHO
Destacam-se mais dois trabalhos acadêmicos: a dissertação de F.J.C.
de Carvalho (IFCH/UNICAMP) e o texto de Mauricio Tiommo Tolmasquim, estes
sobre os ciclos na obra de Rangel, elaborado para o curso de Teoria e História
GDV &ULVHV GH 5 %R\HU QD eFROH GH +DXWHV (VWXGHV HW +LVWRLUH HP 6FLHQVHV
Sociales, de Paris.
Nos últimos anos de sua vida tornou-se colaborador assíduo dos
principais jornais brasileiros, entre os quais a Folha de São Paulo e o Jornal de
Brasília, onde veiculava sua produção.

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

6HJXQGRQRVVRVGDGRVVyQD)ROKDHQWUHH5DQJHOSXEOLFRX
DUWLJRVDVDEHU DUWLJRV  DUWLJRV  DUWLJRV 
 DUWLJRV  DUWLJRV  DUWLJRV  DUWLJRV 
(23 artigos), perfazendo, no período uma média de quase 3 artigos novos por
mês.
Não menos volumosa foi sua contribuição, nos últimos anos, a jornais e
revistas especializadas em economia, tanto de projeção nacional quanto regional
e estadual. São artigos, ensaios, entrevistas, veiculados pela grande imprensa e
periódicos dos grandes centros do sul e de outras regiões brasileiras.
Adicionem-se a isto as crescentes solicitações a Rangel, provenientes
das mais variadas instituições sociais e culturais do país, e até de universidades
estrangeiras, interessadas em ouvir suas conferências, palestras e depoimentos.
$GHVSHLWRGHVXDVSURSRUo}HVFRQVLGHUiYHLVDLQGDpYDVWDDELEOLRJUDÀD
de Rangel que permanece inédita ou desconhecida. São pareceres, relatórios
técnicos, estudos e projetos, referentes a questões econômicas dos anos
 H  SHUtRGR HP TXH GHVHPSHQKRX IXQo}HV GHFLVLYDV QD EXURFUDFLD
governamental e militou nas instituições estratégicas, na formulação de idéias
sobre o desenvolvimento do Brasil.
Em 2005, por iniciativa de César Benjamim, a Editora Contraponto editou
DV´2EUDV5HXQLGDVµGH,JQDFLR5DQJHOGLYLGLGDVHPGRLVYROXPHV29ROXPH
UHXQLQGRDWHVHTXHRDXWRUGHIHQGHXQD&(3$/OLYURVHPRQRJUDÀDVDRWRGR
oito títulos essenciais de sua produção intelectual. O Volume 2 compreende
FROHWkQHDVGHDUWLJRVHODERUDGRVHQWUHHDOpPGHDUWLJRVDYXOVRV
TXH YmR GH  D  SRUWDQWR DWp RV GRLV DQRV TXH DQWHFHGHUDP D VXD
morte.
Apesar do hercúleo esforço de César Benjamin, Márcio de Castro e
Liudmila em reunir a obra completa de Rangel, com certeza uma nova incursão
em fontes ainda inéditas poderá fazer emergir textos e contribuições do autor
espalhadas por esse imenso país, sob guarda de seus amigos e admiradores.
1DYHUGDGHRPpULWRPDLRUGRVRUJDQL]DGRUHVGHVWDV´2EUDVµUHVLGLXQRIDWRGH
terem recolhido e juntado tesouros que se encontravam dispersos e que faziam
uma falta enorme ao patrimônio cultural da nação, em especial à sua ciência
econômica.

D
D 
Rangel e a penumbra

2PHOKRUGRWHPSRpRVRO$SHQXPEUDpXPWHPSRLQGHÀQLGRFUHSXVFXODU
sombrio. O sol levanta e movimenta. A penumbra convida a permanecer. O Brasil
visto de longe parece um sol imortal. O país de perto tem muitas sombras. O
Maranhão muitas noites. Rangel é o sol vagueante que precisa ser encontrado
para clarear noites e sombras.
Vivemos em um universo de poucas luzes, sobretudo o maranhense,
que sobrevive das ilusões de um passado distante, muitas vezes eivado de
mentiras e falsidades, e das miragens cotidianas, completamente ilusórias. Por
LVVRVmRHVFDVVDVDVELRJUDÀDVTXHPHUHFHPGHYHUGDGHUHFHEHUKRPHQDJHQV
centenárias, solares. Tudo e todos estão cada vez mais líquidos, pastosos,
penúmbreos.
Não se trata de pessimismo ou de culto a personalidades. O Brasil já
ultrapassou a barreira dos 500 anos desde a ocupação colonial e parece que
QmRFRQVHJXLXHQFRQWUDURVHXÀRGH$ULDGQH20DUDQKmRGLQiVWLFRGDV~OWLPDV
décadas vive o destino das encruzilhadas frente ao ocaso anunciado: o desespero
de não ter mais tempo e capacidade para se renovar.
&DGD YH] PDLV DXPHQWDP DV FODUH]DV VREUH RV StÀRV UHVXOWDGRV GDV
decisões tomadas no passado remoto e recente do Maranhão, muitas das quais
completamente equivocadas e incapazes de promover esperanças e aspirações
coletivas sustentáveis. Avolumam-se os sentimentos de que erramos e por muito
tempo.
1R %UDVLO D UHDOLGDGH YHP ID]HQGR DÁRUDU YRQWDGHV H YHUGDGHV TXH
colocam em xeque a capacidade de decidir dos governantes, tornando difícil IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
encontrar e compreender as saídas do enorme labirinto de vontades construído
pela sociedade em transe, colocando em risco a reputação e a competência das
elites governantes e dirigentes, muitas delas plenamente incapacitadas ética,
PRUDOHWHFQLFDPHQWHSDUDHQIUHQWDURVGHVDÀRVSRVWRVDWRGRPRPHQWRSHOD
conjuntura nacional, internacional e também pelas ruas.
Estamos em uma difícil encruzilhada, ofuscados por um sol escaldante
ou completamente cegos na noite escura. Dia ou noite, cada vez mais, buscam
DÀUPDUVXDVKHJHPRQLDVVLPEyOLFDVHPXPDVRFLHGDGHFRPRDQRVVDSULVLRQHLUD
em arapucas da política partidária e amordaçada pela força das exclusões, em
especial as educacionais, que negam o direito a uma leitura crítica dos contextos
em que se insere.

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

A realidade nua e crua tanto pode ser uma oportunidade para mudar,
como uma ameaça a qualquer projeto transformador. O mundo em profusão de
hoje relegou a segundo plano os poderes das fórmulas mágicas e a força dos
milagres.
As lições deixadas pelo homenageado, em seu primeiro centenário,
indicam que, sem coragem, capacidade e determinação, a vitória das trevas será
inexorável.
Revelam que é preciso semear a terra, plantar em campos imensos e
tomar decisões corretas para garantir a melhor das safras.
Em muitos casos a semeadura não produz frutos imediatos, precisa de
WHPSR SDUD ÁRUHVFHU HP SOHQLWXGH 6HPSUH QDVFHUmR HVSHUDQoDV TXDQGR RV
semeadores forem luminosos e preparados.
Rangel não foi um fatalista, nem tampouco um pessimista em relação
ao futuro do Brasil e do Maranhão. Seu otimismo era tão forte que não fez outra
coisa na vida que se aprofundar no conhecimento dos problemas brasileiros e
DMXGDUQDIRUPXODomRGHVDtGDVFRQVLVWHQWHVHHÀFD]HV
Todavia precisamos aprender com o seu exemplo de vida. As benesses
não chegarão sem trabalho, dedicação e criatividade. O panorama apresentado
SHODUHDOLGDGHSROtWLFDHVRFLDOGR0DUDQKmRQRVUHPHWHDGHVFRQÀDUGRIXWXUR2
processo de centralização e concentração de poderes pelas oligarquias estaduais
e municipais levaram a sociedade inclusiva a um estado de penúria material e
cultural sem paralelo.
Aqui estão naturalizadas as injustiças, o compadrio, o apadrinhamento.
O mérito pessoal como valor intrínseco pesa muito pouco nos processos de
inserção no mundo do trabalho e da vida ativa, em especial na máquina do
poder público, o que tem levado as instituições locais a crescentes níveis de
LQFDSDFLGDGHGHFXPSULUHPVHXVREMHWLYRVÀQDOtVWLFRV
Aplicação aos estudos, valorização dos talentos dispersos no meio social
não contam em nada se estiverem na outra margem do rio que banha o poder
local.
A prova da falência desse sistema de dominação política e os sinais
de sua incapacidade de encontrar saídas esta à mostra no noticiário nacional
e internacional, cada dia mais com suas câmeras voltadas para a Província,
revelando uma sequência crescente de crises fruto da incapacidade no setor
público de planejar e gerir as políticas públicas.

D
D 
A implosão do sistema de segurança e a consequente eclosão de motins,
UHEHOL}HVIXJDVHDVVDVVLQDWRVQRSUHVtGLRGH3HGULQKDVGHVDÀDQGRDDXWRULGDGH
policial e ameaoDQGRDVRFLHGDGHHYLGHQFLDPDIDOWDGHOX]QRÀPGRW~QHO
O inusitado em tudo isso é constatarmos que o cismo que abala as
estruturas de poder no Maranhão tem origem em representantes da escória
VRFLDOMRYHQVGHVFODVVLÀFDGRVHQWUHHDQRVHQMDXODGRVHVHPLDQDOIDEHWRV
portanto inadmissíveis em partidos políticos e nas instituições acadêmicas, de
onde sempre esperamos que viessem os fundamentos da ruptura.
3UHFLVDPRVDJLUFRPRVSpVEHPSODQWDGRVQRFKmR2ÀPGDKHJHPRQLD
GRV JUXSRV GRPLQDQWHV QmR ID] DÁRUDU R UHPpGLR SDUD WRGRV RV PDOHV TXH
precisam de cura. É necessário sabedoria de decisões. Pensar que o tesouro
do setor público, por mais entulhado que esteja de recursos arrecadados da
sociedade, não vai secar nunca, portando nos permitindo queimar recursos
públicos, como muitos ainda fazem hoje, é um erro que produzirá efeitos
desastrosos.
Necessitamos de uma vida comunitária e social que escape desses
determinismos que ameaçam o desenvolvimento do Maranhão e do Brasil. Os
novos políticos precisam conhecer formas alternativas de direção política da
sociedade e não continuarem imitando estratégias dos antigos regimes, ou
por má fé ou por ignorância. Rangel nunca admitiu as fórmulas prontas, tanto
da direita, como da esquerda. Penetrou fundo nos problemas recorrentes para
construir as melhores soluções possíveis. Sem arrogância e vaidade.
O que iremos construir daqui para frente, inspirados no exemplo
rangeliano, terá forçosamente que valorizar a competência e o talento, negar o
imediatismo político, focar nas necessidade do desenvolvimento da sociedade
como um todo, tendo como transversalidade um contrapoder social inteligente IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
e capaz de avaliar decisões que sejam as mais adequadas e pertinentes à
FRQVWUXomRGHXP´PXQGRVyµ
Os efeitos das várias penumbras que ameaçam o destino do Maranhão
precisam ser superados com urgência para que o otimismo rangeliano se
concretize. Precisamos vencer a apatia e ampliar a capacidade de decidir sobre
a sustentabilidade do desenvolvimento local. Precisamos de talentos vivos e
ideias originais capazes de indicar os melhores caminhos e as mais consistentes
saídas para fugirmos da noite soturna e chegarmos inteiros ao sol radiante do
dia que virá.

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

Canção d’amigo para Ignacio Rangel*


5RVVLQL&RUUrD

3DUD$QQD5DSKDHODGR&RXWR&RUUrDTXH
IRL JUDQGH DPLJDPLULP GR VHX TXHULGR
¶9RY{5DQJHO·

Ignacio Rangel: resposta a um Inquérito de Mônica Sinelli

²4XDQGRFRQKHFHXHTXDLVHUDPVXDVUHODo}HVFRP,JQDFLR5DQJHO"
Conheci Ignacio Rangel em São Luís do Maranhão, em conexão com
o então Instituto de Pesquisa Econômicas e Sociais (IPES), organismo que
congregou uma plêiade de estudiosos – entre os quais, os sociólogos Maureli
Costa, Pedro Braga, Leo Costa e José Caldeira e os economistas Raimundo
Palhano, José Augusto dos Reis, Ana Maria Saraiva e Saturnino Moreira. Sociólogos
e economistas, bem como agrônomos, a exemplo de José Policarpo Costa Neto,
demógrafos, estatísticos e outros mais – cuja nominata é naturalmente mais
extensa.
As minhas relações com Ignacio Rangel daí derivaram, tornando-
se menos institucionais e, de maneira gradativa, cada vez mais pessoais,
conformando uma amizade transgeracional, que terminou por vencer o tempo,
pois perpassou menos de uma década e meia e ultrapassará tanto a dele quanto
a minha vida.
Fui casado com a excelente socióloga Maureli Costa e a amizade com
RFDVDO5DQJHO²$OLHWHH,JQDFLR²HUDWULSODPLQKDGH0DXUHOLHGHQRVVDÀOKD
Ana Raphaela, que chamava o velho economista de Vovô Rangel, retribuindo o
afeto que lhe era dispensado.
² 4XH PDUFDV WHULDP GHL[DGR QHOH PRPHQWRV FRPR (QYROYLPHQWR
DLQGD PXLWR MRYHP QD OXWD DUPDGD QR 0DUDQKmR 3ULVmR QR 5LR GH -DQHLUR
5RPSLPHQWRFRPR3DUWLGR&RPXQLVWD"

*
Este texto prefacia o livro “Canção d’amigo para Ignacio Rangel: pequeno almanaque comemorativo
do seu primeiro centenário”. O “pequeno almanaque” (são 274 páginas) será publicado posteriormente
e contém rica documentação inédita de Ignacio Rangel ou sobre Ignacio Rangel em parte incorporada a
este livro, com a autorização e a gentileza do autor.

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D 
As marcas deixadas por momentos como luta armada no Maranhão,
prisão no Rio de Janeiro e rompimento com o Partido Comunista foram indeléveis
na existência de Ignacio Rangel.
Primeiro, porque no percurso rangeliano houve a constante
SHFXOLDULGDGH GD EXVFD GD XQLÀFDomR HQWUH WHRULD H SUiWLFD SUiWLFD H WHRULD
em um jogo de retroalimentação dialética. Ter participado da luta armada no
0DUDQKmRFRQÀJXURXXPDH[SHULrQFLDYLWDOGHTXHPHPFHUWRVHQWLGRDEUHYLRX
R FDPLQKR H FRPHoRX SHOR ÀP GHQWUR GD WHRULD GD PXGDQoD H GD UHYROXomR
vigente no mundo. Creio que o episódio em questão preparou Ignacio Rangel
para uma compreensão mais adequada de sua futura inserção no aparelho de
planejamento do Estado, colaborando para a teoria e a prática de novos níveis
de mudança de equilíbrio no Brasil.
Segundo, porque a prisão no Rio de Janeiro conferiu ao jovem Rangel
uma possibilidade de convívio com parte do que o Brasil tinha de mais inteligente,
cívico e generoso, ainda que pudesse ser – também – equivocado. O cárcere
instaurou o jovem Rangel no centro do debate em torno do Brasil e do mundo, em
uma década fatal, a de 30, esmagada entre as duas Guerras Mundiais e marcada
por extrema polaridade ideológica, subsequente j&ULVHGHHFRQWHPSRUkQHD
do socialismo de Estado, crise do liberalismo, ascensão do fascismo e crescente
apelo e legitimação do nazismo.
Terceiro, porque o rompimento com o Partido Comunista representou,
para Ignacio Rangel, a possibilidade intelectual de existência de Ignacio Rangel,
sem o que seria mais um militante a repetir fórmulas e cartilhas de uma teoria da
revolução forjada em Moscou, pelo Politburo. Este era a elite stalinista pensando
‘a revolução mundial’ a partir do ‘socialismo em um só país’ e ditando caminhos
H SROtWLFDV HQWUH  H  FRPR LQVWkQFLD H[HFXWLYD VXSHULRU GR 3DUWLGR IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
Comunista da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Se ali permanecesse,
Rangel seria um militante de brilho, mas sem autonomia intelectual, a repetir
fórmulas abstratamente construídas pelos 11 membros eleitos pelo Comitê
Central do Partido Comunista, a realizar análises equivocadas da realidade,
FRPRDFRQWHFHXQR%UDVLOFRPD$OLDQoD1DFLRQDO/LEHUWDGRUDHP2XYL
inúmeras vezes Ignacio Rangel repetir que o maior anseio intelectual só poderia
ser pensar com a própria cabeça. Rompendo com o Partido Comunista, Rangel
carimbou o passaporte para pensar com a própria cabeça.
²4XDLVDVFDEHoDVTXHPDLVSURYRFDUDP5DQJHOLQWHOHFWXDOPHQWH H
SRUTXr"
4XDQWR às LQÁXrQFLD LQWHOHFWXDLV GH ,JQDFLR 5DQJHO QR kPELWR

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

GRPpVWLFR KRXYH D H[WUDRUGLQiULD LQÁXrQFLD GR -XL] 0RXUmR 5DQJHO VHX 3DL
formado no espírito iluminista da Revolução Francesa, na Faculdade de Direito
do Recife. Fora do círculo familiar, sem dúvida, a ascendência maranhense
foi de Antônio Lopes, também advindo da Escola do Recife, que representou
uma referência intelectual com abertura sociológica, na formação do pensador
maranhense.
1D HVIHUD GDV LGHLDV JHUDLV EHP FRPR QD HVSHFtÀFD GLPHQVmR
HFRQ{PLFD WUrV LQÁXrQFLDV IRUDP PDUFDQWHV QD HVWUXWXUD GLQkPLFD GR
SHQVDPHQWR UDQJHOLDQR .DUO +HLQULFK 0DU[ -RKQ 0D\QDUG .H\QHV H 1LNRODL
Dimitrievich Kondratieff.
A peculiaridade de Ignacio Rangel residiu na capacidade de dialogia e de
LQWHUWH[WXDOLGDGHFRPRVWUrV².DUO+HLQULFK0DU[-RKQ0D\QDUG.H\QHVH1LNRODL
Dimitrievich Kondratieff – sem se reduzir a nenhum dos três, interpretando-os,
reelaborando-os e construindo a si mesmo, na singularidade da sua perspectiva
de teoria econômica.
Constato, inclusive, que aquilo que parecia inexorável teimosia em
Ignacio Rangel a exemplo da teoria dos ciclos – vi uma vez Maria da Conceição
7UDYDUHVGL]HUOKH¶pXPDORXFXUD1XQFDYLXPYHOKRPDLVWHLPRVR·²VHUDJRUD
REMHWRGHUHFRQVLGHUDomRFRPSOHWD1REULOKDQWHOLYUR´$VRPDHRUHVWRµ)HUQDQGR
Henrique Cardoso não enuncia outra coisa, ao ponderar “A crise econômica
JOREDOGHHGHL[RXFODURTXHRVLVWHPDFDSLWDOLVWDpPDLVFtFOLFRGR
que se pensava e que, portanto, a previsibilidade através do planejamento, da
antecipaomRGHPHGLGDVpPXLWRGLItFLOµ.
Finalmente, registro a singularidade intelectual de Ignacio Rangel, em
virtude da circunstância de que dispunha de cultura geral, transitando pelas
KXPDQLGDGHVGDOLWHUDWXUDjHFRQRPLDFRPSDVVDJHPREULJDWyULDSHODÀORVRÀD
história, sociologia e direito, em poliedro difícil de encontrar entre os economistas.
² 5DQJHO ÀFRX FRQKHFLGR SRU XPD DQiOLVH EDVWDQWH RULJLQDO GR
PDU[LVPR4XHH[HPSORVSRGHULDPVHUFLWDGRVGDOHLWXUDSHFXOLDUTXHHOHIH]GH
0DU["
Em uma formação social periférica e dependente, como a do Brasil, a
tentação era, como efetivamente foi, a de transplantar o modelo marxista para
uma realidade estranha à sua paisagem europeia, típica da sociedade urbana e
industrial do século XIX.
2XDOWHUQDWLYDPHQWHRSURYiYHOHUDTXHSRURXWUDYLDVHÀ]HVVHPDLV
do mesmo, produzindo o divórcio das ideias com a realidade, desembarcando

D
D 
aqui, mais uma vez, ideias fora do lugar, para recuperar a imagem de Sérgio
Buarque de Holanda. Este caminho foi o do Partido Comunista, com o transplante
de toda uma teoria da revolução formulada pelo Politburo, na União Soviética de
Josef Stálin.
O tratamento que Ignacio Rangel conferiu a Karl Marx correspondeu
a uma apropriação criativa do seu instrumental metodológico e teórico, com a
ÀQDOLGDGH GH SULYLOHJLDQGR D UHGXomR VRFLROyJLFD UHFRPHQGDGD SRU *XHUUHLUR
Ramos, não deixar, em hipótese alguma, de conferir prioridade empírica
às circunstâncias peculiares da formação social brasileira, em sua singular
historicidade.
Daí que, no Karl Marx de Ignacio Rangel, não há a sua apropriação
dogmática segundo as fórmulas da teoria da revolução do Politburo, que se
tornaram regras de ferro do Partido Comunista no Brasil, despindo-o o economista
EUDVLOHLURGDVFUHQoDVQHOHSUHVHQWHVRXGHOHGHULYDGDV4XDLV"$FULVHJHUDOGR
capitalismo, o desaparecimento das classes médias, o imperialismo como último
estágio do capitalismo, a total incompreensão do agir histórico periférico, a
exemplo da percepção de Simón Bolívar por Karl Marx, tipicamente etnocêntrica
ou eurocêntrica e, no mínimo, a visão de Karl Marx quanto a destruição colonial
das formas de vida pré-capitalistas existentes nas Américas.
Em síntese, Ignacio Rangel depurou e reconstruiu o seu Karl Marx.
²1DVXDRSLQLmRFRPRHOHHVWDULDKRMHDYDOLDQGRDSROtWLFDHFRQ{PLFD
SHWLVWDHRTXHSURSRULDSDUDRFUHVFLPHQWRGRSDtV"
Com fundamento no discurso econômico rangeliano, não tenho dúvida
de que a política econômica petista seria objeto de crítica e de discordância. O
Ministro da Fazenda Guido Mantega é um conhecedor do pensamento de Ignacio IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
Rangel, porém, no poder e na gestão, é menos o acadêmico Guido Mantega e
PDLVXPDSHoDQDPDFURDUWLFXODomRTXHGHÀQHDSROtWLFDHFRQ{PLFDGR%UDVLO
A preocupação rangeliana com a ativação dos recursos ociosos na
economia brasileira, na dialética do setor privado com o setor público, sempre
representou, em última instância, um compromisso com dinamismo e com o
crescimento econômico no país.
No momento, as modestíssimas taxas de crescimento da economia
EUDVLOHLUD DFRPSDQKDGDV GR FUHVFHQWH UHWRUQR GR SURFHVVR LQÁDFLRQiULR H GD
retomada da ascensão dos juros, sem dúvida, mereceriam a reprovação de
Ignacio Rangel. Esse não poderia aplaudir o crescimento de 2% em 2012 e a
previsão de, no máximo, 3% em 2013, ano em que a América Latina e o Caribe,

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

na expectativa do Banco Mundial, com efeito, tenderão a um crescimento de


3,5%.
As propostas de Rangel, acaso existentes, sem dúvida, seriam criativas
e surpreendentes, com o chamamento à responsabilidade dos gestores da
economia, que poderão ter perdido uma oportunidade histórica de melhor
fomento do seu dinamismo, por meio da poupança advinda do comércio de grãos
e minérios com a China, enquanto esta crescia a taxas de 13%, como aconteceu
no ano de 2007.
² $OpP GR VHX HVFULWyULR GH DGYRFDFLD R VHQKRU VHJXH OHFLRQDQGR
QR&HQWUR8QLYHUVLWiULRGH%UDVtOLDHQR,QVWLWXWRGH(GXFDomR6XSHULRUGH%UDVtOLD"
+iQHVVDVLQVWLWXLo}HVjVHPHOKDQoDGRVH[LVWHQWHVHPRXWUDVXQLYHUVLGDGHVQR
3DtVQ~FOHRVGHHVWXGRVVREUHDREUDGH,5"
Permaneço lecionando e examinando teses no Brasil e fora dele. Não há
lugar em que eu esteja, no qual, sendo cabível, não me reporte ao pensamento
de Ignacio Rangel, ao discutir a vida nacional, inclusive, na sua dimensão jurídica,
por ser a da minha mais orgânica atividade.
1mRSRGHVHUROYLGDGDDFRQH[mRTXHRYHOKR5DQJHOÀHODVLPHVPR
estabeleceu entre dualidade e Código Civil. Ensino de maneira sazonal na
Universidade Católica de Brasília (UCB), assessoro o Centro Universitário de
Goiás (Uni-Anhanguera) e estou, de forma constante, no Centro Universitário
de Brasília (UniCeub) e, entre outros, no Centro Universitário Instituto de Ensino
Superior de Brasília (IESB).
Regra geral, não há núcleos de estudos sobre a obra de Ignacio Rangel
nos referidos ambientes acadêmicos, mesmo porque, a bem da verdade, houve
uma implosão das Faculdades de Economia no ensino universitário privado no
Brasil, levando-as ao encolhimento ou ao desaparecimento, com o decréscimo
visível da clientela.
Em que medida a crise da teoria econômica responde pelo processo de
desconstrução universitária em epígrafe, à falta de quadros explicativos para a
economia do mundo pós-moderno, é um debate que precisa ser travado.
De mim para mim, tudo que posso fazer, efetivamente faço, examinando,
RULHQWDQGR RX FRRULHQWDQGR PRQRJUDÀDV GLVVHUWDo}HV H WHVHV DR FKDPDU
atenção, promover o acesso, provocar a remissão ao pensamento de Ignacio
Rangel, colhendo sempre reiterado resultado: a surpresa e o deslumbramento.
Os alunos terminam por conjugar surpresa e deslumbramento, quanto
à capacidade rangeliana de antever e de reconstruir as relações do público e

D
D 
do privado no Brasil, por exemplo, entre demais temáticas instigantes. Estas
SHUSDVVDP RV FDPLQKRV GD IRUPDomR HFRQ{PLFD GR SURFHVVR LQÁDFLRQiULR
GRVHWRUGHLQWHUPHGLDomRÀQDQFHLUDGDGLQkPLFDWHFQROyJLFDGDFDSDFLGDGH
ociosa, dos movimentos cíclicos e das diferentes fases e formas de inserção na
economia internacional.
Assim caminho levando comigo – nos espaços onde circulo – a
semeadura do pensamento e a construção da permanência de Ignacio Rangel,
não por acaso, chamado de mestre dos mestres.

Por Ignacio Rangel falará a história: depoimento para Mônica Sinelli no


centenário do economista brasileiro

Ignacio Rangel – agora chamado saudade – foi um dos acontecimentos


da inteligência na minha vida que, desde o nascedouro, transcorreu na luz, não
no obscurantismo. E, se o declaro, é para sublinhar que o grande economista,
FRP YRFDomR GH KLVWRULDGRU FRQKHFLPHQWR MXUtGLFR H UHÀQDGD SHUFHSomR GH
sociólogo, foi como o sol do meio dia, astro luminoso a sobreiluminar uma galeria
HVSOHQGHQWH 6iELR HQWUH RV LQWHOLJHQWHV FULDWLYR HQWUH RV DSOLFDGRV ÀHO D VL
mesmo entre os trânsfugas; fênix entre os que tombaram no caminho; convicto
HQWUHRVVHPFRQÀDQoDUHQDVFLGRHQWUHRVTXHMDPDLVDFUHGLWDUDP²DVVLPIRL
mestre Rangel.
Aliás, o mestre dos mestres, como o designou o Ministro Bresser-Pereira,
quando lhe entreguei, certa feita, em Brasília, um exemplar de “Um Fio de Prosa
$XWRELRJUiÀFD FRP ,JQDFLR 5DQJHOµ OLYUR RX SHTXHQD MyLD TXH DUTXLWHWHL HP
companhia da socióloga Maureli Costa, do economista Raimundo Palhano e do IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
ÀFFLRQLVWD 3HGUR %UDJD 1mR SRU DFDVR IRL GH PHVWUH GRV PHVWUHV TXH HQWUH
FRPRYLGRVDEUDoRVR*RYHUQDGRU0LJXHO$UUDHVTXDOLÀFRX,JQDFLR5DQJHOMXQWR
a mim, depois de descer da mesa de palestrante em João Pessoa, no seminário
comemorativo dos sentent’anos do mestre Celso Furtado, organizado por dois
notáveis nordestinos: o historiador Sales Gaudêncio e o economista Marcos
Formiga.
Miguel Arraes, na intimidade, talvez mais soberbo do que populista, sobre
quem escutei o testemunho, no Palácio Campo das Princesas, de um mordomo
de quatro décadas, ou quase, que o servira em três governos – manhãs, tardes,
noites e madrugadas, muitas madrugadas, secas e molhadas – sem dele nunca
escutar um simples ‘obrigado, muito obrigado’. Se verdade for, foi este homem,

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IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

de quem, ao contrário, testemunhei o Ministro e Governador Moura Cavalcanti


garantir tratar-se de pessoa de gestos largos, com vocação para a nobreza de
atitudes, o Miguel Arraes que eu assisti, lado a lado com grande Rangel, recolhê-
lo da cadeira no auditório repleto, para ali festejá-lo em reverência calorosa, na
quente tarde paraibana.
Conheci pessoalmente Ignacio Rangel em São Luís do Maranhão. Leitor
precoce, de livro já o fruíra na adolescência, ouvindo, em complemento, do poeta
e do economista maranhense Bandeira Tribuzi o depoimento de que, na esfera
GDUHÁH[mRHFRQ{PLFDR%UDVLOQXQFDSURGX]LUDXPFpUHEURDXW{QRPRFRPRR
do brilhante pensador timbira. Seguiram-se manhãs, tardes e noites repetidas
em São Luís, Recife e Brasília, bem como João Pessoa, nas quais, algumas vezes,
recebi o casal Rangel – Ignacio e Aliete – privando de sua companhia singular,
chegando mesmo a hospedar o varão de Atenas na Veneza Brasileira
Em São Luís foram inúmeras as ocasiões em que nos encontramos, em
uma cidade novamente povoada pelas presenças de Renato Archer e de Neiva
Moreira, o primeiro, retornado da cassação e o segundo, egresso da cassação
e do exílio, na qual debates e seminários reaconteciam, com a participação de
Ignacio Rangel e o chamamento de personalidades como Luiz Carlos Prestes,
$QW{QLR &DOODGR 0DUFRV )UHLUH -DUEDV 9DVFRQFHORV 0LJXHO $UUDHV 8O\VVHV
Guimarães e Fernando Henrique Cardoso, sem o olvido de Teotônio Vilela, o
menestrel das Alagoas.
Distinto hemisfério – mais constante – nasceu do contato do velho
Rangel com o Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais (IPES), organismo
público que existiu no Maranhão, advindo da chamada Revolução de 30, nos
tempos de Paulo Ramos, então dirigido pelos jovens e lúcidos economistas José
Augusto dos Reis e Raimundo Palhano, que ali congregava quadros técnicos de
primeira água, advindos de consistente formação acadêmica.
Na Ilha do Amor os colóquios, debates e seminários rangelianos
se multiplicaram, no antigo sobradão da Rua Portugal, na Praia Grande, em
que ainda funcionava o primeiro elevador instalado no Maranhão. O mestre
dos mestres evitava sempre as escadas pelas quais subira na juventude, ora
ascendendo pelo elevador preguiçoso, ora formando o grupo no mesão da térrea
biblioteca. Daí decorreram momentos com a vocação da eternidade. Um mestre
de saber cercado de ainda quase juvenis sociólogos, economistas, agrônomos,
MRUQDOLVWDV KLVWRULDGRUHV H RXWURV PDLV HP GHEDWHV LQÀQLWRV D UHLQYHQWDU R
PXQGR FXMR ~QLFR SHFDGR IRL D DXVrQFLD GH UHJLVWUR IRQRJUiÀFR GDTXHOHV
momentos preciosos.

D
D 70
De maneira retrospectiva, compreendo aqueles instantes como de
puro exercício de responsabilidade do velho Rangel para com o futuro, nos quais
HVSDOKDYDHOHVHPHQWHVIpUWHLVFRPRDJULPHQVRUGHVXDIUXWLÀFDomR2PXQGR
R%UDVLOHR0DUDQKmRSRUDOLGHVÀODYDPFRPRREMHWRVGHLQWHUHVVHVFHQWUDLVHP
busca de dois elementos conectados: consciência e compromisso. Com efeito,
contemporâneo do futuro, Ignacio Rangel venceu o tempo e consignou na agenda
das gerações sucessivas, preocupações teóricas e práticas de que foi semente
fecunda, fonte criativa e cadeia inteligente de transmissão.
Do convívio com egrégio economista em São Luís nasceu a pequena
MyLD RX OLYUR LQWLWXODGD ´8P )LR GH 3URVD $XWRELRJUiÀFD FRP ,JQDFLR 5DQJHOµ
( ÀFDUDP RV LQVWDQWHV GH YLGD SULYDGD ² QD UHVLGrQFLD GR VHX LUPmR TXHULGR
6RORQ6\OYLRGH0RXUmR5DQJHOVLWXDGDQD5XD*HQpVLR5rJRQžQR%DLUUR
do Monte Castelo – motivados pelo trabalho, ou na minha, debruçados sobre
camaroadas, peixe pedra, torta de camarão, creme de bacuri e juçara de açaí,
como dizia Graça Aranha.
Em Brasília, reencontrei Ignacio Rangel, para cá deslocado em função de
convite formulado por uma central de empreendedores, interessada em rediscutir
a questão nacional. Na oportunidade, em companhia do então jornalista –
atualmente advogado maranhense radicado na Capital Federal, Eduardo Antônio
Leão Coelho – pude facilitar que este o entrevistasse, em matéria estampada
no ‘Jornal de Brasília-JBR’, ao qual emprestava a sua experiência de periodista
econômico, desenvolvida na grande imprensa de São Paulo. Peregrinamos de
extremo a extremo da Capital da Esperança, como a designou André Malraux, a
usufruir da vitalidade e da disposição ainda visíveis, do sertanejo maranhense.
Em João Pessoa foi e não foi diferente. Baseados no Recife fomos
QR FRPERLR SDUD D 3DUDtED HP {QLEXV RÀFLDO HP TXH HVWDYD R FDVDO 5DQJHO IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
acompanhado de uma carga pesada em cérebros, composta, entre outros, pelo
geógrafo Milton Santos. A motivação comemorativa estava nos setent’anos de
Celso Furtado, ali a recepcionar, com o Governador Cunha Lima, convidados
P~OWLSORV $UPDQGR 6RXWR 0DLRU 3DXOR %RQDYLGHV 8O\VVHV *XLPDUmHV 0LJXHO
Arraes, Hélio Jaguaribe, Armando Mendes, Maria da Conceição Tavares, Fernando
Pedrão, Cristovam Buarque e muitos outros mais, que a memória esmaece.
A salvo, naturalmente, Manuel Correia de Andrade, duas vezes notável, como
historiador e como geógrafo.
Regressei para Recife em companhia do casal Rangel, em táxi
solidário, posto que pareceu-nos melhor retornar logo, depois de uma semana
GHDWLYLGDGHVGRTXHÀFDUjHVSHUDGHWUDQVSRUWHRÀFLDOSRUPDLVXPGLD1D

D
D 71
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

Mauriceia privamos ainda, antes do retorno do ilustre casal para o Rio de Janeiro.
Desse encontro mais duas recordações são imorredouras. A primeira, relativa a
Ignacio Rangel: vi-o alquebrado pela primeira vez, como se estivesse envelhecido
décadas em um dia, depois de ter passado mal, salvo engano, em São Paulo,
onde fora participar, a convite de Joelmir Beting, de um debate na ‘Folha’ ou
no ‘Estado’, e onde, segundo Dona Aliete Martins Rangel, tivera um eclipse
total. A segunda, ao testemunhar o encontro, no calçadão do Hotel Tambaú,
do constitucionalista paraibano radicado no Ceará, Paulo Bonavides, com o
homenageado economista Celso Furtado:
Eis o sol dos trópicos:
²&HOVRTXHDOHJULD3DUDEpQV
Eis a lua da Sibéria:
²%RPGLD&RPRHVWiR6HQKRU"
O último contato pessoal que mantive com Ignacio Rangel foi quando
o hospedei no Recife, a caminho de São Luís, para a sua posse na Academia
Maranhense de Letras. Conduzi o mestre dos mestres a duas conferências: uma,
na Secretaria de Estado de Planejamento do Estado de Pernambuco; outra, na
Faculdade de Economia da Universidade Federal de Pernambuco. O co-cicerone
foi meu sobrinho Fabrício Henrique Goulart do Couto Corrêa, que cogitava a
KLSyWHVHGHVHUHFRQRPLVWDPDVWHUPLQRXÀHODVLPHVPRHDVXDJHQWHFRPR
excelente advogado.
Caminhei com o velho Rangel pelo teatro das Revoluções Libertárias
de 1817 e derivadas, da resistência liberal e radical de 1824 e do vulcão social
de 1848, de que seus antepassados participaram ativamente. Bem como,
em companhia do ilustre visitante, embalei-me pelos corredores do Palácio
do Campo das Princesas, da Faculdade de Direito do Recife e dos antiquários
livreiros confundidos com a alma esclarecida da cidade em que os seus
ancestrais também derramaram sangue e sonhos. Na companhia do mestre
dos mestres, percorri passo a passo os monumentos comemorativos da bravura
pernambucana, um deles, o organismo vivo e pulsante da Rua da Praia, em
rememória da Revolução Praieira.
Não fui a São Luís para a posse rangeliana na Academia Maranhense de
Letras. Por uma destas coisas estranhas da vida, no instante do seu falecimento no
Rio de Janeiro, soube que começara para Ignacio Rangel a ‘Grande Viagem’ pelo
ÀOWURVHQVLWLYRGDHQHUJLDFyVPLFD(QÀPVLQHUJLD8PWHOHIRQHPDPDLVWDUGH
DSHQDV FRQÀUPRX R IDWR $JRUD jV YpVSHUDV GR FHQWHQiULR GH QDVFLPHQWR GR

D
D 72
extraordinário brasileiro, a mim me satisfez sugerir que a Universalidade Federal
do Maranhão lhe conceda – SRVWPRUWHP – o título de Doutor Honoris Causa,
para seu engrandecimento institucional. A mensagem foi entregue a Jhonatan
Almada. Tomara esteja a instituição à altura do homenageado. A mim me parece
muito adequada a continuidade dos esforços para publicar a obra rangeliana
– sobre o que tenho conversado com Raimundo Palhano – muito dispersa, a
GHVSHLWRGDV´2EUDV5HXQLGDVµHPGRLVYROXPHVSHOD(GLWRUD&RQWUDSRQWRDR
que parece, com o concurso do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
e Social (BNDES). Ficaram à margem artigos, estudos, ensaios e entrevistas de
DOWRUHOHYR(WDPEpPDVXDHSLVWRORJUDÀD
Perguntam-me sempre sobre o silêncio de Celso Furtado sobre Ignacio
Rangel. Acredito tratar-se de uma questão de vigência intelectual, a carga que,
SHORVLOrQFLRRXSHODSDODYUD&HOVR)XUWDGR'HOÀQ1HWRH1HOVRQ:HUQHFN6RGUp
HQWUHPXLWRVRXWURVÀ]HUDPHPGHVIDYRUGRPHVWUHGRVPHVWUHV2YHOKR5DQJHO
HUDVHQKRUGHXPDVLJQLÀFDomRKLVWyULFDHVSOHQGHQWHGHOtGHUMXYHQLOGHWRPDGD
PLOLWDUQR0DUDQKmRGD5HYROXomRGHGR %DWDOKmRGH&DoDGRUHV4XDUWHO
do Exército e de preso na Ilha das Cobras, em consequência do fracassado golpe
GH(VWDGRGHSURPRYLGRSHOD$OLDQoD1DFLRQDO/LEHUWDGRUD(QDHVIHUD
da formulação teórica, foi o economista maranhense o mais criativo e o mais
original de todos os que pensaram a matéria em cinco séculos de Brasil.
&RQÀGHQFLRXPH ,JQDFLR 5DQJHO TXH TXDQWR PDLV FRQKHFLD 5DXO
Prebisch, mais tomava consciência do tamanho da dívida de Celso Furtado
para com o pensador argentino. O velho Rangel, pela autonomia criativa de
formulação teórica, sem dúvida, era uma segura ameaça à pretensão de vigência
LQWHOHFWXDOGHVWHHRXGDTXHOH4XDQWRD&HOVR)XUWDGR5DQJHORPHVWUHGRV
mestres, junto a mim estava quando exibiu uma obra do economista paraibano IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
²´$(FRQRPLD%UDVLOHLUD FRQWULEXLomRjDQiOLVHGRVHXGHVHQYROYLPHQWR µ²SRU
sinal, dedicada a Raul Prebisch, cujo exemplar ostentava uma dedicatória do
DXWRU SDUD R SHQVDGRU PDUDQKHQVH GDWDGD GH  $ WtSLFD OHWUD PL~GD DOL
estava, com a manifestação bem mais calorosa do que o compreensível silêncio
posterior, pois a eclosão rangeliana em livros clássicos, como “Dualidade Básica
GD(FRQRPLD%UDVLOHLUDµH´$,QÁDomR%UDVLOHLUDµDLQGDQmRFRPHoDUD
A propósito do livro com dedicatória, leu-a Celso Furtado, devolvendo
o exemplar ao mestre dos mestres, no mais espectral silêncio. Em seguida
àquele gesto, permaneceu o notável economista paraibano em hierática solidão
povoada, enquanto o sábio maranhense, voltando-se para mim, comentou tratar-
se do melhor livro de quantos escrevera o homenageado, que permanecera
indisputável no conjunto de sua obra econômica.

D
D 73
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

Humano, demasiado humano... Por Ignacio Rangel falará a história.


4XDQGRMiPXLWRGRHQWHRYHOKROLGDGRUSDUDFUDYDUDVHWHQRDOYRDPLPPH
declarou que viveria só três anos, talvez soubesse aquém do devido uma verdade
PDJQD4XDO"$GHTXHXPWULrQLRjIUHQWHQHQKXPDFRQVSLUDomRGRVLOrQFLRRX
qualquer palavra malévola teriam capacidade de sepultar a verdade que Guerreiro
5DPRVHQWUHYLUDHSUHÀJXUDUDDRHVFUHYHUR¶3UHIiFLR·GHDualidade Básica da
Economia Brasileira. Ignacio Rangel, na crônica das ideias no Brasil, é uma
síntese de interpretação econômica ricamente original, capacidade criativa de
análise histórica e dimensão teórica para a formulação de leis sociológicas.
Eis o motivo por que foi um só...

D
D 74
Ignacio Rangel e seus interlocutores*
$UPHQ0DPLJRQLDQ

Expor as relações de Rangel com seus interlocutores em poucas


páginas não só é tarefa difícil como pretensiosa. Entretanto, estas relações são
importantes para o entendimento das suas ideias e foram pouco estudadas.
Assim sendo, mesmo algumas pinceladas podem ser úteis.
,JQDFLR 5DQJHO VH GHVOXPEURX HP  FRP D OHLWXUD GR 0DQLIHVWR
Comunista de 1848 e desde então até sua morte foi militante marxista
excepcional, corajoso na defesa de suas ações e de suas ideias, ideias pessoais
que ele foi aplicando permanentemente à análise da realidade concreta
brasileira e mundial, sempre disposto ao diálogo e ao debate, diferentemente
de muitos intelectuais. Mesmo Caio Prado Júnior, outro marxista militante, após
suas importantes contribuições ao conhecimento do Brasil, foi se tornando
impermeável ao debate das novas ideias. Entretanto o marxismo, como qualquer
ideia, sem um clima de debate tende ao enrijecimento dogmático.
Como outros grandes pensadores marxistas brasileiros, entre eles Octavio
%UDQGmR1HOVRQ:HUQHFN6RGUpH&DLR3UDGR-~QLRU,JQDFLR5DQJHOVRIUHXIRUWH
ostracismo de tempos em tempos pois a produção intelectual no Brasil e no
PXQGRSDVVRXDGHSHQGHUFDGDYH]PDLVGR´PHUFDGRGHLGHLDVµVXEDOWHUQD
aos interesses políticos mais fortes em cada momento, de esquerda ou de IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
direita, como as birutas dos aeroportos. Aliás, as ideias, como seus produtores,
os intelectuais, tornam-se mercadorias baratas, sobretudo nas conjunturas
depressivas da economia mundial, como nos dias de hoje.

*
Tomo a liberdade de indicar textos que escrevi sobre Rangel: Introdução ao pensamento de Ignacio
Rangel, GEOSUL, 1987; Entrevista de Ignacio de Mourão Rangel, GEOSUL, 1991-92; Nota sobre as ra-
ízes e originalidade do pensamento de Ignacio Rangel, UFSC, 1997 e reeditado pela Editora 34, 1988; O
retorno do profeta desarmado, Carta Capital n° 352, 2005; e O pensamento de Ignacio Rangel e a questão
nacional hoje, Princípios n° 103, 2009.

D
D 75
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

O irracionalismo

A Revolução puritana inglesa do século XVII alavancou o país e deu origem


à primeira Revolução industrial, que completou a transição do feudalismo ao
capitalismo na Europa. Pouco a pouco a mercantilização capitalista avançou sobre
tudo e sobre todos, desde a vida social até a vida familiar, como na expressão
GH1HOVRQ5RGULJXHV´RGLQKHLURFRPSUDDWpRDPRUYHUGDGHLURµ&XULRVDPHQWH
HQTXDQWR D ,QJODWHUUD IRL VH WRUQDQGR D IiEULFD GR PXQGRµ QD SDVVDJHP GR
século XVIII ao XIX, a Alemanha, muito frágil política e economicamente, tornou-
VHD´IiEULFDGHLGHLDVµGD(XURSD$EULOKDQWHÀORVRÀDFOiVVLFDDOHPmGH.DQW
e Hegel deu origem ao moderno pensamento dialético, ao marxismo de Marx e
(QJHOV j JHRJUDÀD GH +XPEROGW H 5LWWHU HQWUH RXWURV IUXWRV JUDQGLRVRV 0DV
o avanço do capitalismo ajudou a apodrecer estes frutos, como o nascimento
da geopolítica imperialista de Ratzel e Haushofer, o avanço do irracionalismo
ÀORVyÀFRHWF
Entre as duas guerras mundiais a ideia de crise do pensamento estava
QR DU H PHVPR +XVVHUO SHQVDGRU LQVXVSHLWR GLVVH TXH D ÀORVRÀD HVWDYD
´DPHDoDGD GH VXFXPELU DR FHWLFLVPR DR LUUDFLRQDOLVPR H DR PLVWLFLVPRµ 1R
mundo das ideias a luta entre materialismo e idealismo estava sendo superada
pela luta entre racionalismo e irracionalismo. Por isto mesmo G. Lukács, em “A
GHVWUXLomRGDUD]mRµPRVWURXGHPDQHLUDFRQWXQGHQWHTXHDSyV.DQWH+HJHOR
pensamento alemão sofreu um ataque de irracionalismo furioso com Schelling,
passando por Schopenhauer e Nietzsche até Heidegger, Spengler e E. Jünger.
Sua maneira direta, dura e simples chocou a muitos espíritos frágeis do campo
marxista, como Adorno e Lefebvre, pois o anti-stalinismo estava na moda, mas
provavelmente não chocou a seu amigo Thomas Mann, que logo após a Segunda
Guerra Mundial, vivendo nos EUA, apontou os primeiros germes fascistas do outro
lado do Atlântico. O subtítulo do livro de G. Lukács, “o caminho do irracionalismo,
GH 6FKHOOLQJ D +LWOHUµ DVVXVWRX D PXLWRV ÀOyVRIRV FRQIRUPLVWDV 0DV FRPR
DVVLQDORX17HUWXOLDQ $GHVWUXLomRGDUD]mRDQRVGHSRLV ROLYURWLQKD
estrutura sólida e sua tese fundamental atingia grande dimensão e concluiu
dizendo: “o livro parece destinado a suscitar durante longo tempo discussões
IHFXQGDVHUHÁH[}HVFUtWLFDVLQWHUHVVDQWHVµeLPSRUWDQWHQRWDUTXH):KHHQ
biógrafo de K. Marx, retomou a temática da irracionalidade dos dias de hoje na
política e na cultura do mundo capitalista (Como a picaretagem conquistou o
mundo, 2004), com a mesma contundência de G. Lukács.

D
D 
Artesãos das ideias

Desde o início do século XIX a ofensiva irracionalista vem afetando


negativamente o trabalho intelectual. Mas antes, na Europa do século XVIII, sob
vários regimes feudais, os intelectuais usufruíam de grande prestígio social e
DWUDYpV GH DOLDQoDV H FRQÁLWRV FRP RV GpVSRWDV HVFODUHFLGRV GDpSRFD FRPR
Frederico II da Prússia ou Catarina da Rússia, deram origem ao pensamento
iluminista. Tinham espírito aristocrático, como a coragem e a honradez,
valorizavam o conhecimento enciclopédico e não as simples especializações,
buscavam a verdade e não valorizavam o dinheiro. Como bons artesãos das
ideias orgulhavam-se dos grandes pensadores do passado, de quem se tornaram
discípulos reconhecidos. Entretanto, como demonstrou H. Bloom (A angústia da
LQÁXrQFLD HVWHFOLPDIRLPXGDQGRQRLQtFLRGRVpFXOR;,;*RHWKHH6FKLOOHUIRUDP
os últimos grandes nomes da literatura que se orgulhavam de seus mestres, que
eram explicitados, como Plutarco, Marcial e outros da antiguidade greco-romana,
Shakespeare e Voltaire, entre outros. Assim como o brasileiro Gonçalves Dias
tinha orgulho de ser devedor de Schiller.
As grandes exceções do século XIX, como Balzac e Tolstoi, eram espíritos
dotados das qualidades feudais acima apontadas. Com o avanço do capitalismo
foi surgindo um outro tipo de intelectual, caracterizado pela falta de coragem e de
LQWHJULGDGHQLLOLVWDFRPRDVVLQDORX$&DPXVQDVFLGRGH´JHUDomRHVSRQWkQHDµ
H SRU LVWR PHVPR PXLWR DQJXVWLDGR SHODV LQÁXrQFLDV UHFHELGDV GDV OHLWXUDV H
assim pronto a escondê-las. A pirataria que estava em declínio nos oceanos
do globo reaparecia nos lagos dos intelectuais de aluguel. Na América Latina
o fenômeno de degradação da intelectualidade é muito recente, pois aqui o
FDSLWDOLVPR IRL HQJROLQGR R IHXGDOLVPR VRPHQWH D SDUWLU GRV DQRV  PDV IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
dando origem a uma edição piorada e agravada pela queda da URSS, como FHC
e Vargas Llosa, entre outros.

As apostasias tendem a fracassar

1RVDQRV,JQDFLR5DQJHOVHOHPEURX várias vezes de seu falecido


amigo Jesus Soares Pereira, com o qual preparou nos anos 50 as leis da Eletrobrás,
na assessoria de Getúlio Vargas. Com a capacidade de endividamento esgotada,
o Estado precisava passar a concessão dos serviços públicos estrangulados, vale
dizer as infraestruturas em energia, transportes, saneamento, etc à iniciativa

D
D 77
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

privada. Não se tratava de vender usinas elétricas existentes, por exemplo, mas
permitir a construção de novas usinas pela iniciativa privada. Rangel sabia que
contaria com J. Soares Pereira nessa difícil batalha, que acabou derrotada, mas
que é retomada hoje nas concessões em andamento do governo Dilma, com
mais de vinte anos de atraso…
7DPEpP QRV DQRV  ,JQDFLR 5DQJHO OHPEURX YiULDV YH]HV TXH D
URSS, o Japão e o Brasil foram as economias mais dinâmicas do mundo no
SHUtRGRSRUFLQTXHQWDORQJRVDQRV(OHVDELDFRPRWRGDVDVSHVVRDV
honestas, que esses resultados extraordinários haviam exigido muitos sacrifícios,
muita competência de seus dirigentes, incluindo a capacidade de enfrentar
IRUWHVSUHVV}HVFRQWUiULDVGDVSRWrQFLDVGRPLQDQWHVFKHÀDGDVSHORV(8$1R
caso do Brasil, o resultado excepcional resultou da vitória da Revolução de 30,
GDTXDO5DQJHOSDUWLFLSRXDRVDQRVGHLGDGHFRPDUPDVQDPmRGHSHQGHX
GD SROtWLFD LQGXVWULDOL]DQWH LQFOXLQGR R SHUtRGR GR (VWDGR 1RYR   H
continuada no segundo governo Vargas, com Rangel na assessoria econômica
FKHÀDGDSRU-63HUHLUD'HSHQGHXWDPEpPGRVDFULItFLRGRSUHVLGHQWHHOHLWR
democraticamente e de outros sacrifícios, como a cassação dos direitos políticos
GH-63HUHLUDSHORJROSHPLOLWDUGHVHXH[tOLRQR&KLOHRQGHIRLWUDEDOKDU
H VHX SUHFRFH IDOHFLPHQWR HP  - 6RDUHV 3HUHLUD 2 KRPHP H VXD ÀFKD
 
,QIHOL]PHQWH R ´GpÀFLW HP FRQWDFRUUHQWH GR EDODQoR GH SDJDPHQWR D
GHVIDoDWH] GD GLUHLWD H D LQFRPSHWrQFLD GDV HVTXHUGDVµ RV LQVWUXPHQWRV GD
dominação do imperialismo segundo Rangel e que levaram ao desastre de
 LJXDOPHQWH HVWDYDP OHYDQGR R %UDVLO DR GHVDVWUH QD GpFDGD GH  $
carta aberta de Ignacio Rangel dirigida aos economistas Roberto Campos e M.
Conceição Tavares (22/3/85), solene e didática sobre a necessidade de se pôr
em prática a concessão dos serviços públicos estrangulados à iniciativa privada,
não obteve respostas. A Revista de Economia Política, da qual Rangel era um
dos patronos, abandonou o campo nacionalista e assumiu o neoliberalismo
agressivo, assim como os economistas do PT G. Mantega (Folha de São Paulo,
13/XI/83) e P. Sandroni (Folha de São Paulo 22/XI/83), seguidos, anos depois,
pelo apoio político de A. Mercadante à venda da Usiminas pelo governo Collor.
Ignacio Rangel caracterizou o governo Collor como contra-revolucionário e pró-
imperialista $SRVWDVLDV)ROKDGH6mR3DXOR, 2VSODQRVGH´HVWDELOL]DomRµ
monetária dos anos 80, o Cruzado, o Bresser, etc, bem a gosto e a mando do
FMI, abriram o caminho ao neoliberalismo de Collor e FHC.
Como I. Rangel aprendeu com Lênin, outro marxista genial, as apostasias
tendem a fracassar. Assim, em 2002 o governo Lula começou, a duras penas,

D
D 78
D HQIUHQWDU D ´KHUDQoD PDOGLWDµ H UHWRPDU R FDPLQKR GR GHVHQYROYLPHQWR
econômico, apesar de não ter contado, assim como o governo Dilma, com
assessoria econômica verdadeiramente competente. Também é interessante
OHPEUDUTXHQDFDPSDQKDSUHVLGHQFLDOGHGLVSXWDGDSRUWUrVFDQGLGDWRV
social-democratas fortes (Lula, Brizola e Covas), mais uma incompetência das
esquerdas na visão de Rangel, ele e Lula trocaram ideias sobre o Brasil.

$DQJ~VWLDGDLQÁXrQFLD

2 PXQGR GH  HUD PXLWR GLIHUHQWH GR PXQGR GH  TXDQGR R
adolescente Ignacio Rangel começou sua militância política em favor do Brasil.
A URSS, com perdas humanas e materiais gigantescas, havia derrotado o
nazismo, prestando um extraordinário serviço à humanidade. O Japão, derrotado
PLOLWDUPHQWHKDYLDLQYHQWDGRRWR\RWLVPRSURFHVVRGHWUDEDOKRTXHVHHVWHQGHX
ao mundo todo. O Brasil havia se tornado uma pequena potência industrial na
periferia do capitalismo mundial e estava dando as costas aos EUA e mesmo
fazendo acordo espacial com a China.
No Brasil nos anos 80 o ambiente intelectual passava por grave crise e
QmRHUDPDLVRPHVPRDPELHQWHULFRGRVDQRV*LOEHUWR)UH\UH6HUJLR%XDUTXH
de Hollanda e Caio Prado Jr, os intérpretes do Brasil, eram todos nacionalistas
HRWLPLVWDVVXSHUDQGRSRUH[HPSORDLGHLDGDV´WUrVUDoDVWULVWHVµTXHWHULDP
IRUPDGRDDOPDEUDVLOHLUD2VGRLVSULPHLURVVHPQHQKXPDLQÁXrQFLDPDU[LVWD
naturalmente, apontavam traços semi-feudais da nossa realidade, que os ex-
marxistas de hoje, da USP e de outras academias detestam admitir. Mas foi
de C. Prado Jr (Evolução política do Brasil) que Rangel herdou a ideia de como IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
agem e se comportam as classes dominantes brasileiras, como os senhores de
escravos. Eles foram acabando com a escravidão lenta, gradual e seguramente,
GDPHVPDPDQHLUDTXHRVJHQHUDLV*HLVHOH*ROEHU\GLULJLUDPDDEHUWXUDSROtWLFD
GRV DQRV  $QWHV PHVPR GD ,QGHSHQGrQFLD D ,QJODWHUUD SUHVVLRQDYD
pela abolição, mas o processo levou o século XIX inteiro, com as várias leis
UHIHUHQWHVDRWUiÀFRGHSRLVFRPDOHLGRYHQWUHOLYUHGHSRLVDLQGDFRPDOHLGRV
VH[DJHQiULRVHÀQDOPHQWHFRPDOHLiXUHDTXDQGRRVH[VHQKRUHVGHHVFUDYRV
já haviam monopolizado as terras e assim os antigos escravos se transformaram
em servos da gleba, com casas, casamento e alguma roça. Tudo lenta, gradual e
seguramente, como C. Prado Júnior explicou na obra citada. Ignacio Rangel teve
a capacidade de aplicar esta ideia luminosa a toda a história brasileira.
No Brasil dos anos 80 já estava ocorrendo uma mudança para pior no

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

mundo das ideias e dos intelectuais. O racionalismo dos intelectuais dos anos
30 e 40 acima descrito havia dado lugar, pouco a pouco, a um irracionalismo
crescente. Assim, por exemplo, C. Prado Júnior insistia no tripé exportação,
escravidão e latifúndio, que fazia sucesso nas esquerdas. Este tripé explicaria o
Brasil na sua gênese como colônia portuguesa, que era uma colocação didática,
mas sem profundidade marxista, pois não colocava os modos de produção no
centro da análise, mas que assim mesmo serviu de ponto de partida para Celso
)XUWDGR VHP R UHFRQKHFLPHQWR GR GpELWR H FRP ´D DQJ~VWLD GD LQÁXrQFLDµ
Ignacio Rangel, muito mais rigoroso, analisou o senhor de engenho como dono de
escravos e vassalo do rei de Portugal, vendo o Brasil como dualidades sucessivas
de modos de produção externos e internos.
Aliás, C. Prado Jr e Celso Furtado, apesar de brilhantes intelectuais, foram
excessivamente europeizantes e focados na Europa, sobretudo Celso, e não se
FDQVDYDPGHODPHQWDUR´DWUDVREUDVLOHLURµQmRSHUFHEHQGRTXHHVWHPHVPR
atraso era uma das razões do fantástico crescimento nacional, comparável aos
maiores do mundo, como URSS e Japão. No entanto, como Caio foi pioneiro na
caracterização das classes dominantes brasileiras, Rangel apontou o pioneirismo
de Celso em caracterizar a gênese de um centro econômico dinâmico no Brasil
GRVDQRV $HFRQRPLDEUDVLOHLUDFDS,9 RFLFORMXJODULDQREUDVLOHLUR
Na verdade, enquanto C. Prado Jr e C. Furtado foram apenas grandes intelectuais,
Ignacio Rangel foi um extraordinário profeta, e como tal detestado pelos anões
intelectuais.

Os créditos foram esquecidos

Ignacio Rangel viu o Brasil como sucessivas dualidades complexas. Assim,


por exemplo, a Independência deu continuidade à escravidão, mas as terras
deixaram de ser do rei de Portugal, assim como rompeu o monopólio comercial
português e criou o capital comercial brasileiro exercido por imigrantes europeus,
como os Lundgren de Recife ou os Lage do Rio de Janeiro, que passaram a
se vincular ao capital industrial inglês. Mudou, portanto, o polo externo, com
consequências positivas para a economia nacional, como demostraram as
pesquisas dos historiadores da UFF, que não apontaram os devidos créditos.
Igualmente a teoria da dependência de FHC tem muito de Rangel, mas os créditos
foram esquecidos. Os exercícios desastrosos de demiurgia de C. Furtado no
Plano Trienal, apontados por Rangel, foram depois usados por Chico de Oliveira
na crítica ao seu padrinho. A. Barros Castro, talvez dopado pelas suas leituras

D
D 80
sobre a Teoria do Caos, resolveu ironizar Rangel como capaz de ver lógica até no
YRRGHXPDDQGRULQKD*LDQHWWLGD)RQVHFDH[PDU[LVWD´FRPPHLOIDXWµVXELX
YiULDV YH]HV D HVFDGD GD IDPD SDUD LURQL]DU RV ´DQRV JUHJRULDQRVµ GRV FLFORV
Kondratieff, até ser lembrado que as revoluções industriais ocorrem de dois em
dois Kondratieff, e os Kondratieff intermediários são extensões da Revolução
industrial ao setor de transportes, como o trem e o navio a vapor.

As ideias de Rangel

&RPRVHYrRLUUDFLRQDOLVPRHD´DQJ~VWLDGDLQÁXrQFLDµQmRSDUDUDPGH
DXPHQWDU$SyVRJROSHPLOLWDUGH&)XUWDGRGHFUHWRXR´HVWDJQDFLRQLVPRµ
como nosso destino manifesto e C. Prado Jr clamava por uma reforma agrária
urgente para retomar o crescimento. Além deles, outros denunciavam o “social-
IDVFLVPRµHRXWURVDLQGDR´VXELPSHULDOLVPRµEUDVLOHLURHPFUHVFHQWHYHUERUUDJLD
esquerdista e todos juntos estimulavam direta ou indiretamente a inglória luta
armada, que levou muitos jovens inexperientes ao sacrifício, em pleno “milagre
GR'HOÀPµLQLFLDGRHP0HVPRDQWHVGLVWR5DQJHO $LQÁDomREUDVLOHLUD
 FULWLFDYDDDOLDQoDGHHVWUXWXUDOLVWDVHPRQHWDULVWDVVRERFRPDQGRGH
Celso Furtado, na aplicação do referido Plano Trienal, a pretexto de combater a
LQÁDomRSURYRFDQGRPDLVUHFHVVmRTXHDMXGRXDSUHFLSLWDUDTXHGDGRJRYHUQR
Jango. Mas como a história se repete como farsa, o malfadado Plano Cruzado, já
HVERoDGRHP 3$ULGD'tYLGDH[WHUQDUHFHVVmRHDMXVWHHVWUXWXUDO UHXQLX
estruturalistas da Unicamp e da PUC-RJ, com direito à exibição televisiva das
lágrimas de M. Conceição Tavares e com novos resultados trágicos para o Brasil.
Àquela altura Ignacio Rangel, patrono da Revista de Economia Política, IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
WHYHUHMHLWDGDDSXEOLFDomRGRVHXEULOKDQWHWH[WR´)RJREOLQGDJHPHFRQMXQWXUDµ
por carta burocrática de Bresser3HUHLUD2RVWUDFLVPRYHLRHQWmRGRV´DPLJRVµ
dos anos 80, serviçais inconscientes do imperialismo norte-americano que já
KDYLDDVVDVVLQDGR7RUULMRV 3DQDPi H5ROGyV (TXDGRU HPHQTXDGUDGR
R-DSmRFRPDYDORUL]DomRGR<HQHPDFRYDUGDGRRVGLULJHQWHVVRYLpWLFRV
FRP D *XHUUD QDV (VWUHODV H LPSXQKD R FRPEDWH j LQÁDomR DRV JRYHUQRV
subalternos do mundo todo. Note-se que quando M. H. Simonsen propôs
DR JHQHUDO )LJXHLUHGR FRPEDWHU D LQÁDomR FRP PHGLGDV UHFHVVLYDV IRL ORJR
VXEVWLWXtGRSRU'HOÀP1HWWRTXHDSOLFRXDVLGHLDVGH5DQJHOGHXWLOL]DomRGDV
capacidades ociosas nas indústrias, alavancando exportações, tirando o Brasil
GDFULVHHUHGX]LQGRDLQÁDomR

D
D 81
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

Interlocutores de Ignacio Rangel

O primeiro e fundamental interlocutor de Ignacio Rangel foi seu pai,


formado na Faculdade de Direito do Recife e juiz de Direito em várias comarcas
do Maranhão, que se responsabilizou pela sua formação intelectual, começando
pelo debate do chamado contraditório jurídico e a retidão moral absoluta, pois
nunca se sujeitou ao mandonismo feudal dominante. Seu pai tinha orgulho dos
VHXV IDPLOLDUHV TXH KDYLDP VH VDFULÀFDGR QDV OXWDV SHOD ,QGHSHQGrQFLD HP
3HUQDPEXFR   H QD %DKLD RUJXOKR WUDQVPLWLGR DRV ÀOKRV H TXH OHYRX R
adolescente Ignacio Rangel a entrar na política pelas portas do quartel militar em
São Luís do Maranhão. O segundo grande interlocutor foi o Manifesto Comunista
de Marx e Engels, que lhe ofereceu uma visão de mundo racional e de luta. Tendo
VRIULGRDGHUURWDGHWUDWRXGHGHFLIUiODQRVDQRVGHSULVmRHP6mR/XtVHQR
Rio de Janeiro, assim como na prisão Gramsci procurou entender a sua derrota,
assim como na prisão muitos anos depois Deng Tsiaoping procurou decifrar os
erros dogmáticos de Mao, sem desmerecer os seus acertos anteriores.
Seus interlocutores dos anos 50, J. Soares Pereira na assessoria
econômica de G. Vargas, J. Ahumada na CEPAL e Guerreiro Ramos no ISEB
DMXGDUDP 5DQJHO D UHÀQDU DV LGHLDV DXWRFUtWLFDV TXH HODERURX QDV SULV}HV
 HTXHUHVXOWDUDPQD´'XDOLGDGH%ásica da (FRQRPLD%UDVLOHLUDµ
Guerreiro Ramos, ao elogiar a Dualidade lembrou que pensadores como Silvio
Romero (História da literatura brasileira) e Euclides da Cunha (Os Sertões) haviam
apontado os dois lados do Brasil, um externo e outro interno, mas que apenas
Rangel conseguira sistematizar e teorizar as Dualidades.
Ignacio Rangel não era do litoral, mas do sertão, onde o latifúndio
feudal nasceu precocemente e onde as qualidades de nobreza moral e de
brasilidade sempre foram maiores do que as do litoral, como Euclides da Cunha
já havia assinalado. Getúlio, Rangel, Graciliano Ramos, Ariano Suassuna, João
6DOGDQKDSHUWHQFHUDPjHVWLUSHGRVKRPHQV´VDQVSHXUHWVDQVUHSURFKHµ1RV
GHSRLPHQWRV UHFROKLGRV SHOR &RUHFRQ5-   SRU RFDVLmR GH VXD PRUWH
IRUDPRVHFRQRPLVWDVGHGLUHLWDFRPR6LPRQVHQ5&DPSRVH'HOÀP1HWWRTXH
PHOKRUUHFRQKHFHUDPVXDVTXDOLGDGHVHQTXDQWRDOJXQVGRVVHXV´GLVFtSXORVµ
H[SOLFLWDUDP D ´DQJ~VWLD GD LQÁXrQFLDµ SRU WHUHP VXEHVWLPDGR SLUDWHDGR RX
IDOVLÀFDGRVXDVLGHLDV

D
D 82
A dialética da rebeldia desde Rangel
até hoje
)HUQDQGR3HGUmR

A rebeldia essencial

 6HP SUHWHQVmR ELRJUiÀFD DOJXPD HVWH HVWXGR SURFXUD UHÁHWLU R


pensamento de Ignacio Rangel na luta contra a redução do planejamento a um
horizonte de curto prazo contraditório com uma visão estrutural histórica do
processo da sociedade periférica do capital. É a diferença entre planejamento
como meio de promover transformações sociais ou como simples técnica de
governo. A disputa acerca dos eventos do planejamento naquele momento
FUXFLDOGDKLVWyULDHFRQ{PLFDGR%UDVLOHQWUHHWHPXPVLJQLÀFDGR
transcendente de projetar uma visão marxiana do processo da política
econômica quando se questionavam ideias de teóricos como Rosa Luxemburg
e Tugan Baranovski. A ortodoxia via a questão brasileira como exclusivamente
nacional, enquanto os setores progressistas registravam os abalos causados
pela intervenção soviética na Hungria, o advento da Revolução Cubana e as lutas
pela reforma agrária. A questão social e política do planejamento não poderia ser
mais colocada como um problema técnico como pretendiam as Nações Unidas.
$ UHYLVmR GRV SULQFtSLRV IXQGDPHQWDLV GR SODQHMDPHQWR VLJQLÀFRX QDTXHOH
momento no Brasil a separação entre a perspectiva do planejamento como meio IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
de transformação social ou como mero exercício orçamentário.
Ignacio Rangel aparece na literatura brasileira de economia como um
dissidente da academia ortodoxa, mas como um intelectual criativo, portador de
XPDÀUPH]DLGHROyJLFDPXLWRHVSHFLDO5HEHOGHDWpDRFRQWH[WRGRGHEDWHÀHODR
questionamento da historicidade brasileira. A construção da rebeldia essencial
do pensamento de Ignacio Rangel no contexto da disputa pela política econômica
brasileira surge da relação entre o reconhecimento das condições de crescimento
sustentado e a tendência cíclica do sistema do capital. Essa premissa impõe
pensar em termos de longo prazo e rejeitar a perspectiva do modo reformista

6
Refere-se à taxa garantida de crescimento proposta por Roy Harrod como aquela que o sistema pode
sustentar por períodos prolongados.

D
D 83
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

EXUJXrVDSRLDGRHPWHRULDVGRHTXLOtEULRGH:DOUDVD.H\QHVTXHVXS}HTXH
políticas em curto prazo podem dar conta de problemas de desenvolvimento
em ambientes externos controlados pelos interesses de grandes capitais. As
SURSRVWDVGHGLQkPLFDGRFDPSRNH\QHVLDQRWUDWDPFRPPRYLPHQWRVJHUDLVGH
FUHVFLPHQWR +$552' HQmRLQFRUSRUDUDPQHPDVQRo}HVGHFRPSRVLomR
GRFDSLWDOQHFHVViULDVHP0DU[QHPRVLJQLÀFDGRGHPRYLPHQWRVVLVWrPLFDV
em ciclos tal como proposto por André Marchal.
A incapacidade do marginalismo para conviver com uma economia
mundial sujeita a depressão profunda se estendia ao fato de que as economias
periféricas operam no contexto de ciclos dependentes. Se essa foi a brecha
SHOD TXDO VH LQVHULX D FRUUHQWH NH\QHVLDQD  IRL WDPEpP VXD UXtQD 2 (VWDGR
LQWHUYHQWRU WRUQDVH iUELWUR GD LQÁDomR YLQGR SRU LVVR D VHU DQWDJ{QLFR DRV
interesses do capital. O desenvolvimento aceito será transformação social
tolerada pelo sistema sem destruição da lucratividade das empresas. Assim, o
que se desenvolveu e consolidou como políticas de desenvolvimento, de Arthur
Lewis, Tinbergen e todos eles, são políticas de crescimento com dispositivos de
distribuição da renda que não contemplam as condições de complexidade dos
sistemas produtivos periféricos. Como se em todos os lugares e momentos as
políticas de desenvolvimento pudessem ser igualmente válidas.
$FUtWLFDDR3ODQR7ULHQDOGHIRLXPDJXHUUDSDUWLFXODUGH5DQJHO
que marcou sua posição no debate econômico no Brasil e foi consequência de
uma posição teórica incompatível com planejamento em curto prazo que é a de
entender que o sistema capitalista gera suas próprias restrições, mas tem que
superar seus bloqueios de mercado. Observe-se que aquele foi o momento em
que os setores conservadores norte-americanos e latino-americanos montavam
as bases da reação contra a CEPAL em seminário em Lago Como e quando
o HVWDEOLVKPHQW IHFKDYD ÀOHLUDV FRQWUD D 5HYROXomR &XEDQD e XPD TXHVWmR
relativa à interpretação do funcionamento do sistema, se a prosperidade geral
WUDQVERUGDUiSDUDRVVXEGHVHQYROYLGRVRXVHHOHVÀFDUmRPDLVSREUHV1mRVH
pode responder a essa pergunta sem entrar na engrenagem do sistema produtivo.
Ao reconhecer que na relação global capital/produto há um capítulo
especial da relação entre capital social básico e capital produtivo direto haverá
um ajuste entre os períodos de maturação da infraestrutura e dos investimentos
na indústria. Os sistemas de infraestrutura são de lenta maturação e longa
duração operacional. Essa leitura da organicidade do sistema indica como a
UHQRYDomRGRVVLVWHPDVEiVLFRVFULDRDPELHQWHHPTXHVHGHÀQHPDVUHJUDV

D
D 84
dos novos investimentos. É um tempo médio de ajustes entre essas duas escalas
de investimentos, que faz a relação entre os planos estatais e privados de
investimentos e o anonimato do mercado.
Essa ruptura se funda em um aspecto fundamental da teoria do capital em
Marx que é a constatação da tendência à instabilidade do sistema produtivo que
se materializa por meio de movimentos cíclicos. O ciclo em Marx é organicamente
necessário e não é incidental como na teoria marginalista. Os ciclos de duração
PpGLDUHÁHWHPVXEVWLWXLo}HVGHHTXLSDPHQWRVPDVRVFLFORVGHORQJDGXUDomR
respondem por deslocamentos na base da composição do capital na relação
entre a composição técnica e a orgânica do capital. É deles que Rangel se ocupa.
2 SURFHVVR GH LQGXVWULDOL]DomR VLJQLÀFD D PRGHUQL]DomR GH GLYHUVRV
segmentos de capital em diferentes condições de tecnologia, envolvendo as
relações entre setores e regiões, alterando as condições de contratação de
trabalhadores. No entanto, a análise industrial continuava com o viés de confundir
LQGLFDGRUHVGHHVWDEHOHFLPHQWRVFRPFRQGLo}HVGHHPSUHVDVHWURFDUHÀFLrQFLD
QD SURGXomRFRPHÀFLrQFLDGHFDSLWDOXPHUURTXHMiWLQKD VLGRDFXVDGRSRU
Marshall7 PDV FRQWLQXRX D VHU SUDWLFDGRV SHORV NH\QHVLDQRV (VVH HUUR WHP
FRQVHTXrQFLDVWHyULFDV1RTXHDLQG~VWULDUHÁLWDFRPSRUWDPHQWRVGHHPSUHVDV
logicamente será parte da teoria do ciclo, como aliás está claro em Marx.
Em consequência dessas desigualdades as transformações no sistema
mundial do capital derivam diferentes condições de instabilidade no centro e nas
periferias do sistema, determinando composições de restrições externas e internas
para cada economia nacional. As condições nacionais de desenvolvimento estão
internacionalmente situadas no ambiente cíclico da economia mundial.
As visitas de Rangel à Bahia no momento em que se elaborava o Plano
GH'HVHQYROYLPHQWR(FRQ{PLFRH6RFLDOSDUDOLGHUDGRSRU5{PXOR IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
Almeida e em que se realizavam pesquisas no Instituto de Economia e Finanças
da Bahia, lugares que militei, deram lugar a uma amizade e intercâmbio de
LGHLDV TXH MXVWLÀFDP HVWH HQVDLR 'H WRGRV RV PRGRV UHÁHWLU VREUH 5DQJHO p
uma oportunidade para voltar à busca do essencial e expor as tergiversações
que são ameaças renovadas de substituir o processo pelo fenômeno, o essencial
pelo circunstancial e o necessário pelo oportunismo. Os retornos da velha direita
atualizada com a mesma alegação de privatizar passando à esfera privada a
riqueza acumulada pelo Estado e enxugar a máquina pública mostram a
atualidade daquela rebeldia fundante de identidade nacional.

7
Alfred Marshall, Industry and trade, Londres, Macmillan, 1926.

D
D 85
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

O homem primordial

,JQDFLR 5DQJHO SHUVRQLÀFRX XPD EUDVLOLGDGH LQFRQIXQGtYHO FDSD]


de constituir uma demarcação de história, um modo brasileiro de olhar o
conservadorismo central e a reação latino-americana. A representatividade de
.H\QHV.DOHFNLH5RELQVRQHDGH3UHELVFKH)XUWDGR1DYLVmRGH5DQJHOWRGDV
elas deveriam ser vistas através da lente do marxismo de Marx. O reducionismo
do stalinismo8 seria contraditório com a esquerda, porque a tornaria vulnerável à
racionalidade instrumental do capital. A crítica da análise de equilíbrio walrasiano
não invalida a análise de relações interindustriais, mas a reduz a sua expressão
de curto prazo e a seu inevitável positivismo. Nesse sentido a deshistorização
GD WHRULD NH\QHVLDQD VH FRPSDUD FRP R UHGXFLRQLVPR WHFQLFLVWD GD &(3$/ GH
Raul Prebisch, ambos procurando soluções em médio e curto prazo para reverter
tendências históricas inerentes à divisão internacional do trabalho e às relações
de classe.
A necessidade de construir uma visão brasileira do processo da economia
se estenderia à da visão do processo da teoria. Em seus primeiros textos Rangel
se colocou na linha de frente da crítica da teoria do desenvolvimento patrocinada
pelas Nações Unidas. Não se trata necessariamente de escrever uma teoria, mas
de tratar teoricamente os problemas da realidade da desigualdade patrocinada
pelo imperialismo. Tal atitude teria sérias implicações sobre trabalhar em
economia no Brasil cuja academia, além de conservadora reduzia o Brasil ao
eixo Rio-São Paulo. A ironia do ISEB e da assessoria de Vargas era justamente
de serem redutos de nordestinos pouco dispostos a renderem vassalagem à
linhagem de Gudin, Bulhões e companhia. Para o público brasileiro em geral
esse conservadorismo estaria respaldado pela pureza ética de seus líderes,
mas na realidade já era um sistema de empresas associadas com interesses
internacionais. Os sacrossantos interesses dos exportadores, aliados à elite da
WUDGLomRGH5X\%DUERVDH5LR%UDQFRHQFRQWUDYDPVXDH[SUHVVmRHFRQ{PLFD
QD IRUPDomR GH JUXSRV H[SRUWDGRUHV GH PLQHUDLV FRPR D IDPRVD 2548,0$
FRQGX]LGD SRU $XJXVWR 6FKLPGW +RUiFLR /DIHU H RXWURV FRP XP SHUÀO GH
capital que já pouco tinha em comum com a velha grande propriedade rural.
Antes que industrialização, havia um realinhamento das alianças de grandes
capitais formados no país com capitais internacionais, aproveitando contratos
de infraestrutura e de exportação de minerais.

8
Ver a teoria do planejamento escrita por Strumilin porta-voz da posição stalinista em economia, tal
como aparece em seu artigo.

D
D 
De fato, o grande capital se atualizava muito mais depressa que o Estado,
por não dizer a estrutura política. Com a pouca clareza com que se via o papel
do Estado, tratava-se mais de pioneirismo que de estatização, mas no BNDE já
HVWDYD FRQÀJXUDGD XPD OXWD FRQWUD D YLVmR SULYDWLVWD H D GH 5REHUWR &DPSRV
que assumiu a presidência do órgão com uma política contraria à do governo
GH 9DUJDV GHÀQLQGR R HQWUHJXLVPR GR JRYHUQR GH -. DQWHFLSDQGR D SROtWLFD
de alinhamento automático com os Estados Unidos de Castelo Branco. Rangel
tornava-se parte da contracorrente nacionalista do BNDE.
1RSHUtRGRGHDDGLVSXWDHPWRUQRGDSROtWLFDHFRQ{PLFD
ÀFDULD EDOL]DGD SHOD SROrPLFD HQWUH PRQHWDULVWDV H HVWUXWXUDOLVWDV TXH
entretanto, era apenas a superfície de uma disputa mais profunda pelo modo
de desenvolvimento do país que tinha desdobramentos setoriais e regionais e
principalmente implicava no contraste entre uma visão independentista em longo
prazo e uma outra de uma aliança subordinada com os Estados Unidos. Rangel
tornou-se uma referência na disputa que se seguiu, em que a burocracia técnica
VHWRUQDYDXPFDPSRGDVH[SUHVV}HVLGHROyJLFDVGDFODVVHPpGLD$LQÁXrQFLD
da CEPAL, onde Rangel foi o primeiro bolsista brasileiro, viria pelo aspecto de
técnica de planejamento e de internacionalização do debate do desenvolvimento.
Ficavam em aberto o recuo da polêmica ideológica e a perda da dimensão
histórica do processo. Seriam as questões da consciência social do operariado e
DVFRQWUDGLo}HVGDLQWHUYHQomRVRYLpWLFDQD+XQJULDGH,PUH1lJ\)LQDOPHQWHD
Hungria não queria se tornar capitalista e aquela invasão determinou a ruptura
de muitos intelectuais que inclusive viram a importância da autonomia da
&KLQD PDRtVWD 'HVFREULDVH R VLJQLÀFDGR PDLV SURIXQGR GH XPD FRQVFLrQFLD
social brasileira, muito além do celebrado debate sobre desenvolvimento. Mas
esse debate se dividia entre um ramo acadêmico, disperso entre algumas
universidades onde assumiu o fundo ideológico, e um ramo de setor público IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
em que foi principalmente técnico. Somente a direita assumia sua orientação
liberal no setor público. Homem do setor público, Rangel foi o único na época que
atravessou a ponte e participou do debate do campo universitário ao qual levou
a visão crítica do campo governamental. No governo em que prevaleceram as
WHVHVGDPRGHUQL]DomRWHFQROyJLFDFRUSRULÀFDGRHPDQRVHP1RFDPSR
governamental a ideologia do crescimento suplantou a do desenvolvimento
retirando de cena as questões de distribuição da renda e mobilidade social.
$ SROrPLFD LGHROyJLFD ÀFRX FHQWUDGD HQWUH FUHVFLPHQWR SULPHLUR H
desenvolvimento depois ou desenvolvimento primeiro e representada pelo
GLOHPD HQWUH LQÁDomR H HPSUHJR HP TXH R UHODWLYR j FDSDFLGDGH SURGXWLYD

D
D 87
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

estava reduzido à relação capital /produto. Agora é preciso reconhecer que a


WHVHGH5DQJHOVREUHDRUJDQLFLGDGHGDFDSDFLGDGHRFLRVDTXHVHLGHQWLÀFDYD
com a linha de argumentação de Paul Baran, apontava à própria lógica do capital
de aproveitar vantagens de custos de capital no manejo de comparações entre
vantagens de grau de monopólio e de custos de renovação de equipamentos.
Era o primeiro estudo crítico da burguesia industrial brasileira, que anteciparia
o papel da concentração de capital na metamorfose política do capital que se
WRUQDULDGHFLVLYDQDVGpFDGDVGHMiQRÀQDOGDGLWDGXUD
Os fundamentos da controvérsia ideológica estavam lançados, mas
tornou-se claro desde então que não se trata de capital nacional e internacional,
já que o capital é ou tende a ser internacional, senão da relação Estado-sociedade
civil em que o Estado é representativo de uma relação de classes. Além das
diferenças entre o grande e o pequeno capital há uma outra entre o capital
moderno e o tradicional em que os modernos incorporam vantagens indiretas
do sistema de comercialização. A noção de ciclo dependente compreende essas
YDQWDJHQVTXHVHUHÁHWHPQDUHODomRGDVHPSUHVDVFRPRPHUFDGR
A sequência desse argumento leva hoje a ver que a vitória do grande
capital se concretiza na construção do mercado norte-americano, a partir
da qual se expande sobre outros espaços nacionais, adequando-se em cada
caso à composição de fatores do sistema produtivo em suas articulações
internacionais. Diferentes situações de países mineiros e agro-exportadores.
No Brasil desenvolveu-se um sistema de grande capital mercantil, basicamente
montada sobre as grandes propriedades rurais, mas também com associações
com a mineração. A dualidade detectada por Rangel está no nível operacional do
sistema masQmRIUDFLRQDRFRUDomRÀQDQFHLURGRVLVWHPD$OLJDomRLQWHUQDFLRQDO
é o fator de unidade que alavanca o controle do Estado.
Fomos, portanto, colocados diante da tarefa de voltar aos fundamentos
GR SHQVDU GLDOpWLFR H GH VXD KLVWRULFLGDGH &RQVLVWH HP LGHQWLÀFDU DTXHODV
contradições que determinam o movimento social. Não se trata de responder
à agenda da direita, mas de estabelecer a da esquerda que precisa ser
representativa do processo social brasileiro sem compromisso algum com a
FRUUHQWHFHQWUDO7UDWDYDVHFRPRVHWUDWDKRMHGHUHÁHWLUVREUHDVFDWHJRULDVGR
materialismo histórico para uma leitura independente da história brasileira que
GHVYHQGHRVDWXDLVFRQÁLWRV

D
D 88
O panorama doutrinário

A questão doutrinária estava posta pelo fato de que a corrente


desenvolvimentista, basicamente constituída da CEPAL e dos primeiros pós-
NH\QHVLDQRV ÀFRX QD PHFkQLFD GR SURFHVVR H QmR FKHJRX DWp D JHQpWLFD
social da acumulação. Por isso, poderia cogitar de argumentos tais como de
HVFDVVH] GH SRXSDQoD TXH MXVWLÀFDULD D DWLWXGH VXEDOWHUQD IUHQWH D FDSLWDLV
internacionais. Somente ao voltar à relação fundamental entre formação de
capital e acumulação seria possível revelar a centralidade da relação externa na
constituição do grande capital.
O debate da época foi apresentado como apenas econômico e entre
HVWUXWXUDOLVWDV H PRQHWDULVWDV 2 VLJQLÀFDGR SROLWLFR GD GLYHUJrQFLD HQWUH
DUJXPHQWRV SUpLQGXVWULDLV H GD VRFLHGDGH ÀQDQFHLUD SHUPDQHFLD FRPR XP
WHPD RFXOWR H D OHLWXUD FUtWLFD GD DFXPXODomR ÀFDYD UHVWULWD DRV DVSHFWRV
técnicos da formação de capital. A percepção do panorama doutrinário nesse
contexto precisa ser esclarecido porque do elenco dos envolvidos no processo
da política econômica do Brasil na época cabe considerar que Rangel foi o
estudioso que reuniu mais condições para enfrentar teoricamente os líderes do
conservadorismo. Por isso é de interesse comentar suas tentativas de resgatar
as contribuições de Joan Robinson sobre a acumulação de capital e de Michal
Kalecki sobre graus de monopólio, em todo caso encontrar neles possíveis
linhas de continuidade com Rosa Luxemburg, a quem considerava a principal
voz do marxismo de maior proximidade teórica com os problemas do Brasil. É
no Livro II de 2FDSLWDOque se encontra a doutrina das diferenças de velocidade
FRPELQDGDVGRVFDSLWDLVHQWUHVXDIRUPDLPRELOL]DGDHVXDIRUPDÀQDQFHLUDPDV
onde as formas de imobilização correspondem a formalizações técnicas do grau IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
de desenvolvimento das forças produtivas. A condição de subdesenvolvimento
enuncia uma dependência externa na formação de capital e uma desigualdade
interna no controle da acumulação, que envolve aspectos econômicos e políticos.
Assim como não há uma teoria pura do desenvolvimento tampouco há uma teoria
pura da política econômica. A política econômica enfrenta problemas concretos
como da reforma agrária e da industrialização.
O problema histórico da industrialização é que ela acontece em contextos
GHIRUPDVHVSHFtÀFDVGHFDSLWDOHPTXHKiFRPSRVLo}HVGHIRUPDVDUFDLFDVH
modernas. Isso faz com que a contribuição de Joan Robinson não acompanhe
a de Luxemburg no relativo às condições de velocidade na rotação do capital,
mesmo quando as transformações de dinheiro a mercadoria pareçam dadas.

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

$ FRQVWDWDomR GR OLPLWH GR NH\QHVLDQLVPR SDUD DFRPSDQKDU D SROtWLFD GH


superação do subdesenvolvimento não impedia que Rangel, tal como a esquerda
cepalinaWLYHVVHXPDDGPLUDomRHVSHFLDOSHODHVTXHUGDNH\QHVLDQDLVVR não
impediu seu rigor teórico marxista. Trata-se da auto-acumulação do capital e não
de uma acumulação genérica. No entanto e por todas essas controvérsias seria
igualmente necessário um esclarecimento sobre o que poderia ser a noção de
método, portanto, a concepção básica de dialética.

O pensar dialético essencial

Certas dissenções no campo marxista e certo distanciamento da


realidade social concreta, que leva a substituir a concretude dos processos da
periferia por referencias de países centrais tornaram necessário rever o núcleo
GHSHQVDPHQWRGLDOpWLFRQDGLVSXWDGD(FRQRPLD3ROtWLFD1RÀQDOGDGpFDGDGH
RSHQVDPHQWRHFRQ{PLFRQR%UDVLORVFLODYDHQWUHXPDLQÁXrQFLDIUDQFHVD
limitada a alguns grupos e uma tradição clássica com algumas incursões no
NH\QHVLDQLVPR2PDU[LVPRWLQKDSRXFDHQWUDGDQRDPELHQWHDFDGrPLFR)DOWDYD
PXLWRSDUDXPDYLVmRGLDOpWLFDGRSURFHVVRHFRQ{PLFR$FRUUHQWHNH\QHVLDQD
se apresentava como progressista10. Os trabalhos de Rangel sobre a questão
agrária e sobre a capacidade ociosa deram uma contribuição especial para
substituir a análise agrícola convencional pela agrária e para colocar a teoria do
capital de volta ao centro do debate.
Diante das dissenções e da necessidade de superar a ideologia pelo
DXWRULWDULVPRGRVRFLDOLVPRUHDOpSUHFLVRUHWRUQDUjUHÁH[mRIXQGDPHQWDOVREUH
a dialética. A dialética é a linguagem da esquerda. Esse seria o caminho de
uma revisão da dialética como modo próprio do desenvolvimento do ser social.
O sujeito do desenvolvimento econômico é o da vida social pelo que o esforço
teórico pela ontologia do ser social termina por encontrar o homem comum.

9
  1mR HVTXHFHU TXH HVVD HVTXHUGD FHSDOLQD DSRLDULD D VHJXLU D UHYROXomR FXEDQD H VHULD VDFUL¿FDGD
quando da queda de Salvador Allende.

10
Nota-se que os primeiros pós-keynesianos como Joan Robinson e Nicholas Kaldor, que representaram
posições criticas e reformistas, podem ser incluídos como progressistas. Outros como Kenneth Kurihara,
apareceram com um reformismo operacional não critico. Outros ainda, Alvin Hansen e Hyman Minsk,
representaram o lado monetarista de Keynes, conservaores como o próprio Keynes. Alguns atuais neo-
-keynesianos representam posições reformistas discretas que se diferenciam dos neoclássicos empeder-
nidos, aparecendo como progressistas comparados com o conservadorismo pesado da “austeridade” mas
FRQWLQXDPFRPDVXSHU¿FLDOLGDGHGRFXUWRSUD]R

D
D 
2 HVVHQFLDO GH XP SHQVDPHQWR HVWUXWXUDO KLVWyULFR p LGHQWLÀFDU R
equilíbrio dinâmico que surge da progressão orgânica de contradições que
respondem pelas transformações do sistema sócio-produtivo11. Distinguem-se
contradições aparentes e essenciais, que são as que ligam o sistema econômico
e o politico. A essência da esquerda é caminhar sobre a progressão orgânica
GDV FRQWUDGLo}HV TXH VH GHVFREUHP VRE RV FRQÁLWRV DSDUHQWHV FRORFDGRV
pelas forças sociais organizadas. O essencial é ousar discutir em nome de uma
representatividade histórica fundamental. Como as contradições historicamente
surgem de processos desiguais do capitalismo e não há como pensar em dialética
do mundo social que não seja sobre as progressões das forças envolvidas. O
mundo dominado ou pertencente a condições anteriores de organização é
absorvido de modo subordinado pelo processo de poder com suas irradiações
econômicas, políticas e culturais. A diferença entre a dialética genuinamente
KLVWyULFDHDTXHVHGHGLFDDMXVWLÀFDUSURJUDPDVSUpHVWDEHOHFLGRVRXDOLDQoDV
FRQWUDGLWyULDVFRPDSHUFHSomRFRQÁLWLYDGDUHDOLGDGHpTXHHODpLQWUDQVLJHQWH
Certas novas leituras do esforço de reconstruir os fundamentos ontológicos do ser
social, que revelam aproximações subterrâneas das correntes que repudiaram o
racionalismo dirigido do grande capital, convergindo para uma rebeldia essencial
à inércia dos acordos de composição das diversas versões centristas12.
Frente a uma aceleração da substituição de tecnologia. O essencial da
perspectiva da esquerda é focalizar em mudanças socialmente positivas o que a
obriga a registrar a pluralidade do mundo social em que trata. Temas como pequena
SURGXomRUXUDOHLQIRUPDOLGDGHUHTXHUHPPDLRUTXDOLÀFDomRSRUTXHWUDWDPGH
pessoas. O mundo da pequena produção rural no Maranhão não se parece com
o do oeste do Paraná. Há, portanto, um problema geral de representatividade
GDV IRUPDV GH SURGXomR 'H] DJULFXOWRUHV TXDOLÀFDGRV VREUH PLO QmR WrP D
representatividade de cem sobre mil. Em universos amplos e complexos como IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
o brasileiro a questão geral de representatividade atinge a própria reprodução
do capital e a do trabalho. O movimento histórico do capital é a síntese de uma
pluralidade de movimentos de diversos capitais historicamente formados que
não se resumem nos dos capitais na ponta do sistema. Contemporâneo não
coetâneo, dizia Rangel. O comando dos diversos sistemas nordestinos não

11
Por trás desse esclarecimento há todo um debate sobre a diferenciação entre a dialética moderna e a
antiga, em que esta se distingue por compreender a noção de progresso, por extensão a de irreversibi-
lidade.

12
É o Brasil das intermináveis composições partidárias girando em torno do poder de veto dos partidos
centristas, produzindo acordos improváveis mais representativos dos interesses na sobrevivência dos
próprios partidos.

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

está em São Paulo, mas no conjunto das articulações internacionais próprias


do processo nordestino. O que há de especial é o descobrimento marxista da
essência contraditória do processo do capital no contexto nacional. Temos pela
frente a imensa tarefa de descobrir a pluralidade própria de nosso processo
social.
3RU LVVR R HQFXUWDPHQWR WHyULFR GD RÀFLDOL]DomR VWDOLQLVWD WRUQRX
se um obstáculo para uma visão marxista historicamente centrada no Brasil.
A superação do ranço do absolutismo lógico é um passo necessário para
reconstruir a análise estrutural sobre suas reais bases históricas. Somente a
partir de uma refundação do marxismo em Marx se encontraria o real histórico
concreto do processo do capital na América Latina. No essencial, essa rebeldia é
um movimento de auto-regeneração do marxismo na linha do proposto por Karl
.RUVFKFRPRPHVPRULJRUIXQGDQWHTXHLGHQWLÀFDDUHEHOGLDGH*LRUJ\/XNiFV

2GHVFREULPHQWRGRGHVDÀR

0\UGDOIRLRSULPHLURDFRORFDUDVXSHUDomRGRVXEGHVHQYROYLPHQWRFRPR
XP GHVDÀR TXH VH UHQRYD   H D UHFRQKHFHU TXH UHYHUWHU DV WHQGrQFLDV
DR VXEGHVHQYROYLPHQWR VLJQLÀFD UHPDU FRQWUD D FRUUHQWH GR FRQVHUYDGRULVPR
  -i &DQQDQ   IDODYD GD SVHXGRGLVWULEXLomR HQWUH SHVVRDV TXH
HQFREUHDFRQFHQWUDomRGDUHQGDHQWUHFODVVHV&HOVR)XUWDGR  IRLTXHP
primeiro viu desenvolvimento e subdesenvolvimento como dois processos
concomitantes e opostos no contexto da globalização da captura de recursos
naturais. A dinâmica econômica surgiu observando movimentos positivos do
sistema. O registro de movimentos negativos é a ruptura com a ortodoxia, que
revela o papel do imperialismo.
A questão central é o descompasso entre acumulação de capital e
expansão de mercado. Haverá um mínimo de acumulação necessário para a
reprodução do sistema, uma acumulação pretendida pelo capital e uma possível
nas condições orgânicas do sistema produtivo. Por sua vez, a expansão do
mercado dependerá da renda total gerada e de sua distribuição. A expansão
do mercado envolve mudanças na composição de produtos e nos sistemas de
comercialização. Refere-se a dados concretos de oferta e procura e nada tem a ver
com propensões nem expectativas. Torna-se necessário expurgar o subjetivismo
da teoria do desenvolvimento que trata com situações sociais concretas. Não
se trata de talentos inovadores de empresários, mas de demanda concreta de
capital das empresas.

D
D 
Com a perspectiva das contradições do capital globalizado torna-se mais
IiFLOSHUFHEHUDIDOiFLDGDLQGXVWULDOL]DomRQRTXHHODVLJQLÀFDYDSHUGHUGHYLVWD
a organicidade da relação entre indústria e agricultura e a essencialidade do
sistema, com a necessidade de transformar simultaneamente os setores de
produtores de matérias primas e de manufaturados. No essencial, fortalecer
a capacidade de intervir do Estado. Necessário lembrar que os resultados
alcançados pela América Latina eram modestos e incertos e que o obstáculo
j VXVWHQWDomR GR FUHVFLPHQWR HVWDYD QD SUHVVmR FUHVFHQWH GR FRHÀFLHQWH
de importação, que não necessariamente era causada pela substituição de
importações13. Na verdade a política nacional de desenvolvimento que tinha
começado com um grande esforço em infraestrutura passava a um imediatismo
de produtos manufaturados. O quadro externo certamente não era favorável.
O controle politico do Brasil era parte da estratégia norte-americana da Guerra
Fria14, mas isso não se traduziu em vantagem econômica alguma. Na prática a
proposta reformista de política de desenvolvimento patrocinada pelas Nações
8QLGDV HQFRQWUDYD OLPLWHV LQVXSHUiYHLV LGHQWLÀFDGRV SHOD &(3$/ QD IRUPD GH
XPD´EUHFKDFRPHUFLDOGRVSDtVHVHPGHVHQYROYLPHQWRµ15.
A perda de espaço nas condições estruturais de formação de capital
FRUUHVSRQGH D XPD PDLRU YXOQHUDELOLGDGH jV ÁXWXDo}HV FtFOLFDV PHQRU
capacidade para gerar os recursos para reproduzir e ampliar os sistemas sociais
de utilidade pública. Foi o caso notório dos sistemas de habitação popular que se
tornaram inviáveis, mas cuja visão de casas individuais continuou até hoje. Em
suma, uma pressão crescente para contratar empréstimos externos que não se
consegue pagar. Começava o longo e tortuoso caminho do endividamento que
marcaria as décadas seguintes.
2 ÀP GR JRYHUQR -. VLJQLÀFDYD XP PRPHQWR HP TXH R SDtV WHULD TXH IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
avaliar suas reais condições de governabilidade econômica e política, claramente,
quando teria que inovar para sobreviver. Em vez disso houve uma proliferação de
EDQFRVHXPXVRGDLQÁDomRFRPRPHLRGHÀQDQFLDPHQWR2FHQiULRGDFULVH

13
2FRH¿FLHQWHGHLPSRUWDo}HVVXELDSRUTXHDXPHQWDYDRFXVWRHPGLYLVDVGHREWHURVPHVPRVPDWH-
riais para a reprodução do sistema produtivo cuja atualização dependia de importação de tecnologia. A
primeira restrição desse processo era o custo das moedas de onde provinham as importações.

14
Hoje se publica que Lyndon Johnson cogitou desembarcar fuzileiros em São Paulo e fazer ataques
aéreos a partir da Argentina (Le monde diplomatique) em apoio ao golpe de 64. Outras notícias foram
veiculadas pelo Washington Post em 1967 que houve um plano de aportar porta-aviões em Vitória para
isolar o Nordeste.

15
Título de uma ampla pesquisa realizada por aquele órgão em 1970.

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

HVWDYDDUPDGRHRSRSXOLVPRFRQVHUYDGRUGH-kQLR4XDGURVDFLRQRXDWHQVmR
social, polarizando um bloco de interesses bancários e industriais favoráveis à
sustentação da taxa de lucros pela compressão dos salários e a progressão dos
diversos movimentos de trabalhadores construindo um poder sindical.
Ao tratar desse período da história econômica não se podem ignorar
RVHIHLWRVFRQVHTXHQWHVGDJHQHUDOL]DomRGDVGLÀFXOGDGHVQD$PpULFD/DWLQD
Fracassaram iniciativas de integração do Pacto Andino e a Aliança para o Progresso
marcou uma cooperação controlada pela OEA. A sequência de turbulências
começada com o Bogotazo em 48 e de golpes de Estado começada na Guatemala
em 54 desenhava um continente instável em que os acordos de cooperação
fracassavam seguidamente. A concentração do comércio internacional com os
Estados Unidos era cada vez maior e as possibilidades de contornar a pressão
FRPRXWURVÁX[RVGHFRPpUFLRHUDPPtQLPDV
O modelo de desenvolvimento reformista defendido pela CEPAL foi
bloqueado na Argentina pelo golpe que derrubou Frondizi e as possíveis opções
representadas pelo pacto da democracia cristã também representavam outro
tipo de interferência externa europeia. Esse esgotamento das condições
concretas para um desenvolvimento reformista sob a pressão ascendente dos
grandes interesses é o dado fundamental de um problema de política econômica
que estava além das condições operacionais do governo. Na relação entre a
composição política, basicamente formada de forças tradicionais, e o aparelho
governamental encontra-se uma clivagem entre as concepções políticas do
(VWDGRHDVFRQGLo}HVRSHUDFLRQDLVGRJRYHUQR2VLPSOHVIDWRTXH-kQLR4XDGURV
adotasse um modo pessoal de governar, passando por cima das instituições, é
a prova dessa falha.
Em tal contexto a experiência do ISEB é extraordinária porque representa
XPHVIRUoRGHUHÁH[mRFHQWUDOLQpGLWDVREUHR%UDVLOPDVGHYHVHUFRQIURQWDGR
com o lado central do país, isto é, com o planejamento estadual em que a Bahia
e Pernambuco foram os pioneiros. A experiência baiana foi a que provocou o
Governo Federal para a criação da SUDENE, mas essa foi uma iniciativa que
repetiu o pecado original de ignorar todas as experiências anteriores e começar
do zero na concepção dos problemas da região.
O esgotamento do modo reformista de desenvolvimento foi um
movimento de grande complexidade para as opções de desenvolvimento que
WHYHHIHLWRVLPHGLDWRVHRXWURVSURORQJDGRVHFXOPLQRXFRPRJROSHGH
cujas motivações mais profundas não foram visíveis para seus próprios autores.
A composição de interesses, genuínos e externamente controladas, caiu na

D
D 
DUPDGLOKD GD VLPSOLÀFDomR LGHROyJLFD VRPHQWH GHVSHUWDQGR SDUD R SUy[LPR
HVJRWDPHQWRHP

Acumulação periférica e ciclo

O argumento central aqui em jogo é que o modo reformista de


desenvolvimento está regulado pelo ciclo dependente. O controle de parte
da acumulação pelo Estado reformista seria usado para desbloquear setores
estratégicos para o funcionamento do capital moderno, no que se denominou
de remover pontos de estrangulamento. Essas condições históricas concretas
levam a rever as críticas atuais da teoria da regulação no quadro das alterações
do modo operacional do imperialismo. Sobre esse ponto cabe ver o trabalho de
Cesar Altamira sobre as condições atuais da esquerda na esfera ocidental.
2 3ODQR 7ULHQDO GH  FRQVWLWXLX XPD WHQWDWLYD GH FRQFLOLDomR GH
FRUUHQWHV HP SXJQD QD SROtWLFD HFRQ{PLFD EUDVLOHLUD FXMR UHVXOWDGR IRL R ÀQDO
da ideologia do desenvolvimento, isto é, do reformismo burguês. Dada a
fragilidade do governo, o plano constituía a primeira capitulação da corrente
do desenvolvimento aos postulados da teoria burguesa do capital, para a qual
o mais importante era preservar o valor acumulado. Como se trata de teorias
formadas com os pressupostos das condições de formação de capital em curto
prazo, desse modo desconsiderando a condição cíclica essencial da acumulação
de capital em geral e nas periferias.
Com essa manobra se excluía o papel do ciclo dependente da acumulação
periférica como se ela fosse irrelevante para o sistema em seu conjunto. Não
poderia ser de outro modo já que os marginalistas em geral, neoclássicos e IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
NH\QHVLDQRVQmRWrPXPDWHRULDGRFLFOR1RHQWDQWRFRPRÀFRXFODURQDFULVH
em 2008, as economias periféricas avançadas – Brasil, Turquia, África do Sul
– tiveram desempenho melhor que as economias europeias, inclusive que a
Alemanha.
Essa opção pelo conservadorismo teria consequências na concentração
do sistema de crédito e nas opções de grandes projetos descentralizadores.
Os planos regionais tornam-se contraditórios com uma proposta federal
centralizadora. É uma tensão entre teoria econômica e práticas de política. Entre
as políticas derivadas de uma perspectiva neoclássica com as do desenvolvimento
SyVNH\QHVLDQR3RULVVRDFUtWLFDVHHVWHQGHjFRQFHSomRGHXPDPRGHUQL]DomR
conduzida pelas elites em que a sucessão de ciclos acontece em um e único

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

processo de industrialização em diferentes condições de desenvolvimento


das previsões de tempo. Longe de ser uma crítica apenas ao aspecto político,
divergir do plano era confrontar o modelo político da economia. Rangel se
opôs ao Plano Trienal não só por considerar que essa era uma capitulação aos
postulados da teoria burguesa do capital, mas porque esse plano implicava em
desconsiderar o caráter cíclico do sistema capitalista de produção e o papel do
ciclo dependente na dinâmica da industrialização. A pretensão de combinar
os preceitos do monetarismo com o chamado estruturalismo implicaria em
FRPELQDUDHFRQRPLDQHRFOiVVLFDFRPRGHVHQYROYLPHQWLVPRSyVNH\QHVLDQR
absorvendo discordâncias no relativo ao papel do Estado. A crítica se estende
mediante uma concepção do ciclo pela qual os ciclos sucessivos acontecem
em diferentes condições de desenvolvimento do sistema produtivo. Longe de
ser uma crítica apenas ao aspecto político, em si rejeitada, de uma cessão às
pressões conservadoras crescentes no governo JK, era uma divergência acerca
da viabilidade do modelo reformista de desenvolvimento, que ignorava os efeitos
cíclicos do imperialismo.
Esse é o foco central da divergência entre a perspectiva otimista da
SROtWLFD SyVNH\QHVLDQD GH GHVHQYROYLPHQWR H D GH XPD YLVmR KLVWyULFD FUtWLFD
que contempla as condições do processo do capital. A industrialização periférica
opera sob condições de controle externo de tecnologia e de propagação de ciclos
TXHWHQGHPDGLÀFXOWDUDYLVmRGRVHIHLWRVLPHGLDWRVGHSURFHVVRVGHGLYHUVDV
durações que simplesmente coincidem na formação do ciclo dependente. A
economia periférica absorve os ciclos da economia central que reproduz de
modo desigual e, à medida que amadurece, passa a ciclos dependentes que
são aqueles gerados pelas condições de formação de capital externamente
condicionada.
Assim, mais que simples divergência a oposição ao Plano Trienal foi
uma tomada de posição na análise do capitalismo dependente. A tentativa
GH FRQFLOLDU DV FRUUHQWHV HP SXJQD VLJQLÀFDYD FRPELQDU SRQWRV GH YLVWD
opostos no relativo a heterogeneidade do capital e ao reconhecimento de uma
acumulação dependente. A crítica de Rangel levanta três argumentos a serem
considerados. Primeiro, que o sistema internacionalizado do capital compreende
que movimentos cíclicos em longa duração gerados no centro em seus grandes
ajustes tecnológicos se difundem às periferias de modo desigual. Segundo, que
as periferias mais complexas ou avançadas desenvolvem mecanismos de ciclo
dependente que determinam condições próprias de longo prazo. Terceiro, que
DVSRVVLELOLGDGHVGHSROtWLFDVGHÀQLGDVVREUHKRUL]RQWHVHPFXUWRSUD]RÀFDP
restritas a ajustes limitados dos capitais, absorvendo os efeitos em longo prazo

D
D 
como se eles não existissem. Nesse contexto, políticas em curto prazo são
alienadas em relação com as verdadeiras condições estruturais da economia
periférica.
Logicamente, o caráter cíclico da economia do capital não é parte da
SROtWLFDUHIRUPLVWDSHULIpULFD(PDSDUHFHXRWUDEDOKRGH0DULD&RQFHLomR
Tavares sobre Acumulação e crise que trata da condição cíclica da industrialização
no Brasil, com uma contribuição para uma revisão marxista dos processos
industriais periféricos, mas não estendeu a crítica à política de desenvolvimento
em geral em que a indústria continuou na ciranda de inovação, tecnologia,
aprendizagem, como se não se tratasse de processos do capital. No modo de
acumulação do sistema do capital em geral as décadas de 70 e 80 foram de
repetidos movimentos de instabilidade nas periferias e em 2008 reconheceu-se
RÀFLDOPHQWHTXHDLQVWDELOLGDGHWLQKDSDVVDGRSDUDRFHQWURRQGHVHSDVVRXD
realizar políticas de reanimação, supostamente breves mas que se prolongam
sob eufemismos tais como austeridade.

3RQGHUDo}HVÀQDLV

No movimento em espiral da acumulação de capital a economia mundial


passou desde então por um processo de centralização para o qual contribuíram
o fortalecimento do sistema central de poder e o controle do mercado mundial
por um número restrito de empresas. É um movimento que fortalece o poder de
intervenção das potências hegemônicas, mas que revela a dependência de seu
controle sobre as nações periféricas. Como é um jogo de poder que se repete,
incorre em contradições crescentes, com uma inegável perda de capacidade da IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
HFRQRPLDKHJHP{QLFDSDUDH[HUFHUXPFRQWUROHHÀFD]VREUHRPHUFDGRHFRP
a ascensão de novos protagonistas. A crise engendrada no início do novo século
e revelada em 2008 mostrou a perda de competitividade das empresas norte-
americanas até agora sustentadas pela preferência dos demais investidores.
Tal dependência norte-americana do mercado externo, junto com o bloqueio
da economia europeia, indicam que a instabilidade do centro desenha os
contornos do ciclo de longo prazo. O império luta uma batalha defensiva pela
qual é constrangido a alianças contraditórias com seus interesses e incorre em
comportamentos que fragilizam suas alianças principais.

16
Quando capitais árabes compram o Waldorf Astoria e chineses compram o edifício do Citycorp em
Manhattan e brasileiros aquecem o mercado imobiliário na Florida fazem parte desse movimento.

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

No cenário de hoje há uma agressividade do poder ocidental que mostra


sua luta para preservar seu poder. Há avanços inexoráveis da Ásia liderado
pela China e espaços que se ampliam do poder recomposto da Rússia. Contra
todas indicações dessa economia neoclássica do curto prazo que se tornou a
linguagem do poder norte-americano, torna-se inevitável a volta à análise em
longo prazo e à teoria dos ciclos.

5HIHUrQFLDV

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7ULPHVWUHV(FRQyPLFR0p[LFRDEULO

IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

O voo da águia: reminiscências sobre o


pensamento crítico de Ignacio Rangel
-RVp0DULD'LDV3HUHLUD

Introdução

Na mitologia grega, a águia é o símbolo de Zeus, o mais poderoso dos


deuses. Seu principal atributo, além de voar mais alto do que as outras espécies,
é a sua extraordinária capacidade visual, oito vezes mais precisa do que o
olho humano. Caso Ignacio Rangel fosse uma pássaro seria uma águia. Seu
pensamento costumava alcançar, num único voo, a macro e a microeconomia.
Também enxergava longe: via a economia como um processo ao mesmo tempo
histórico, cíclico e dialético.
Mas dentre os traços da personalidade marcante de Ignacio Rangel, o
TXHPDLVIDVFLQDYDHUDDVXDFDSDFLGDGHFUtWLFD6HULDLQMXVWRQmRFODVVLÀFiOR
como um homem de esquerda, mas, em determinado momento, foi rejeitado pela
esquerda como sendo de direita. Isso é especialmente verdadeiro quando, nos
DQRVHGLVFRUGRXGDWHVHGDHVTXHUGDGHTXHDUHIRUPDDJUiULDHUDXPD
´SUpFRQGLomRµSDUDRGHVHQYROYLPHQWR5DQJHODUJXPHQWDYDQDpSRFDTXHQmR
havia condições objetivas para a realização de uma reforma agrária no Brasil,
mas que isso, em absoluto, inviabilizaria a retomada do crescimento econômico.
Mesmo após o encerramento do ciclo de crescimento dos anos 70, quando
passou a defender a reforma agrária, continuou a ser alvo da incompreensão da
esquerda17.

17
Numa crônica publicada no jornal do Brasil, em 18/09/1979, reclamava da assessoria econômica de
Miguel Arraes que continuava criticando-o por ser contra a reforma agrária quando, há muito, havia mu-
dado de opinião. Escreveu ele: “Em matéria de assessoramento econômico, nossa esquerda é, em geral,
uma catástrofe [...]. Ora, Miguel Arraes não constitui exceção. Sua assessoria não aprendeu nada, nem
esqueceu nada, nestes três lustros [...] Só faltaria que, agora, em 1979, quando eu estou sustentando que
isso (tese contrária a reforma agrária como pré-condição para o desenvolvimento) não é mais verdade,
eles levantem a bandeira do meu velho livro (refere-se ao livro A Questão Agrária Brasileira), para
D¿UPDUDTXHODVYHUGDGHVWRUQDGDVFDGXFDV1mRVHULDHVVDDSULPHLUDYH]´ 5$1*(/E 

D
D 100
Sua visão sobre desenvolvimento ia além das ideologias de esquerda e
GLUHLWD1DWULOKDGH.H\QHVH.DOHFNLFRORFDYDRLQYHVWLPHQWRFRPRFRQGLomR
fundamental para o desenvolvimento. Considerando a condição do Brasil como
SDtV SHULIpULFR DSULQFtSLR SURS{VTXHR(VWDGREDQFDVVHRÀQDQFLDPHQWRDR
LQYHVWLPHQWR &RP D FULVH GRV DQRV  VXJHULX DR PLQLVWUR GD )D]HQGD GR
primeiro governo militar a correção monetária como estratégia alternativa18.
2XWURH[HPSORGRSUDJPDWLVPRGH5DQJHOpTXHQRÀQDOGRVDQRV
face às distorções causadas pela correção monetária, sugeriu a criação de
uma nova lei de concessão de serviços públicos. Através dela, o setor privado
passaria a encarregar-se, de forma crescente, pelos investimentos públicos de
infraestrutura. Essa sugestão não deixa de ser surpreendente, considerando
que Rangel teve um papel importante na criação de grandes empresas estatais
brasileiras, como a Petrobrás e a Eletrobrás. Nem em sonhos Rangel poderia
LPDJLQDU TXH DSyV R VHX IDOHFLPHQWR   D SULYDWL]DomR GH HPSUHVDV
estatais iria tão longe.
1RTXHVHUHIHUHjLQÁDomRIRLDPHVPDFRLVD$GYRJDGRSRUIRUPDomR
o único curso formal de economia que Rangel frequentou foi, nos anos 50,
na Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL), templo do
estruturalismo latino-americano, no Chile. Nem por isso, Rangel poupou o
HVWUXWXUDOLVPR QD VXD DQiOLVH GDV FDXVDV GD LQÁDomR EUDVLOHLUD 1R FOiVVLFR
´$ LQÁDomR EUDVLOHLUDµ SXEOLFDGR QR OLPLDU GR UHJLPH PLOLWDU   5DQJHO
LURQL]DYD RV ´QRVVRV RUWRGR[RV HVWUXWXUDOLVWDVµ SRU FRQIXQGLUHP D HVWUXWXUD
concentrada de intermediação – causa principal da alta do preço dos alimentos
– com inelasticidade da oferta agrícola. Igualmente, não poupava os “nossos
RUWRGR[RV PRQHWDULVWDVµ SRU QmR VH GDUHP FRQWD TXH D PRHGD p SDVVLYD RX
seja, é o aumento de preços que leva as autoridades monetárias a aumentarem IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
a quantidade de moeda e não o contrário.
1mRpGLItFLOLPDJLQDUTXHQmRVHÀOLDQGRDQHQKXPDFRUUHQWHGRPLQDQWH
de economistas de esquerda ou de direita, Rangel fosse, com raras exceções,
solenemente ignorado por ambos os lados. Em certo momento, deixou
transparecer alguma mágoa em relação a isso. O que poucos perceberam é
18
Conforme Bresser Pereira (Folha de São Paulo, 06/03/1994).

19
(PFU{QLFDMiFLWDGD5DQJHOGHVDEDIRX³1DGDPHREULJDDHVFROKHUOtGHUDOJXPSRUTXHD¿QDOQmR
sou apenas um cidadão, mas também um economista. Um economista de esquerda (grifo do autor) [...]
que continuou, infatigavelmente, a trabalhar seus esquemas, contra o vento e a maré, mas que tem a
consciência de estar vencendo. Que viu chegar o momento de ver suas ideias – aquelas pelas quais se
bateu, solitariamente, por tantos anos, expondo-se à chacota dos doutores – serem postas em circulação,
VHPUHIHUrQFLDDRVHXQRPH´,ELGQRWDS1XPDSRVVtYHOLGHQWL¿FDomRDRV³GRXWRUHV´DTXH

D
D 101
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

que Rangel tinha maior autonomia de voo. Ambicionava construir uma teoria dos
FLFORVGDHFRQRPLDEUDVLOHLUDTXHQmRIRVVHVLPSOHVPHQWHUHÁH[RGDVYLFLVVLWXGHV
das economias do centro capitalista desenvolvido. Para chegar até ela, baseou-
se nas teorias dos ciclos longos (50 anos) do russo N. Kondratieff e dos ciclos
médios (10 anos) do francês C. Juglar. Do ponto de vista da teoria econômica, foi
EXVFDUVXEVtGLRVHP0DU[HP.H\QHVHHP6FKXPSHWHUGHQWUHRXWURV6XUJLD
assim, a tese da dualidade da economia brasileira.

A teoria dos ciclos e a tese da dualidade

 $WHVHGDGXDOLGDGHVHJXQGR%LHOVFKRZVN\  pRSULQFLSDOHOHPHQWR


organizador do pensamento de Ignacio Rangel. Ela resulta de uma adaptação
GR PDWHULDOLVPR KLVWyULFR PDU[LVWD DR FDVR HVSHFtÀFR GD HFRQRPLD EUDVLOHLUD
porém, ao invés de uma sucessão de modos de produção, subdividiu o conceito
PDU[LVWDGH´UHODo}HVGHSURGXomRµHPUHODo}HVLQWHUQDVHUHODo}HVH[WHUQDV
Por seu turno, cada uma dessas relações teria também um lado interno e outro
H[WHUQR4XDQGRVmRSUHHQFKLGDVDVFRQGLo}HVSDUDDSDVVDJHPDXPHVWiJLR
superior – quando as forças produtivas da sociedade crescem, entrando em
FRQÁLWRFRPDVUHODo}HVGHSURGXomRH[LVWHQWHV²VXUJHXPD´QRYDGXDOLGDGHµ
porém apenas um dos seus lados muda, permanecendo o outro com a mesma
HVWUXWXUD(VWDpD´OHLGDGXDOLGDGHEUDVLOHLUDµ20.
Posteriormente, Rangel incorporou o conceito de ciclo longo à tese da
dualidade. Nesse sentido, resgatou a teoria dos ciclos longos do economista
russo Nikolai Kondratieff21, desenvolvida por volta dos anos 20 do século
passado. Os ciclos de Kondratieff tem duração aproximada de meio século,
GLYLGLGR HP XP TXDUWR GH VpFXOR QD IDVH ´Dµ RX DVFHQGHQWH H RXWUR TXDUWR

Rangel se referia, em artigo-homenagem na semana de seu falecimento, na Folha de São Paulo, Bresser
3HUHLUDDRFLWDUXPVHPLQiULRQD863RUJDQL]DGRSRU'HO¿P1HWWRGL]TXH³'HO¿PHVHXVDVVLVWHQWHV
criticavam Rangel pela imprecisão de seus conceitos econômicos” (1994, B2).

20
Rangel (1981:12).

21
Segundo Rangel (1982:17), “Kondratieff tornou-se um profeta maldito dos dois lados da Cortina
de Ferro”. Na ex-União Soviética, foi destituído de seus cargos, preso e deportado para a Sibéria. No
Ocidente, se não fosse Schumpeter que usou o seu nome para denominar os ciclos longos, teria sido um
ilustre desconhecido. Rangel atribui esse descaso ao fato de que a sua teoria era desfavorável tanto ao
capitalismo, por prever que, de tempos em tempos, a prosperidade acabaria (entraria na fase “b”); quanto
ao socialismo, por admitir que, após cada crise, o capitalismo não se enfraqueceria – como previra Lênin
– mas se fortaleceria (entraria novamente na fase “a”).

D
D 102
QDIDVH´EµRXGHVFHQGHQWH2%UDVLOVHLQVHUHQRVFLFORVORQJRVGDHFRQRPLD
mundial da seguinte forma: na fase ascendente, é favorecido pelo aumento de
suas exportações; na fase descendente (crise), devido à escassez de divisas,
VHGHGLFDDVXEVWLWXLULPSRUWDo}HV$VIDVHV´DµGRFLFORGH.RQGUDWLHIIIRUDP
HHQTXDQWRDVIDVHV´EµFRPSUHHQGHUDP
RVSHUtRGRVH5DQJHOLQFOXLXPžFLFORGH
.RQGUDWLHIIVHQGRDIDVH´DµHDSyV žFKRTXHGRSHWUyOHR 
WHULDFRPHoDGRDIDVH´Eµ22.
O que diferencia o caso brasileiro das demais formações históricas
clássicas, segundo Ignacio Rangel, é que existe uma interação entre o
desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção internas e
externas e, por causa da sua dependência em relação às economias centrais,
estas últimas são determinantes em última instância do desenvolvimento das
primeiras. Para explicar o desenvolvimento econômico, Rangel divide a economia
brasileira em três setores: o primeiro, e mais atrasado, formado pela agricultura
feudal ou pré-capitalista (ou de subsistência); o segundo, pela economia de
mercado capitalista (todas as demais atividades) e, o terceiro, pelo comércio
exterior. A transformação da economia seria sempre resultado da ação que
o segundo setor (o capitalista) exerce sobre o primeiro, a partir de estímulos
oriundos do terceiro setor.
A contrapartida política da tese da dualidade estaria na base da
formação do Estado brasileiro. A mudança de um modo de produção para outro
HVWiDVVRFLDGRDXP´SDFWRGHSRGHUµTXHUHVXOWDGDDOLDQoDGHDSHQDVGXDV
classes dirigentes, uma representando o segmento interno e outra o segmento
externo. A transição, de uma dualidade para outra, se faz por cooptação, isto é,
“pela exclusão, pelo próprio grupo dirigente, dos elementos mais arcaicos, e sua IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
VXEVWLWXLomRSRURXWURVUHSUHVHQWDWLYRVGDVQRYDVIRUoDVVRFLDLVHPDVFHQVmRµ
23
. A história das dualidades brasileiras, segundo a cronologia de Ignacio Rangel,
é mostrada nos diagramas a seguir24.

22
Ver, a esse respeito, o texto “O Brasil na fase “b” do 4º Kondratieff” incluído na coletânea Ciclo,
Tecnologia e Crescimento 5$1*(/ 

23
Rangel (1962) Apud %LHOVFKRZVN\  

24
A análise que segue, assim como a elaboração dos diagramas está baseada no artigo de Rangel “História
da Dualidade Brasileira”, publicado na Revista de Economia Política (vol1, n.4, out-dez/1981).

D
D 103
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

A primeira dualidade brasileira, assim como as que vieram depois, formou-


VHQDIDVH´EµGRFLFORORQJRGRž.RQGUDWLHII2SRORH[WHUQRGHÀQLXVHFRPD
substituição do capital mercantil português pelo nascente capitalismo mercantil
brasileiro. Surgia nesse momento a classe dos comerciantes (principalmente
exportadores-importadores), que seria uma das classes dirigentes do Estado no
papel de sócio menor. Esses comerciantes, predominantemente estrangeiros,
ainda estavam politicamente despreparados para o exercício do poder, mas eram
XPDHVSpFLHGH´FRUUHLDGHWUDQVPLVVmRµDWUDYpVGDTXDORFDSLWDOLQGXVWULDOGR
centro dinâmico impulsionava todo o sistema de acordo com os seus interesses.
No polo interno, a sociedade estruturava-se em torno da fazenda de
escravos. Emergia dela o sócio maior da primeira dualidade, ou seja, a classe dos
barões senhores de escravos. Dois acontecimentos – a independência (1822)
e a abdicação de Dom Pedro I (1831) – são marcos históricos das mudanças
efetivadas. No lado externo, havia toda uma pressão, sobretudo da Inglaterra,
para que o escravismo fosse substituído pelo latifúndio feudal. No lado interno,
o comércio de escravos abastecia regularmente não só a lavoura como também
XPDUHODWLYDGLYHUVLÀFDomRGDID]HQGDGHHVFUDYRV$PXGDQoDGRODGRLQWHUQR
GR SROR VHJXQGR5DQJHO   Vy SRGHULD DFRQWHFHU VH RV HVFUDYRV IRVVHP

D
D 104
LQFDSD]HVGHJDUDQWLUDDXWRVVXÀFLrQFLDDTXDOHVWDYDOLJDGDWDQWRDRQ~PHUR
de cativos quanto à disponibilidade de terras. Ambas as condições passaram a
H[LVWLUFRPDSURLELomRGRWUiÀFR  HFRPDOHLTXHJDUDQWLDTXHWRGDVDV
terras devolutas passassem a pertencer aos fazendeiros. Abria-se, portanto, a
possibilidade de mudança de dualidade.

IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil


 $ VHJXQGD GXDOLGDGH EUDVLOHLUD WHP OXJDU QD IDVH UHFHVVLYD GR ž
Kondratieff, datada do início dos anos 1870. Nela, o escravo passa a exercer
XP SDSHO DQiORJR DR GR ´VHUYR GD JOHEDµ GR IHXGDOLVPR HXURSHX1D PHGLGD
em que o servo está interessado no resultado do seu trabalho, passa a ter uma
produtividade muito maior do que a do escravo. A fazenda tende a tornar-se
internamente feudal e externamente uma empresa comercial. Paralelamente,
RVHQKRUGHHVFUDYRVVHFRQYHUWLDHP´VHQKRUIHXGDOµQRODGRLQWHUQRGRSROR
LQWHUQRH´YDVVDORµGRFRPHUFLDQWHQRSRORH[WHUQR+DYLDDJRUDSRUWDQWRXP
elemento comum nos dois polos da dualidade: o capitalismo mercantil.
A classe dos comerciantes, nascida nos primórdios do século XIX – em
unidade com a burguesia industrial que fazia parte do lado externo do polo externo
²HQFRQWUDYDVHDJRUDVXÀFLHQWHPHQWHPDGXUDSDUDLQÁXHQFLDUSROLWLFDPHQWHRV

D
D 105
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

negócios do Estado. Havendo a segunda dualidade nascida na fase recessiva


do ciclo longo, esta deveria promover alguma forma de substituição de
importações. Caberia ao capital mercantil promovê-la, basicamente incentivando
a industrialização interna através de processos artesanais e manufatureiros.
Costuma-se datar a última década desse século como a do nascimento
GD LQG~VWULD EUDVLOHLUD $ SURFODPDomR GD 5HS~EOLFD   UHSUHVHQWRX D
homologação das mudanças ocorridas na segunda dualidade.

 $RLQLFLDUVHDIDVH´DµGRžFLFORORQJRQDVHJXQGDPHWDGHGRVpFXOR
;,;HTXHVHSURORQJDDWpD,*XHUUD0XQGLDO  DSURGXomRGHFDIp
no Brasil cresceria em progressão geométrica25$SyVRÀQDOGDJXHUUDRFRUUH
D SDVVDJHP SDUD D IDVH ´Eµ GR ž .RQGUDWLHII TXH VHULD PDUFDGD SRU GRLV
DFRQWHFLPHQWRV GH JUDQGH UHSHUFXVVmR PXQGLDO $ *UDQGH 'HSUHVVmR  
H D ,, *XHUUD 0XQGLDO    $ WHUFHLUD GXDOLGDGH EUDVLOHLUD SRUWDQWR
seria inaugurada justamente numa ocasião em que a produção de café se

25
³$SURGXomREUDVLOHLUDTXHKDYLDDXPHQWDGRGHPLOK}HVGHVDFDV GHNJ HPSDUD
HPDOFDQoDULDHPPLOK}HV´ )857$'2 

D
D 
encontrava no auge e que a demanda externa tendia a se retrair. A principal
mudança foi a passagem do capital industrial para o lado interno do polo externo
da dualidade em substituição ao capital mercantil. Sua exclusão do lado externo
do polo externo, por sua vez, possibilitaria que outra formação (superior, porque
o capitalismo hegemônico está sempre mais avançado) ocupasse o seu espaço,
QHVWHFDVRDGRFDSLWDOÀQDQFHLUR27.
Embora como sócio menor da terceira dualidade, a burguesia industrial
surgida como dissidência da classe dos comerciantes teria papel fundamental
para alavancar o processo de substituição de importações. Como estudado por
vários autores28, o esgotamento das reservas cambiais e a escassez de divisas
criaram, automaticamente, uma reserva de mercado para a produção nacional
VXEVWLWXWLYDGHLPSRUWDo}HV6HJXQGR&RQFHLomR7DYDUHV  TXDQGRVHLQLFLD
a Grande Depressão, o Brasil dispunha de um mercado interno relativamente
amplo e uma estrutura industrial que, embora incipiente, possuía uma relativa
GLYHUVLÀFDomR,VVRSRVVLELOLWRXDJUDGDWLYDVXEVWLWXLomRGHLPSRUWDo}HVGHEHQV
não duráveis ou simples para bens duráveis ou complexos. Mais adiante, no após-
JXHUUD DRLQLFLDUVHDIDVH´DµGRž.RQGUDWLHII HVVHHVIRUoRGHVXEVWLWXLomRGH
importações, com o apoio decisivo de recursos do Estado, alcançaria os bens de
capital.
O processo de substituição de importações não só não é interrompido na
terceira dualidade como, a partir dela, a economia brasileira passaria a produzir
o seu próprio ciclo endógeno. Não se tratava do ciclo longo, causado pela
gestação e propagação de novas tecnologias, que é, por sua própria natureza,
prerrogativa dos países industrializados integrados ao centro dinâmico. Tais ciclos

26
³$SURGXomRGHFDIpHPUD]mRGRVHVWtPXORVR¿FLDLVUHFHELGRVFUHVFHXIRUWHPHQWH>@(QWUHH
1929 tal crescimento foi quase cem por cento [...] Enquanto aumenta dessa forma a produção, mantêm-
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
-se praticamente estabilizadas as exportações. Em 1927-29 as exportações apenas conseguiam absorver
duas terças partes da quantidade produzida”. Ib. p. 181

27
2FDSLWDO¿QDQFHLURDTXH5DQJHOVHUHIHUHQDWHUFHLUDGXDOLGDGHpQRVHQWLGRDWULEXtGRSRU+LOIHUGLQJ
ou seja, surgido da união do capital industrial com o capital bancário, com a dominância do primeiro
sobre o segundo. Não é como ocorre hoje em dia, onde os papéis se encontram invertidos.

28
6REUHRSURFHVVRGHVXEVWLWXLomRGHLPSRUWDo}HVYHU&RQFHLomR7DYDUHV  )XUWDGR  H
Cardoso de Mello (1982), entre outros.

29
“Outra singularidade da terceira dualidade está no fato de que, embora havendo começado nas con-
dições da fase recessiva do ciclo longo, a industrialização substitutiva de importações [...] não se inter-
rompeu com a passagem ascendente do 4º Kondratieff. O dinamismo do processo de industrialização,
engendrando demandas de importações sempre novas, fez com que o impulso se mantivesse” (RAN-
*(/ 

D
D 107
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

seriam inerentes à construção do capitalismo industrial e seriam semelhantes


aos chamados ciclos médios ou ciclos de Juglar, com duração aproximada de
uma década. Após uma fase ascendente, a economia entra em crise, a qual
LQGX] DOJXPDV PXGDQoDV LQVWLWXFLRQDLV HP HVSHFLDO QR PHUFDGR ÀQDQFHLUR
estimulando novos investimentos em segmentos econômicos não modernizados.
2V HIHLWRV GHVVD ´RQGD GH LQYHVWLPHQWRVµ WHQGHP D VH SURSDJDU SRU WRGR R
sistema econômico, o qual entra novamente numa fase ascendente.
 &RPRDHFRQRPLDEUDVLOHLUDPHUJXOKDQXPDQRYDIDVHGHVFHQGHQWH",VVR
se dá através de um processo que Rangel chamou de “dialética da capacidade
RFLRVDµ 30. Após certo tempo, as atividades que receberam investimentos
geram capacidade ociosa enquanto outras atividades persistem como pontos
GH HVWUDQJXODPHQWR 2 ´FKRTXH GRV FRQWUiULRVµ HQWUH HVVHV GRLV SRORV GR
sistema econômico – um carregado de ociosidade e outro de antiociosidade –
engendrará tensões sociopolíticas que, por sua vez, promoverão novas mudanças
institucionais que irão desencadear novos investimentos, os quais deslocarão
a economia novamente para uma fase ascendente. A teoria do ciclo endógeno
de Rangel procurou demonstrar que, ao contrário do que muitos supunham, o
modelo de substituição de importações não tinha se esgotado.

30
³>@XPDYH]FXPSULGRRSURJUDPDGHVXEVWLWXLomRGHLPSRUWDo}HV>@GHVFREUtDPRVTXHDLQVX¿-
ciência da capacidade para importar ressurgia sob a forma de demanda insatisfeita de um grupo novo
de produtos [grifo do autor]. Este é o núcleo do problema que proponho que se estude sob a rubrica de
dialética da capacidade ociosa, manifestada pela circunstância fundamental de que, no próprio ato de
implantar-se, engendrava o seu contrário, tendendo, portanto, a perpetuar o esforço de desenvolvimen-
WR´ 5$1*(/ 

D
D 108
A quarta dualidade brasileira, que seria também a última, ainda não
havia se completado à época em que Rangel estudava o fenômeno. O ano de
 žFKRTXHGRSHWUyOHR VHJXQGRHOHPDUFDULDDHQWUDGDGRVSDtVHVGR
FHQWURFDSLWDOLVWDKHJHP{QLFRQDIDVH´EµGRžFLFORGH.RQGUDWLHII1R%UDVLO
DIDVHGHVFHQGHQWHGRFLFORORQJRFRLQFLGLULDFRPDIDVH´EµGRVHXFLFORPpGLR
HQGyJHQRSRQGRWHUPRQRFKDPDGR´0LODJUH(FRQ{PLFRµ  $SDUWLU
daí o esforço do II PND (governo Geisel) de manter o crescimento “em marcha
IRUoDGDµ31 de forma a completar a substituição de importações no Departamento I
da economia (produção de bens de capital) e insumos importados (principalmente
petróleo) desembocaria numa grave crise do balanço de pagamentos, a partir do
início dos anos 80 do século passado.
 'LDQWH GD LQFDSDFLGDGH GH FRQWLQXDU ÀQDQFLDQGR R FUHVFLPHQWR GD
HFRQRPLDFRPFDSLWDOH[WHUQRHVVHÀQDQFLDPHQWRGHYHULDVHUIHLWRFRPSRXSDQoD
interna. Nessa fase, diante do avanço de sua industrialização, o Brasil estaria
deixando de produzir muitas coisas importadas simplesmente pela falta de um
VHWRUGHLQWHUPHGLDomRÀQDQFHLUDFDSD]GHÀQDQFLDUDDFXPXODomRGHFDSLWDO2
´0LODJUH(FRQ{PLFRµKDYLDOHYDGRDDOJXPDVDWLYLGDGHVHFRQ{PLFDVDFUHVFHUHP
além dos limites impostos pelo mercado, gerando, portanto, sobreacumulação de
capital. Era preciso fazer com que essas atividades detentoras de poupança, mas
impossibilitadas de investir em suas próprias instalações, fossem estimuladas
a transferir recursos para outras atividades carregadas de antiociosidade, que
5DQJHOLGHQWLÀFRXQRVVHUYLoRVS~EOLFRV6XDVXJHVWmRQDpSRFDIRLDFULDomR
de uma nova lei de concessão de serviços públicos, que permitisse ao setor
privado encarregar-se, de forma crescente, pelos investimentos públicos de
infraestrutura.
 $ EXUJXHVLD LQGXVWULDO ÀQDOPHQWH VH WRUQDULD R VyFLR PDLRU QD TXDUWD IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
dualidade, representando o polo externo, e tendo como sócio menor a nova
burguesia rural, representando o polo interno. Para viabilizar a mudança no polo
interno da dualidade, seria preciso eliminar os últimos resquícios do latifúndio
feudal – condição necessária para criar empregos no meio rural. Nesse sentido,
Rangel advoga a diminuição do preço da terra. Na sua visão, o preço da terra
no Brasil não decorre do seu uso enquanto tal, mas da sua utilização como
HVSHFXODomRÀQDQFHLUD$HVWDJQDomRHFRQ{PLFDVHJXLGDGHLQÁDomR QDIDVH
descendente do ciclo endógeno) desencadeia um processo de valorização dos
ativos reais, como a terra, que nada tem a ver com o seu valor territorial. Nesse

31
$H[SUHVVmR³PDUFKDIRUoDGD´FRPRFDUDFWHUtVWLFDGRSHUtRGRVHGHYHD&DVWUR  

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

caso, os títulos fundiários concorrem com os títulos mobiliários32.


Tendo discordado da esquerda, nos anos 50, do papel prioritário da
reforma agrária para desenvolver o Brasil – dado que o processo de substituição
de importações criava uma reserva de mercado para a indústria – a partir da
quarta dualidade, a reforma agrária tornava-se imperativa33.

,QÁDomRDLOXVmRPRQHWDULVWDHHVWUXWXUDOLVWD

Embora a teoria quantitativa da moeda tenha origens remotas34, os seus


SULQFtSLRVEiVLFRVIRUDPHODERUDGRVQRÀQDOGRVpFXOR;,;HLQtFLRGRVpFXOR;;
SRU:LFNVHO QD6XpFLD TXHUHODFLRQRXDLQÁDomRFRPDWD[DGHMXURV0DUVKDOO
QD,QJODWHUUD TXHH[SOLFRXDLQÁDomRSHORSULQFtSLRGDRIHUWDHSURFXUDH)LVKHU
QRV(VWDGRV8QLGRV FXMDFRQWULEXLomRSDVVRXDVHUXP´GLYLVRUGHiJXDVµSDUD
todos os demais autores monetaristas que se seguiram, sendo Milton Friedman
o mais importante deles.
A equação de trocas, de Fisher, é dada por MV=PT, onde M representa a
quantidade de moeda, V é a velocidade de circulação da moeda, P é o nível geral
de preços e T é o total de transações realizadas na economia em certo período
(produto). Pela hipótese clássica de pleno emprego, o produto não se altera, de
modo que T pode ser considerado estável no curto prazo. Levando em conta que
as condições institucionais que determinam o número de vezes que a moeda
troca de mãos mudam muito lentamente ao longo do tempo, então V também
pode ser considerado como uma constante no curto prazo. Nessas condições,

32
³>@RPHVPRSURFHVVRUHFHVVLYRTXHVHID]DFRPSDQKDUGHH[DFHUEDomRGRSURFHVVRLQÀDFLRQiULR
também desencadeia um processo de “valorização” da terra, no sentido de elevação dos preços desse
fator, em óbvio descompasso com a renda territorial (grifo do autor). Por outras palavras, os títulos fun-
diários comportam-se em contracorrente com os mobiliários. A mesma recessão que deprime os valores
PRELOLiULRVLPSHOHSDUDFLPDRVWtWXORVIXQGLiULRV´ 5$1*(/D 

33
“Há tempos que o problema da terra, no Brasil, tomou a forma de um SUREOHPD¿QDQFHLUR[grifo do
DXWRU@$VVLPDFRQ¿JXUDomRJUDGDWLYDGRQRYHOFDSLWDOLVPR¿QDQFHLURWUDUiHPVHXERMRXPDUHIRUPD
agrária, nada menos. Noutros termos, a reforma agrária que não precedeu a industrialização, como
julgávamos nós, os revolucionários dos anos 30, terá de vir agora, como coroamento da mesma indus-
WULDOL]DomR´ 5$1*(/ 

34
-iQR¿QDOGRVpFXOR;9,RVHVFULWRVPHUFDQWLOLVWDVID]LDPUHODomRGDLQÀDomRFRPDVUHVHUYDVGH
RXUR GH XP SDtV H VHX EDODQoR GH SDJDPHQWRV (QWUH RV FKDPDGRV ¿OyVRIRV SROtWLFRV GH PHDGRV GR
VpFXOR ;9,,, FUtWLFRV GRV PHUFDQWLOLVWDV H SUHFXUVRUHV GRV HFRQRPLVWDV FOiVVLFRV D FRUUHODomR HQWUH
moeda e preços era ainda mais visível (em especial, em David Hume).

D
D 110
é a quantidade de moeda M – que representa a demanda – é responsável pela
alteração no nível geral de preços P.
 -i D DQiOLVH HVWUXWXUDOLVWD GD LQÁDomR VXUJLX GHQWUR GR UHIHUHQFLDO
teórico desenvolvido pela CEPAL35, cujas teses principais foram resumidas por
6XQNHO   DWUDYpV GH XP HVTXHPD JHUDO SDUD D DQiOLVH GD LQÁDomR (VVH
HVTXHPDLGHDOL]DGRFRPEDVHQDHFRQRPLDFKLOHQDVHSURSXQKDDLGHQWLÀFDU
DVSUHVV}HVLQÁDFLRQiULDVHRVVHXVPHFDQLVPRVGHSURSDJDomR$VSUHVV}HV
LQÁDFLRQiULDVEiVLFDVUHÁHWLDPDLQFDSDFLGDGHGRVVHWRUHVSURGXWLYRVGHDWHQGHU
ao crescimento da demanda, em especial a agricultura devido à inelasticidade
da oferta de alimentos.
 $SDODYUD´LOXVmRµXVDGDSRU5DQJHO  SDUDFDUDFWHUL]DUWDQWRDYLVmR
monetarista quanto a estruturalista, dá bem uma ideia do quanto não acreditava
QRSRGHUGHH[SOLFDomRGHVVDVHVFRODVSDUDH[SOLFDUDLQÁDomREUDVLOHLUDQRVDQRV
8PDQRDQWHVGHSXEOLFDURVHXFOiVVLFR$LQÁDomREUDVLOHLUD, escreveu um
artigo com esse mesmo título em que ironizava a ortodoxia, seja de direita, seja de
esquerda. Nossos ortodoxos monetaristas (de direita), dizia ele, não percebem
que a moeda é passiva, ou seja, é o aumento de preços que leva as autoridades
monetárias a aumentarem a quantidade de moeda e não o contrário. Nossos
ortodoxos estruturalistas (de esquerda), por outro lado, “tomaram a nuvem por
-XQRµDRQmRSHUFHEHUHPTXHpDHVWUXWXUDFRQFHQWUDGDGHLQWHUPHGLDomRTXH
DR QmR UHSDVVDU RV DXPHQWRV GH SUHoRV REWLGRV DR QtYHO GR FRQVXPLGRU ÀQDO
para o produtor, desestimula o aumento da produção por parte deste último e
QmRXPDVXSRVWDLQHODVWLFLGDGHGDRIHUWDDJUtFROD 5DQJHO 
$R FRQYHUJLUHP SDUD D WHVH GDV ´LQHODVWLFLGDGHV GD RIHUWDµ ² RV
monetaristas com base na hipótese do pleno emprego clássica; os estruturalistas
LGHQWLÀFDQGR ´SRQWR GH HVWUDQJXODPHQWRµ QD DJULFXOWXUD  DPEDVDV FRUUHQWHV IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
FRQFOXtUDP HTXLYRFDGDPHQWH WUDWDUVH GH LQÁDomR FDXVDGD SRU H[FHVVR GH

35
Comissão Econômica para a América Latina e Caribe, órgão ligado às Nações Unidas, sediado em
Santiago do Chile, fundada em 1948, tendo à frente o economista argentino Raúl Prebisch, cujo objetivo
principal era desenvolver um marco teórico alternativo (Desenvolvimentismo) para a América Latina,
até então dominado por teorias construídas com base no cenário das nações que detinham a hegemonia
econômica.

36
“[...] Cumpre notar que essa ortodoxia verdadeira não é privilégio nem de esquerda, nem da direita,
sendo, ao contrário, um fundo comum da ciência econômica, pois as equações de Fisher já estavam per-
feitamente formuladas nos parágrafos de Marx, e não há, no mundo moderno, nenhuma ortodoxia mais
verdadeiramente ortodoxa do que a dos economistas soviéticos” (Rangel, 1962:267). Dizer isso hoje é
IiFLOPDVQmRQDTXHODpSRFDHPTXHRFRQÀLWRLGHROyJLFRHQWUHHVTXHUGDHGLUHLWDHUDPXLWRDFLUUDGR

D
D 111
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

GHPDQGD TXDQGR DR FRQWUiULR H[LVWLD LQVXÀFLrQFLD GH GHPDQGD37. O que os


representantes dessas correntes não perceberam é a existência de capacidade
RFLRVDHPDLVDLQGD´TXHDLQÁDomRFUHVFHFRPDFDSDFLGDGHRFLRVDTXDQGR
GHYHUDUHJUHGLUµ 5DQJHO 2TXHRFRUUHpTXHDLQÁDomRVHH[SDQGH
D ´GHPDQGD QRPLQDOµ PDV QmR DOWHUD D ´GHPDQGD D SUHoRV FRQVWDQWHV D
TXDOFRQVHTXHQWHPHQWHQmRpQHPPDLRUQHPPHQRUGRTXHDQWHVµ 5DQJHO
   6H D GHPDQGD UHDO VH DOWHUDVVH FRQGX]LULD D XPD H[SDQVmR GD
renda e não a uma elevação dos preços, conclui Rangel.
3RUTXHSDUD,JQDFLR5DQJHORPRQHWDULVPRQmRSDVVDGHXPD´LOXVmRµ"
3DUDFKHJDUOiUHWRUQHPRVjHTXDomRGHWURFDVGH)LVKHU,QYHUWHQGRRVLJQLÀFDGR
da equação, suponha que a variação no volume de moeda seja determinada
pela elevação dos preços. Nessa hipótese, a igualdade da equação de Fisher
MV=PT se converte na desigualdade MV. Essa hipótese não foi considerada
SHORV PRQHWDULVWDV SRUTXH FRPR VH WUDWD GH XPD ´HTXDomR GH WURFDVµ SDUD
reestabelecer a igualdade entre o lado direito e esquerdo da equação, uma
parte da produção não entraria no mercado, tal que MV=-t), onde t é a parte do
produto físico retirada do mercado. Em concorrência pura, como supõem os
monetaristas, isso não poderia acontecer. Mas numa economia de características
monopolistas como a brasileira, a hipótese de retenção voluntária da oferta ou
de capacidade ociosa planejada passa a ser perfeitamente plausível.
Essa retenção de parte da produção pelas empresas, caso persista
por muito tempo, resultaria em queda da renda real pelo aumento do nível dos
estoques. Se isso não ocorre é porque a elevação dos preços (de P para provoca
alteração no primeiro membro do lado esquerdo da equação de trocas (de M
para ), que poderia ser reescrita como V=T. Em outras palavras, a retirada de
parte do produto do mercado (t), alterando o total de bens e serviços oferecidos
ao mercado para T-t, sustenta o acréscimo no preço A emissão de moeda passa
DVHUSRUWDQWRFRQVHTXrQFLDDRLQYpVGHFDXVDGDLQÁDomR2DXPHQWRGRPHLR
circulante pelo governo, de M para destina-se a suprir as necessidades de caixa
das empresas devido ao alto custo de manutenção de estoques, reestabelecendo
RHTXLOtEULRGDHTXDomRGHWURFDVDXPQtYHOPDLRUGHLQÁDomR2SDSHOGRJRYHUQR
nesse processo, portanto, é passivo38.
37
“Porque a verdade é que o Brasil é um país de baixíssima propensão a consumir – e nem se pode
conceber que seja de outro modo, dado o atual esquema de (má) distribuição de sua renda” (Rangel,
 

38
“Tudo se passa, portanto, como se a sociedade civil, movida por maquiavélica malícia, preparasse
XPDDUPDGLOKDSDUDR(VWDGR(VWHVHUiSUHPLDGRVHGHVHPSHQKDURVHXSDSHOQDWUDJLFRPpGLDGDLQÀD-
ção; e será punido se recusar a fazê-lo” (Rangel, 1978:26).

D
D 112
O problema fundamental, para Ignacio Rangel, é descobrir por que
algumas empresas privadas que dominam o mercado, em certos períodos,
decidem elevar os seus preços – e mais – por que preferem até mesmo não
OHYDUXPDSDUWHGRSURGXWRDRPHUFDGRDRLQYpVGHEDL[DUHPRVSUHoRV"2UDj
medida que nos afastamos do regime de concorrência pura e adotamos a tese
mais realista da concentração de mercado, a manutenção da margem de lucro
(regra do PDUNXS), em períodos de escassez da demanda, passa a ser uma
explicação convincente.
Nesse ponto, a teoria de formação de preços de Ignacio Rangel em muito
se assemelha a de Michal Kalecki, embora não seja certo que ele conhecesse
a obra do economista polonês j pSRFD LQtFLR GRV DQRV   0HVPR QmR
FRQKHFHQGR.DOHFNLDDÀQLGDGHSURYDYHOPHQWHVHGHXSRUTXHDPERVWLYHUDP
o mesmo ponto de partida (Marx). Para Kalecki, a característica normal da
economia é operar com capacidade ociosa devido ao grau de monopolização
das economias capitalistas40. O preço do produto (S) é determinado por uma
margem (PDUNXS) sobre os custos diretos (u), calculado pela equação S PX
+ n , sendo m e n FRHÀFLHQWHVSRVLWLYRVTXHUHSUHVHQWDPDSROtWLFDGHÀ[DomR
GH SUHoRV GD ÀUPD H  R SUHoR GRV GHPDLV FRQFRUUHQWHV QDTXHOH PHUFDGR 2
SRGHUGHPHUFDGRGDHPSUHVDUHÁHWHRVHXJUDXGHPRQRSyOLRGDGRSHODUD]mR
4XDQWRPHQRURSRGHUGHPHUFDGRGDHPSUHVDPDLVSUy[LPRGHGHYHUiVLWXDU
se seu preço e vice-versa41.
Conquanto a escola estruturalista tenha entendido, corretamente, a
LQÁDomRFRPRXPIHQ{PHQRHQGyJHQRWDPEpPSDUD,JQDFLR5DQJHOSURGX]LX
RXWUD´LOXVmRµ$RDVVRFLDURDXPHQWRGRVSUHoRVFRPRV´JDUJDORVµGDHVWUXWXUD
da economia, notadamente a inelasticidade da oferta agrícola, os estruturalistas
inverteram a ordem natural das coisas: a inelasticidade está na demanda e IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
não na oferta. É o intermediário oligopsonista-oligopolista que impede que a

39
A primeira edição de $,QÀDomR%UDVLOHLUD é de 1963, quando a obra do economista polonês era pou-
co conhecida no Brasil. Por esse motivo, no prefácio da 3ª edição (1978), Luiz Carlos Bresser Pereira
não acredita que Ignacio Rangel estivesse familiarizado com a teoria kaleckiana. O próprio Rangel, no
posfácio que escreveu para a edição de 1978, mostrou estar em dúvida a esse respeito. “[...] tanto podia
dizer que sim, como que não” (Rangel, 1978:129).

40
Não é outro o pensamento de Rangel, como pode ser comprovado pela leitura do prefácio do livro
Recursos Ociosos e Política Econômica ;, ³>@RSURJUHVVRQmRGHSHQGHQHFHVVDULDPHQWH
da expansão das forças produtivas, dado que, normalmente (grifo do autor), a sociedade subutiliza as
forças de que dispõe. Assim, quando o marxismo me ensinou que toda crise é crise de superprodução,
disse-me uma antiga novidade”.

41
Ver Kalecki (1983:8).

D
D 113
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

elevação dos preços pagos pelo consumidor seja transferida para o produtor.
Como a elevação de preços deprime o salário real do trabalhador – dado o peso
da alimentação no orçamento das classes de renda mais baixas – o que existe é
uma crônica inelasticidade da demanda e não da oferta.
A parte mais surpreendente do raciocínio de Rangel ainda não foi
desvendada. A redução da demanda não ocorre nos chamados bens-salário e
sim em outros bens, cuja procura é mais elástica do que os alimentos, tais como
vestuário, calçados, etc. Em outras palavras, o aumento da parcela da renda do
trabalhador comprometida com a alimentação provoca um efeito substituição na
estrutura de consumo popular, aumentando o peso dos alimentos em detrimento
de outras mercadorias e serviços menos essenciais. O aumento dos estoques,
SRUWDQWRQmRVHYHULÀFDQRVHJPHQWRGHHPSUHVDVTXHDXPHQWDUDPRVSUHoRV
dos seus produtos e sim nas empresas cuja elasticidade preço da demanda é
maior. Os preços não caem, como supõem os monetaristas, porque a elevação
inicial de preços e a retenção de estoques têm lugar em setores diferentes
do mercado e são estas últimas empresas que recorrem ao sistema bancário
à procura de crédito para manter os estoques que forçam o governo a emitir,
VDQFLRQDQGRDLQÁDomR
'HVIHLWDV DV ´LOXV}HVµ PRQHWDULVWD H HVWUXWXUDOLVWD ,JQDFLR 5DQJHO
passa a expor o seu próprio pensamento a respeito das causas do processo
LQÁDFLRQiULR EUDVLOHLUR GD SULPHLUD PHWDGH GRV DQRV  6XDV UHIHUrQFLDV
WHyULFDVVmR.H\QHVH0DU['RSULPHLURIRLEXVFDURFRQFHLWRGH´SURSHQVmR
PDUJLQDODFRQVXPLUµSDUDH[SOLFDUDSURSRUomRGDUHQGDTXHpJDVWDFRPEHQV
GHFRQVXPR'RVHJXQGRVHDSURSULRXGRFRQFHLWRGH´WD[DGHH[SORUDomRµ²
proporção do excedente ou PDLVYDOLD realizada sobre os salários pagos pelo
trabalho – para entender o processo de concentração de renda no país. Juntando
os dois conceitos, Rangel concluiu que pelo fato da taxa de exploração ser alta é
que a propensão marginal a consumir é baixa.
Um passo mais adiante e Rangel consegue explicar a recorrência de
crises econômicas ou, como costumava chamar, as fases descendentes dos
ciclos econômicos. Na medida em que é apropriada uma fatia maior da PDLV
valia (ou que aumenta a taxa de exploração), as condições para aumento do
LQYHVWLPHQWR WHQGHP D VH GHSULPLU SRU FDXVD GD LQVXÀFLrQFLD GH GHPDQGD
efetiva. Esta queda, por sua vez, resulta do aumento de produtividade não
repassada para os salários. O dilema da economia brasileira reside, para Rangel,
entre escolher entre crescimento cada vez mais acelerado – de forma a ocupar
a grande carga de capacidade ociosa acumulada em seu parque industrial – e a
crise econômica.

D
D 114
)LQDOPHQWH5DQJHOFRQFOXLTXHDLQÁDomRpXPDHVSpFLHGHPHFDQLVPR
de sustentação do nível de crescimento da economia. Para que a economia
cresça é preciso manter um nível mínimo de demanda, o que só é possível
GHYLGRjH[LVWrQFLDGDLQÁDomR$HOHYDomRGHSUHoRVWHPFRPRFRQWUDSDUWLGDD
GHVYDORUL]DomRGDPRHGDHFRPLVVRSURYRFDXPD´FRUULGDDRVEHQVPDWHULDLVµ
promovendo uma elevação forçada dos investimentos pelas empresas e das
FRPSUDV GH EHQV GXUiYHLV SHODV IDPtOLDV GH UHQGD PpGLD H DOWD $ LQÁDomR
portanto, está relacionada com aquilo que de mais estratégico existe para uma
economia, ou seja, a sua própria taxa de formação de capital42.

Ignacio Rangel e a recessão dos anos 80

Consciente de que o Brasil se encontrava na fase descendente do seu


FLFORPpGLRHQGyJHQRTXHSHODSULPHLUDYH]FRLQFLGLDFRPDIDVH´EµGRFLFOR
longo exógeno, o interesse de Rangel volta-se para a conjuntura econômica,
SDUWLFXODUPHQWH QD EXVFD GH VDtGD SDUD D HVWDJÁDomR TXH DVVRORX R SDtV
na década de 80 do último século43. Acertadamente, Rangel previu que a
UHFXSHUDomRGHQmRUHSUHVHQWDYDXPDSDVVDJHPSDUDDIDVHDVFHQGHQWH
do ciclo endógeno e sim um efeito induzido de uma temporária recuperação
PXQGLDOUHODFLRQDGDFRPRGpÀFLWGR7HVRXURQRUWHDPHULFDQR2ÀQDQFLDPHQWR
GRGpÀFLWDMXURVHOHYDGRVVHFRQVWLWXtDQXPYHUGDGHLUR´DVSLUDGRUµGHUHFXUVRV
do resto do mundo, praticamente inviabilizando aos países dependentes
DOWDPHQWH HQGLYLGDGRV ² FRPR R %UDVLO ² GH ÀQDQFLDUHP RV VHXV GpÀFLWV GH
Balanço de Pagamentos. Nesse sentido, a economia brasileira, que contava
com considerável reserva de capacidade ociosa herdada do ciclo anterior, viu-se
forçada a buscar divisas através de superávits na sua balança comercial para IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
FRQWUDEDODQoDUDIDOWDGHÀQDQFLDPHQWRH[WHUQR3RUWDQWRIRLDSHQDVXP
suspiro de recuperação que não duraria muito.
A década de 80 marcou também o início do processo de aumento dos
SUHoRV TXH FXOPLQRX FRP D KLSHULQÁDomR 5DQJHO GLVFRUGDYD GD WHQGrQFLD
GRPLQDQWHHQWUHRVHFRQRPLVWDVGHTXHDLQÁDomRHUDFDXVDGDSRU´H[FHVVRGH

42
³>@9LVWDVREHVVHkQJXORDLQÀDomRVHUHODFLRQDQmRFRPPRYLPHQWRVVXSHU¿FLDLVGDHFRQRPLD
mas com o que há de mais estratégico nela, isto é, com a taxa de capitalização ou de formação de capital”
(Rangel, 1978:32).

43
9HUHVSHFLDOPHQWHRDUWLJR³5HFHVVmRLQÀDomRHGtYLGDLQWHUQD´SXEOLFDGRQRVHJXQGRVHPHVWUHGH
QDRevista de Economia Política YROQMXOVHW 

D
D 115
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

GHPDQGDµHYLDDLQÁDomRFRPXPFRPSRQHQWHGD´VtQGURPHGDUHFHVVmRµ 44.
6RPHQWHVHSRGHULDIDODUHP´DTXHFLPHQWRµGDGHPDQGDQDIDVHDVFHQGHQWH
do ciclo, mas não na fase descendente, quando a demanda é mínima. Ora, na
recessão, a tendência é haver subutilização da capacidade instalada, de modo
que a redução da oferta é, até certo ponto, planejada. Porém, o que leva o
HPSUHViULRDRSHUDUFRPFDSDFLGDGHRFLRVDHJHUDUDXPHQWRGRVSUHoRV"2FRUUH
que, numa economia oligopolizada como a brasileira, quando a capacidade
instalada ultrapassa a demanda, as empresas, defensivamente, reduzem a
oferta e aumentam os preços para manter a sua margem de lucro. Essa é a
explicação.
 4XDQGR5DQJHOGL]TXHDLQÁDomRID]SDUWHGD´VtQGURPHGDUHFHVVmRµ
HOHTXHUGL]HUTXHQmRKiFRPREDL[DUDLQÁDomRVHPDWDFDUDFDXVDGDUHFHVVmR
1HVVH SRQWR HQWUD HP FHQD D ´GLDOpWLFD GD FDSDFLGDGH RFLRVDµ 1D UHFHVVmR
RXIDVH´EµGRFLFORHQGyJHQR H[LVWHXP´SRORGHRFLRVLGDGHµFRPSRVWRGH
atividades que estiveram se modernizando prioritariamente na fase ascendente
GRFLFORHXP´SRORGHDQWLRFLRVLGDGHµGRTXDOID]HPSDUWHDWLYLGDGHVDWUDVDGDV
tecnologicamente e cujo desenvolvimento passa a ser exigido pela sistema
para sair da recessão. O nó a ser desatado consiste em criar condições para
investimento de recursos das empresas daquelas atividades carregadas de
RFLRVLGDGHSDUDRVVHWRUHVUHWDUGDWiULRV4XHVHWRUHVVHULDPHVVHV"2VJUDQGHV
serviços de utilidade pública, como transportes pesados de carga, transportes
de massa de passageiros (metrôs), energia, serviços urbanos, etc. Admitindo
TXHQDpSRFDRVHWRUGHLQWHUPHGLDomRÀQDQFHLUDDLQGDQmRHVWDYDSUHSDUDGR
para transferir poupança de um setor para outro, a solução do problema teria de
passar pela intervenção do Estado.
 2 SUREOHPD VHJXQGR 5DQJHO   DGPLWH GXDV VROXo}HV D  D
poupança privada seria transferida (via dívida pública) para o Estado que
se encarregaria de investir nas atividades retardatárias; b) ao Estado apenas
caberia criar condições propícias ao investimento do setor privado nos serviços
públicos, mediante mudanças no arcabouço legal. Desde logo, Rangel descarta
a primeira alternativa, por se colocar no longo prazo, enquanto o problema exige
solução de curto prazo. Para reforçar seu argumento, lembra que, no limiar de
nossa industrialização, os atuais serviços públicos nasceram como concessões

44
“Trata-se, em suma, de precisar a síndrome da recessão. Os sintomas isolados que compõem essa sín-
drome já se encontram razoavelmente cobertos, mas cada especialista tende a privilegiar o aspecto que,
per faz et nefazREWHYHDVXDDWHQomRSHUGHQGRGHYLVWDDÀRUHVWDSRUFDXVDGDViUYRUHV´ 5$1*(/
D 

D
D 
a empresas privadas, quase sempre estrangeiras45. Posteriormente, o Estado
promoveu a nacionalização desses serviços. Agora, não deverá ser diferente.
Haverá uma redistribuição de responsabilidades entre o setor público e o setor
SULYDGRPDVD´YDULiYHOHVWUDWpJLFDpDSULYDWL]DomRµFRQFOXL5DQJHO.
A retomada do crescimento exigiria, para Rangel, uma reformulação
LQVWLWXFLRQDOGRVHWRUGHLQWHUPHGLDomRÀQDQFHLUDGHPRGRDSRVVLELOLWDUTXHRV
lucros dos setores portadores de capacidade ociosa sejam transformados em
H[FHGHQWHVRFLDODVHUUHLQYHVWLGRHPSURMHWRVFDSD]HVGHHOLPLQDURV´JDUJDORVµ
da economia. A mudança institucional a que se refere Rangel passaria por uma
JHQHUDOL]DomR GR XVR GR ´SRGHU GH DYDOµ GR (VWDGR PXGDQoD QD TXDO R %1'(6
GHYHULD GHVHPSHQKDU ´IXQomRFKDYHµ 47. Mas não basta apenas uma mudança
no arcabouço legal; seria preciso fazer com que as taxas reais de juros se
transformassem de positivas em negativas – como acontecia à época em que os
serviços públicos foram estruturados no Brasil. Aqui a análise de Rangel sofre forte
LQÁXrQFLDGH.H\QHVQDPHGLGDHPTXHFRQVLGHUDTXHRLQYHVWLPHQWRVypYLiYHO
VHDHÀFiFLDPDUJLQDOGRFDSLWDOIRUPDLRUTXHDWD[DGHMXURVGHPHUFDGR
Não resta dúvida que o problema dos juros é o mais difícil de ser resolvido,
GDGRTXHR%UDVLOWDQWRQRÀQDOGRVpFXORSDVVDGRFRPRQRSUHVHQWHVpFXORHVWi
entre os países que apresentam as mais elevadas taxas de juros reais do planeta.
Mas se há algo errado, adverte o mestre, é a existência de taxas reais de juros
fortemente positivas e não o fato de, eventualmente, serem negativas. Segundo
HOHDHÀFiFLDPDUJLQDOGRFDSLWDOGDVHPSUHVDVFRPFDSDFLGDGHRFLRVDpQHJDWLYD
HSHODOyJLFDpHVVDHÀFiFLDTXHGHYHRULHQWDUDWD[DGHMXURV(QWUHDVFDXVDVTXH
contribuíram para que a taxa real de juros se tornasse positiva está o fato de que o
setor público não tem outra garantia a oferecer a não ser o aval do Tesouro. Ora, o
endividamento crescente do Estado e o risco de insolvência deste tornam esse aval IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
de valor discutível, o que explica a existência de taxas reais de juros positivas.

45
Um exemplo de que a economia brasileira ainda não estava preparada para o fornecimento de tais ser-
viços é o da empresa estrangeira Light que, para implantar o serviço de bondes nas grandes cidades, teve
que importar desde o equipamento pesado para a geração e transporte de energia até os próprios bondes
5$1*(/ 

46
“A presente crise deverá desembocar numa solução desse segundo tipo. Isso implicará, numa primeira
etapa, a progressiva participação do capital privado na implantação de projetos rompedores de pontos de
estrangulamento; [...] numa segunda etapa, não é possível excluir a possibilidade, ou de privatização pura e
simples da atividade ou, dependendo das circunstâncias, de conversão dos serviços públicos de administra-
ção direta, ou das empresas públicas, em VHUYLoRVS~EOLFRVFRQFHGLGRVDHPSUHVDVSULYDGDV´ 5$1*(/
1982c: 81).

47
Ib. nota 30, pág. 22.

D
D 117
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

Por uma simples questão de bom senso se chega à conclusão de que


nenhum serviço público será capaz de remunerar a empresa privada com
tarifas compatíveis com as elevadas taxas de juros do mercado. Para que as
WD[DVUHDLVGHMXURVVHMDPPHQRUHVTXHDHÀFiFLDPDUJLQDOGRFDSLWDOLQYHVWLGR
nesses setores, torna-se necessário que o Estado levante recursos, através de
VXD LQÁXrQFLD QR VHWRU ÀQDQFHLUR RX GRV EDQFRV S~EOLFRV H WUDQVÀUDRV SDUD
essas empresas com forte subsídio. Pode parecer que nada terá mudado com a
passagem dos serviços públicos da responsabilidade do Estado para a empresa
privada. Porém, em troca do seu aval, o Estado deixará de comprometer recursos
ÀVFDLV IXWXURV H DLQGD WHUi FRPR JDUDQWLD D KLSRWHFD GRV EHQV SHUWHQFHQWHV
às empresas concessionárias. Em caso de má prestação do serviço público,
poderá o Estado executar a hipoteca do concessionário, inclusive tomando-lhe a
concessão, se for o caso, e negociando-a com outro concessionário.
 (P UHVXPR VHUi SRU HVWD SRUWD TXH QDVFHUi R ´FDSLWDO ÀQDQFHLUR
EUDVLOHLURµLVWRpRFDVDPHQWRHQWUHRFDSLWDOEDQFiULRUHPRGHODGRHRFDSLWDO
LQGXVWULDOLQYHVWLGRQRVVHUYLoRVS~EOLFRV1DDSDUrQFLDQRVVRFDSLWDOÀQDQFHLUR
estará nascendo como capitalismo de Estado. Mas isso não deve ser confundido
com socialismo. Rangel mantém a esperança viva de que o Brasil ainda possa
caminhar para o socialismo, mas não pela via da estatização da economia48.
7UDWDVHVLPSOHVPHQWHGHXPD´UXDGHPmRGXSODµGHXPODGRRVHWRUSULYDGR
não encontrando mercado à altura da capacidade produtiva criada na precedente
fase ascendente do ciclo, recorre ao Estado para resolver seu problema; de outro,
o Estado, prestes a esgotar a sua capacidade de endividamento, vê uma saída
para a falta de recursos na transferência dos serviços públicos para a órbita
SULYDGD(PGHÀQLWLYRFRQFOXL5DQJHO F ´UHVWDDSHQDVRIDWRGHTXH
certas atividades, em cada momento, estão a cargo do setor privado, enquanto
outras integram o setor público. Não necessariamente as mesmas, com o correr
GRWHPSRµ

A guisa de conclusão: Ignacio Rangel, profeta ou visionário?

Ao nos associarmos às comemorações do centenário do nascimento de


XP GRV PDLV RULJLQDLV SHQVDGRUHV EUDVLOHLURV TXH MXt]R SRGHPRV ID]HU GHOH"

48
³6HULDI~WLORXPDOLQWHQFLRQDGRLGHQWL¿FDUHVVHHVWDGRGHFRLVDVFRPRDGYHQWRGRVRFLDOLVPR2
Brasil, por certo, caminha também para o socialismo, mas não pela via da mera estatização da economia,
WDQWRPDLVTXDQWRHVWDFRPR¿FRXGHPRQVWUDGRpXPDUXDGHPmRGXSODQDTXDORFDSLWDOLVPRSULYDGR
tem ressurgido sempre das próprias cinzas”. Ibid., nota 31, pág. 81.

D
D 118
3URIHWDRXYLVLRQiULR",JQDFLR5DQJHOHUDXPSRXFRGHFDGDFRLVD7DQWRSRGHULD
ser visto como um indivíduo que prediz o futuro, quanto como um sonhador.
A simples comparação com o presente, que emerge da leitura das seções
precedentes deste texto, revela um Ignacio Rangel profeta. Previu, com cerca
de duas décadas de antecedência, a privatização dos serviços públicos ou a
concessão de serviços públicos à empresa privada, iniciada durante o governo
de Fernando Henrique Cardoso e que chegou, em menor ou maior grau, até o
governo Dilma Rousseff. Tinha também sonhos, que alguns podem considerar
como utopias, como sua inabalável convicção de que o Brasil caminhava para
o socialismo, embora talvez não no sentido comumente associado à palavra.
6XD YLVmR GH VRFLDOLVPR QmR HUD VLQ{QLPR GH ´HVWDWLVPRµ SRLV DFUHGLWDYD
que os ciclos exógenos (das economia centrais) e endógenos (determinados
SHOD´GLDOpWLFDGDFDSDFLGDGHRFLRVDµ PDLVDHVFDVVH]GHUHFXUVRVS~EOLFRV
impunham limites a atuação do Estado no sistema de economia de mercado.
Daí haver necessidade da parceria do capital público-privado – sempre com o
controle do primeiro –, alternando as suas áreas de atuação ao longo do ciclo
HFRQ{PLFRVHMDSDUDURPSHUFRPDVIDVHV´EµGRVFLFORVHQGyJHQRVVHMDSDUD
galgar mais rapidamente as etapas do desenvolvimento, o qual pressupõe
avanço tecnológico e justiça social.
 0DLV LPSRUWDQWH GR TXH WUDoDU R SHUÀO GH , 5DQJHO FHUWDPHQWH
multifacetado, é resgatar a sua contribuição no terreno da economia, de sorte que
possa servir de inspiração para as novas gerações de economistas, assim como
foi para a formação deste articulista50. Formado em Direito, Rangel foi, ao longo
49
Ignacio Rangel já pensava globalmente numa época em que a globalização ainda não fazia parte da
agenda dos economistas.

50
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
7RPHLFRQKHFLPHQWRGDWHRULDGDLQÀDomRGH,5DQJHOSRURFDVLmRGDHODERUDomRGDPLQKDGLVVHUWD-
omRGHPHVWUDGR 3(5(,5$ GHIHQGLGDQD8)5*6DRSHVTXLVDUDLQÀXrQFLDGDDOLPHQWDomRQD
LQÀDomREUDVLOHLUDQRVDQRV1DpSRFD LQtFLRGRVDQRV RUHJLPHPLOLWDUMi³ID]LDiJXD´HRGHEDWH
VREUHDVFDXVDVGDLQÀDomRDVVXPLDXPFRQWRUQRFODUDPHQWHLGHROyJLFRHQWUHHVWUXWXUDOLVWDV HVTXHUGD 
e monetaristas (direita). O livro $,QÀDomR%UDVLOHLUD, de I. Rangel, que havia sido recentemente (1978)
UHHGLWDGRDEULDXPDQRYDSHUVSHFWLYDGHLQWHUSUHWDomRGDLQÀDomRFRPrQIDVHQDHVWUXWXUDFRQFHQWUDGD
GHFRPHUFLDOL]DomRGHSURGXWRVDJUtFRODV(PTXDQGR5DQJHOGHXXPDSDOHVWUDQD8)5*6SRU
ocasião do lançamento do seu livro Ciclo, Tecnologia e Crescimento, conheci-o pessoalmente. Na oca-
sião (11/08/1982), no curto diálogo que tivemos enquanto ele dava o autógrafo, mencionou que o meu
sobrenome lhe trazia à lembrança um amigo muito querido (referia-se a Jesus Soares Pereira, já falecido,
que, junto com Rangel, teve um papel importante na criação de grandes empresas estatais brasileiras,
como a Petrobrás e a Eletrobrás). Cerca de uma década depois, quando fazia meu doutoramento, na
8)3(QR5HFLIHRFRRUGHQDGRUGD3yV*UDGXDomRTXHQRFDVRHUDWDPEpPPHXRULHQWDGRU &DUORV
Osório de Cerqueira), trouxe Rangel para uma conversa com os estudantes. Daí surgiu a ideia de escre-
ver uma “comunicação” sobre os 30 anos da 1ª edição do seu livro $,QÀDomR%UDVLOHLUD, publicada pela
Revista de Economia Política (v.3, n.13, jul-set/1993). Meu derradeiro encontro com I. Rangel se deu

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

de sua vida, um autodidata. Apreendeu economia por conta própria, começando


SRU0DU[DWpWRUQDUVHXPGHVHQYROYLPHQWLVWDVXSRVWDPHQWHLQÁXHQFLDGRSHOD
OHLWXUDGH.H\QHVQR~QLFRFXUVRIRUPDOTXHIUHTXHQWRX VREUHSODQHMDPHQWR 
na CEPAL, no Chile. Ao contrário daqueles que se dizem “economistas de
HVTXHUGDµ PDV TXH SHUGHUDP D FDSDFLGDGH FUtWLFD 5DQJHO QXQFD GHL[RX GH
pensar dialeticamente. Do mesmo modo, sem menosprezar a importância do
PHUFDGR MDPDLV VH GHL[RX LQÁXHQFLDU SHODV WHVHV GRV ´IXQGDPHQWDOLVWDV GR
PHUFDGRµWmRHPYRJDQRVGLDVGHKRMH

5HIHUrQFLDV

%,(/6&+2:6.< 5LFDUGR 3HQVDPHQWR (FRQ{PLFR %UDVLOHLUR. Rio de Janeiro:


&RQWUDSRQWR
BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Rangel, um grande mestre. )ROKDGH6mR3DXOR,
VHJXQGRFDGHUQRS
CARDOSO DE MELLO, J.M. 2FDSLWDOLVPRWDUGLR6mR3DXOR%UDVLOLHQVH
CASTRO, Antonio Barros de. $HFRQRPLDEUDVLOHLUDHPPDUFKDIRUoDGD. Rio de
-DQHLUR3D]H7HUUD
CONCEIÇÃO TAVARES, Maria da. 'DVXEVWLWXLomRGHLPSRUWDo}HVDRFDSLWDOLVPR
ÀQDQFHLUR5LRGH-DQHLUR=DKDU
FURTADO, Celso. )RUPDomR (FRQ{PLFD GR %UDVLO. 20ª edição. São Paulo: Cia.
(GLWRUD1DFLRQDO
KALECKI, Michal. 7HRULD GD 'LQkPLFD (FRQ{PLFD  &ROHomR ´2V (FRQRPLVWDVµ
6mR3DXOR$EULO&XOWXUDO
PEREIRA, José Maria Dias. $SDUWLFLSDomRGDDOLPHQWDomRQDLQÁDomREUDVLOHLUD
nos anos 703RUWR$OHJUH)(( VpULH´WHVHVµQ 
BBBBBB2VWULQWDDQRVGH$,QÁDomR%UDVLOHLUDGH,JQDFLR5DQJHO,Q5HYLVWDGH
Economia PolíticaYQ  6mR3DXOR%UDVLOLHQVHMXOKRVHW

há cerca de um ano antes de seu falecimento (ocorrido em 04/03/1994). Embora com a saúde debilitada,
Rangel aceitou o convite para fazer uma palestra, na instituição em que eu trabalhava (UFSM), se não
PHHQJDQRSRURFDVLmRGD³VHPDQDGRHFRQRPLVWD´)DODYDFRPGL¿FXOGDGHPDVFRPRHQWXVLDVPRGH
sempre. Deixou um legado de valor inestimável, mas pouco reconhecido. Ao escrever o presente texto,
além do propósito de homenagear o grande mestre expondo suas principais ideias, o autor pretendeu
também a ajudar a reparar essa injustiça.

D
D 120
RANGEL, Ignacio Mourão. $LQÁDomREUDVLOHLUD,Q,QÁDomRH'HVHQYROYLPHQWR
5LRGH-DQHLUR9R]HV H[WUDtGRGH´(FRQ{PLFD%UDVLOHLUDµDEULOMXQKR 
______. $LQÁDomREUDVLOHLUDHG6mR3DXOR%UDVLOLHQVH
______. 5HFXUVRVRFLRVRVHSROtWLFDHFRQ{PLFD6mR3DXOR+XFLWHF
BBBBBB $ TXHVWmR ÀQDQFHLUD ,Q 5HYLVWD GH (FRQRPLD 3ROtWLFD, v.1, n.1. São
3DXOR%UDVLOLHQVHMDQHLURPDUoR
______. A história da dualidade brasileira. In: 5HYLVWDGH(FRQRPLD3ROtWLFD, v.1,
Q6mR3DXOR%UDVLOLHQVHRXWXEURGH]HPEUR
______. 2%UDVLOQDIDVH´EµGRž.RQGUDWLHII. In: Ciclo, tecnologia e crescimento.
5LRGH-DQHLUR&LYLOL]DomR%UDVLOHLUD
______. $VtQGURPHGDUHFHVVmREUDVLOHLUD. In: Ciclo, tecnologia e crescimento.
5LRGH-DQHLUR&LYLOL]DomR%UDVLOHLUDD
______. 2 GLUHLWLVPR GD HVTXHUGD. In: Ciclo, tecnologia e crescimento. Rio de
-DQHLUR&LYLOL]DomR%UDVLOHLUDE
______. $TXHVWmRÀQDQFHLUD. In: Ciclo, tecnologia e crescimento. Rio de Janeiro:
&LYLOL]DomR%UDVLOHLUDF
______. 'XDOLGDGHHFLFORORQJR. In: 5HYLVWDGH(FRQRPLD3ROtWLFD, v.4, n.1. São
3DXOR%UDVLOLHQVHMDQHLURPDUoR
______. 5HFHVVmR LQÁDomR H GtYLGD H[WHUQD In: 5HYLVWD GH (FRQRPLD 3ROtWLFD,
YQ6mR3DXOR%UDVLOLHQVHMXOKRVHWHPEUR
______. 2TXDUWRFLFORGH.RQGUDWLHII. In: 5HYLVWDGH(FRQRPLD3ROtWLFD, v.10, n.4.
6mR3DXOR%UDVLOLHQVHRXWXEURGH]HPEUR
SUNKEL, Osvaldo. 8P HVTXHPD JHUDO SDUD DQiOLVH GD LQÁDomR ,Q ,QÁDomR H IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
'HVHQYROYLPHQWR 5LR GH -DQHLUR 9R]HV H[WUDtGR GH ´(FRQ{PLFD %UDVLOHLUDµ
MXOKRGH] 

D
D 121
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

Um mestre da economia brasileira:


Ignacio Rangel revisitado
/XL]&DUORV%UHVVHU3HUHLUD
-RVp0iUFLR5HJR

Poucos cientistas sociais estudaram a economia brasileira de maneira tão


LQRYDGRUDFRPR,JQDFLR5DQJHO  (OHDOLRXDXPDJUDQGHFULDWLYLGDGH
DRXVDGLDGHDÀUPDUHDFDSDFLGDGHDQDOtWLFDGHVXVWHQWDUDYDOLGDGHGHVXDV
propostas. Rangel foi provavelmente o mais original analista do desenvolvimento
econômico brasileiro. Apenas Celso Furtado teve uma contribuição comparável na
análise da dinâmica da economia brasileira. Formado em direito, autodidata em
economia, intelectual sempre preocupado com a prática, com as transformações
do mundo em que viveu, seu pensamento nem sempre seguia as normas da
academia. Era, porém, um pensamento poderoso e profundamente engajado
no desenvolvimento nacional. No exterior provavelmente Rangel nunca será
conhecido, embora pelo menos uma de suas contribuições tenha valor universal:
a tese da moeda endógena. Rangel foi antes de tudo um economista nacional,
formado, primeiro, no marxismo, e, nos anos 50 na escola nacionalista do Instituto
Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e na escola estruturalista da Comissão
Econômica para a América Latina (CEPAL). Foi um pensador profundamente
LQÁXHQFLDGRSRU0DU[.H\QHVH6FKXPSHWHUTXHHOHVRXEHLQWHJUDUGHPDQHLUD
muito pessoal. É um economista que sempre se distinguiu pelo pioneirismo,
pela criatividade, pelo pensamento independente. Na segunda metade dos
DQRV  SRU H[HPSOR TXDQGR YLJRURX HQWUH RV HFRQRPLVWDV HVWUXWXUDOLVWDV
XPD LQWHUSUHWDomR HVWDJQDFLRQLVWD 5DQJHO QmR VH GHL[RX LQÁXHQFLDU &RPR
DÀUPRX &RQFHLomR 7DYDUHV ´XP GRV SRXFRV HFRQRPLVWDV EUDVLOHLURV GH PHX
conhecimento que não participava dessa visão era Ignacio Rangel, ao qual
devo as mais importantes intuições sobre a natureza do problema central da
acumulação naquele período de transição (...). Assim mesmo, relendo-o hoje,
YHULÀFR TXH PHX PRGHVWR HQVDLR QmR ID] MXV à imaginação e vigor criativo de
5DQJHOµ  (VVDLPDJLQDomRFULDGRUDpXPDFDUDFWHUtVWLFDIXQGDPHQWDO
de seu pensamento.

D
D 122
1mRREVWDQWHVHXYDORUQDVHJXQGDPHWDGHGRVDQRVHQDSULPHLUD
metade dos anos 70 a obra de Ignacio Rangel foi relegada, por circunstâncias
políticas e pessoais, ao ostracismo, evidenciado na falta de reedição de seus
livros já esgotados. Seu clássico $ ,QÁDomR %UDVLOHLUD, por exemplo, que havia
WLGRGXDVHGLo}HVHVJRWDGDVQRPHVPRDQRGHOHYRXTXLQ]HDQRVSDUD
UHFHEHU D WHUFHLUD HGLomR $ SDUWLU GH  SRUpP LQWHQVLÀFRXVH R SURFHVVR
de reavaliação de suas contribuições para o pensamento econômico brasileiro
FRPRVWH[WRVGH)HUQDQGR&DUGLPGH&DUYDOKR  %UHVVHU3HUHLUD  
:LOVRQ&DQR  3DXOR'DYLGRII&UX]  3DXOR3UHVJUDYH/HLWH6RDUHV
  *XLGR 0DQWHJD   5LFDUGR %LHOVFKRZVN\   0DULD +HOHQD
&DVWURH5LFDUGR%LHOVFKRZVN\  HQWUHRXWURV1RERMRGHVVHSURFHVVRH
no reconhecimento de ter sido um dos fundadores do pensamento econômico
brasileiro, quando foi criada a 5HYLVWDGH(FRQRPLD3ROtWLFDHP,JQDFLR
Rangel foi considerado um de seus patronos, ao lado de Caio Prado Jr. e Celso
Furtado.
Também o próprio Rangel, após graves problemas de saúde,51 voltou nos
anos 70 à sua produção com a inteligência e o vigor que lhe eram característicos.
Cremos que seu primeiro aparecimento em reunião de economistas ocorreu na
reunião da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) em São Paulo.
Depois de muito tempo desaparecido, ele trouxe um artigo baseado na teoria dos
ciclos de Kondratieff, onde ele previa que em breve a economia mundial entraria
em uma grande crise, embora naquele momento no Brasil vivêssemos em ritmo
de milagre, e no resto do mundo as taxas de crescimento continuassem muito
IDYRUiYHLV /HPEUDPRV GD GHVFRQÀDQoD TXH DV LGHLDV GH 5DQJHO SURYRFDUDP
nos economistas presentes, mesmo nos economistas estruturalistas. Mais uma
vez Rangel estava confrontando o saber convencional tanto neoclássico quanto
HVWUXWXUDOLVWD (QWUHWDQWR QR DQR VHJXLQWH VXDV SUHYLV}HV VH FRQÀUPDYDP DR IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
GHVHQFDGHDUVH D FULVH D SDUWLU GR SULPHLUR FKRTXH GR SHWUyOHRGH  1RV
YLQWHDQRVGHSRLVGHDVWD[DVGHFUHVFLPHQWRQRSULPHLURPXQGRIRUDPD
PHWDGHGRTXHIRUDPQRVYLQWHDQRVDQWHULRUHVHGHSRLVGHFRQWLQXDUDP
LQIHULRUHV jV GRV DQRV GRXUDGRV GR FDSLWDOLVPR (P  %UHVVHU3HUHLUD
promoveu a publicação da terceira edição de $,QÁDomR%UDVLOHLUD, na qual incluiu

51
³)HOL]PHQWHRFDUGLRORJLVWDTXHHPSURJQRVWLFRXPHQDVHTXrQFLDGHXPHQIDUWHXPDYLGD
muito breve, estava equivocado, porque hoje ainda aqui estou, com uma sobrevida razoavelmente sau-
dável e laboriosa... Eis que a história, nada menos, brindou-me com outro régio presente: o prazer de
conhecer e de conviver com a geração que se supunha perdida por efeito do golpe de Estado de 1964...
Muitos deles me desvanecem apresentando-se como meus discípulos e estão atentos ao que digo e
escrevo... Estou tendo, pois, a alegria de conhecer o julgamento dos meus pósteros, sem ter-me dado o
trabalho e o desprazer de morrer”. (Rangel, 1987: 7)

D
D 123
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

XPH[WUDRUGLQiULRSRVIiFLR$VVLPDTXDVH´FRQVSLUDomRGRVLOrQFLRµLPSHUDQWH
HPWRUQRGHVXDREUDSRUDOJXQVDQRVGHXOXJDUDXPHQWXVLDVPRTXHIUXWLÀFRX
em novos trabalhos transformados em livros, bem como na reedição de outros
livros já esgotados.
'LYLGLPRV HVWH DUWLJR HP FLQFR VHo}HV 1D SULPHLUD XP SHUÀO
ELRELEOLRJUiÀFR1DVHJXQGDVHomRVXDPHWRGRORJLDEHPFRPRDSHUVSHFWLYD
cíclica. Na terceira seção, sua teorização sobre o ciclo longo, e na quarta, sobre
a dualidade, os dois instrumentos fundamentais que utilizou em sua análise da
economia brasileira. Finalmente, na quinta seção, a abordagem de Rangel sobre
RVSUREOHPDVGDLQÁDomRGDHFRQRPLDEUDVLOHLUDDSDUWLUGDVXDYLVmRVREUHD
capacidade ociosa e os ciclos decenais ou de Juglar. Em todo o texto procuramos
recorrer, sempre que possível, às palavras do próprio autor.

%UHYHELRELEOLRJUDÀD

,JQDFLRGH0RXUmR5DQJHOQDVFHXDGHIHYHUHLURGHHP0LUDGRU
no Estado do Maranhão. Sendo seu bisavô, seu avô e seu pai juízes de direito,
também foi educado para ser juiz. Desde a década de vinte, Rangel lia muito.
Seu pai, José Lucas Mourão Rangel, era um magistrado esclarecido, sempre em
oposição ao governo. Em consequência, era nomeado para comarcas pequenas
RQGHPXLWDVYH]HVQmRKDYLDHVFROD,VVRIH]GHOHRSUHFHSWRUGHVHXVÀOKRV
A tradição familiar de Rangel, sua personalidade, bem como suas leituras
LQÁXHQFLDPQRDSHJDUHPDUPDVFRPDSHQDVDQRVSDUDDMXGDUDGHUUXEDUR
Governo Federal.
Ainda no início dos anos 30 começa a ler Marx. A partir de então, torna-se
militante do Partido Comunista Brasileiro e participa da tentativa de tomada de
SRGHUHP'HUURWDGRIRLSUHVRHP6mR/XtVHHQYLDGRDR5LRGH-DQHLUR
RQGHÀFDSRUGRLVDQRV1RSHUtRGRGHSULVmRFULDFRPFRPSDQKHLURVGHSUHVtGLR
XPVLVWHPDGHXWLOL]DomRGHOLYURVGHIRUDSDUDRIXQFLRQDPHQWRGHWUH]H´FXUVRVµ
HQWUHRVTXDLVVRFLRORJLDPDWHPiWLFDHHFRQRPLD/LEHUWDGRHPÀFDQR
entanto, proibido de se afastar da cidade de São Luís.
(P DEULO GH  RV MRUQDLV GR 0DUDQKmR SXEOLFDP R SURJUDPD GD
1a. Conferência das Classes Produtoras (CONCLAP) que seria realizada em
Teresópolis, Rio de Janeiro. Rangel, além de escrever dois trabalhos para a
&21&/$3 p FKDPDGR SDUD FKHÀDU D DVVHVVRULD GD $VVRFLDomR &RPHUFLDO GR
Maranhão, que representaria esse Estado no evento. A participação no evento das

D
D 124
classes produtoras em Teresópolis faz o chefe de polícia de São Luís lhe fornecer
XPDQRYDFDUWHLUDGHLGHQWLGDGHHSHUPLWLUHQÀPVXDVDtGDGR0DUDQKmR'R
Rio de Janeiro escreve para sua mulher discutindo a possibilidade de não voltar
para São Luís, recebendo dela encorajamento para começarem uma nova fase
de suas vidas na então Capital Federal. Rangel começa a trabalhar no Rio de
Janeiro como tradutor de novelas policiais. Em seguida, também como tradutor,
trabalha para a agência de notícias Reuters. Seus trabalhos de tradução
eram sempre de meio expediente. O outro meio expediente era em sua casa.
´4XDQGRFDOFXODYDTXHDVGHVSHVDVPHQVDLVHVWDYDPFREHUWDVSDUDYDFRPDV
WUDGXo}HVSDUDHVWXGDUHFRQRPLDHPWHPSRLQWHJUDODWpRÀQDOGRPrVµ 
 (PUHFHEHDYLVLWDGHXPDPLJRHPRVWUDDHOHDOJXQVDUWLJRVVREUH
economia que escrevia somente para sistematizar suas ideias. Cinco deles são
selecionados e vendidos por esse amigo para a Associação Comercial do Rio de
Janeiro. A partir desse primeiro dinheiro que Rangel ganha como economista,
inicia uma intensa produção de artigos para publicação.
(P5DQJHOpDSUHVHQWDGRD5{PXORGH$OPHLGDTXHFKHÀDYDD
assessoria da Confederação Nacional da Indústria e passa a trabalhar com ele.
(PGDGDDTXDOLGDGHGHVHXWUDEDOKRHRLQWHUHVVHGHVSHUWDGRSHORVVHXV
LQ~PHURVDUWLJRVSXEOLFDGRVDSDUWLUGHVHXQRPHIRLVXJHULGRSRU5{PXOR
de Almeida ao então Presidente Vargas, que o convida para sua assessoria. Assim,
HP5DQJHOSDVVDDID]HUSDUWHGRVHOHWRHFRHVRJUXSRGHDVVHVVRUHVGH
Vargas, grupo este muito prestigiado pelo Presidente. Nessa assessoria, entre
inúmeras tarefas, colabora na elaboração do projeto da Petrobrás e da Eletrobrás.
(P  DOpP GH WUDEDOKDU LQWHQVDPHQWH QD DVVHVVRULD GH 9DUJDV
Rangel escreve seu primeiro livro, $'XDOLGDGH%iVLFDGD(FRQRPLD%UDVLOHLUD,
SXEOLFDGR HP  *XHUUHLUR 5DPRV XP GRV PDLV LPSRUWDQWHV VRFLyORJRV IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
brasileiros, antevendo a importância de Rangel nas ciências sociais do Brasil,
registra, no seu prefácio ao livro, que este “é um marco na história das ideias do
QRVVRSDtVµ  2JUDQGHVRFLyORJRTXHQHVWDpSRFDHVWDYDHVFUHYHQGR
um dos textos fundamentais da sociologia brasileira ($ 5HGXomR 6RFLROyJLFD),
fora companheiro de Rangel no Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia
H 3ROtWLFD ,%(63  TXH HP  VH WUDQVIRUPDUD QR ,QVWLWXWR %UDVLOHLUR GH
Estudos Econômicos e Sociais (ISEB). Nesses dois institutos um grupo de
intelectuais, entre os quais se salientavam, além do economista Rangel e do
sociólogo Guerreiro Ramos, os cientistas políticos Hélio Jaguaribe e Cândido
0HQGHV GH $OPHLGD R KLVWRULDGRU 1HOVRQ :HUQHFN 6RGUp SHUWHQFHQWH DR
3DUWLGR&RPXQLVWD HRVÀOyVRIRVÉOYDUR9LHLUD3LQWRH5RODQG&RUELVLHUKDYLDP
desenvolvido um pensamento poderoso e original sobre a evolução econômica,

D
D 125
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

política e social do Brasil, transformando-se, juntamente com Celso Furtado, que


teve uma rápida passagem pelo ISEB, nos principais analistas e ideólogos do
projeto nacional de industrialização que então se desenrolava no Brasil. Rangel,
como o mais importante economista do grupo, tinha um papel fundamental
nesse processo. Por outro lado, conjuntamente com outros técnicos, prestava
sua contribuição ao governo, ajudando a formular e administrar o projeto
nacional em curso. Provavelmente pensando nisto, ao mesmo tempo que
DVVLQDODYD VXD DGPLUDomR SRU 5DQJHO *XHUUHLUR 5DPRV DÀUPD  ´1R GRPtQLR
das ciências sociais tivemos um pensamento nacional em primeiro lugar graças
à contribuição dos economistas. Só posteriormente a nossa sociologia tomou,
não sem lutas, o caminho já escolhido pelos nossos economistas... O público,
mesmo especializado, não está informado sobre as verdadeiras proporções da
transformação por que estão passando, na prática, a economia e a sociologia
no Brasil. O que, em forma impressa ultrapassa o âmbito dos serviços técnicos
GiDSHQDVSiOLGDLGHLDGRWHRUGDHIHWLYDSURGXomRGHSURÀVVLRQDLVHPLQHQWHV
pela contribuição que vêm prestando à ciência social brasileira, no exercício de
funções técnicas. A importância das tarefas que desempenham, provada na
prestação efetiva de serviços absorventes, não lhes deixa tempo para realizar
uma carreira de escritores. Tudo parecia concorrer para que Ignacio Rangel,
também absorvido por tarefas concretas, fosse impedido de cumprir sua missão
de escritor. Esse ano, porém, publica três livros. O aparecimento dessas obras
HVWHQGHUiDFLFORVPDLVDPSORVDLQÁXrQFLDTXHVHXDXWRUYHPH[HUFHQGRHP
TXDGURVUHVWULWRVHSURÀVVLRQDLVµ  
$SyV UHGLJLU VXD WHVH GD GXDOLGDGH HP  5DQJHO YDL SDUD R &KLOH
RQGH ÀFD RLWR PHVHV UHDOL]DQGR XP FXUVR GH SyVJUDGXDomR SDWURFLQDGR
SHOD &(3$/ ÀQGR R TXDO HVFUHYH VXD PRQRJUDÀD (O 'HVDUUROOR (FRQyPLFR HQ
%UDVLO cuja versão brasileira foi ,QWURGXomR DR 'HVHQYROYLPHQWR (FRQ{PLFR
%UDVLOHLUR  (PLQJUHVVDQR%1'(RQGHDÀQDOHQFRQWURXXPDEULJR
SURÀVVLRQDO j DOWXUD GH VXD FRPSHWrQFLD H RQGH PDLV WDUGH VH WRUQRX &KHIH
do Departamento Econômico. Realiza, então, dois trabalhos inspirados pelos
problemas que a análise de projetos que realizava no BNDE suscitava: o longo
artigo “Desenvolvimento e Projetoµ  HROLYUR(OHPHQWRVGH(FRQRPLDGR
Projetamento  
(P5DQJHOSXEOLFD$SRQWDPHQWRVSDUDRR3ODQRGH0HWDV. No
período em que já se encontrava no BNDE, publica $4XHVWmR$JUiULD%UDVLOHLUD
E  H HP  TXDQGR D LQÁDomR VH HOHYDYD QR %UDVLO HQTXDQWR D
economia estava em crise, seu livro clássico, $ ,QÁDomR %UDVLOHLUD (P 
após a saída de Carvalho Pinto, é convidado pelo Presidente João Goulart para

D
D 
VHU0LQLVWURGD)D]HQGDFRQYLWHTXHQmRDFHLWD  2JROSHGH(VWDGRGH
RDWLQJHSURIXQGDPHQWH(P5DQJHOpDFRPHWLGRGHXPHQIDUWHHVH
OLFHQFLDGR%1'(5HWRPDDSURGXomRGHWH[WRVVyHP9ROWDDR%1'(HP
condições especiais, porque os médicos nunca lhe deram alta. Aposenta-se em
PDVFRQWLQXDDGDUFRQVXOWRULDDR%DQFRDWpDYpVSHUDGR*RYHUQR&ROORU
Publicou ainda as coleções de ensaios - Recursos Ociosos e Política Econômica
  &LFOR 7HFQRORJLD H &UHVFLPHQWR    (FRQRPLD 0LODJUH H $QWL
milagre  TXHpXPDDQiOLVHGDHFRQRPLDEUDVLOHLUDQRSHUtRGRDXWRULWiULR,
(FRQRPLD %UDVLOHLUD &RQWHPSRUkQHD   H 'R 3RQWR GH 9LVWD 1DFLRQDO
 , que reuniu os artigos que escreveu para a sua coluna diária com esse
título no jornal Última HoraGR5LRGH-DQHLURHQWUHH1RLQtFLRGRV
DQRV  D 8QLYHUVLGDGH GR 0DUDQKmR SXEOLFRX XPD HQWUHYLVWD ELRJUiÀFD GH
5DQJHO  'HVGHSXEOLFRXGLYHUVRVDUWLJRVQD5HYLVWDGH(FRQRPLD
PolíticaHQWUHRVTXDLV´$KLVWyULDGDGXDOLGDGHEUDVLOHLUDµ D H´5HFHVVmR
LQÁDomRHGtYLGDH[WHUQDµ F QRTXDOHOHGHÀQLUiD´FXUYDGH5DQJHOµHVH
tornou colaborador assíduo da )ROKDGH6mR3DXOR

Metodologia

O método utilizado por Rangel para analisar a economia brasileira


sempre foi essencialmente histórico. Sua origem marxista é evidente. Mas
Rangel usa Marx com absoluta liberdade. O materialismo histórico e dialético é
uma arma heurística poderosa, quando utilizada não como uma receita pronta,
mas como um verdadeiro instrumento de pensamento. Guerreiro Ramos, no
SUHIiFLRMiFLWDGRDÀUPDRFDUiWHUKLVWyULFRGRPpWRGRGH5DQJHOPDVREVHUYD
que, diferentemente da maioria dos cientistas sociais que utilizaram esse IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
método para analisar a sociedade e a história brasileiras, Rangel não se deixa
levar por uma postura ideológica romântica em relação à burguesia, não aplica
o método mecanicamente através da simples transposição das fases históricas
RFRUULGDVQD(XURSDTXH0DU[HVWXGRXQmRHVTXHFHMDPDLVGDVHVSHFLÀFLGDGHV
da economia brasileira. Nestes termos, Rangel, “adotando o método histórico,
conserva, no entanto, uma posição de severo objetivismo, isto é, não sucumbe à
tentação de invectivar os fatos. E porque domina o emprego desse método, não
se submete a conclusões pré-fabricadas e procura pensar o processo brasileiro
diretamente, induzindo, dos fatos que examina em primeira mão, as observações
TXHIRUPXODµ *XHUUHLUR5DPRV 
Para Rangel é necessário não apenas analisar a realidade econômica

D
D 127
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

como um processo histórico, mas também entender a ciência econômica como


uma ciência histórica por excelência, obrigada, portanto, a uma permanente
mudança e atualização à medida que os processos históricos evoluem. Utilizando
FDWHJRULDVNDQWLDQDV5DQJHODÀUPDTXHDFLrQFLDHFRQ{PLFDHVWiVXEPHWLGDD
um processo evolutivo duplo: o fenomenal (“como representação, como ideia da
FRLVDFRPRFRLVDSDUDQyVQRVHQWLGRNDQWLDQRµ HRQRPHQDO ´FRPRREMHWR
FRLVDUHSUHVHQWDGDFRLVDHPVLµ 1RSULPHLURSURFHVVR´FDGDQRYDWHRULDVXUJH
como resultado de uma representação da realidade transcendente, a qual,
implicitamente, permaneceria sempre igual a si mesma. Assim, por exemplo,
D DQiOLVH VPLWKLDQD VHULD HP FRPSDUDomR FRP D ÀVLRFUiWLFD DSHQDV XPD
UHSUHVHQWDomRPDLVSHUIHLWDTXHFRQVLGHUDFHUWDVIDFHWDVTXH4XHVQD\HVHXV
DPLJRVKDYLDPGHL[DGRQDVRPEUDSRULJQRUkQFLDRXLQDGYHUWrQFLDµ  
Destaca Rangel que, ao se admitir que cada nova teoria incorpora
R TXH KDYLD GH GHÀQLWLYR QDV DQWHULRUHV ´SRGHUtDPRV OLPLWDU QRVVR HVWXGR
apenas à teoria mais recente, ao GHUQLHUFUL dos arraiais da ciência econômica...
As discrepâncias entre a teoria mais recente e as anteriores seriam apenas
expressão do que nas primitivas havia de errôneo. Tornou-se moda, por exemplo,
IDODUVH QR HUUR GRV FOiVVLFRV QR HUUR GRV ÀVLRFUDWDV SDUD GHVLJQDU HVVDV
GLVFUHSkQFLDVµ  1HVVHSRQWR5DQJHOHVWiFKDPDQGRDDWHQomRSDUD
D QRomR GH ´IURQWHLUD GR FRQKHFLPHQWRµ VHJXQGR D TXDO D KLVWyULD SDVVDGD
da ciência que resultou no seu estado atual não precisaria ser revisitada, pois
suas contribuições positivas já estão incorporadas ao estado atual da ciência.
$´QRomRGHIURQWHLUDµFRQIRUPHREVHUYDFULWLFDPHQWH$ULGDWRUQDDKLVWyULDGR
pensamento econômico desnecessária do ponto de vista do progresso da teoria,
pois “se todas as contribuições positivas do passado encontram-se assimiladas
ao estado presente da teoria, a história do pensamento converte-se em uma
história de erros e antecipações. Erros quando a doutrina que se presumira
verdadeira no passado afasta-se substantivamente daquela que integra o estado
DWXDOGDWHRULDµ  
Coerente com seu método, Rangel defende uma atitude mais respeitosa
para com o que os antigos pensaram, ao mesmo tempo que está claro o caráter
historicamente condicionado do seu pensamento. “Esse pensamento... continha
uma espécie de verdade que não passou às teorias mais recentes pelo simples
IDWRGHTXHUHÁHWLDXPDUHDOLGDGHTXHGHL[RXGHH[LVWLUTXHVHWUDQVIRUPRXSRU
VHXSUySULRLPSXOVRLQWHUQRQRXWUDUHDOLGDGHµ  3RULVVRQmRDSHQDV
a estratégia de leitura dos textos da história do pensamento desvinculada de seu
FRQWH[WRRULJLQDOGHIRUPXODomRSUHMXGLFDDDSUHHQVmRGHVHXVLJQLÀFDGRPDV
também cabe aos economistas atuais fazer repensar permanentemente a teoria

D
D 128
econômica a partir dos fenômenos históricos novos que estão permanentemente
transformando a realidade econômica.
Para Rangel, o bom desenvolvimento da teoria econômica deve ser feito
simultaneamente nas duas fontes, familiarizando-se tanto com o estudo atual
da ciência quanto com os clássicos do passado. O objetivo, entretanto, é sempre
compreender a realidade concreta ou histórica da economia brasileira. Para isto
a ciência econômica desenvolvida no exterior é essencial, mas, de acordo com
um dos princípios básicos que o grupo do ISEB defendeu mas que hoje parece
estar sendo crescentemente esquecido, esta ciência deve estar sendo sempre
submetida à nossa crítica, em função da nossa realidade, para que possa
VHU VLJQLÀFDWLYD DR LQYpV GH DOLHQDGD ´1mR VH WUDWD GH DEDQGRQDU D FLrQFLD
econômica estrangeira - antiga ou contemporânea, ‘radical’ ou ‘conservadora’
- ou de demoli-la, para, sobre seus escombros, erigir uma ciência autóctone,
mas, ao contrário, de salientar um aspecto próprio da nossa economia... pela
LQYHVWLJDomRVLVWHPiWLFDGDVQRVVDV¶SHFXOLDULGDGHV·µ  
(PVXDSRVWXUDPHWRGROyJLFD´HFOpWLFDµ5DQJHOUHJLVWUDTXH´GHYHPRV
HVWDUSUHSDUDGRVSDUDXVDUDOWHUQDGDPHQWHRLQVWUXPHQWDOPDU[LVWDRNH\QHVLDQR
RQHRFOiVVLFRRFOiVVLFRHDWpRÀVLRFUiWLFRVHJXQGRDVFLUFXQVWkQFLDV3RGHPRV
aperfeiçoar esses instrumentos, reformular os princípios, pelo emprego da
moderna tecnologia, no que esta for aplicável, mas não podemos excluir in limine
QHQKXPGHOHV7RGRVQRVVHUmR~WHLVQRWUDEDOKRSUiWLFRµ  
Do instrumental marxista, Rangel utiliza, além do método histórico,
o método dialético. Rangel vê o desenvolvimento econômico, sobre o qual
concentrou todo o seu esforço intelectual, como um processo marcado por
FRQÁLWRVFRQÁLWRVGHWHQGrQFLDVHFRQWUDWHQGrQFLDVGHLQWHUHVVHVHPFKRTXH
de movimentos cíclicos, de dualidades - que trazem sempre embutidos a sua IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
própria síntese: a retomada do desenvolvimento depois de uma crise cíclica, a
LQÁDomRFRPRPHFDQLVPRGHGHIHVDGLDQWHGDH[LVWrQFLDGHUHFXUVRVRFLRVRV
a reversão do ciclo econômico a partir da transferência de recursos dos setores
onde eles se tornaram ociosos devido ao excesso de investimentos para os
setores nos quais não existem oportunidades para a acumulação, o surgimento
de uma nova formação social dominante a partir da superação da dualidade
anterior.
A dialética faz parte intrínseca da forma de pensar de Rangel. As relações
entre as variáveis não são meramente de causa e efeito, como pretende a lógica
formal, mas relações muito mais complexas de interdependência, em que as
consequências muitas vezes se transformam em causas, obrigando o analista

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

a se aproximar do problema sob muitos ângulos ao mesmo tempo para poder


compreendê-lo. Rangel adota essa postura metodológica automaticamente, à
medida que pensa e escreve. Em certos casos, porém, ele fará alusão expressa
DHODFRPRQHVWHFDVRHPTXHHOHH[DPLQDRSURFHVVRLQÁDFLRQiULR´$LQÁDomR
EUDVLOHLUD p XP IHQ{PHQR H[WUHPDPHQWH FRPSOH[R FXMD VLJQLÀFDomR SURIXQGD
não se deixa surpreender logo ao primeiro exame. Ao contrário, ao primeiro
exame, o que podemos obter são algumas determinações ilusórias. A essência
GDLQÁDomREUDVLOHLUDVRPHQWHVHUHYHODDXPH[DPHPXLWRPDLVSURIXQGRGHSRLV
de desfeitas várias ilusões que nos dão toda a aparência de verdade. Por isso,
SHGLPRV DR OHLWRU TXH VXVSHQGD R VHX MXt]R H VLJD DWp R ÀP R UDFLRFtQLR DTXL
exposto. É que a análise empírica, com a ajuda da simples lógica formal, revelou-
VHLQVXÀFLHQWHWHQGRVLGRQHFHVViULRUHFRUUHUDRPpWRGRGLDOpWLFR3DUDGDUDR
OHLWRUXPÀRGH$ULDGQHTXHRDMXGHDQmRVHH[WUDYLDUGDUHPRVQHVWDLQWURGXomR
uma descrição dogmática de todo o processo, antecipando assim as conclusões.
Trata-se de um movimento de ida e volta do espírito, desde o fenômeno, isto
é, do concreto sensível, imediatamente apreensível através das informações
disponíveis, até a HVVrQFLD, que não se descobre ao primeiro exame; e desta, de
novo, ao fenômeno. Somente depois de concluído esse segundo movimento é
que o problema se revelará com toda a clareza. Não creia o leitor que tenhamos
chegado arbitrariamente, ou ao acaso, a esta metodologia. E que esta alusão
ao método dialético não tenha o efeito de desanimar o leitor. A dialética não é
PHLRGHFRPSOLFDUDVFRLVDVPDVDRFRQWUiULRGHVLPSOLÀFiODV&RPSOH[RpR
SUREOHPDHPFRQVLGHUDomRµ  
Assim, as teorizações de Rangel decorreram de uma original e livre
utilização do método marxista com elementos das teorias econômicas de Smith,
6FKXPSHWHU H .H\QHV SURGX]LQGR XPD REUD TXH FRUUHVSRQGH D XP RULJLQDO
ensaio de adaptação da teoria da história do pensamento econômico à análise
GD UHDOLGDGH EUDVLOHLUD QD EXVFD GH HQWHQGHUVH D HVSHFLÀFLGDGH GDV OHLV GH
formação histórica e de funcionamento da economia brasileira. Para Rangel, a
HVSHFLÀFLGDGHGHVVDIRUPDomR´QmRTXHUGL]HUTXHDHFRQRPLDTXHHVWXGDPRV
HPOLYURVHVWUDQJHLURVHDGRWDPRVHPQRVVDVHVFRODVQmRVHMDFLHQWtÀFD6LJQLÀFD
que, afora a técnica de tratamento dos fenômenos econômicos - que é algo que
progride sempre e constitui um fundo comum - tudo muda na ciência econômica
DRPXGDUDUHDOLGDGHHVWXGDGDµ  

D
D 130
O Ciclo Longo

A concepção do desenvolvimento econômico e político do Brasil de Rangel


HVWiDSRLDGDHPGXDVLGHLDVFKDYHRVFLFORVORQJRVHD´GXDOLGDGHEiVLFDµ2V
ciclos longos de Kondratieff52 são centrais em sua análise da evolução histórica
de nossa economia e sociedade: “O relacionamento que faço das vicissitudes
de nossa história nacional com as ondas longas, cuja simples existência não
é aceita mansamente, faz-me sentir um pouco como Heidrich Schliemann
quando resolveu levar a sério a ,OtDGD, na busca da localização exata de Tróia,
valorizando, assim, um documento que muitos consideravam uma tessitura de
mitos. Assim, comecei por levar a sério a teoria das ondas longas, buscando
com ela compaginar nossa própria história nacional. E não duvido de que os
HVWXGRVDSURIXQGDGRVGHRXWURVSHVTXLVDGRUHVQmRDSHQDVFRQÀUPDUmRPLQKDV
hipóteses, como lançarão nova luz sobre aquela teoria, fazendo progredir a
FLrQFLDµ  
Rangel aprendeu a teoria dos ciclos longos de Kondratieff lendo %XVLQHVV
&\FOHV de Schumpeter e o próprio texto de Kondratieff publicado em espanhol
pela 5HYLVWD GH 2FFLGHQWH.53 Para Rangel, o processo de desenvolvimento é
um processo eminentemente cíclico, regido por ondas de inovação tecnológica
e pelo processo de acumulação de capital. Rangel assinala, insistentemente,
que esse processo cíclico independe da vontade humana, portanto, da política
e do planejamento. É um processo contraditório através do qual a inovação
WHFQROyJLFD FXMD GLQkPLFD H[SOLFD R FLFOR ORQJR HVWi HP SHUPDQHQWH FRQÁLWR
com os capitais existentes que são por ela depreciados. A massa de recursos
acumulados funciona como um fator de resistência ao progresso tecnológico,
´GHYHQGRVHUEXVFDGDDtDFDXVDomRPDLVSURIXQGDGDVÁXWXDo}HVHFRQ{PLFDVµ IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
A reversão cíclica ocorre porque, “a certa altura, em seguida a um período de
LQWHQVDUHQRYDomRGRFDSLWDOÀ[RSDVVDPDSUHSRQGHUDUDVIRUoDVSURSHQGHQWHV
para a preservação dos capitais recém-criados, e a capacidade instalada
HQFRQWUDRVOLPLWHVGRPHUFDGRµ E 
5DQJHO E XWLOL]RXLQWHQVDPHQWHDWHRULDGRVFLFORVORQJRVTXH

52
Para uma discussão teórica sobre os ciclos longos de Kondratieff no Brasil ver Bresser-Pereira
(1986b). A literatura sobre o tema desenvolveu-se extraordinariamente nos últimos anos, provavelmente
a partir do fato de que a desaceleração das economias desenvolvidas, ocorrida a partir do início dos anos
FRQ¿UPRXDVSUHYLV}HVHPEXWLGDVQDWHRULDGH.RQGUDWLHII3DUDXPDDQiOLVHPDLVUHFHQWHHUD]RD-
velmente completa do assunto ver Solomou (1990).

53
Ver Rangel (1981b), onde Rangel examina a dinâmica dos ciclos de Kondratieff.

D
D 131
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

YHPRVQR4XDGURSDUDFRPSUHHQGHURSURFHVVRGHGHVHQYROYLPHQWREUDVLOHLUR
O paralelismo que faz entre as vicissitudes de nossa história econômica e política
e os ciclos longos é sugestivo.54 $V IDVHV ´Eµ GRV FLFORV TXDQGR D HFRQRPLD
se desacelera, embora mantendo taxas positivas de crescimento, é sempre
LGHQWLÀFDGDFRPPXGDQoDVPDUFDQWHVQDKLVWyULDEUDVLOHLUD&RPHIHLWR´QDIDVH
‘b’ do 1o. Kondratieff, tivemos a Independência; a ‘b’ do 2o. deu-nos a Abolição-
5HS~EOLFDTXDQWRj5HYROXomRGHTXHHQTXDGUDULDLQVWLWXFLRQDOPHQWHD
industrialização, foi, segundo todas as aparências, um incidente da fase ‘b’ do
R.RQGUDWLHIIµ1R%UDVLORXVHMDHPXPDHFRQRPLDSHULIpULFDDVIDVHVCE·
ou recessivas dos ciclos longos “manifestam-se primordialmente pelo relativo
HVWUDQJXODPHQWR GR FRPpUFLR H[WHULRU H SLRUDQGR RV WHUPRV GH LQWHUFkPELRµ
. Como essa fase ocorre de forma sustentada por todo um quartel de século,
as economias periféricas têm tempo para se ajustarem à nova situação. “No
caso brasileiro, a economia tem encontrado sempre meios e modos de ajustar-
se ativamente à conjuntura implícita no ciclo longo. Em especial, confrontada
com o fechamento do mercado externo para os nossos produtos resultante
da conjuntura declinante dos países cêntricos, temos reagido por uma forma
qualquer de substituições de importações, ajustada ao nível de desenvolvimento
GHQRVVDVIRUoDVSURGXWLYDVHDRHVWDGRGDVQRVVDVUHODo}HVGHSURGXomRµ'Dt
resultar que o nosso desenvolvimento econômico “dista muito de ser limitado
jV IDVHV ´Dµ RX DVFHQGHQWHV GRV FLFORV ORQJRV 1RVVD HFRQRPLD FRQIURQWDGD
FRPPRYLPHQWRVGXUDGRXURVGHÁX[RHUHÁX[RHPVXDVUHODo}HVFRPRFHQWUR
GLQkPLFR XQLYHUVDO HQFRQWUD PHLRV GH FUHVFHU ´SDUD IRUDµ H[SDQGLQGR D
SURGXomR H[SRUWiYHO RX ´SDUD GHQWURµ SURPRYHQGR XPD IRUPD TXDOTXHU GH
VXEVWLWXLo}HVGHLPSRUWDo}HVµ  

Quadro 1: Ciclos Longos


Ciclos Longos Fase a Fase b
1o Kondratieff 1770-1815 1815-1847
2o Kondratieff 1847-1873 1873-1896
3o Kondratieff 1896-1920 1920-1948
4o.Kondratieff 1973-...
)RQWH,JQDFLR5DQJHO E

54
RFLFORORQJRIDVH³D´ IDVH³E´
2o. ciclo longo: fase “a”: 1847-1873 fase “b”: 1873-1896
3o. ciclo longo: fase “a”: 1896-1920 fase “b”: 1920-1948
4o. ciclo longo: fase “a”: 1948-1973 fase “b”: 1973- (?)

D
D 132
Ignacio Rangel não utilizou a teoria dos ciclos longos apenas para
FRPSUHHQGHUR%UDVLO(PTXDQGRR%UDVLOYLYLDVHX´PLODJUHµHFRQ{PLFRH
na economia mundial o primeiro choque do petróleo ainda não ocorrera, Rangel,
que após o seu enfarte estava desaparecido, surpreendeu a todos quando
previu a crise mundial a partir da dinâmica de Kondratieff.55 Rangel observa que
HP  HVJRWDVH D H[SDQVmR GR WHUFHLUR .RQGUDWLHII H FRPHoD XP SHUtRGR
GHSUHVVLYR GXUDQWH R TXDO VH DFXPXODYDP SUHFRQGLo}HV FLHQWtÀFDV SDUD XP
QRYRFLFORGHLQRYDo}HVWHFQROyJLFDV(VWDIDVHUHFHVVLYDGXUDDWpTXDQGR
tem início uma nova onda de expansão que atravessa a Segunda Guerra Mundial
e o período de intensa reconstrução. Entretanto, observa Rangel, temos, “depois
GHSHUtRGRFDUDFWHUL]DGRSRUFUHVFHQWHVVLQWRPDVGHTXHD¶UHFRQVWUXomR
DPSOLDGD· GR ,, SyVJXHUUD IRL FKHJDQGR DR ÀP QDV iUHDV GHFLVLYDV GR ¶FHQWUR
dinâmico’. Noutros termos, acumulam-se os indícios de que entramos numa
era semelhante jTXHVHVHJXLXDµ  'XUDQWHRVDQRVMi
FRPHoDYDPDVHGHÀQLUDVFRQGLo}HVSDUDDUHYHUVmRFtFOLFDDTXDOHQWUHWDQWR
VyVHFRQVXPDULDHPTXDQGRFRPHoDDIDVH´EµGRTXDUWRKondratieff.
Em um artigo posterior Rangel reconheceu este fato. Equivocou-se, entretanto,
HP UHODomR j VXD UHSHUFXVVmR VREUH D HFRQRPLD EUDVLOHLUD $R DÀUPDU TXH ©D
LGHLDGHTXHDIDVH¶E·GRFLFORORQJRVLJQLÀTXHQHFHVVDULDPHQWHSDUDRVSDtVHV
periféricos, uma queda do dividendo nacional , ou mesmo uma desaceleração
GR VHX FUHVFLPHQWR GHYH VHU OLPLQDUPHQWH GHVFDUWDGDª    5DQJHO
supunha que poderia novamente reproduzir-se a expansão que ocorrera na fase
recessiva do terceiro Kondratieff, quando isto, de fato, já não podia ocorrer, já
que o modelo de substituição de importações se esgotara.

A Dualidade Básica IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

O segundo instrumento teórico que Ignacio Rangel utilizou para


FRPSUHHQGHU R GHVHQYROYLPHQWR EUDVLOHLUR IRL D WHRULD GD ´GXDOLGDGH EiVLFDµ
que ele próprio considera sua principal contribuição ao entendimento do Brasil.
$SHVDUGHWHUHVFULWRDWHVHGDGXDOLGDGHEiVLFDGDHFRQRPLDEUDVLOHLUDHP
esta tese já era uma ideia desenvolvida no pensamento de Rangel pelo menos
GHVGH  TXDQGR FRQWDYD FRP DSHQDV  DQRV )RL VXD LQWXLomR EiVLFD
que o acompanharia pelo resto de sua vida. É Rangel quem registra: “lembro-

55
Este artigo foi apresentado em São Paulo, em julho de 1972, ao congresso anual da Sociedade Brasi-
leira para o Progresso da Ciência. Entre outros, estavam na reunião, Antônio Barros de Castro, Francisco
de Oliveira e Paulo Singer. O artigo foi publicado no ano seguinte em Estudos CEBRAP.

D
D 133
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

me de ter lido algures (em Schumpeter, provavelmente) que os economistas


que deixaram sua marca na história de nossa ciência já tinham, aos 25 anos,
concebido o vigamento-mestre do seu ideário, mas seriam necessários tantos
anos quantos lhes tocasse ainda viver - e nem sempre com êxito - para precisar
e dar forma inteligível para os outros, a essas ideias. Sem pretender deixar a tal
marca na história do pensamento econômico - coisa pouco provável para quem
teve minhas condições para trabalhar e a língua portuguesa no qual escrever -,
GHL[RFRQVLJQDGRDTXLTXHHUDPDLVTXHXPDGROHVFHQWHTXDQGRHP
coube-me o privilégio de conviver, em diversas prisões da ditadura de então, com
alguns dos melhores homens que o Brasil havia produzido. As ideias que então
germinaram em meu espírito teriam longa trajetória a desenvolver, mas são as
mesmas ideias, essas que estou agora tentando passar... Outros homens, como
Jorge Ahumada, Guerreiro Ramos, J. Soares Pereira, os colegas do ISEB e do
BNDES deixaram sua contribuição, mas as ideias são as mesmas, nascidas no
LVRODPHQWRRXQDVGLVFXVV}HVLQWHUPLQiYHLVQDVSULV}HVGDGLWDGXUDµ  
%LHOVFKRZVN\ KDYLD UHJLVWUDGR TXH D OHLWXUD GH VXD REUD FRPSOHWD ´Gi
a impressão de que Rangel considerou, num certo ponto de sua vida, que se
deixara guiar idealisticamente na juventude por uma transposição mecânica de
teses revolucionárias estranhas à realidade brasileira. E que, daí para frente,
sua grande obsessão passou a ser o entendimento dessa realidade através de
análises que recusavam o uso de teorias importadas sem a devida adaptação
jV FRQGLo}HV KLVWyULFDV HVSHFtÀFDV GR SDtVµ    %LHOVFKRZVN\ WHP
razão, mas como não teve acesso à produção jornalística de Rangel nos anos
QmRS{GHWUDQVIRUPDUVXDLPSUHVVmRHPFHUWH]DDSDUWLUGRTXHH[SOLFLWRXR
SUySULR5DQJHO´(PGHSRLVGHGHYRUDURTXHHQFRQWUHLGH0DU[H(QJHOV
abandonei a faculdade para fazer revolução agrária. No alto sertão maranhense,
soube achar o caminho do coração dos camponeses espoliados, organizei-os
para a resistência contra a capangada do latifúndio, mas vim ter à Frei Caneca
para um longo estágio (sic), porque alguma coisa não estava certa no meu
VLVWHPD GH SHQVDPHQWR 4XLV VDEHU RQGH HVWDYD R HUUR $SURIXQGHL D WHRULD
catedrática e profana, estudei a experiência alheia e nacional, à tanto bisbilhotei
as causas, que, de jurista que devia ter sido, virei economista. Preocupado com
as peculiaridades da história do Brasil, que fazem com que as coisas que estão
certas alhures se tornem erradas aqui, resumi todas as meditações na teoria da
dualidade básica. De posse desse instrumento, não apenas julgo haver explicado
meus erros de juventude como ter encontrado a chave para muitíssimos outros
SUREOHPDVª  

D
D 134
No prefácio ao seu livro $,QÁDomR%UDVLOHLUD, registra Rangel a importância
GD GXDOLGDGH EiVLFD SDUD R VHX SHQVDPHQWR ´$ FODVVLÀFDomR GDVFLrQFLDV GH
Comte-De Greef, dialetizada por meu professor de Introdução à Ciência do
Direito, mostrou-me a conexão entre o Direito e a Economia. Descobrir o fundo
HFRQ{PLFRGHQRVVDVOHLVSDVVRXDVHURPHXREMHWLYRFHQWUDO$VGLÀFXOGDGHV
iniciais só serviram para acirrar-me o interesse, e a 'XDOLGDGH%iVLFDGD(FRQRPLD
%UDVLOHLUD estava no desfecho lógico dessas cogitações. O leitor vai encontrar
aqui (em $,QÁDomR%UDVLOHLUD) uma aplicação concreta da teoria da dualidade.
Sem esta, não poderemos entender o Brasil: seu direito, sua economia e sua
política. O Brasil é uma dualidade e, se não o estudarmos assim, há de parecer-
nos uma construção caótica, sem nexos internos estabelecidos e, sobretudo,
VHPKLVWyULDµ  
A teoria histórica da dualidade de Rangel analisa a contradição essencial
que colocou em movimento a história do país. A explicação dialética sobre o
desenvolvimento oriundo da teoria da dualidade de Rangel, como vimos no
trecho do autor anteriormente citado, não é apenas uma explicação sobre a
dinâmica da esfera econômica. É uma teoria que abarca também outras esferas
da realidade social, concebida como uma totalidade histórico-estrutural, que
WHQWDGDUFRQWDGDHVSHFLÀFLGDGHGDHFRQRPLDHGDVRFLHGDGHEUDVLOHLUDTXH
possui um setor capitalista e outro pré-capitalista.
Para Rangel, que se municiou do instrumental metodológico marxista,
QmR VH WUDWD DSHQDV GH YHULÀFDU TXH XPD HFRQRPLD FRPR D QRVVD DSUHVHQWD
características correspondentes a várias etapas do desenvolvimento histórico
da economia mundial. Para ele, o que é necessário é “investigar atentamente
como agem umas sobre as outras as leis correspondentes a essas diferentes
HWDSDVµ    0DU[ MiKDYLD UHJLVWUDGRTXH XPD IRUPDomRVRFLDO MDPDLV IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
desaparece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas que
possa conter, e as relações de produção novas e superiores não tomam seu
lugar antes que as condições materiais de existência dessas relações tenham
sido instaladas no próprio seio da velha sociedade. Nestes termos, durante
muito tempo coexistem relações de produção diferentes. Rangel utilizou com
grande criatividade esta ideia básica de Marx. Para ele diferentes economias ou
diferentes relações de produção que coexistem na economia brasileira “não se
justapõem mecanicamente, ao contrário, agem umas sobre as outras, acham-
VHHPFRQÁLWRDYHUTXDOLPSRUiVXDGLQkPLFDHVSHFtÀFDDRVLVWHPD1RXWURV
WHUPRVHVWmRHPXQLGDGHGLDOpWLFDXQLGDGHGHFRQWUiULRVµ  

D
D 135
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

6HJXQGR 5DQJHO ´D KLVWyULD  GR %UDVLO QmR UHWUDWD ÀHOPHQWH D KLVWyULD
universal, especialmente a europeia, porque nossa evolução não é autônoma,
QmRpSURGXWRH[FOXVLYRGHVXDVIRUoDVLQWHUQDVµ  $QRYLGDGHDQDOtWLFD
GH 5DQJHO FRQVLVWH HP DÀUPDU D FRH[LVWrQFLD GXDO GH UHODo}HV GH SURGXomR
historicamente defasadas em relação às relações de produção existentes na
(XURSD $ GXDOLGDGH DSDUHFH QD H[LVWrQFLD GH GRLV ´SRORVµ XP SROR LQWHUQR
outro externo. No polo interno situam-se, internamente, as relações de produção
dominantes e a correspondente classe dominante, que ele chama de “sócio-
PDLRUµ 1R SROR H[WHUQR VLWXDPVH LQWHUQDPHQWH DV UHODo}HV GH SURGXomR
emergentes e o correspondente sócio menor, que na dualidade seguinte se
transformará no sócio maior. A dualidade, porém, aparece também no fato de
TXHWDQWRQRSRORLQWHUQRTXDQWRQRH[WHUQRKiXP´ODGRH[WHUQRµFRUUHVSRQGHQWH
às relações de produção vigentes nos países centrais e que no Brasil vão ser
dominantes no polo seguinte. Estas relações estão sempre adiantadas em
relação às relações vigentes no Brasil, assinalando o caráter dependente do
desenvolvimento brasileiro. A dinâmica histórica brasileira se distingue, portanto,
dos casos clássicos porque os processos sociais, econômicos e políticos não
decorrem apenas da interação entre desenvolvimento das forças produtivas e
relações de produção internas ao país, mas também da evolução das relações
que este mantém com as economias centrais. Conforme observa Rangel:
“Embora seja mais fácil surpreender o fato da dualidade no estudo de um instituto
particular do que na economia nacional como um todo, é evidente que a sua
origem se encontra nas relações externas. Desenvolvendo-se como economia
complementar ou periférica, o Brasil deve ajustar-se a uma economia externa
diferente da sua, de tal sorte que é, ele próprio, uma dualidade. Os termos dessa
dualidade se alteram e desde logo podemos assinalar que mudam muito mais
UDSLGDPHQWHQRLQWHULRUGRTXHQRH[WHULRURTXHVLJQLÀFDHVWDUPRVTXHLPDQGR
etapas. Nos primeiros quatro séculos de nossa história, vencemos um caminho
correspondente a, pelo menos, quatro milênios da história europeia. A rigor,
nossa história acompanha SDULSDVVX a história do capitalismo mundial, fazendo
eco as suas vicissitudes. O mercantilismo nos descobriu, o industrialismo nos
GHXDLQGHSHQGrQFLDHRFDSLWDOLVPRÀQDQFHLURDUHS~EOLFDµ  

D
D 
Quadro 2: A dualidade básica da sociedade brasileira

Polo Principal Polo Secundário


Dualidades / Sócio Maior / Sócio Menor
Lado externo Lado externo
(classe
(relações de (relações de
(classe dominante
produção dentro produção
dominante) na fase
e fora) emergentes)
seguinte)
Escravismo Burguesia
1a 1815-1870 / Senhores de mercantil Fazendeiros
(Independência) Feudalismo escravos / latifundiários
mercantil Comerciantes
2a. 1870-1920 Feudalismo Capital mercantil
Fazendeiros Burguesia
(Abolição e mercantil / /
latifundiários mercantil
República) Capital Mercantil Capital industrial
3a 1920-1973
Capital Mercantil Capital industrial
Burguesia Burguesia
/ /
(Revolução mercantil industrial
Capital Industrial &DSLWDOÀQDQFHLUR
de 1930)
Capital Industrial Cap. Financeiro
Burguesia Capitalistas
4 . 1973-...
a
/ /
industrial ÀQDQFHLURV
Capital Financeiro ...
)RQWH5DQJHO HD 2UJDQL]DPRVHVWHTXDGURFRPXPFHUWRJUDXGHOLEHUGDGHHP
relação à 3a. e a 4a. dualidades, já que nem sempre Rangel é claro a respeito.

A dualidade está em toda parte na economia e na sociedade brasileira. IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
Está na fazenda de escravos que é mercantil e escravista, está no latifúndio
após-Abolição, que é mercantil e feudal (porque dominado pelo instituto jurídico
GDHQÀWHXVHHSHORSULQFtSLRIHXGDOGHTXHQHQKXPDWHUUDGHL[DUiGHWHUVHQKRU 
está na fábrica capitalista que enfrenta um mercado de insumos e um mercado
para seus produtos ainda mercantil ou mesmo pré-capitalista. A partir daí, Rangel
GHÀQH ´D OHL GD GXDOLGDGHµ R SUREOHPD HVWi HP ´H[DPLQDU TXDLV DV UHODo}HV
dominantes dentro e fora de cada unidade da economia, ou seja, de por em
evidência as GXDV HFRQRPLDV GRPLQDQWHV  porque cada uma delas, em seu
próprio campo, é dominante. A isso proponho que se chame GXDOLGDGHEiVLFD
da economia brasileira. A dualidade é a lei fundamental da economia brasileira.
Podemos formulá-la nos seguintes termos: a economia brasileira se rege
EDVLFDPHQWHSRUGXDVRUGHQVGHOHLVWHQGHQFLDLVTXHLPSHUDPUHVSHFWLYDPHQWH

D
D 137
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

QR FDPSR GDV UHODo}HV LQWHUQDV GH SURGXomR H QR GDV UHODo}HV H[WHUQDV GH
SURGXomRµ    3DUD 5DQJHO D FRQWUDSDUWLGD SROtWLFD GD GLQkPLFD GD
GXDOLGDGHUHÁHWHVH QRV SDFWRV GH SRGHU TXH VH IRUPDP HP WRUQRGR (VWDGR
SRLV´R(VWDGREUDVLOHLURQmRSRGHVHQmRUHÁHWLUDGXDOLGDGHEiVLFDGDHFRQRPLD
HGDVRFLHGDGHµ  
Rangel analisa a história econômica e política do Brasil a partir do século
XIX como uma sucessão de dualidades, que correspondem às fases de declínio
H H[SDQVmR GH FLFORV GH .RQGUDWLHII 5HVXPLPRV HVWDV GXDOLGDGHV QR 4XDGUR
2LQtFLRGHFDGDGXDOLGDGHFRUUHVSRQGHDRLQtFLRGDIDVH´EµGRVVXFHVVLYRV
ciclos longos de. E corresponde também a um fato político dominante: a
Independência na primeira dualidade; a Abolição e a República, na segunda
GXDOLGDGH D 5HYROXomR GH  QD WHUFHLUD GXDOLGDGH (P FDGD GXDOLGDGH
WHPRVXP´SRORLQWHUQRµTXHSDVVDUHPRVDFKDPDUGHSRORSULQFLSDOHXP´SROR
H[WHUQRµTXHFKDPDUHPRVGHSRORVHFXQGiULRMiTXHDVH[SUHVV}HVXVDGDVSRU
5DQJHOSURYRFDPXPDFRQIXVmRFRPDVUHODo}HVH[WHUQDVRXGR´ODGRH[WHUQRµ
existentes em cada polo. De uma forma até um certo ponto mecânica mas muito
instigante, a relação de produção dominante no polo secundário corresponde
à relação de produção dominante no lado externo do polo principal, e se
transformará na relação de produção dominante no polo principal da dualidade
VHJXLQWH(PUHODomRDRV´VyFLRVµRFRUUHRPHVPRSURFHVVR2VyFLRPHQRUGH
uma dualidade se transformará no sócio maior da seguinte.
Na SULPHLUD dualidade (1815-1870), a relação de produção principal ou
interna é o escravismo. A fazenda de escravos, entretanto, é essencialmente
dual. Externamente, ou secundariamente, dada a fase do capitalismo na
(XURSD HOD p PHUFDQWLO $ EXUJXHVLD PHUFDQWLO QDFLRQDO TXH VH DÀUPD FRP D
,QGHSHQGrQFLDpRVyFLRPHQRUTXHQDVHJXQGDGXDOLGDGH  VHUiR
sócio maior. Esta dualidade é caracterizada pelo que Rangel chama de “latifúndio
IHXGDOµ RX ´IHXGDOLVPR PHUFDQWLOµ (VWi PXLWR FODUR SDUD HOH HQWUHWDQWR TXH
“o latifúndio brasileiro não é idêntico ao feudalismo medieval europeu ou
DVLiWLFRµ    2 ´DJUHJDGRµ GR ODWLI~QGLR EUDVLOHLUR HQWUHWDQWR OHPEUD
R VHUYR IHXGDO $ UHYROXomR GH  p SDUD 5DQJHO XP PRPHQWR GHFLVLYR GD
KLVWyULDGRSDtV0DUFDDIDVHUHFHVVLYDGDWHUFHLUDGXDOLGDGH  (VWD
começa com a transformação do sócio menor da segunda dualidade no novo
VyFLR PDLRU RV ID]HQGHLURVODWLIXQGLiULRV (VWHV ´ID]HQGHLURVODWLIXQGLiULRVµ
não são precipuamente os cafeicultores, mas o que Rangel chamou, muito
VXJHVWLYDPHQWH GH ´ODWLI~QGLR VXEVWLWXLGRU GH LPSRUWDo}HVµ UHSUHVHQWDGR
pelos pecuaristas do Sul (Getúlio Vargas) e por latifundiários do Norte-Nordeste,
que irão se aliar à burguesia industrial nascente para comandar a revolução

D
D 138
LQGXVWULDOEUDVLOHLUDDSDUWLUGHHQTXDQWRRVFDIHLFXOWRUHVTXHGHYHULDP
VHUWD[DGRVSDUDQHXWUDOL]DUDGRHQoDKRODQGHVDÀFDPGHIRUDGDFRDOL]mRGH
classes dominante.1DTXDUWDGXDOLGDGHÀQDOPHQWHRVyFLRPHQRUGDWHUFHLUD
dualidade (a burguesia industrial) transforma-se no sócio maior.
Nem sempre Rangel é claro em sua análise. Na terceira dualidade, referida
DSHQDVQRWH[WRGH5DQJHODÀUPDTXHDUHODomRGHSURGXomRGRPLQDQWH
no polo interno é ainda feudal, como já era na segunda dualidade. Houve aqui
provavelmente um erro, uma repetição. Devíamos ter aqui o capital mercantil
como relação dominante e os latifundiários-fazendeiros, que eram o sócio menor
QDGXDOLGDGHDQWHULRUGHYHULDPVHUDJRUDRVyFLRPDLRU1R4XDGURÀ]HPRV
HVVDFRUUHomR$TXDUWDGXDOLGDGHHVWiQDWXUDOPHQWHPXLWRLQGHÀQLGD(PWRGD
a análise, uma ausência é marcante: a tecnoburocracia. Em nenhum momento
Rangel reconhece a importância extraordinária que a burocracia civil e militar,
pública e privada vinham assumindo em todo o mundo, inclusive no Brasil. Os
intelectuais a serviço do Estado, como Rangel, são tecnoburocratas, mas têm
XPDHQRUPHGLÀFXOGDGHHPUHFRQKHFHUDWUDQVIRUPDomRGHVVHHVWDPHQWRHP
uma verdadeira classe social. Entretanto, apesar das restrições que cada um
de nós possa ter, não há dúvida que a teoria da dualidade básica de Rangel
permite-nos uma compreensão muito melhor da dinâmica histórica da economia
brasileira, combinando de maneira extremamente esclarecedora e original seu
caráter cíclico, dependente e dual.

&DSDFLGDGHRFLRVDFLFORVHLQÁDomR

'HVGH R LQtFLR GH VXDV UHÁH[}HV VREUH HFRQRPLD Mi KDYLD 5DQJHO IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
percebido que a natureza de um dos problemas centrais de nosso processo de
acumulação era a necessidade de transferir excedentes dos setores atrasados
ou pouco dinâmicos para os setores de maior potencial de expansão. Suas ideias
RULJLQDLV VREUH D LQÁDomR H DR VXSHULQYHVWLPHQWR HVWDYDP YLQFXODGDV DR TXH
GHQRPLQRX´GLDOpWLFDGDFDSDFLGDGHRFLRVDµ(PVXDVSDODYUDV´PHXLQWHUHVVH
pelo problema dos recursos ociosos é coevo dos primeiros movimentos de
minha consciência no sentido da problemática econômica, a um tempo em que
R HVWXGR GR GLUHLWR HUD DLQGD R PHX GHVWLQR HYLGHQWHµ E 3UHIiFLR  6XD

56
Rangel não fala em “doença holandesa”, que não era então um conceito conhecido, mas percebeu
que Vargas montou seu pacto político envolvendo a parte da oligarquia que não exportava, e, portanto,
era preciso impor um imposto de exportação sobre os produtores de commodities, particularmente os
cafeicultores, para manter a taxa de câmbio competitiva.

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

experiência no comércio e na indústria, bem como sua rica experiência adquirida


QDDQiOLVHGHSURMHWRVQR%1'(6ÀUPDUDPOKHDRSLQLmRTXHRVUHFXUVRVRFLRVRV
na economia brasileira era um fenômeno a ser analisado. “Era preciso descobri-
los e descobrir os meios de pô-los em evidência (...) não era coisa irrelevante que
fôssemos tomando consciência da existência de um potencial ociosoµ E
Prefácio).
Rangel preocupava-se com um caminho alternativo de alavancagem da
acumulação capitalista que não o da compressão salarial ou o do endividamento
H[WHUQR©$WRPDGDGHFRQVFLrQFLDGRSRWHQFLDORFLRVRHUDDHVSHUDQoDGHXP
terceiro caminho, como alternativa ao comprometimento da soberania nacional
HjHVIRPHDomRGRVWUDEDOKDGRUHVª E3UHIiFLR $VVLPVXDDXODLQDXJXUDO
DR FXUVR UHJXODU GR ,6(% SURQXQFLDGD HP  QR 5LR GH -DQHLUR IRL TXDVH
XP©PDQLIHVWRSROtWLFRªH[HPSOLÀFDGRUGHVVDVXDSUHRFXSDomR 5DQJHOD 
(VVDV UHÁH[}HV LULDP RULHQWDU VHXV HVWXGRV VREUH D LQÁDomR EUDVLOHLUD ©$R
DSOLFDUPHDRHVWXGRGDLQÁDomRHQFRQWUHLRFDPSRWRPDGRSRUGXDVFRUUHQWHV
DSDUHQWHPHQWH LQFRQFLOLiYHLV R ©PRQHWDULVPRªH R ©HVWUXWXUDOLVPRª$QWHV PH
havia ocupado especialmente dos aspectos reais do processo econômico... Foi
assim que cheguei à percepção dos problemas suscitados pela acumulação
GD FDSDFLGDGH RFLRVD DQWHV GH SHUFHEHU D VLJQLÀFDomR PRQHWiULD GHVVHV
SUREOHPDV $R DSURIXQGDUD PDWpULD VXUSUHHQGHXPHD VXSHUÀFLDOLGDGHFRP
a qual as duas correntes em pugna a tratavam... A pedra de toque para avaliar
essas teorias é a capacidade ociosa. As duas escolas a negam, aberta ou
sub-repticiamente. Embora a acumulação de capacidade ociosa seja um fato
empiricamente demonstrado, as duas correntes estudam a emissão como o ato
inicial de um processo conducente à expansão da demanda global do sistema.
Ergo [Logo], se houvesse capacidade ociosa em condições de ser utilizada - e,
sem isso, deixai-me que acrescente, não há capacidade ociosa - essa expansão
da demanda global conduziria a uma expansão da renda, e não a uma elevação
GRVSUHoRVµ  
3DUD5DQJHOQDGLVFXVVmRGDLQÁDomRRVPRQHWDULVWDVFRQIXQGHPFDXVD
com efeito. Não percebem que é a “variação autônoma do nível de preços (que
pode resultar da variação dos preços de alguns produtos) não compensada
SHODYDULDomRHPVHQWLGRLQYHUVRGRVSUHoRVGRVGHPDLVµTXHOHYDRJRYHUQR
SDVVLYDPHQWH D HPLWLU PRHGD    'HVWD IRUPD 5DQJHO GH IRUPD
pioneira, estabelece as bases da teoria endógena da oferta de moeda. Outros
DXWRUHV FRPR :LFNVHO 6FKXPSHWHU H .H\QHV Mi KDYLDP IHLWR DOXV}HV DR

D
D 140
fenômeno.57 Mas foi Rangel quem primeiro desenvolveu de forma clara a ideia.
)RL HVWH IDWR TXH OHYRX XP GRV DXWRUHV GHVWH WUDEDOKR D DÀUPDU TXH FRP A
,QÁDomR%UDVLOHLUDGHÀQHVHRVHJXQGRPRPHQWRSDUDGLJPiWLFRGDWHRULDQHR
HVWUXWXUDOLVWDGDLQÁDomRLQHUFLDO2SULPHLURKDYLDVLGRGHÀQLGRDQWHULRUPHQWH
SRU1R\ROD  H6XQNHO  TXHIXQGDPDSHUVSHFWLYDHVWUXWXUDOLVWDGD
LQÁDomR(RWHUFHLURVXUJHQRLQtFLRGRVDQRVTXDQGRDWHRULDGDLQÁDomR
DXW{QRPDRXLQHUFLDOpGHÀQLWLYDPHQWHGHVHQYROYLGD58
A oferta de moeda é, portanto, endógena ou passiva para Rangel. Os
estruturalistas, por sua vez, embora compreendendo o caráter endógeno
GD LQÁDomR DWULEXHPQD D LQHODVWLFLGDGH GD RIHUWD LPDJLQDQGR FRPR RV
PRQHWDULVWDV TXH D LQÁDomR VHMD GH GHPDQGD 2UD FRQIRUPH HQVLQD 5DQJHO
R TXH H[LVWH QR SDtV p XPD LQVXÀFLrQFLD FU{QLFD GH GHPDQGD GDGD D Pi
distribuição da renda. Essa má distribuição ou essa alta taxa de exploração deriva
da estrutura agrária baseada no latifúndio e do desemprego crônico. O problema
se agrava com a expulsão dos agricultores do campo à medida que a agricultura
VH PRGHUQL]D 1mR EDVWDVVH LVVR D LQGXVWULDOL]DomR GHVHQFDGHDGD HP 
ao se basear na substituição de importações, permitirá que a industrialização
tenha êxito sem prévia mudança da estrutura agrária. A alta taxa de exploração
causada por esses fatores implica uma baixa propensão a consumir e capacidade
ociosa – algo que monetaristas e estruturalistas não conseguiam detectar
QD pSRFD GDGD VXD WHRULD GH LQÁDomR EDVHDGD QR H[FHVVR GH GHPDQGD 2V
HVWUXWXUDOLVWDVHQWUHWDQWRHVWDYDPFRUUHWRVTXDQGRDÀUPDYDPTXHDLQÁDomR
HUDHQGyJHQDDRVLVWHPDHFRQ{PLFR'HIDWRSDUD5DQJHODLQÁDomRWHPRULJHP
no bojo da economia. É o resultado de um duplo processo. De um lado, as
grandes empresas, a começar por aquelas que controlam a comercialização de
produtos agrícolas, organizam-se em forma de oligopsônio-oligopólio, e passam
a aumentar seus preços autonomamente, como uma forma de defender seus IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
OXFURV GD LQVXÀFLrQFLD GD GHPDQGD (VVH SURFHVVR FRPHoD QR VHWRU DJUtFROD
mas estende-se para a grande indústria e para os serviços públicos. Nesse
VHQWLGRDLQÁDomRVXUJHFRPRXPPHFDQLVPRGHGHIHVDGDHFRQRPLD$LQÁDomR
é principalmente administrada ou de custos, e não de demanda.
3DUD 5DQJHO D LQÁDomR p XP PHFDQLVPR GH GHIHVD GD HFRQRPLD QRV
momentos de crise; é ela que impede que a economia entre em uma crise

57
9HUDUHVSHLWRDUHVHQKDGH0HUNLQ  1HVWHWH[WR¿FDFODURTXHDWpVyKDYLDPVXJHVW}HV
jamais uma explicação clara do caráter endógeno da moeda, que hoje é uma ideia essencial não apenas
SDUDRSHQVDPHQWRHVWUXWXUDOLVWDPDVWDPEpPSyVNH\QHVLDQRGDLQÀDomR

58
Ver Bresser-Pereira (1986b).

D
D 141
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

PDLRU 'DGD D EDL[D SURSHQVmR D FRQVXPLU D GHPDQGD DJUHJDGD LQVXÀFLHQWH


é compensada por uma elevada taxa de imobilizações. Para se defender contra
a desvalorização da moeda e aproveitar-se de taxas negativas de juros, as
empresas e os indivíduos imobilizam o mais possível, e assim mantêm o nível
de demanda agregada e a taxa de lucros. Nesse processo, o papel do governo,
emitindo para fazer frente aos aumentos de preços e a consequente diminuição
da quantidade real de moeda, é óbvio. Emitindo, o governo cobre o seu próprio
GpÀFLWFDXVDGRSHORVDXPHQWRVDXW{QRPRVGHSUHoRVHSHODVXDLQFDSDFLGDGH
política de aumentar a carga tributária. Por outro lado, ele novamente faz a
LQÁDomRIXQFLRQDUFRPRPHFDQLVPRGHGHIHVDGDHFRQRPLD
(VVDDQiOLVHGH5DQJHOTXHYHPDS~EOLFRHPGHQVDLQRYDGRUD
e dialética era uma análise de quem estava profundamente engajado no
processo político da época, e preocupava-se com a crise em que a economia
EUDVLOHLUDHVWDYDLPHUVD6HXGLDJQyVWLFRGHHQWmRGHXPDLQÁDomREDVLFDPHQWH
UHODFLRQDGDFRPDHVWUXWXUDGDGLVWULEXLomRGHUHQGDVXDYHULÀFDomRGHTXHD
LQÁDomRHUDGHFXVWRVRXDGPLQLVWUDGDHQmRGHGHPDQGDHTXHDLQÁDomRFRPR
um todo era um mecanismo de defesa da economia em face a seus próprios
desequilíbrios, inovaram radicalmente o pensamento econômico brasileiro. Mas
5DQJHOMiSHUFHELDTXHHVVH©PHFDQLVPRGHGHIHVDªHUDFLUFXQVWDQFLDO5DQJHO
QmRHVWDYDID]HQGRDDSRORJLDGDLQÁDomR6XDOXWDHUDFRQWUDRVHTXtYRFRVGH
HQWmRVREUHRSURFHVVRLQÁDFLRQiULR&RQIRUPHDVVLQDORX:LOVRQ&DQR 9,, 
VXDDQiOLVHSLRQHLUDHLVRODGDOHYRXDTXHVHXOLYURIRVVH©jpSRFDLQWHQVDPHQWH
criticado, tanto pela esquerda quanto pela direita. Diria melhor: talvez tenha sido
um dos mais incompreendidos trabalhos sobre economia brasileira, dado que, se
EHPPHOHPEURDPDLRULDGHVHXVFUtWLFRVQmRSDVVRXGDVXSHUÀFLDOLGDGHª(P
um parágrafo de seu livro, entretanto, Rangel delineia o limite da funcionalidade
GDLQÁDomRHDQWHFLSDDRFRUUrQFLDGHXPIHQ{PHQR²©HVWDJÁDomRµ²TXHHP
HUDGHVFRQKHFLGR$ÀUPD5DQJHO´$LQÁDomRWDPEpPQRVSUHRFXSDPDV
SRURXWURPRWLYRSRUXPPRWLYRSUDJPiWLFRSRUTXHSRUPXLWRHÀFD]TXHVHMD
esse instrumento por muitos que sejam os serviços que já nos prestou, ele tem
limitações e, precisamente porque é útil, não devemos abusar dele, para não
GHVWUXtOR &RP HIHLWR D LQÁDomR WHP R SRGHU GH FRQYHUWHU HP FHUWD PHGLGD,
aquilo que poderia ser um declínio da atividade do sistema econômico, num
movimento relativamente inócuo de alta de preços. Mas, notemos bem, em certa
PHGLGD. Para além, teremos, simultaneamente, DLQÁDomRJDORSDQWH que destrói
o próprio instrumento, e a GHSUHVVmRHFRQ{PLFDµ JULIRVGRDXWRU 
Para Rangel, a economia brasileira apresenta ciclos breves (decenais)
regulares. É exatamente a partir da análise de nossos ciclos breves que Rangel

D
D 142
WLUD HOHPHQWRV SDUD D FRPSUHHQVmR GR SURFHVVR LQÁDFLRQiULR H UHFHVVLYR 
dos anos 80. “Os ciclos breves - também apelidados de Juglar-Marx, ou, na
FODVVLÀFDomRGH6FKXPSHWHUGHFLFORVPpGLRVWrPXPDGXUDomRYDULiYHODFHLWD
como de 7 a 11 anos. Mas é de notar que nossos ciclos breves, companheiros
de nossa industrialização substitutiva de importações, cobrem lapsos muito
UHJXODUHVGHGH]DQRVHQWUHRVDQRVÀQDLVGHFDGDGHFrQLRHGRVXEVHTXHQWHµ
   3DUD 5DQJHO R FRQWH~GR GH FDGD XP GHVVHV FLFORV WHP VLGR D
implantação de sucessivos grupos de atividades, isto é, dos setores em que é
possível dividir o sistema econômico brasileiro: “começando pela indústria leve
e empreendendo, depois, a indústria pesada e os serviços de infra-estrutura.
(PUHVXPRDRFRQFOXLUVHDIDVH´DµGHFDGDXPGHQRVVRVFLFORVHQGyJHQRV
VRPRVFRQIURQWDGRVFRPGRLV´VHWRUHVµXPGRWDGRGHH[FHVVRGHFDSDFLGDGH
SURGXWLYDHRXWURUHWDUGDWiULRHPUHODomRDRVLVWHPDFRPRXPWRGRµ  
1HPWRGDVDVÁXWXDo}HVHFRQ{PLFDVWrPFDUiWHUFtFOLFRPDVDIDVH´Dµ
GRFLFOREUHYHGHFRLQFLGLXFRPDHWDSDÀQDOGDIDVHDVFHQGHQWHGRFLFOR
longo. Para Rangel, não é improvável que esse fator tenha gravitado sobre o nosso
FLFOREUHYHUHWDUGDQGRSRUDOJXQVDQRVDSDVVDJHPGDIDVH´DµSDUDDIDVH´Eµ R
´PLODJUHµGH $VVLPDIDVH´EµRXUHFHVVLYDGRQRVVRFLFORHQGyJHQR
dos anos 70 foi, não apenas mais curta, como mais amena. Entretanto, como é
sabido, a situação inverteu-se violentamente no início dos anos 80. Teve início
a fase recessiva do ciclo breve endógeno, e isso nas condições da persistência
da fase recessiva do ciclo longo, que é exógeno, do ponto de vista brasileiro.
'LÀFLOPHQWHSRGHUHPRVHQFRQWUDUHPQRVVDKLVWyULDXPSHUtRGRWmRGHSUHVVLYR
FRPR
$SDUWLUGHVWDUHFHVVmRHFRPEDVHHPVXDYLVmRPDLVJHUDOGDLQÁDomR
FRPRXPPHFDQLVPRGHGHIHVDGDHFRQRPLDHP5DQJHOIRUPXODGHIRUPD IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
SUHFLVDXPDLGHLDTXHMiYLQKDGHVHQYROYHQGRKiPXLWRD´FXUYDGH5DQJHOµ(OH
nega a teoria universalmente aceita, embutida na curva de Philips, segundo a
TXDODLQÁDomRVHDFHOHUDQRVSHUtRGRVGHSURVSHULGDGHHH[FHVVRGHGHPDQGD
3HOR FRQWUiULR VHJXQGR HOH ´Ki SHOR PHQRV XP TXDUWHO GH VpFXOR D LQÁDomR
integra a síndrome da recessão, isto é, surge ou se exacerba TXDQGRDHFRQRPLD
VHGHVDTXHFHe, inversamente, desaparece ou, pelo menos, tem sua intensidade
reduzida quando a HFRQRPLD VH DTXHFH. Não há, portanto, nenhum WUDGHRII
D ID]HU SRUTXH R FRPEDWH j LQÁDomR p LQVHSDUiYHO GR FRPEDWH j UHFHVVmRµ
F   3DUD VXEVWDQFLDU VXD KLSyWHVH 5DQJHO FRQVWUyL GXDV FXUYDV GH
PpGLDV WULHQDLV PyYHLV FRP GDGRV GH  D  8PD FXUYD DSUHVHQWD D
SURGXomR LQGXVWULDO D RXWUD D LQÁDomR 9HULÀFDVH SRU HVVD FXUYD XPD TXDVH
SHUIHLWDDVVLPHWULDTXDQGRDSURGXomRLQGXVWULDOFUHVFHDLQÁDomRGHVDFHOHUD

D
D 143
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

HYLFHYHUVD F 5DQJHOSHUJXQWDRSRUTXrGHVWD´HOHJDQWHHHVGU~[XOD


DVVLPHWULDµ6XDUHVSRVWD

...trata-se de saber o SRUTXr, dessa supostamente HVGU~[XOD


correlação entre os índices de preços e os indicadores de conjuntura...
Para isso não temos ainda respostas tão claras e contundentes,
mas, pelo mesmo como primeira KLSyWHVH GH WUDEDOKR, podemos
alinhar dois fatos relevantes: (a) como vem insistindo Bresser-
Pereira, a economia acha-se fortemente oligopolizada, o que
permite uma medida considerável de DGPLQLVWUDomR GH SUHoRV; o
oligopólio, como se sabe, é um monopólio em potencial, desde que
os oligopolistas se entendam entre si; (b) como venho propondo eu
próprio para completar essa explicação, podem criar-se condições
tais que induzam o setor oligopolista-oligopsonista a usar seu novel
poder de administração dos preços em escala macroeconômica,
e não por simples má-fé, mas porque as condições gerais de
operação do sistema a isso o impelem. Com efeito, se escasseiam
oportunidades de investimento – fato típico das fases recessivas dos
ciclos – o empresariado, no comando de excesso de capacidade,
pode desinteressar-se da formação das chamadas ’sobras de caixa’
WDQWRPDLVTXDQWRDPHVPDLQÁDomRTXHSHQDOL]DDSUHIHUrQFLDGD
liquidez MiDFXPXODGD, pode induzir a manobras no sentido de evitar
a acumulação da mesma liquidez, limitando sua produção. Esse é o
HORTXHIDOWDYDSDUDH[SOLFDURSURFHVVRGHH[DFHUEDomRGDLQÁDomR
nos períodos recessivos (quando a demanda é mínima) e não nos
períodos ascendentes (quando a demanda é máxima).

+RMH HVWi FODUR TXH QDV FULVHV ÀQDQFHLUDV GH EDODQoR GH SDJDPHQWRV
a taxa de câmbio se deprecia violentamente e, em consequência, a taxa de
LQÁDomR DXPHQWD 3RU LVVR 5DQJHO DÀUPDYD TXH D LQÁDomR QD PHGLGD TXH p
um mecanismo de defesa da economia nos momentos de crise, é também um
sintoma da crise. Por isto temos a curva de Rangel: quando a crise se agrava, a
LQÁDomRVHDFHOHUDTXDQGRDHFRQRPLDYROWDDFUHVFHUDLQÁDomRGHVDFHOHUD
0DV HP FHUWRV FDVRV QR FXUWR SUD]R D LQÁDomR SRGH VHU GH GHPDQGD H VH
acelerar devido à prosperidade ou ao excesso de demanda. Mas este é um
fenômeno de curto prazo, enquanto que a curva de Rangel é um fenômeno de
ORQJRSUD]R&RPRDPRHGDpHQGyJHQDWDPEpPDLQÁDomRpHQGyJHQDQDYLVmR
de Rangel.
(VWD FUHQoD QD HQGRJHQLGDGH GD LQÁDomR H VXD UHODomR DVVLPpWULFD
com os movimentos cíclicos da economia levou Rangel a não compreender a

D
D 144
LPSRUWkQFLDGDWHRULDGDLQÁDomRLQHUFLDO1mRFRPSUHHQGHXTXHHVVDWHRULDTXH
YrWDPEpPDLQÁDomRFRPRXPSURFHVVRDXW{QRPRGDGHPDQGDpSHUIHLWDPHQWH
FRPSDWtYHOFRPDVXDSUySULDWHRULDGDLQÁDomR$WHRULDGDLQÁDomRLQHUFLDOHVWi
baseada na distinção entre os fatores aceleradores e os fatores mantenedores
GDLQÁDomR Seguindo a tradição de todos os economistas que precederam essa
teoria, Rangel não faz essa distinção. Torna-se, assim, difícil para ele admitir
que a indexação formal e principalmente informal da economia mantenha a
LQÁDomRHPXPGHWHUPLQDGRSDWDPDULQGHSHQGHQWHPHQWHGRVIDWRUHVFtFOLFRV
que a estão acelerando ou desacelerando. Por outro lado, e neste caso com mais
UD]mRSDUDHOHpLQWHLUDPHQWHLQDFHLWiYHOTXHRSURFHVVRLQÁDFLRQiULRTXHVHP
dúvida se acha profundamente inserido no processo cíclico da economia, possa
ser eliminado com um simples choque, como algumas visões mais vulgares da
WHRULDGDLQÁDomRLQHUFLDOVXJHULDP4XDVHLQGLJQDGRDÀUPD5DQJHOORJRDSyVR
fracasso do Plano Cruzado: “Alguns mestres explicavam que, para acabar com a
LQÁDomRHUHVROYHUDVVLPWRGRVRVQRVVRVSUREOHPDVEDVWDULDTXHDFDEiVVHPRV
com as variações dos preços relativos. Outros mestres, igualmente eminentes,
GL]LDPTXHDLQÁDomRVXUJLUDFRPRXPDHVSpFLHGH¶'HXVH[PDFKLQD·SRGHQGR
ser mandada embora não menos miraculosamente, visto não ter nenhuma
FDXVDomRSURIXQGDSHUVLVWLQGRSRUVLPSOHVLQpUFLDµ E 

Conclusão

Poderíamos continuar a analisar muito mais longamente a obra de


Ignacio Rangel, cuja riqueza é inesgotável. Esperamos, entretanto, ter deixado
claro como o notável mestre, adotando um método histórico e dialético, crítico e
original, usa com liberdade os instrumentos da teoria econômica, particularmente IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
da teoria dos ciclos, da sua própria teoria da dualidade, para explicar o processo
de desenvolvimento do Brasil e a os seus mecanismos de defesa, particularmente
DLQÁDomR

59
$YLVmRGDLQÀDomRGH%UHVVHU3HUHLUDIRLVHPSUHIRUWHPHQWHLQÀXHQFLDGDSRU5DQJHO(PXPDUWLJR
GH³$LQÀDomRQRFDSLWDOLVPRGH(VWDGR´QRTXDOSHODSULPHLUDYH]IRUPXORXDLGHLDGDLQÀDomR
LQHUFLDOVXDH[SOLFDomRSDUDDLQÀDomRHUDDLQGDHVVHQFLDOPHQWHUDQJHOLDQD(QWUHWDQWRQRDUWLJRGH
1983, com Yoshiaki Nakano, os autores distinguem com clareza os fatores aceleradores dos mantenedo-
UHVGDLQÀDomRTXHVLJQL¿FRXXPSDVVRDGLDQWHGHFDUiWHUWHyULFR

60
&RQIRUPHREVHUYRX-RVp$UWKXU*LDQQRWWLHPXPDHQWUHYLVWD³4XDQWRPDLVQyVHVWXGDPRVRVFOiVVL-
cos, maior é a nossa angústia diante das coisas que nos escapam por entre os dedos” (Veja, 14.10.1992,
S 

D
D 145
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

Em toda a sua análise, Rangel é de um lado pioneiro, pronto sempre a


inovar, de outro nunca se esquece de sua missão de intelectual engajado no
processo de desenvolvimento brasileiro e se antecipar na análise de seus grandes
problemas. Todo o seu pensamento está voltado para a ação prática, para a
política econômica. Por isto, nesta conclusão queremos nos referir brevemente
DRWHPDTXHGHVGHGRPLQRXVXDYLVmRGR%UDVLO'HIRUPDSLRQHLUDQR
Posfácio da terceira edição de $ ,QÁDomR %UDVLOHLUD   HOH SHUFHEHX TXH
o Estado brasileiro estava entrando em uma profunda crise, ao mesmo tempo
TXH VH HVJRWDYD D SRVVLELOLGDGH GH ÀQDQFLDPHQWR H[WHUQR 6HJXQGR 5DQJHO
´7HPSRUDULDPHQWHRLQÁX[RGHUHFXUVRVH[WHUQRVHRFUHVFLPHQWRGRVUHFXUVRV
ÀVFDLV HSDUDÀVFDLV SHUPLWLUDPID]HUDOJXPDFRLVDSDUDSURPRYHUDH[SDQVmR
dessas atividades, mas é claro que esse tempo passou, porque os recursos
externos começaram a escassear, o mesmo acontecendo com os recursos
ÀVFDLVGDGRTXHRVLVWHPDH[DWRUFRPHoDDQmRIXQFLRQDUWmREHPFRPRDQWHVµ
   3RU RXWUR ODGR R VHWRU SULYDGR HVJRWDUD FLFOLFDPHQWH VXDV
oportunidades de investimento, dispondo de recursos ociosos, enquanto que
QD iUHD GRV VHUYLoRV S~EOLFRV FRQWLQXDYD D H[LVWLU XPD LPHQVD GHÀFLrQFLD GH
investimentos. Desta forma, não obstante suas origens de esquerda, Rangel não
tem qualquer dúvida em propor a privatização, que para ele permitiria a retomada
do desenvolvimento, o início de um novo ciclo expansivo. Para isto, entretanto,
VHULD QHFHVViULR PRQWDU XP PHFDQLVPR ÀQDQFHLUR TXH SHUPLWLVVH WUDQVIHULU
DV SRXSDQoDV SULYDGDV SDUD R ÀQDQFLDPHQWR GRV LQYHVWLPHQWRV S~EOLFRV $
FRQFHVVmR GH VHUYLoRV S~EOLFRV TXH QR LQtFLR GRV DQRV  VH WRUQRX RUGHP
do dia da economia brasileira, conjuntamente com a privatização, é a solução
DQWHYLVWDSRU5DQJHOMiHP6XDH[WUDRUGLQiULDDUJ~FLDHLQYHQWLYLGDGHPDLV
uma vez se comprovavam.

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'HVHQYROYLPHQWLVWD 5LR GH -DQHLUR ,3($,13(6  7HVH GH GRXWRUDGR
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D
D 
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D 147
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

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5HSXEOLFDGRHP-RVp05HJRRUJ,QÁDomR,QHUFLDO7HRULDVVREUH,QÁDomR
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D 148
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SOLOMOU, Solomos. 3KDVHV RI (FRQRPLF *URZWK  . Cambridge:
&DPEULGJH8QLYHUVLW\3UHVV
TAVARES, Maria da Conceição. 'D6XEVWLWXLomRGH,PSRUWDo}HVDR&DSLWDOLVPR
)LQDQFHLUR5LRGH-DQHLUR=DKDU

D
D 150
III
IGNACIO RANGEL,
incursões
2GHVDÀRGDVFRQFHVV}HVGHVHUYLoRV
de utilidade pública:
atualidade do pensamento de Rangel
)HOLSH0DFHGRGH+RODQGD

$WUDMHWyULDLQWHOHFWXDOSROtWLFDHSURÀVVLRQDOGH,JQDFLR5DQJHOHVSHOKRX
as grandes transformações ocorridas na sociedade brasileira ao longo do século
XX: esta, de eminentemente rural a avassaladoramente urbana; de pré-industrial
D ÀQDQFHLURLQGXVWULDO GR YRWR GH FDEUHVWR DR SRSXOLVPR HOHWU{QLFR 2 0HVWUH
5DQJHO SRU VHX WXUQR GH DFDGrPLFR HP GLUHLWR H ÀORVRÀD D DXWRGLGDWD HP
economia e quadro da CEPAL; de integrante da Aliança Libertadora Nacional e
encarcerado pela ditadura de Getúlio Vargas a conselheiro econômico deste último
e também dos presidentes JK e Jango. Como tecnoburocrata e formulador da
política econômica, Rangel foi participante e observador privilegiado do processo
de transformação dos mecanismos de intervenção estatal e planejamento que
deram sustentação à referida trajetória histórica do Brasil.
Na abordagem singular de Rangel sobre o desenvolvimento econômico
brasileiro aparecem dois construtos teóricos dotados de centralidade – a teoria
dos ciclos econômicos e o processo de substituição de importações como motor
GR GHVHQYROYLPHQWR HFRQ{PLFR 6XD DERUGDJHP j WHRULD GRV FLFORV LGHQWLÀFD IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
RV FLFORV GH .RQGUDWLHII FRPR ÁXWXDo}HV GH FXQKR HFRQ{PLFRWHFQROyJLFR
emanadas do centro dinâmico da economia mundial, com aproximadamente 50
anos de duração, as quais determinam a forma como se desenvolve a divisão
internacional do trabalho, vale dizer, as possibilidades de inserção das economias
periféricas no mercado internacional.
No caso brasileiro, economia periférica, as fases ascendentes do ciclo
externo se traduziram em um intenso dinamismo do setor exportador, com
ampliação da corrente de comércio e da especialização da estrutura produtiva.
Nas fases descendentes do ciclo de Kondratieff, a contração da demanda externa
e a decorrente redução da capacidade de importar (expressa na desvalorização
dos termos de intercâmbio) dá lugar a um ciclo de substituição de importações

D
D 153
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

que permite avançar na constituição de uma economia crescentemente urbana


e industrial.
As economias periféricas, a exemplo da brasileira, caracterizam-se por
uma dualidade entre o setor exportador, especializado e de elevada produtividade,
HP FRQWUDSRVLomR DR VHWRU YROWDGR SDUD R PHUFDGR LQWHUQR GLYHUVLÀFDGR H GH
baixa produtividade. Em cada mudança de fase cíclica observam-se mudanças
sociais, que abarcam, segundo Rangel, a constituição de novas estruturas
políticas, jurídicas e institucionais, cuja síntese se consubstancia na alteração
do próprio pacto de poder existente. Por sua vez, o pacto de poder reúne em
cada fase do ciclo a classe (ou fração de classe) hegemônica remanescente do
período anterior e uma nova classe (ou fração de classe) que emerge nas novas
condições econômico-sociais do momento presente.
A fase descendente do terceiro ciclo Kondratieff, compreendida entre os
DQRVHSHUPLWLXDFRQVROLGDomRGHXPVHWRUHPLQHQWHPHQWHLQGXVWULDO
no Brasil, dotando o sistema econômico da capacidade de avançar segundo
uma dinâmica cíclica própria – os ciclos juglarianos (de aproximadamente 10
DQRV  RV TXDLV ´PRGXODQGRµ RV FLFORV H[WHUQRV FRQIHULUDP XPD HVSpFLH GH
autonomia da economia brasileira em relação aos ciclos emanados do centro
dinâmico da economia mundial. Assim, no período ascendente posterior (a fase
$GRTXDUWRFLFORGH.RQGUDWLHIIFRPSUHHQGLGDHQWUHH RDYDQoRGD
industrialização com participação fundamental do Estado enquanto promotor e
agente responsável pelos segmentos de infraestrutura, permitiu a continuidade
e o aprofundamento do processo de substituição de importações. O pacto de
poder subjacente à passagem para a economia urbano-industrial tinha como polo
hegemônico a classe dos latifundiários feudais (capitalistas em suas relações
´SDUDIRUDµGDVSRUWHLUDVHIHXGDLVQDVUHODo}HVGHWUDEDOKR´SDUDGHQWURµGDV
porteiras) e como polo associado a emergente classe industrial.
Um aspecto importante na formulação de Rangel é que os momentos de
mudanças nos pactos fundamentais de poder se caracterizaram pela ocorrência
de crises recessivas, durante as quais a economia passava a ser tensionada
pela contraposição de setores com excesso de capacidade produtiva e outros
VHWRUHVFRPLQVXÀFLrQFLDGHFDSDFLGDGH$VWDUHIDVFRORFDGDVDRVIRUPXODGRUHV
da política econômica e aos gestores das agências estatais para solucionar tais
FULVHVHDEULUXPQRYRSHUtRGRGHH[SDQVmRHFRQ{PLFDVLJQLÀFDYDPSUHFLVDPHQWH
a criação de mecanismos para transferir os recursos ociosos dos setores com
excesso de capacidade (poupança) para aqueles setores com gargalos de oferta
(investimentos).

D
D 154
Este processo de realocação de recursos envolvia também uma redivisão
GH WDUHIDV HQWUH RV VHWRUHV S~EOLFR H SULYDGR VLJQLÀFDQGR D SULYDWL]DomR GH
determinadas atividades, ao mesmo tempo em que exigia a assumpção pelo
Estado de uma gama de novas funções e atividades necessárias para dar
sustentação ao novo ciclo de expansão econômica. Tais medidas, nada triviais,
muitas vezes foram adotadas pelos gestores sem que estes soubessem
exatamente o alcance que as mesmas teriam nos anos seguintes.
Cada crise recessiva, relacionada a determinado estágio do
desenvolvimento das forças produtivas do país, exigiria, segundo Rangel,
PHGLGDV HVSHFtÀFDV SDUD SHUPLWLU D UHDORFDomR GH UHFXUVRV HQWUH RV VHWRUHV
super e subinvestidos. Assim, no período pós 2ª guerra mundial, a Instrução 70
da SUMOC representou o cerne de tais medidas, viabilizando a continuidade da
substituição de importações de bens duráveis de consumo, através da criação
de taxas de câmbio preferenciais para a importação de máquinas, equipamentos
e insumos industriais.
$ FULVH UHFHVVLYD GRV DQRV  TXH OHYRX DR ÀP D MRYHP GHPRFUDFLD
parlamentar brasileira, abrindo um ciclo ditatorial que demoraria 20 anos para
se exaurir, exigiu outro conjunto de medidas para viabilizar a transferência de
recursos dos setores superinvestidos para os subinvestidos. A correção monetária
constituiu o cerne das inovações institucionais que criaram as condições para o
SHUtRGRGHLQWHQVRGLQDPLVPR TXHÀFRX FRQKHFLGRFRPRR0LODJUH %UDVLOHLUR.
O problema fundamental que se colocava na época era estruturar um novo
SDGUmRGHÀQDQFLDPHQWRTXHSHUPLWLVVHHPFRQYLYrQFLDFRPWD[DVGHLQÁDomR
relativamente altas, viabilizar a aquisição de bens duráveis de consumo
(automóveis e eletrodomésticos) e a formação de um mercado secundário
para os títulos da dívida pública federal que lastreassem operações de crédito IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
destinadas à implantação dos grandes fundos de investimentos públicos em
infraestrutura e serviços de utilidade pública (Eletrobrás, Telebrás, Siderbrás,
Petrobrás) e em habitação (Sistema Financeiro da Habitação).
5DQJHOQRVHQVLQDTXHFDGDFRQMXQWXUDFUtWLFDWUD]VHXSUySULRGHVDÀR
político-institucional: a crise dos anos 80 foi avaliada por ele como um
período de superposição da fase descendente do quarto ciclo de Kondratieff
LQDXJXUDGDFRPDFULVHGRSHWUyOHRHPTXHGHXOXJDUXPDFULVHPXQGLDO
sincronizada, com impactos maiores nos países importadores de petróleo, a
exemplo do Brasil) com uma crise interna. Esta se caracterizava como uma crise
GRSDGUmRGRÀQDQFLDPHQWRGRVHWRUS~EOLFREUDVLOHLURWHQGRFRPRGHFRUUrQFLD
RDSURIXQGDPHQWRGRGHVFRQWUROHLQÁDFLRQiULR

D
D 155
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

2 GLDJQyVWLFR GH 5DQJHO DFHUFD GD FULVH GRV DQRV  DSRQWDYD
a contraposição entre um setor privado superinvestido, principalmente nos
segmentos de bens de capital e de insumos intermediários, e um setor público
subinvestido, principalmente nos segmentos dos serviços de utilidade pública,
WDLVFRPRFRPXQLFDo}HVHOHWULÀFDomRWUDQVSRUWHVVDQHDPHQWREiVLFRHQWUH
outros.
O processo brasileiro de urbanização acelerada, caracterizado pela
ausência de planejamento e pela formação de enormes aglomerados urbanos
carentes de infraestrutura básica, apontava para a necessidade imperiosa da
realização de grandes investimentos nos serviços de utilidade pública. Tais
investimentos, na medida em que ofereciam um canal de valorização para os
recursos ociosos existentes no setor superinvestido da economia, apontavam o
caminho para a superação da crise.
O problema é que as empresas públicas responsáveis pela prestação dos
referidos serviços de utilidade pública, encontravam-se em situação de “profunda
LQVROYrQFLDµGDGRRIDWRGHTXHMiWLQKDP´ODQoDGRPmRGHWRGRVRVUHFXUVRV
ÀVFDLVDQWHFLSiYHLVVHMDSHORFUpGLWRLQWHUQRVHMDSHORH[WHUQRµ. A solução para
o desbloqueio dos investimentos seria a conversão da concessão dos serviços
de utilidade pública das empresas públicas para empresas privadas, as quais
poderiam acessar fontes de crédito públicas e privadas de forma mais barata e
com menores condicionalidades do que as empresas públicas.
O mecanismo proposto por Rangel para permitir às empresas privadas
concessionárias o acesso ao crédito público e privado seria o aval do Estado
brasileiro, com base em garantias hipotecárias sobre as instalações e
equipamentos das concessionárias dos serviços públicos. Neste arranjo,
impunha-se a prática de um realismo tarifário, que tivesse como referência o
custo da execução dos referidos serviços, considerando-se a soma das despesas
FRUUHQWHV GD SUHVWDomR GRV UHIHULGRV VHUYLoRV D GHSUHFLDomR GR FDSLWDO À[R
investido e um lucro legalmente autorizado referenciado no custo de capital, de
acordo com as condições do mercado acionário e de títulos internos. Tal era, em
suma, segundo a formulação de Rangel, o mecanismo que permitiria a superação
da crise recessiva de então e a geração de um novo ciclo de crescimento.
Hoje, um quarto de século após, é impressionante como a análise de
Rangel e suas prescrições permanecem pertinentes. O tema das concessões dos

61
Um dos motivos pelos quais se agravou a insolvência das concessionárias de serviços de utilidade
S~EOLFDIRLDXWLOL]DomRGDVWDULIDVSDUDFRQWUROHGHLQÀDomRHGDVSUySULDVHPSUHVDVFRPRYHtFXORVGH
captação de empréstimos externos no período 1973-1980. Sobre o tema ver CRUZ (1984).

D
D 
VHUYLoRVS~EOLFRVjVHPSUHVDVSULYDGDV DSDODYUD´SULYDWL]DomRµWRUQRXVHXP
anátema no atual governo) transformou-se na grande aposta para a aceleração
dos investimentos e a consequente viabilização de uma taxa de crescimento do
produto menos modesta em comparação ao patamar que vigora após a eclosão
GDFULVHÀQDQFHLUDLQWHUQDFLRQDOGH
Os acontecimentos do último quarto de século podem ser sumarizados
com o apoio de algumas das categorias rangelianas. A forte ampliação da
OLTXLGH]LQWHUQDFLRQDOQRLQtFLRGRVDQRV²XPVXESURGXWRGDVSROtWLFDVGH
combate à recessão no centro dinâmico do capitalismo mundial – permitiram ao
governo brasileiro renegociar a dívida externa e ampliar o estoque de reservas
internacionais, o que viabilizou o lançamento de uma estratégia bem sucedida de
estabilização monetária - o Plano Real - em um horizonte de tempo bem inferior
ao que Rangel imaginara.
$UHGXomRGDLQÁDomRSDUDSDWDPDUHVGHXPGtJLWRSDUDDOpPGHWHUVH
tornado um importantíssimo ativo eleitoral, permitiu o alongamento do horizonte de
crédito das empresas e dos consumidores, o que engendrou um aprofundamento
dos mercados de consumo, especialmente de bens duráveis. As mudanças
institucionais novamente foram fundamentais para permitir a realocação de
UHFXUVRVHQWUHVHWRUHVVXSHUHVXELQYHVWLGRVGDHFRQRPLD$FOiXVXODGHÀG~FLD
abriu o caminho para a expansão do crédito e dos investimentos imobiliários. O
tripé macroeconômico herdado do segundo governo Fernando Henrique Cardoso
VXSHUiYLW SULPiULR ÀVFDO PHWDV GH LQÁDomR H FkPELR ÁXWXDQWH  PDQWLGR QRV
dois governos do Presidente Lula, deu sustentação ao crescimento do crédito
GRPpVWLFRFRPWD[DGHMXURVUHDOHPGHFOtQLRHLQÁDomREDL[D
A política de elevação real do salário mínimo em cerca de 40% acima da
LQÁDomRRÀFLDOQRSHUtRGRDUHSHUFXWLXQDDFHOHUDomRGRFUHVFLPHQWR IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
da massa salarial brasileira, com maiores impactos entre os trabalhadores de
renda mais baixa, reduzindo a desigualdade salarial e ampliando o acesso desses
segmentos da população ao mercado de bens de consumo. Após duas décadas
de elevação do desemprego e de ampliação do peso do segmento informal,

62
O sucesso obtido com estabilização monetária teria sido maior não fossem os graves erros de estra-
tégia cometidos: a experiência internacional e a teoria econômica relevante recomendam que a abertura
¿QDQFHLUDVHMDSUHFHGLGDSHODDEHUWXUDFRPHUFLDOHTXHHVWDVHMDIHLWDGHPDQHLUDJUDGXDOSDUDHYLWDU
WUDXPDVVREUHDHVWUXWXUDLQGXVWULDO1R%UDVLOGHXVHRFRQWUiULRXPDDEUXSWDDEHUWXUD¿QDQFHLUDQRV
anos 1992-3, seguida por uma rápida abertura comercial, o que levou a uma rápida valorização cam-
bial, ampliando a pressão competitiva sobre a indústria. A abertura externa, funcional para o controle
GDLQÀDomRWHUPLQRXSRUOHYDUDXPDFULVHFDPELDOQR¿QDOGDGpFDGDGXUDQWHDTXDORHQGLYLGDPHQWR
mobiliário do setor público que se encontrava no patamar de 27% do PIB no lançamento do Plano Real,
XOWUDSDVVRXRSDWDPDUGHGR3,%QRLQtFLRGH

D
D 157
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

observou-se na década de 2000 um processo de reestruturação do mercado de


trabalho brasileiro, o qual se traduziu na redução da taxa de desemprego e no
aumento da formalização da força de trabalho ocupada.
A expressiva ampliação dos programas de transferência de renda,
XQLÀFDGRVVREDEDQGHLUDGR3URJUDPD%ROVD)DPtOLDHPERUDWHQKDVLGRSRXFR
efetiva no que diz respeito à redução da desigualdade, contribuiu para melhorar
a segurança alimentar e o acesso à educação básica de milhões de famílias,
especialmente nas regiões Nordeste e Norte do país. A ampliação e capilarização
GRFRQVXPR WDPEpPIDFLOLWDGDSRULQRYDo}HVÀQDQFHLUDVDH[HPSORGRFUpGLWR
FRQVLJQDGR FRQWULEXtUDPSDUDDHPHUJrQFLDGRTXHPXLWRVDQDOLVWDVFODVVLÀFDP
como nova classe C.
No front externo, em um contexto de expansão da liquidez internacional
(sustentada na política monetária anticíclica norte-americana), destacou-se
o vertiginoso ciclo de industrialização chinês, que impactou os mercados de
FRPPRGLWLHV agrícolas e minerais, levando a uma valorização dos termos de troca
HPIDYRUGDTXHODSDUFHODFDGDYH]PDLVVLJQLÀFDWLYDGDVH[SRUWDo}HVEUDVLOHLUDV
Pode-se descrever um ciclo expansivo do centro dinâmico da economia
PXQGLDO QR SHUtRGR  D  TXH SRGHULD VHU FDUDWHUL]DGR HP WHUPRV
UDQJHOLDQRV FRPR D IDVH $ GR ž FLFOR GH .RQGUDWLHII"  QD IDVH ÀQDO GR
qual a economia brasileira se conectou ao mercado internacional de forma
privilegiada - registrou-se, no interregno 2002 a 2008, uma triplicação do valor
das exportações brasileiras, ao mesmo tempo em que a China se transformou no
principal parceiro comercial brasileiro.
Ao contrário do ciclo expansivo anterior, observou-se na última década
um recuo no processo de substituição de importações. As exportações de
manufaturados, que constituíam cerca de 2/3 da pauta no início da década
GHUHFXDUDPSDUDFHUFDGHDRÀQDOGHVWD2EVHUYRXVHQRSHUtRGR
também um expressivo crescimento da penetração das importações na estrutura
industrial brasileira, concomitante a uma redução dos efeitos multiplicadores
63
O controverso argumento sobre o surgimento de uma nova classe média no Brasil na última década
deve ser pontuado pelo fato de que a esmagadora maioria dos componentes deste segmento emprega-
ram-se nos subsetores da construção civil e de comércio e serviços, com rendimentos médios concen-
trados no intervalo entre 1 e 2 salários mínimos. Sobre o debate em torno do surgimento de uma nova
classe média no Brasil ver, entre outros: NERI (2008) e POCHMANN (2012).

64
1HVWDOLYUHXWLOL]DomRGDWHRULDGRVFLFORVUDQJHOLDQDDIDVHDVFHQGHQWHGRžFLFORGH.RQGUDWLHII
teria como fatos marcantes a revolução da internet e a emergência da China como potência industrial,
DRSDVVRTXHDSDVVDJHPSDUDVXDIDVH%GHVFHQGHQWHVHULDPDUFDGDSHODFULVH¿QDQFHLUDLQWHUQDFLRQDO
GHÀDJUDGDSHORHVWRXURGDEROKDLPRELOLiULDsubprime nos EUA.

D
D 158
dos investimentos, em função do crescimento da participação das importações
de máquinas, equipamentos e insumos industriais no valor dos novos projetos
em instalação no país.
+i HYLGrQFLDV GH TXH QD ~OWLPD GpFDGD KRXYH XP ´GHVDGHQVDPHQWRµ
de importantes cadeias produtivas na estrutura industrial brasileira, a exemplo
dos segmentos da eletroeletrônica, mecânica, química e têxtil, o que coloca
HP FKHTXH DYDOLDo}HV GH TXH R %UDVLO WHULD ´FRPSOHWDGRµ QR SHQ~OWLPR FLFOR
expansivo um departamento D1 (de bens de capital) integrado e resiliente.
No que tange à natureza do ciclo de crescimento da última década,
é importante observar que o mesmo se sustentou, além do dinamismo das
exportações líquidas, em um acelerado crescimento do consumo doméstico,
tanto do setor privado, quanto do setor público. O investimento agregado registrou
XPPHQRUGLQDPLVPRFRPVXDSDUWLFLSDomRQR3,%RVFLODQGRQRSDWDPDUGH
a 18% no período, incapaz de promover o desejável crescimento sustentando no
longo prazo.
$FULVHÀQDQFHLUDLQWHUQDFLRQDOGHÁDJUDGDDSDUWLUGRHVWRXURGDEROKD
imobiliária VXESULPH nos EUA e com profundos impactos nos países no centro
dinâmico da economia mundial, veio para interromper o período de bonança
no comércio internacional, com uma abrupta redução da taxa de crescimento
dos países avançados, avanço do desemprego e volatilidade nos mercados de
capitais. O cenário tornou-se menos favorável ao Brasil, cuja taxa de crescimento
GR3,%UHFXRXSDUDSDWDPDUHVPpGLRVGDVGpFDGDVGHH
2 DJUDYDPHQWR GR GpÀFLW HP WUDQVDo}HV FRUUHQWHV EUDVLOHLUR HP XP
cenário de menor liquidez internacional (redução dos estímulos monetários nos
(8$ GHYHUiOHYDUDXPVLJQLÀFDWLYRDMXVWHGDWD[DGHFkPELRTXHSURYDYHOPHQWH
se completará somente após o encerramento das eleições gerais de 2014, em IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
XPFRQWH[WRGHDMXVWHÀVFDOHFRQWUDomRGRFUpGLWRGRPpVWLFR
Neste cenário, a partir do inevitável ajuste da relação câmbio-salário,
novamente se acionará um processo de substituição de importações, cuja
intensidade e extensão, dependerão da capacidade de fazer operar no Brasil
do próximo quinquênio a transferência de recursos dos setores com excesso
de capacidade (complexos industriais primário-exportadores e seus respectivos
EUDoRVÀQDQFHLURV SDUDDTXHOHVVHWRUHVVXELQYHVWLGRV
Destacam-se, dentre os setores subinvestidos, retomando o diagnóstico
UHDOL]DGRSRU5DQJHOHPPHDGRVGDGpFDGDGHRVVHUYLoRVGHXWLOLGDGH
pública, a exemplo do segmento de transportes (rodovias, ferrovias e hidrovias),
logística (portos, aeroportos) e armazenamento (silos e centrais de distribuição

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

de grãos). O setor de saneamento ocupa lugar de destaque dentre os setores


subinvestidos, constituindo um segmento de enorme carência no país e com
potencial para absorver expressivo contingente de mão de obra, não esquecendo
os enormes impactos sobre cadeias minero-metalúrgicas e de construção civil.
Na agenda reposta das concessões dos serviços de utilidade pública
à iniciativa privada, os parâmetros apontados por Rangel continuam válidos.
Seja qual for a estratégia escolhida em cada segmento, é necessário que se
busque um modelo tarifário que permita cobrir as despesas correntes, amortizar
o imobilizado e remunerar as concessionárias de acordo com as taxas de retorno
YLJHQWHVQRPHUFDGRGHFDSLWDLVGRPpVWLFR3ULRUL]DUDVUHFHLWDVÀVFDLVGHFXUWR
prazo ou buscar determinar H[DQWH a taxa de retorno dos concessionários, a
experiência recente demonstrou de forma cabal, são caminhos para inviabilizar
ou sabotar a realização dos investimentos pretendidos.
Não é demais frisar que para Rangel a prática de realismo tarifário
era de grande importância para o sucesso das concessões dos serviços de
utilidade pública. Neste sentido, a prática de SRSXOLVPRWDULIiULR, a exemplo do
subreajustamento dos preços dos combustíveis praticado nos anos recentes
QR%UDVLO SRUVHXVHIHLWRVPDOpÀFRVVREUHDVÀQDQoDVGD3HWUREUiVHVREUHR
Programa do Etanol) e do corte das tarifas de energia elétrica (pela geração de
GpÀFLWV SDUDÀVFDLV H SHOD MXGLFLDOL]DomR GR VHWRU HOpWULFR  p IDWRU JHUDGRU GH
grandes incertezas com relação ao valor presente dos investimentos e deve ser
colocado no rol das práticas testadas e rejeitadas.
Os ensinamentos do mestre Ignacio Rangel sobre a economia brasileira
continuam atuais e fecundos e suas ideias sobre a concessão de serviços de
utilidade pública às empresas privadas permanecem válidas na conjuntura atual
e devem ser retomadas e debatidas. A viabilização de um bloco de investimentos
nos serviços de utilidade pública atuará como fator compensador dos efeitos
sobre a economia brasileira do ciclo atual de desaceleração da economia
PXQGLDODSDUWLUGRVVLJQLÀFDWLYRVLPSDFWRVPXOWLSOLFDGRUHVGHHPSUHJRHUHQGD
A incorporação desses investimentos fará do Brasil um país mais integrado,
competitivo e dotado de cidades mais justas e sustentáveis.

5HIHUrQFLDV

CRUZ, P. D. 'tYLGD H[WHUQD H SROtWLFD HFRQ{PLFD D H[SHULrQFLD EUDVLOHLUD QRV


anos 706mR3DXOR%UDVLOLHQVH

D
D 
+2/$1'$ ) 0  $1&+,(7$ -5 9 ´$ GLQkPLFD GR PHUFDGR GH WUDEDOKR
PDUDQKHQVHQRSHUtRGRDRTXHPXGRXHRTXHSHUPDQHFH"µIn:
HOLANDA, F. M. (Org.). (VWXGRVVREUHDHFRQRPLDPDUDQKHQVHFRQWHPSRUkQHD.
São Luís: IMESC/SEPLAN, 2013.
NERI, M.C. $QRYDFODVVHPpGLD. Rio de Janeiro: FGV/IBRE, CPS, 2008. Disponível
em: http://www.fgv.br/cps/classe_media (acesso em 18 de junho de 2012)
POCHMANN, M. 1RYD FODVVH PpGLD"  2 WUDEDOKR QD EDVH GD SLUkPLGH VRFLDO
brasileira. São Paulo: Boitempo Editora, 2012.
5$1*(/,(FRQRPLDPLODJUHHDQWLPLODJUH  ,Q5$1*(/,2EUDV5HXQLGDV
– Volume 1 (organização de Cesar Benjamim). Rio de Janeiro: Contraponto:
Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, 2012.
BBBBBB 2 SDSHO GRV VHUYLoRV GH XWLOLGDGH S~EOLFD   ,Q 5$1*(/ ,
2EUDV 5HXQLGDV – Volume 2 (organização de Cesar Benjamim). Rio de
Janeiro: Contraponto: Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o
Desenvolvimento, 2012.

IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

Convergências entre Ignacio Rangel e


'HOÀP1HWWR
uma análise com base em Lênin
3DXORGH7DUVR3HVJUDYH/HLWH6RDUHV

Apresentação

4XDQGR IXL KRQUDGR FRP R FRQYLWH SDUD SDUWLFLSDU GHVVD KRPHQDJHP


DXPDXWRUTXHWDQWRLQÁXHQFLRXPLQKDYLGDDFDGrPLFDGLVVHDRSRUWDGRUGR
convite, ao Jhonatan Almada, do Departamento de Desenvolvimento do Ensino
de Graduação, da Pró-Reitoria de Ensino da Universidade Federal do Maranhão,
que já tinha um texto pronto, escrito no início dos anos 2.000, mas ainda inédito,
WUDWDQGRGDVVHPHOKDQoDVHQWUHDVWHVHVGRV0HVWUHV5DQJHOH'HOÀP1HWWR(OH
LQWHUHVVRXVHHÀTXHLGHID]HUDOJXQVDMXVWHVHHQYLiORQRSUD]RGHÀQLGR
Dei uma lida no material, achei que o texto estava bom e que era só fazer
XP´UHFRUWHµH´FRODµ0H[LXPSRXFRQRWH[WRPDVGHL[HLSDUDFRQFOXLORHQWUH
o natal e ano novo, quando estaria em férias, num local aprazível, no interior
de Minas Gerais, com a condição de trabalho que a obra de um Mestre como o
Rangel merece. Isso foi importante.
$QLPDGRFRPHFHLDWDUHID$ÀQDO5DQJHOIRLXPDUHIHUrQFLDIXQGDPHQWDO
na minha vida acadêmica. Foi uma parte fundamental na minha Dissertação
GH 0HVWUDGR &ULVH GRV $QRV  XP HVWXGR VREUH RV GLDJQyVWLFRV 5DQJHO
6LPRQVHQ6LQJHUH7DYDUHV)($863 1HODVDOWDjYLVWDDVXSHULRULGDGH
LQWHOHFWXDODVRÀVWLFDomRWHyULFDGRGLDJQyVWLFRUDQJHOLDQRYLVDYLVRVGHPDLV
diagnósticos nela tratados. Analisada por uma banca composta pelos Profs. Drs.
André Montoro Filho (orientador), José Roberto Mendonça de Barros e Luiz Carlos
Bresser Pereira, foi aprovada com nota dez com Distinção. Hoje essas menções
MiQmRH[LVWHPPDLVDEROLUDPR´FRPGLVWLQomRµR´FRPORXYRUµHR´FRPORXYRU
H GLVWLQomRµ DEROLUDP D GLIHUHQFLDomR GH PpULWR Vy H[LVWH R DSURYDGR RX QmR
aprovado. Uma mediocridade acadêmica consentânea com a mediocridade

D
D 
da fase monopólica do capitalismo. Basta mostrar destreza na aplicação de
um modelo. Para um velho como eu, no entanto, aquelas coisas ainda têm
importância, ainda estão na memória e Ignacio Mourão Rangel, portanto, ainda
é uma referência fundamental, inclusive pela argúcia teórica e política, pela
KRQHVWLGDGHHFRUDJHPLQWHOHFWXDOHSURÀVVLRQDO
2V DUHV GDV PRQWDQKDV PH À]HUDP EHP -i DYDQoDGR QD WDUHID GH
´UHFRUWDUµH´FRODUµFRPHFHLDÀFDULQFRPRGDGR&RPHFHLDÀFDULQVDWLVIHLWRFRP
o resultado que estava obtendo. Comecei a conjecturar que o texto original estava
PHOKRU GR TXH D ´PRGHUQL]DomRµ TXH HX HVWDYD WHQWDQGR SURPRYHU -XQWDQGR
DV WHVHV GRV 0HVWUHV 5DQJHO 'HOÀP 1HWR H /HQLQ DR LQYpV GH VLPSOLÀFDU HX
HVWDYDGLÀFXOWDQGRDFRPSUHHQVmRGROHLWRUWRUQDQGRRPDLViULGRSDUDRVQmR
iniciados nos temas ali tratados. Não me parece conveniente que um texto em
KRPHQDJHP ÀTXH UHVWULWR D FRPSUHHQVmR GRV LQLFLDGRV GRV Mi ´FRQYHUWLGRVµ
1mRSDUWLOKRGRDXWLVPRGDDFDGHPLDVXSRVWDPHQWHPDLVVRÀVWLFDGD
A tática original começou a me parecer mais didática: primeiro mostrar o
FRQVHQVRDRTXDO5DQJHOH'HOÀP1HWRHVHRSXVHUDPGHSRLVPRVWUDUDVFUtWLFDV
deles ao consenso. Finalmente mostrar como essas críticas estavam de acordo
FRPDVWHVHVGH/HQLQ4XDQGRHVVDSHUFHSomRWRUQRXVHXPDFRQYLFomRUHVROYL
GHVFDUWDUR´UHFRUWDHFRODµHHQYLDURWH[WRRULJLQDODFUHVFLGRGHXPD GHVWD 
Introdução. Não estou em competição por número de publicações estimulada
SHOD&DSHVSHORHVSHWiFXOR´GHERUGLDQRµTXHWRPRXFRQWDGDDFDGHPLD(VWRX
interessado apenas na compreensão dos alunos.
O texto que se segue é fruto de uma pesquisa no estágio probatório do
Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa (RDIDP) na Universidade
de São Paulo (USP). Ele seria um dos quatro capítulos de uma futura Tese de Livre
Docência, todos tendo como matriz teórica os trabalhos do Lenin. O impedimento IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
ao meu acesso, como professor, ao curso de pós-graduação em economia fez
FRP TXH HVVD 7HVH QmR H[LVWLVVH FRPR WDO H HVVH WH[WR ÀFDVVH JXDUGDGR DWp
agora. A única mudança aqui promovida foi no título. Antes era “Sobre as teses
GH'HOÀP1HWWRHGH,JQDFLR5DQJHOUHODWLYDVDRGHVHQYROYLPHQWRGDHFRQRPLD
EUDVLOHLUDµ PDV DJRUD OHYD R WtWXOR GH ´&RQYHUJrQFLDV HQWUH ,JQDFLR 5DQJHO H
'HOÀP1HWRXPDOHLWXUDFRPEDVHHP/HQLQµ
A pesquisa e o texto em que ela se consubstanciou e está aqui sendo
apresentado é uma continuidade do esforço desenvolvido na minha Tese de
Doutorado (Um estudo sobre Lenin e as defesas da reforma agrária no Brasil,
)($863 HPTXHDQDOLVHLSDUWHGDOLWHUDWXUDGHKLVWyULDHFRQ{PLFDQR
Brasil com base nos trabalhos de Lenin.

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

O texto está dividido em três partes. A primeira, curta, mostra o consenso


entre notórios autores de que a agricultura brasileira entravava o desenvolvimento
do país. Nomes famosos faziam parte dele. Note-se, no espectro político
PDU[LVWD $OEHUWR 3DVVRV *XLPDUmHV 4XDWUR 6pFXORV GH /DWLI~QGLR  5X\ )DFy
(Notas sobre Problema Agrário) e Mário Alves (Dois Caminhos Para a Reforma
Agrária). Note-se, no espectro teórico estruturalista, Celso Furtado (Plano Trienal
GH'HVHQYROYLPHQWR(FRQ{PLFRH6RFLDO &XULRVRREVHUYDUTXHR
enfoque estruturalista está presente até no Programa de Ação Econômica do
*RYHUQR  3$(*  HODERUDGR SRU 5REHUWR &DPSRV $ DPSOLWXGH GR
espectro político e os nomes famosos que faziam parte do consenso ao qual
5DQJHOH'HOÀP1HWRYmRVHRSRUUHVVDOWDPDLFRQRFODVWLDGHVVHVGRLVJUDQGHV
mestres.
$ VHJXQGD SDUWH PRVWUD TXH RV 0HVWUHV 'HOÀP 1HWR H ,JQDFLR 5DQJHO
se opuseram a esse discurso consensual, negando-o ponto por ponto. Eles
negaram que a agricultura não respondia aos preços do mercado, negaram
que a oferta agrícola era inelástica. Eles negaram que a agricultura atrapalhava
o desenvolvimento da indústria. Eles negaram que faltasse ao país uma
revolução agrícola e/ou agrária. Eles negaram que a agricultura tivesse qualquer
UHVSRQVDELOLGDGHSHODFULVHHPTXHRSDtVSDVVRXQRVDQRV(OHVQHJDUDP
que houvesse qualquer perspectiva estagnacionista para a economia brasileira.
Para os não iniciados nessa literatura é surpreendente essa convergência
GHRSLQL}HVHQWUHXPPDU[LVWDGHHVFRO 5DQJHO HRGLWR&]DU 'HOÀP1HWR GD
HFRQRPLDQDGLWDGXUDRGLWRPDHVWURGRHQWmRFKDPDGR´PLODJUHHFRQ{PLFRµ
brasileiro. Mais surpreendente para esses não iniciados é ver que tais opiniões
obedecem a uma matriz teórica em estreita concordância com a do Lenin. Sim,
a ditadura começa com uma matriz econômica pequeno-burguesa (Roberto
Campos) e só depois se revela comprometida com a grande produção capitalista
'HOÀP1HWR $OJRLPSHQViYHOSDUDRSHTXHQREXUJXrVLJXDOLWDULVWDUDGLFDOTXH
se imagina marxista e leninista.
A terceira parte mostra, em primeiro lugar, que a convergência entre
DV SRVLo}HV GH 5DQJHO H GH 'HOÀP 1HWR WHP VXD UDL] QD PDQHLUD FRPR HOHV
entendem o relacionamento entre a cidade e o campo no desenvolvimento
GR FDSLWDOLVPR 'R PHVPR PRGR TXH /HQLQ RV 0HVWUHV 5DQJHO H 'HOÀP 1HWR
entendem que o movimento da transformação da economia se dá da cidade
para o campo e não do campo para a cidade. É a cidade que transforma o
campo. Essa terceira parte, em segundo lugar, mostra que havia, entre Rangel e
'HOÀP1HWRXPDFRQYHUJrQFLDWiWLFDHXPDRSRVLomRHVWUDWpJLFD$DFHQWXDomR
GRGHVHQYROYLPHQWRGRFDSLWDOLVPRSDUD5DQJHOHUDWiWLFDHSDUD'HOÀP1HWR

D
D 
HUDHVWUDWpJLFD5DQJHOUHSUHVHQWDYDRVLQWHUHVVHVGRSUROHWDULDGR'HOÀP1HWR
representava os interesses da grande burguesia progressista. O consenso ao que
eles se opunham representava o interesse da pequena burguesia. Um confronto
que foi tão bem descrito por Lenin no embate contra os populistas russos e em
GHIHVDGROLYUHFDPELVWD6NDOGLQH$ÀQDOGL]LD/HQLQVyVHFRQVHJXHPXGDUXP
sistema quando ele esgotou suas potencialidades e, sendo assim, defender os
interesses da pequena burguesia era atrasar esse esgotamento e, portanto, a
chegada da revolução socialista. A terceira parte, em terceiro lugar, sugere que
a diferença entre Rangel e os demais notórios marxistas também está em que
estes, ao que parece, subestimavam a capacidade do capitalismo para submeter
formas sociais pretéritas e/ou superestimavam a capacidade para, no Brasil, se
WUDQVIRUPDURGHVHQYROYLPHQWRGRFDPSRSDVVDQGRGDYLD´SUXVVLDQDµSDUDD
YLD´IDUPHUµ8PDyEYLDFRQWUDGLomRFRHUHQWHFRPDPDWUL]SHTXHQREXUJXHVD
que se vê como marxista.
O encerramento do texto se dá, propositalmente, de forma abrupta, com
uma citação, sem complementos escritos por mim. A intenção de tal encerramento
é deixar marcado para o leitor uma citação do Mestre Ignacio Mourão Rangel que
sintetiza o que foi tratado.

Consenso: o campo entravava o desenvolvimento da economia brasileira

$ SDUWLU GD GpFDGD GH  FRPHoRX D JDQKDU FRUSR XP HQRUPH
pessimismo quanto ao futuro da economia brasileira. O desempenho da
agricultura era visto como tendo um papel fundamental na formação desse
SHVVLPLVPR6HJXQGRDVPDLVYDULDGDVFRUUHQWHVWHyULFDVSROtWLFDVRLQVXÀFLHQWH IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
desenvolvimento da agricultura retardava o desenvolvimento da indústria.
Este diagnóstico estava presente em diversos autores marxistas, dos
quais o mais famoso, talvez, seja Alberto Passos Guimarães que, no texto clássico
LQWLWXODGR´4XDWURVpFXORVGHODWLI~QGLRµDTXL UHIHULGRFRPR´4XDWURVpFXORVµ
DÀUPDYD

Em primeiro lugar, porque o sistema latifundiário feudal-colonial


está constituído para exportar toda a sua produção e ao fazê-lo, por
GHÀQLomRH[SRUWDWDPEpPSDUWHGDUHQGDHGRVOXFURVSURGX]LGRV
cedendo-se aos trustes internacionais. Para que tal mecanismo de
sucção funcione sem prejuízo da parte que cabe à classe latifundiária,
esta transfere, para seus trabalhadores e para a população do país

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

onde se situa, os ônus decorrentes desse processo de expoliação.


Em segundo lugar, porque o sistema latifundiário feudal-colonial
exige, como peça inseparável de seu mecanismo, a organização de
uma rede de intermediários-compradores e intermediários-usuários
que atuam no sentido de facilitar a transferência da parte dos lucros
especulativos para as mãos dos trustes internacionais, como no
sentido de ainda mais reduzir a remuneração dos trabalhadores
agrícolas ... E em terceiro lugar, porque todo esse aparelho pré-
capitalista de produção e distribuição, à medida que promove a
evasão de parte da renda gerada para o exterior, descapitaliza o país
e limita o desenvolvimento industrial; e, à medida que comprime o
poder aquisitivo das massas rurais, limita a expansão do mercado
LQWHUQRµ *XLPDUmHV4XDWURVpFXORVSH 

O mesmo diagnóstico estava presente em outros autores marxistas,


FRPR5XL)DFyTXHQXPWH[WRLQWLWXODGR´1RWDVVREUHRSUREOHPDDJUiULRµDTXL
UHIHULGRFRPR´1RWDVµDÀUPDYD

A revolução agrária no Brasil de nossos dias é um imperativo. Forças


VRFLDLVGLYHUVDVWHQGHPDXQLUVHSDUDDGHUURFDGDÀQDOHUDGLFDO
da há muito ultrapassada estrutura agrária que herdamos do
Império e que a República Feudal-Burguesa timbrou em conservar.
Estas forças são: a) as massas dos sem-terras e os proprietários
aparentes; b) os operários das cidades vítimas diretas de uma
agricultura atrasada que entrava o desenvolvimento da indústria e
PDQWpP SUHoRV DUWLÀFLDOPHQWH HOHYDGRV SDUD JrQHURV HVVHQFLDLV
de consumo; c) os industriais, interessados particularmente na
elevação do poder aquisitivo de mais de 40 milhões de brasileiros
que vivem no campo e que não podem comprar não somente
rádios, televisores, máquinas de costura, mas nem mesmo roupas
e sapatos; d) os agricultores capitalistas, que reclamam terra barata
SDUDFXOWLYDUµ )DFy1RWDVS 

e estava presente em autores como Mário Alves que, no texto intitulado “Dois
FDPLQKRVSDUDDUHIRUPDDJUiULDµDTXLUHIHULGRFRPR´'RLVµFDPLQKRVGHIHQGLD

o desenvolvimento econômico do país contribui para agravar, em


escala considerável, a contradição entre as forças produtivas
e o monopólio da propriedade da terra pelos latifundiários. O
crescimento da indústria, dos serviços e da população urbana
exige um aumento rápido da produção de alimentos e matérias-

D
D 
primas, reclamando imperiosamente a exploração das terras dos
latifúndios e a elevação da produtividade do trabalho agrícola.
(QTXDQWRQRSHUtRGRGHDRSURGXWRLQGXVWULDOFUHVFHX
de 135% em termos reais, o produto agrícola aumentou de apenas
42%. A expansão da indústria impõe, paralelamente, a ampliação
do mercado interno mediante a elevação do poder aquisitivo da
SRSXODomRUXUDOµ $OYHV'RLVFDPLQKRVS

O diagnóstico da agricultura entravando o desenvolvimento da indústria


estava presente mesmo em autores não marxistas, como Celso Furtado que, no
´3ODQR7ULHQDOGH'HVHQYROYLPHQWR(FRQ{PLFRH6RFLDO 6tQWHVH µ
DTXLUHIHULGRFRPR´3ODQR7ULHQDOµDÀUPRX

“Desfalcado de parcela substancial do seu excedente de produção,


que o coloca em contato com a economia de mercado, monetária, o
camponês sem terras não consegue elevar o seu padrão de vida e
RVHXKRUL]RQWHFXOWXUDOQmRSRGHFRQWULEXLUVLJQLÀFDWLYDPHQWHSDUD
a expansão do mercado de produtos industriais, nem tampouco
PHOKRUDU D HÀFLrQFLD GH VHX WUDEDOKR DWUDYpV GH LQYHVWLPHQWRV
ou da adoção de técnicas mais elaboradas de exploração da terra.
(VWD FRQGLomR GLÀFXOWD SRU RXWUR ODGR VHX DFHVVR jV IRQWHV GH
FUpGLWRRÀFLDOjVRUJDQL]Do}HVGHDVVLVWrQFLDWpFQLFDHVXDSUySULD
RUJDQL]DomRHPFRRSHUDWLYDVGHSURGXWRUHVµ )XUWDGR3ODQR7ULHQDO
S

$WpPHVPRRVTXHWRPDUDPRSRGHUHPWLQKDPRGLDJQyVWLFRGHTXH
a agricultura entravava o desenvolvimento da indústria e, consequentemente, do
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
país. Roberto Campos, num documento elaborado para explicar o relacionamento
entre o Programa de Ação do Governo do Marechal Castelo Branco e as Reformas
de Base do Governo João Goulart, intitulado “O programa de ação e as reformas
GHEDVHµDTXLUHIHULGRFRPR´3$(*HDVUHIRUPDVµHVWiHVFULWR

O quadro se completa pela precariedade das condições do meio


agrário: uma elevada percentagem da população dependente da
atividade agrícola; níveis de tecnologia e de mecanização bastante
reduzidos; pequena área cultivada por trabalhador ocupado;
condições de vida das mais precárias, no que se refere a habitações,
educação e nível sanitário. Por isso mesmo, é reduzidíssima a
produtividade per capita no meio rural brasileiro, bastando que
se atente para a seguinte relação: no Brasil, um indivíduo ativo

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

na agricultura provê alimentos para cinco outros, enquanto que


na França, Canadá e Estados Unidos, a mesma relação é de um
para dez, um para vinte e um para trinta, respectivamente. ...
“O problema vem se agravando agudamente com a crescente
industrialização do país e com a concentração populacional nos
grandes centros urbanos. Toda essa população, absorvida no
trabalho urbano, cria exigências cada vez maiores de suprimento
de alimentos, demandando uma organização mais sistematizada
de sua produção, transporte e distribuição. Em contraposição,
o crescimento da produção industrial gera a necessidade de
alargamento do mercado consumidor, ou seja, a incorporação de
novas áreas da população no consumo de produtos industriais, que
se pode obter pela elevação dos padrões econômicos da população
rural, facultando-lhe poder aquisitivo para acesso aos produtos
manufaturados (PAEG e as reformas, pp. 124 e 125).

Contra essa corrente predominante no cenário nacional de então, dois


autores que se tornaram ícones entre os economistas se levantaram: Ignacio
0RXUmR5DQJHOGHH[WUDomRPDU[LVWDH$QW{QLR'HOÀP1HWWRGHH[WUDomRQmR
marxista. O esforço dispendido no estudo da obra desses autores, investigando
os pontos de coincidência e de divergência, buscando uma explicação para eles,
constitui o presente capítulo

A crítica do consenso

2FRQVHQVR´SHVVLPLVWDµTXDQWRDRIXWXURGDHFRQRPLDEUDVLOHLUDSRGH
ser sintetizado na seguinte maneira: em razão da ausência de uma revolução/
modernização no campo, a agricultura crescia extensivamente, constituindo-se
num setor que não respondia aos preços, tinha uma oferta inelástica, retardava
o crescimento da indústria.
A estratégia de exposição, aqui adotada, será a de começar por apresentar
os argumentos que questionam a alegada falta de resposta, da agricultura, aos
preços, contestar a existência da citada inelasticidade de oferta agrícola. O
passo seguinte será o de apresentar os argumentos que contestam a proposição
de que o crescimento da agricultura não acompanhava as necessidades do
FUHVFLPHQWRGDLQG~VWULD(VVHVGRLVWLSRVGHDUJXPHQWRVVmRVXÀFLHQWHVSDUD
mostrar o equívoco da proposição sobre a necessidade de uma revolução
agrícola/agrária, mas os dois autores em tela apresentam outros argumentos
contra essa proposição e eles serão aqui reproduzidos.

D
D 
6HDVWHVHVGH'HOÀP1HWWRHGH5DQJHOHVWDYDPFRUUHWDVFRPRH[SOLFDU
DJUDYHFULVHSHODTXDODHFRQRPLDEUDVLOHLUDSDVVRXHPPHDGRVGRVDQRV"
Os diagnósticos desses autores serão, então, apresentados na seção seguinte.
O capítulo será concluído com uma seção mostrando as perspectivas que esses
autores vislumbravam para a economia brasileira.

A falta de resposta aos preços?

$QW{QLR 'HOÀP 1HWWR HP RXWXEUR GH  QXP WH[WR DSUHVHQWDGRQR
Seminário de Economia Brasileira realizado na FEA/USP, intitulado a “Agricultura
QR3URJUDPDGH$omR(FRQ{PLFDGR*RYHUQR²µGHDJRUDHPGLDQWH
UHIHULGRFRPR´$JULFXOWXUDQR3$(*µFULWLFDDXWLOL]DomRGDGLIHUHQoDQRSHUtRGR
HQWUHDVWD[DVGHYDULDomRQRVSUHoRVSDJRVSHORFRQVXPLGRUÀQDO
(27,8% a.a.) e recebidos pelo produtor rural (24,5% a.a.) como indicadora do
atraso relativo da agricultura.
Uma contestação, de ordem puramente estatística, dizia que essa
GLIHUHQoDGHWD[DUHÁHWLDEDVLFDPHQWHRUHVXOWDGRGHWUrVDQRVHVSHFtÀFRVD 
TXDQGRRVSUHoRVQRFXVWRGDDOLPHQWDomRQD*XDQDEDUDFUHVFHX
FRQWUDQRVSUHoRVDRSURGXWRUE TXDQGRDUHODomRIRLGH
FRQWUD  H F   TXDQGR D UHODomR IRL GH  FRQWUD  'HOÀP
1HWWR$JULFXOWXUDQR3$(*SSH 
Uma contestação, de ordem econômica, dizia que essa diferença podia
UHÁHWLUVLPSOHVPHQWHXPDYDQoRGRSURFHVVRGHWUDQVIRUPDomRLQGXVWULDOL]DomR
da produção agrícola:
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
A prova em si mesmo é falha quando se sabe que nos últimos
dez anos houve uma verdadeira revolução na comercialização
dos produtos agrícolas e que quase todos eles são fornecidos aos
FRQVXPLGRUHV FRP DOJXP JUiX GH HODERUDomR LQGXVWULDO 'HOÀP
Netto, Agricultura no PAEG, p. 285).

,JQDFLR5DQJHOQROLYUR´$LQÁDomREUDVLOHLUDµGHDJRUDHPGLDQWHUHIHULGR
FRPR´,QÁDomRµFRQWHVWDDWHVHGDLQHODVWLFLGDGHGHRIHUWDDJUtFRODHQIDWL]DQGR
que os estruturalistas ignoravam um problema fundamental, o da estava na
existência de um cartel comercializador de produtos agrícolas. O sucesso desse
cartel só era possível devido à existência de grande elasticidade de oferta e baixa
elasticidade de demanda:

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

Os estruturalistas explicaram a elevação autônoma dos preços pela


existência de certos pontos de estrangulamento na economia,
notadamente pela LQVXÀFLrQFLDGHFDSDFLGDGHSDUDLPSRUWDU e
pela inelasticidade da oferta do setor agrícola. Noutros termos,
o problema estaria na estrutura da oferta do sistema econômico –
donde o nome da escola – ou para usar a expressão dos economistas
marxistas, na composição natural do produto social (Rangel,
,QÁDomRSJULIRVQRRULJLQDO
Ao estudarem a inelasticidade da oferta de produtos agrícolas, os
estruturalistas tomaram a nuvem por Juno. Concretamente, o que há
é que, em numerosos casos, a agricultura não reage à elevação dos
preços ocorrida no QtYHO GR FRQVXPLGRU ÀQDO, por um aumento
GD SURGXomR 2UD LVVR QmR VLJQLÀFD LQHODVWLFLGDGH GD RIHUWD
agrícola, mas, simplesmente, que a comercialização dos produtos
em causa é feita através de um oligopsônio-oligopólio, que opera
como se monopsônio-monopólio fosse, e que intercepta, no nível do
LQWHUPHGLiULRRLQFUHPHQWRGHSUHoRVSDJRVSHORFRQVXPLGRUÀQDO
impedindo que êste chegue ao produtor. Trata-se de uma anomalia
no mecanismo de formação de preços e não de inelasticidade
da oferta agrícola. Ao contrário, para que êsse mecanismo funcione,
é necessário que a oferta agrícola seja, não sòmente elástica ao
preço – entenda-se, ao preço para o produtor agrícola – mas muito
elástica. O aparelho comercializador oligopsonista-oligopolista
não poderia, de modo algum, operar, não fora contar com uma
virtual rigidez da demanda de gêneros agrícolas, especialmente
DOLPHQWtFLRVHXPDJUDQGHHODVWLFLGDGHGDRIHUWDDJUtFRODµ 5DQJHO
,QÁDomRSJULIRVQRRULJLQDO

Em suma, a diferença entre os preços pagos pelo consumidor e recebidos


SHOR SURGXWRU HUD H[SOLFDGD VHJXQGR 'HOÀP 1HWWR SHOR DXPHQWR GR JUDX GH
HODERUDomRGRSURGXWRDJUtFRODTXHHVWDYDFKHJDQGRDRPHUFDGRÀQDOHVHJXQGR
Rangel, pela interferência do cartel de comercialização dos produtos agrícolas.

Agricultura retarda o crescimento da indústria?

'HOÀP 1HWWR QR Mi FLWDGR ´$JULFXOWXUD QR 3$(*µ TXHVWLRQD R UHFXUVR
ao argumento da diferença de taxas de crescimento setorial para explicar o
caso brasileiro pois o próprio PAEG reconhecia que “DV GLIHUHQoDV QRV UtWPRV
GHH[SDQVmRGRVHWRUDJUtFRODHGRVHWRULQGXVWULDOQmRGHYHPVHUHQWHQGLGDV
FRPRLQGLFDomRGHXPDDJULFXOWXUDWHQGHQWHSDUDRDWUDVRµ S "$UHIHULGD
diferença de taxas de crescimento setorial, além do mais, não suportava a tese
D
D 170
de atraso da agricultura pois correspondia à diferença entre as elasticidades
renda da demanda por cada um desses setores:

7RPHPRV SRU H[HPSOR R TXLQTrQLR  RQGH R VHWRU


agrícola se expandiu 5% ao ano e o setor industrial, 12,5% ao ano.
Indicam essas taxas uma disparidade tão surpreendente para
MXVWLÀFDUDSULPHLUDSURSRVLomR"eFODURTXHQmR(PFRQGLo}HVGH
‘crescimento harmônico’, as taxas deveriam estar entre si como
estão as elasticidades-renda das demandas de produtos agrícolas
e industriais. Ora, a relação entre as taxas é de 1:2,5. Segundo o
TXH VH FRQKHFH VREUH RV FRHÀFLHQWHV GH HODVWLFLGDGHV QR %UDVLO
é quase certo que eles estão entre si em proporção parecida com
essa. De fato, as elasticidades-renda da demanda de produtos
agrícolas da ordem de 0,5 (citada no Programa) e a demanda de
SURGXWRV LQGXVWULDLV p FHUWDPHQWH PDLRU GR TXH  'HOÀP 1HWWR
Agricultura no PAEG, pp. 282 e 283).

5DQJHO QXP WH[WR SXEOLFDGR HP  LQWLWXODGR ´,QGXVWULDOL]DomR H


DJULFXOWXUDµ GH DJRUD HP GLDQWH UHIHULGR FRPR ´,QGXVWULDOL]DomRµ DUJXPHQWD
que, pela natureza de cada um desses setores, o efeito multiplicador é maior na
LQG~VWULDGRTXHQDDJULFXOWXUDRTXH´FRHWHULVSDULEXVµUHVXOWDHPWD[DVGH
crescimento maiores na indústria do que agricultura:

(...) podemos conceber a industrialização como o conjunto de


transformações tecnológicas, econômicas e jurídicas por que passa
a economia de um país, no esfôrço para transferir essa produção
industrial, do interior da fazenda agrícola, para estabelecimentos
especiais ou fábricas, com o resultado de multiplicar muitas vêzes IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
a produção que se pode obter de cada hora de trabalho. Não se
trata, pois de roubar tempo às atividades pròpriamente agrícolas,
mas às atividades não agrícolas da agricultura. ... Além disso, para
que a produção se possa fazer nas novas condições (com maior
produtividade agrícola), urge criar serviços especiais, como o
transporte, já referido, construir cidades para alojar a população
deslocada (do campo para a cidade), dotá-la de facilidades
dispensáveis nas condições de vida rural, mas indispensáveis nas
condições de vida urbana. Tudo isso representa uma formidável
LPRELOL]DomR GH UHFXUVRV $ SURGXomR GRV EHQV TXH FRUSRULÀFDP
êsses recursos é de natureza essencialmente industrial, não
agrícola, e isso faz com que a produção não agrícola tenda a crescer
muito mais ràpidamente do que a produção agrícola, durante todo
o processo de industrialização (Rangel, Industrialização, pp. 248 e

D
D 171
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

Em suma, a maior velocidade de crescimento da indústria, vis a vis a


DJULFXOWXUD HUD H[SOLFDGD SRU 'HOÀP 1HWWR FRPR UHVXOWDGR GD GLIHUHQoD QDV
elasticidades renda de cada setor e, por Rangel, como resultado da diferença
entre o multiplicador dentro de cada setor.

Falta de uma revolução agrícola/agrária?

'HOÀP 1HWWR QXP 6HPLQiULR QD )($863 HP QRYHPEUR GH 
FRQVXEVWDQFLDGRQRWH[WR´5HIRUPDDJUiULDRQRYRGLDJQyVWLFRµGHDJRUDHP
GLDQWHUHIHULGRFRPR´1RYRGLDJQyVWLFRµFRQWHVWDDQHFHVVLGDGHGHXPFKRTXH
exógeno no campo, para incentivar o desenvolvimento da agricultura brasileira:

(...) o Brasil não precisava de nenhuma revolução agrícola,


uma vez que o setor primário desde o início do processo liberou
VXÀFLHQWH PmR GH REUD SDUD VHU DEVRUYLGD SHOR VHWRU LQGXVWULDO H
foi um instrumento dúctil na transferência de recursos para o setor
secundário e terciário. Em nenhum momento do desenvolvimento
econômico brasileiro, pode-se reconhecer forças inibidoras
poderosas derivadas do setor agrícola. Com tal passividade e
respondendo com relativa rapidez aos estímulos externos (tanto do
VHWRUXUEDQRFRPRGRPXQGRH[WHULRU SRUTXHKDYHULDGHYHULÀFDUVH
XPDUHYROXomRDJUtFROD" 'HOÀP1HWWR1RYRGLDJQyVWLFRSSH


Após lembrar que, na ausência de pesquisas genéticas mais intensas e


de produção de sementes selecionadas mais intensas, em razão da ausência de
ÀQDQFLDPHQWRSDUDDHOHYDomRGRFDSLWDOGHJLURGDtGHFRUUHQWHHOHPEUDUTXH
nem sempre o ganho de produtividade obtido com adubos e inseticidas é maior
TXHRREWLGRFRPDSURGXomRHPPHOKRUHVWHUUDVQDIURQWHLUDDJUtFROD'HOÀP
Netto apresenta o que considera o principal fator explicativo da racionalidade
privada do crescimento extensivo da agricultura brasileira:

sendo o fator terra relativamente abundante, a forma mais econômica


de aumentar a produção para o empresário privado é combinar terra
HKRPHPGHQWURGHFRHÀFLHQWHVWpFQLFRVWUDGLFLRQDLVDPSOLDQGRD
iUHDFXOWLYDGDHQmRLQWHQVLÀFDQGRRFXOWLYRVREUHXPDPHVPDiUHD
'HOÀP1HWWR1RYRGLDJQyVWLFRSSH

D
D 172
2FUHVFLPHQWRH[WHQVLYRGDDJULFXOWXUDEUDVLOHLUDSDUD'HOÀP1HWWRQmR
tinha explicações apenas na racionalidade privada. No já citado “Agricultura no
3$(*µDHVFDVVH]GHFDSLWDOHDDEXQGkQFLDGHPmRGHREUDMXVWLÀFDYDPWDOWLSR
de crescimento:

H[LVWHXPDUHODomROLQHDUSUDWLFDPHQWHÀ[DHQWUHDiUHDGHFXOWXUD
H R Q~PHUR GH WUDEDOKDGRUHV ,VVR VLJQLÀFD TXH DXPHQWDQGR D
produção pela extensão da área, a agricultura aumenta o emprego
quase na mesma proporção, absorvendo o excedente de mão-
GHREUD TXH QmR SRGH VHU XWLOL]DGR QR VHWRU LQGXVWULDO 4XH LVVR
é conveniente para o país é evidente, quando se considera que a
produtividade marginal do capital é mais elevada no setor industrial
do que no setor agrícola e quando se lembra que neste setor existe
mais possibilidade de aplicação de técnicas poupadoras de capital
'HOÀP1HWWR$JULFXOWXUDQR3$(*S 
Uma unidade de capital que possa ser utilizada alternativamente na
agricultura ou na indústria, deve ser aplicada no segundo setor. De
fato, utilizando o capital no setor industrial criamos emprego urbano
e aumentamos a demanda de produtos agrícolas, sem prejudicar
em nada a produção, porque pode-se supor que a produtividade
marginal do trabalhador (ainda que não a produtividade marginal
do trabalho) seja nula. Utilizando essa unidade de capital no
setor agrícola temos que se libera mão-de-obra (que não encontra
emprego urbano), mas não se aumenta a produção global: substitui-
VH PmRGHREUD SRU FDSLWDO 'HOÀP 1HWWR $JULFXOWXUD QR 3$(* S

4XDQGR FUHVFH HP H[WHQVmR SRUWDQWR R VHWRU DJUtFROD SHUPLWH
não apenas que se maximize a produtividade marginal do capital,
mas também a taxa de utilização de mão de obra, dois resultados IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
altamente desejáveis em qualquer caminho de expansão para o
GHVHQYROYLPHQWR 'HOÀP1HWWR$JULFXOWXUDQR3$(*S 

5DQJHO QR Mi UHIHULGR ´,QÁDomRµ UHJLVWUD TXH R %UDVLO DYDQoRX SHOD
industrialização sem ter necessitado reformar, previamente, as relações sociais
no campo:

O Brasil empreendeu sua industrialização, sem previamente


remodelar as relações de produção na agricultura. Daí resulta que,
acima das contradições internas do seu setor capitalista (entre
o capital e o trabalho) e do seu setor feudal (entre o latifúndio
feudal e a servidão da gleba), paire a contradição entre o seu lado

D
D 173
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

moderno, isto é, capitalista, e o seu lado arcaico, isto é, feudal


5DQJHO,QÁDomRSJULIRVQRRULJLQDO 
Com efeito, o pacto fundamental de poder estabelecido em
FRQVHTXrQFLDGD5HYROXomRGHFRQVDJUDYDDDOLDQoDHQWUHR
latifúndio saído da Abolição da escravatura e da I república, com o
capital industrial nascente, surgido por um efeito de diferenciação
do antigo capital comercia. Essa coalizão de classes, que preside
DRVQRVVRVGHVWLQRVGHVGHHQWmRWLQKDVXDMXVWLÀFDWLYDKLVWyULFDH
econômica no fato de que a criação do capital industrial, nos quadros
de um esfôrço de substituição de importações, oferecia condições
propícias para uma ampla formação de capital, relativamente
independente da expansão do consumo global e do preço da mão-
de-obra. Noutros têrmos, havia condições para a industrialização,
sem prévia mudança na estrutura agrária – circunstância esta
que situamos na origem de tôda a nossa presente problemática
HFRQ{PLFRVRFLDO 5DQJHO,QÁDomRSSH 

$ DXVrQFLD GHVVD ´UHYROXomRµ QmR KDYLD LPSHGLGR RX UHWDUGDGR R


desenvolvimento, apenas moldado-o numa maneira peculiar. O caminho
do desenvolvimento do capitalismo, no campo, não fora o de assegurar as
condições para o surgimento de uma policultura mercantil, capaz de assegurar
uma ocupação estável do solo. No jargão moderno, o problema estava em que
o desenvolvimento do capitalismo, no campo brasileiro, não fora de acordo com
RPRGHORFRQKHFLGRFRPRYLD´IDUPHUµRXYLDQRUWHDPHULFDQDHVLPGHDFRUGR
FRPRPRGHORFRQKHFLGRFRPRYLD´SUXVVLDQDµ

com a penetração do capitalismo no campo – através da conversão


direta do latifúndio feudal em latifúndio capitalista –
desmantelam-se as bases da policultura feudal (nos quadros da
ocupação estável da terra característica da servidão da gleba,
sob tôdas as suas formas) sem o aparecimento de condições para
uma policultura mercantil (nos quadros da pequena propriedade
independente, capaz de assegurar, também, a ocupação estável
GRVROR 5DQJHO,QÁDomRS 

Crise dos anos 1960

2PDXGHVHPSHQKRGDHFRQRPLDEUDVLOHLUDQRSHUtRGRSDUD
'HOÀP1HWWRQDGDWLQKDDKDYHUFRPRVDOHJDGRVHQWUDYHVDRGHVHQYROYLPHQWR

D
D 174
do capitalismo que teriam suas origens no atraso da agricultura. O desempenho
medíocre da economia brasileira era resultado da política econômica adotada.
Numa apostilha de sua autoria, elaborada para a cadeira XXV Economia
IV, no curso de economia da Faculdade de Economia e Administração da
Universidade de São Paulo (FEA/USP), aqui referida como Agricultura no PAEG,
'HOÀP1HWWRDÀUPRXTXH´DHVWUDWpJLDEiVLFDGHFRPEDWHjLQÁDomRSRVWDHP
SUiWLFDQRSHUtRGRFRQVLVWLXHPUHGX]LUDGHPDQGDJOREDOGHEHQVH
VHUYLoRVDÀPGHHOLPLQDURTXHH[FHGHVVHjRIHUWDGHSOHQRHPSUHJRµ S 
mas essa estratégia, ao ser implementada, “SDUHFHWHUSURYRFDGRXPDUHGXomR
GHGHPDQGDVXSHULRUjGHVHMDGDSHORPHQRVHPIDVHVORFDOL]DGDVGDH[HFXomR
GDSROtWLFDEHPFRPRDOJXPDVHOHYDo}HVGHFXVWRVHRDJUDYDPHQWRGDOLTXLGH]
TXH DWXDUDP VREUH D RIHUWD JOREDOµ S   $ FULVH HQWmR GHFRUUHULDGH TXH ´a
H[LVWrQFLDGHWHQV}HVGHFXVWRVDOLDGDVDXPUtJLGRFRQWUROHGHGHPDQGDWHQGH
DSURYRFDUUHGXo}HVQDSURGXomRHQRHPSUHJRVHPTXHRQtYHOGHSUHoRVFHVVH
GHDXPHQWDUµ S 
5DQJHO QR Mi UHIHULGR ´,QÁDomRµ DÀUPDYD TXH R PDX GHVHPSHQKR
da economia brasileira era resultado do superinvestimento na indústria,
generalização da capacidade ociosa na indústria. Um resultado temporário,
TXH SHUPDQHFHULD DWp TXH XP QRYR VHWRU ´FDUURFKHIHµ GR FUHVFLPHQWR IRVVH
preparado institucionalmente para receber os investimentos:

Com a revelação de capacidade ociosa em quase todos os setores


já institucionalmente preparados para receber investimentos,
eis que o problema ressurge. As medidas estruturadas em
tôrno da Instrução 204 da SUMOC prepararam mais algumas
oportunidades de inversão no campo da iniciativa privada cuja
efetivação, juntamente com a criação do enorme capital de giro IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
necessário à operação das indústrias recém-criadas, produtoras de
bens duráveis, tanto de consumo, como de investimento, absorveu
momentâneamente os crescentes recursos disponíveis, Mas era
evidente desde havia algum tempo, que êsse <<estoque>> de
oportunidades de inversão caminhava para o esgotamento e que,
portanto, a sociedade brasileira seria confrontada com um período
crítico, que levantaria numerosos problemas, alguns maduros para
a solução, e outros não. O primeiro desses problemas são os que se
referem à preparação de nôvo grupo de oportunidades de inversão,
graças às quais a taxa de formação de capital deve voltar a elevar-
se, ao passo que os segundos são os que põem em causa o próprio
esquema fundamental entre cujos marcos se vem desenvolvendo a
VRFLHGDGHEUDVLOHLUD 5DQJHO,QÁDomRSJULIRQRRULJLQDO 

D
D 175
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

Perspectivas para a economia brasileira

'HOÀP1HWWRQXPD0HVD5HGRQGDSDWURFLQDGDSHOR$GYHUWLVLQJ&RXQFLO
Inc. e pela Fundação Getúlio Vargas, aqui referido como Advertisinga Council
 )*95- HP DJRVWR GH  QR 5LR GH -DQHLUR DÀUPRX TXH R WDPDQKR GR
mercado e a expansão da infra-estrutura econômica permitiam a realização de
investimentos com elevada relação capital-produto e, consequentemente, não
havia qualquer perspectiva estagnacionista para a economia brasileira:

Atualmente a economia brasileira apresenta-se já com uma


HVWUXWXUD EDVWDQWH FRPSOH[D H GLYHUVLÀFDGD 2 PHUFDGR LQWHUQR
p VXÀFLHQWHPHQWH DPSOR H FDSD] GH VXSRUWDU H[HWQVRV VHWRUHV
industriais quer produtores de bens de consumo, quer produtores de
bens de produção. As dimensões dos projetos foram extremamente
ampliadas e a possibilidade de produzir internamente os bens
anteriormente importados apresenta-se, agora, com grande
plenitude. Mais ainda, existe uma infra-estrutura em forte expansão,
FDSD] GH SHUPLWLU D UHDOL]DomR GRV LQYHVWLPHQWRV 'HOÀP 1HWWR
Advertising Council / FGV-RJ, p. 22)

1XP RXWUR WH[WR FRPHQWDQGR D SROtWLFD HFRQ{PLFD H ÀQDQFHLUD GR


JRYHUQR QR ELrQLR  DTXL UHIHULGR FRPR 'HOÀP PLQLVWUR 'HOÀP 1HWWR
volta a salientar as perspectivas otimistas para a economia brasileira. O tamanho
do mercado interno comportava vultosos investimentos, gerando economias de
escala para permitir o acesso da produção doméstica ao mercado internacional
que, por sua vez, expandia o próprio mercado interno e viabilizava novos e
vultosos investimentos:

Um país com as dimensões do Brasil, com um elevado mercado


de consumo gerado por um nível de renda bastante elevado em
determinadas áreas, e por uma população já bastante grande,
JDUDQWH GLPHQV}HV GH PHUFDGR VXÀFLHQWHPHQWH DPSODV SDUD
que extensos setores industriais possam instalar-se produzindo a
custos competitivos ... o Brasil possui condições necessárias para
um desenvolvimento auto-sustentável, com base na ampliação do
seu mercado interno. Mais ainda, a expansão do mercado interno
cria condições favoráveis de competição no mercado internacional,
mercado esse que poderá constituir, em futuro próximo, nova fonte
de dinamismo do desenvolvimento. Por outro lado, é evidente que
a ampliação do mercado externo é condição básica para a própria
DPSOLDomRGRPHUFDGRLQWHUQR 'HOÀP1HWWR'HOÀP0LQLVWURS
D
D 
5DQJHOQRMiUHIHULGR,QÁDomRFULWLFDQGRDVSURSRVWDVGHPDJyJLFDVRX
utópicas, de reforma agrária, lembrava as potencialidades de crescimento da
economia brasileira:

Esse estado de coisas somente esgotará suas virtualidades


² OHYDQGR j GHQ~QFLD GR SDFWR GH SRGHU GH  ² TXDQGR
também se houverem esgotado as condições para a expansão
do investimento, isto é, para a absorção da crescente massa
de mais valia que o aumento da produtividade do trabalho, não
DFRPSDQKDGRGHHOHYDomRVXÀFLHQWHGRVDOiULRYDLVXSULQGR2UD
ninguém pretenderá que a economia brasileira, dados os seus
presente níveis e dinamismo da renda e da demanda global,
já esgotou todas as suas oportunidades de investimento (Rangel,
,QÁDomRSJULIRQRRULJLQDO 
Ora, conservado o atual pacto fundamental de poder que é a
essência do Estado brasileiro, é possível, como o demonstraremos,
DVVHJXUDU D SUHSDUDomR GDV FRQGLo}HV HFRQ{PLFDV ÀQDQFHLUDV
políticas e jurídicas para a efetivação de nova e ampla demanda de
capital capaz de absorver parte decisiva da mais valia disponível
ou em perspectiva. Consequentemente, é isso o que está na
ordem natural das coisas, e é isso o que nos deve ocupar.
Fora daí caímos em pleno reino da utopia e, julgando servir aos
interesses da sociedade e das massas trabalhadoras brasileiras,
apenas os estaremos desservindo, desunindo e impelindo a Nação
SRU SLVWDV IDOVDV TXH VRPHQWH SRGHP EHQHÀFLDU DRV LQLPLJRV GR
VHX GHVHQYROYLPHQWR H GD VXD VREHUDQLD 5DQJHO ,QÁDomR S 
grifo no original)

Haviam inúmeros campos virgens para serem explorados pelos IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
investimentos, faltando apenas prepará-los institucionalmente. O fantasma da
estagnação não rondava a economia brasileira:

9LPRVjOX]GRTXHÀFRXGLWRQRVFDStWXORVDQWHULRUHVTXHDLQÁDomR
brasileira corresponde a um mecanismo de defesa do sistema
econômico, contra a depressão econômica, agravando-se sempre
que esta nos ameaça, quando se esgotam as oportunidades de
inversão suscetíveis de utilização. Vimos, também, que se trata de
um arranjo extremamente feliz, visto como os inconvenientes da
LQÁDomR ² JURVVHLUDPHQWH H[DJHUDGRV DOLiV HP QRVVD OLWHUDWXUD
econômica – são incomensuràvelmente menores do que as
devastações que costumam acompanhar a depressão econômica.
Finalmente, considerando que a escassez de oportunidades de

D
D 177
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

inversão tende a ser temporária, aguardando apenas que se tomem


as medidas destinadas a preparar novos campos virgens ou pouco
explorados para investimentos, são escassas as possibilidades de
TXHDLQÁDomRVHWRUQHJDORSDQWH(ODWHQGHUiHVSRQWkQHDPHQWHD
regredir, tão prontamente quanto preparemos êsses novos campos
de inversão – assunto que trataremos no próximo capítulo (...)
5DQJHO,QÁDomRS

5HÁH[}HVVREUHDVWHVHVGH'HOÀP1HWWRHGH5DQJHO

$ VHomR DQWHULRU DSUHVHQWRX DV LGHLDV GH 5DQJHO H GH 'HOÀP 1HWWR
FULWLFDQGRR´FRQVHQVRµVREUHRGLDJQyVWLFRHDVSHUVSHFWLYDVSDUDDHFRQRPLD
EUDVLOHLUD QRV DQRV  H  $ SUHVHQWH VHomR DSUHVHQWDUi R UHVXOWDGR
da investigação sobra a raiz das coincidências e das divergências entre esses
autores.

Relação campo-cidade no processo de desenvolvimento

Um ponto central na discussão da relação cidade-campo no processo de


desenvolvimento é a direção da causação: se ela vem do campo para a cidade
ou vem da cidade para o campo.
1XP WH[WR LQWLWXODGR ´2 &DSLWDOLVPR QD $JULFXOWXUD 2 /LYUR GH .DXWVN\
H R $UWLJR GR 6HQKRU %XOJiNRYµ GH DJRUD HP GLDQWH UHIHULGR FRPR ´/LYUR GH
.DXWVN\µ/rQLQDÀUPDTXH.DXWVN\GHVFUHYHXDFHUWDGDPHQWHDUHYROXomRQD
agricultura, promovida pelo capitalismo:

Este capítulo nos oferece um esboço extraordinariamente claro,


conciso e cabal da gigantesca revolução levada a cabo na agricultura
pelo capitalismo, ao converter o rotineiro ofício de camponeses
humilhados pela miséria e esmagados pela ignorância em aplicação
FLHQWtÀFD GD DJURQRPLD DR LQWHUURPSHU R PDUDVPR VHFXODU GD
agricultura e ao imprimir (e continuar imprimindo) um impulso ao
rápido desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social. O
sistema de três campos foi substituído pela rotação das culturas,
melhoraram a criação de gado e o trabalho da terra, aumentaram
as colheitas e tomou grande desenvolvimento a especialização da
agricultura, a divisão do trabalho entre as múltiplas explorações.
A uniformidade pré-capitalista foi substituída por uma diversidade
cada vez maior, acompanhada pelo progresso técnico de todos
D
D 178
os ramos da agricultura. Iniciou-se e se desenvolveu rapidamente
a mecanização da agricultura, a aplicação do vapor; começa-se
a utilizar a eletricidade, que na opinião dos especialistas virá a
desempenhar um papel mais importante que o vapor neste setor da
produção. Desenvolveram-se a construção de caminhos de acesso,
os trabalhos de melhoramento do solo e o emprego de fertilizantes
HP FRQVRQkQFLD FRP RV GDGRV SURSRUFLRQDGRV SHOD ÀVLRORJLD
vegetal; começou-se a aplicar a bacteriologia à agricultura (Lênin,
/LYURGH.DXWVN\SSH 

O ponto relevante para o presente é que o motor dessa revolução,


promovida pelo capitalismo, na agricultura, é a concorrência, que aprofunda
a divisão social do trabalho, levando à especialização e ao crescimento das
cidades, expandindo a demanda para a produção agrícola:

.DXWVN\ DVVLQDOD FRP H[DWLGmR R QH[R TXH OLJD HVWD UHYROXomR


ao crescimento do mercado (em particular ao crescimento das
cidades), à subordinação da agricultura à concorrência que impôs a
transformação da agricultura e sua especialização (Lênin, Livro de
.DXWVN\S 

O tema da transformação do campo promovida pela cidade também


está presente num texto escrito sobre o desenvolvimento do capitalismo na
agricultura norte-americana, intitulado “Capitalismo e agricultura nos Estados
unidos da América: novos dados sobre as leis de desenvolvimento do capitalismo
QDDJULFXOWXUDµGHDJRUDHPGLDQWHUHIHULGRFRPR´$JULFXOWXUDQRV(8$µ1HVVH
texto Lênin chama a atenção que “RGHVHQYROYLPHQWRGRFDSLWDOLVPRQRFDPSR
FRQVLVWH DFLPD GH WXGR QD SDVVDJHP GD DJULFXOWXUD QDWXUDO j DJULFXOWXUD IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
mercantilµ S HTXHRGHVHQYROYLPHQWRGDDJULFXOWXUDPHUFDQWLOQmRFRQVLVWH
no crescimento da produção dos mesmos produtos e sim numa alteração na
composição da produção:

4XDQWR DR GHVHQYROYLPHQWR GD DJULFXOWXUD PHUFDQWLO HOH


não segue, de forma alguma, a via ‘simples’ imaginada ou
suposta pelos economistas burgueses, e que consistiria no
crescimento da produção dos mesmos produtos. Não. O
desenvolvimento da agricultura mercantil consiste, com maior
frequência, na passagem de uma determinada produção à
outra. A passagem da produção do feno e dos cereais à dos
legumes insere-se precisamente nestas transformações em
FXUVR /rQLQ$JULFXOWXUDQRV(8$S 
D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

Essa mudança na composição da produção, essa passagem da produção


de feno e cereais para a de legumes, era resultado da alteração na composição
da demanda, promovida pelo desenvolvimento do capitalismo nas cidades:

Em todos os países capitalistas o desenvolvimento das cidades,


fábricas, cidades industriais, terminais ferroviários, portos etc.,
provoca uma demanda crescente de produtos deste gênero
(legumes), faz subir seus preços, aumenta o número de empresas
agrícolas que os produzem para a venda (Lênin, Agricultura nos EUA,
S 

Na introdução a este capítulo foram expostas teses endossadas por


autores neoclássicos (PAEG), estruturalistas (Celso Furtado) e marxistas
$OEHUWR 3DVVRV *XLPDUmHV 0iULR $OYHV H 5X\ )DFy  VREUH R UHWDUGDPHQWR GR
desenvolvimento industrial causado pelo retardamento do desenvolvimento
agrícola. Em todas essas exposições a propulsão para o desenvolvimento está
no campo, a direção da causação é do campo para a cidade. O limite para o
desenvolvimento da cidade, portanto, é dado pelo campo.
Na primeira seção deste capítulo foram apresentados argumentos,
GH 'HOÀP 1HWWR H GH 5DQJHO FRQWHVWDQGR DTXHODV WHVHV (VVHV DUJXPHQWRV
FRQWHVWDPTXHRVPRYLPHQWRVGRVSUHoRVSDJRVSHORFRQVXPLGRUÀQDOHRGRV
preços recebidos pelo produtor rural indiquem a existência de inelasticidade da
oferta agrícola, que a diferença nas taxas de crescimento setorial indiquem a
existência de atraso relativo na agricultura, negando, por conseguinte, que a falta
de uma revolução agrícola/agrária cause impecilhos para o desenvolvimento do
país.
(VVHV DUJXPHQWRV FRQWHVWDGRUHV QmR VmR LGrQWLFRV 5DQJHO H 'HOÀP
Netto contestam os mesmos pontos, mas com argumentos diferentes. O que
H[LVWHHQWmRGHVHPHOKDQWHHQWUHHOHV"
Apesar das matrizes teóricas absolutamente distintas, a matriz
QHRFOiVVLFDSDUD'HOÀP1HWWRHDPDWUL]PDU[LVWDSDUD,JQDFLR5DQJHODPERV
coincidem num ponto fundamental: a propulsão para o desenvolvimento vem
da cidade para o campo; o sentido da causação é da cidade para o campo;
o limite para o desenvolvimento do campo, portanto, é dado pela cidade. Um
ponto interessante a registrar é que essa concepção da relação cidade-campo,
FRPSDUWLOKDGDSRU5DQJHOHSRU'HOÀP1HWWRpLGrQWLFDjGH/rQLQHRSRVWDjV
dos estruturalistas e de outros marxistas.

D
D 180
'HOÀP 1HWWR QR Mi FLWDGR ´1RYR GLDJQyVWLFRµ QHJD D SRVVLELOLGDGH GH
XP GHVHQYROYLPHQWR ´SX[DGRµ SHOD DJULFXOWXUD FDVR R LPSXOVR QmR YHQKD GR
comércio exterior:

(...) é extremamente duvidoso que se possa superar o impasse da


falta de mercado (para a indústria) por uma ampliação da demanda
agrícola. Seria, de fato, a primeira vez na história que teríamos uma
aceleração do desenvolvimento (não propiciado por uma ampliação
do comércio exterior) com uma ampliação do setor primário. Como é
claro, uma indústria de massa, exige uma sociedade de massa e não
é razoável supor que tal possa realizar-se sem um intenso processo
GHXUEDQL]DomR 'HOÀP1HWWR1RYRGLDJQyVWLFRS 

1RMiFLWDGR´$JULFXOWXUDQR3$(*µ'HOÀP1HWWRDÀUPDTXHDOLPLWDomR
para o desenvolvimento da agricultura estava no desenvolvimento da indústria:

O grande problema da agricultura brasileira é o aumento da sua


GHPDQGD D ÀP GH TXH HOD SRVVD XWLOL]DU WRGD VXD SRWHQFLDOLGDGH
sem criar para si mesma, problemas de preço. Em outras palavras, o
grande problema da agricultura brasileira é o ampliar-se ainda mais
RGHVHQYROYLPHQWRLQGXVWULDO 'HOÀP1HWWR$JULFXOWXUDQR3$(*S
 

O ponto central é a inelasticidade preço da demanda pelos produtos


agrícolas, que faz com que os ganhos de produtividade gerados na agricultura
sejam repassados para o consumidor:
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
Dada a conhecida inelasticidade-preço da demanda de produtos
alimentícios, isso terá de provocar uma redução de seus preços
relativos, a não ser que a demanda aumente rapidamente. O
aumento de produtividade, será, então, transferido para os centros
urbanos na forma de salários reais mais elevados e na forma de
um aumento do lucro do setor comercial (devido à oligopolização do
VHWRU  'HOÀP1HWWR1RYRGLDJQyVWLFRS

Essa transferência de ganhos de produtividade da agricultura para os


setores secundário e terciário, mediante a queda nos preços relativos, só não
aconteceria se houvesse “XPDWUHPHQGDGHPDQGDUHSULPLGDSRUDOLPHQWRVQRV
centros urbanosµPDVWDOQmRSDUHFLDVHURFDVRSRLVQRSHUtRGRD

D
D 181
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

despeito do violento crescimento da produção industrial, da renda per capita e da


urbanização, o comportamento dos preços industriais e do preço no atacado dos
produtos agrícolas indicavam que “a oferta (agrícola) DGHTXRXVHUD]RDYHOPHQWH
jGHPDQGDµ 'HOÀP1HWWR1RYRGLDJQyVWLFRS 

Diante desses fatos o que se deve esperar de uma ampliação da


RIHUWD" 3DUHFHQRV TXH XPD GHWHULRUDomR GRV SUHoRV UHODWLYRV GD
agricultura, isto é, a transferência dos ganhos de produtividade para
o setor secundário e terciário. O efeito indireto seria, portanto, o da
liberação do poder de compra das classes urbanas (que gastariam
relativamente menos com alimentação) e uma pequena ampliação
da demanda dos bens de consumo duráveis por elas consumidos
(p. 270)

'HOÀP1HWWRHQWmRFRQFOXLFRPXPDUJXPHQWRVDUFiVWLFR

Chegamos assim, à conclusão de que a ideia de fazer o


desenvolvimento econômico realizar-se por uma elevação da
produtividade dentro do próprio setor agrícola equivale a alguém
querer levantar-se pelos próprios cabelos. Para que a agricultura
possa melhorar seu nível de produtividade é preciso que receba
um impulso dinâmico da demanda do setor exportador ou do setor
XUEDQR 'HOÀP1HWWR1RYRGLDJQyVWLFRSJULIRPHX

5DQJHO QR Mi FLWDGR ´,QGXVWULDOL]DomRµ HQ[HUJD D LQGXVWULDOL]DomR


como o processo de transferir, da fazenda para a cidade, as atividades que
QmR VmR HVSHFLÀFDPHQWH DJUtFRODV (VVD WUDQVIHUrQFLD HQYROYH XP FRQMXQWR
de transformações que não são exclusivamente econômicas mas também
tecnológicas e jurídicas:

(...) podemos conceber a industrialização como o conjunto de


transformações tecnológicas, econômicas e jurídicas por que passa
a economia de um país, no esforço para transferir essa produção
industrial, do interior da fazenda agrícola, para estabelecimentos
especiais ou fábricas, com o resultado de multiplicar muitas vezes a
produção que se pode obter de cada hora de trabalho. Não se trata,
pois de roubar tempo às atividades propriamente agrícolas, mas às
atividades não agrícolas da agricultura (Rangel, Industrialização, p.
248).

D
D 182
A agricultura, nesse processo de transferência de atividades, precisa
gerar um excedente de produção agrícola e liberar mão-de-obra:

A industrialização confronta a agricultura com um duplo problema:


ao mesmo tempo exige dela que aumente sua oferta de bens
agrícolas e que libere parte da mão-de-obra que ocupa (Rangel,
Industrialização, p. 248).

A limitação a esse processo não estava na própria agricultura e sim na


indústria, não estava no campo, mas na cidade:

Para que a indústria possa efetivamente substituir a agricultura na


tarefa de converter os produtos primários em produtos acabados, deve
não apenas acumular um capital importante, como principalmente
um capital constituído por bens de natureza especial – máquinas e
instalações de tipo diferente das anteriormente usadas (em âmbito
rural). Isso implica em dizer que o ritmo de desenvolvimento é
limitado pelo suprimento de bens de produção de novo tipo
– de produtos da indústria pesada (Rangel, Industrialização, p.
248, grifo meu).

No caso da economia brasileira, as transformações no campo estavam


acontecendo numa velocidade maior do que na cidade. A maior velocidade de
modernização do campo, de transformação do latifúndio feudal em capitalista,
produzia a crise agrária, cuja expressão era: a) o excedente de produtos
agrícolas, que aliado às limitações para se exportar para os países socialistas,
saturava o mercado dos países imperialistas e gerava um problema de balanço IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
de pagamentos; b) o excedente de mão-de-obra, que em função do lento
crescimento da indústria, gerava um inchaço nas grandes cidades:

(...) o desenvolvimento capitalista exige um certo aumento da


SURGXWLYLGDGH GR WUDEDOKR QD DJULFXOWXUD D ÀP GH TXH FDGD
WUDEDOKDGRU UXUDO  VXSUD XP H[FHGHQWH GH EHQV VXÀFLHQWHV SDUD
permitir, simultâneamente, o deslocamento de parte da mão-de-
obra rural para atividades não agrícolas, e assegurar o suprimento
dos bens agrícolas aos setores não agrícolas, cujas necessidades
crescem com a urbanização e com o desenvolvimento da indústria.
Num país de economia complementar como o Brasil, urge, ainda,
suprir os bens necessários à exportação. Pois bem, a crise agrária,
QDV QRVVDV FRQGLo}HV VLJQLÀFD TXH D SURGXWLYLGDGH GR WUDEDOKR

D
D 183
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

na agricultura desenvolve-se em ritmo superior ao necessário,


com o duplo resultado de aparecimento de excedentes agrícolas
H GHPRJUiÀFRV VHQGR TXH HVWHV ~OWLPRV SHOR r[RGR UXUDO VmR
convertidos em desemprêgo urbano 5DQJHO,QÁDomRSJULIRV
no original).

(P VXPD SDUD /rQLQ DVVLP FRPR SDUD 5DQJHO H SDUD 'HOÀP 1HWWR
se a cidade não se desenvolve, o campo também não se desenvolve. Uma
coincidência de concepção que, com certeza, surpreenderá a muitos. Se Rangel
WLYHVVH VLGR PLQLVWUR WHULD GDGR SULRULGDGH D LQG~VWULD FRPR ´FDUURFKHIHµ GR
GHVHQYROYLPHQWR DVVLP FRPR 'HOÀP 1HWWR R IH] j IUHQWH GR PLQLVWpULR GD
)D]HQGD2IDWRGHXPVHUGH´HVTXHUGDµHRRXWURGH´GLUHLWDµQmRID]FRPTXH
LPSOHPHQWDVVHPSROtWLFDVGHVHQYROYLPHQWLVWDVVLJQLÀFDWLYDPHQWHGLIHUHQWHV

&RLQFLGrQFLDWiWLFDHRSRVLomRHVWUDWpJLFD

5DQJHO FRP D PDWUL] WHyULFD PDU[LVWD H 'HOÀP 1HWWR FRP D PDWUL]


teórica neoclássica, tinham posições coincidentes a respeito das principais
questões em debate sobre o desenvolvimento da economia brasileira. A origem
dessa coincidência está na identidade de concepção da relação cidade-campo,
no processo de desenvolvimento.
Para um marxista, não existe qualquer problema, qualquer desvio
ideológico, com tal coincidência. Para responder às críticas feitas pelos populistas,
de que o discípulos de Marx e Engels estavam renunciando “à herança das
GpFDGDVGHHµURPSHQGRFRP´DVPHOKRUHVWUDGLo}HVGDSDUWHPHOKRUH
PDLVDYDQoDGDGDVRFLHGDGHUXVVDµ/rQLQQXPWH[WRLQWLWXODGR´$TXHKHUDQoD
UHQXQFLDPRVµ GH DJRUD HP GLDQWH UHIHULGR FRPR ´+HUDQoDµ UHFRUUHX DRV
ensaios publicísticos, reunidos numa obra editada cerca de trinta anos antes,
VRERWtWXORGH´1XPDDOGHLDSHUGLGDHQDFDSLWDOµHVFULWRVSRU6NiOGLQH

A leitura desse livro, quase completamente esquecido hoje, é


extraordinariamente instrutiva para o estudo do problema que nos
interessa, ou seja, o da atitude dos representantes da <<herança>>
em relação aos populistas e aos <<discípulos russos>>  (Lênin,
Herança, p. 48).

65
$³KHUDQoD´DTXHRWUHFKRVHUHIHUHpDKHUDQoDUHYROXFLRQiULDGRVDQRVHGRVpFXOR;,;QD
5~VVLD2WHUPR³GLVFtSXORV´HUDXVDGRQRVDQRVGRVpFXOR;,;FRPRGHVLJQDomROHJDOGRVPDU[LV-
tas: adeptos de Marx e Engels. Este termo era usado, conforme nota explicativa no. 82, conforme nota do tradutor.
D
D 184
A obra foi escolhida porque representava uma ideologia burguesa
progressista e a intenção era mostrar o caráter progressista das teses dos
´GLVFtSXORVµGH0DU[

Um populista olharia Skáldine provavelmente com altivez e diria


simplesmente: ele é um burguês. Sim, efectivamente Skáldine
é um burguês, mas é representante de uma ideologia burguesa
progressista, ao passo que o populista representa uma ideologia
pequeno-burguesa e, numa série de pontos, reacionária (Lênin,
Herança, p. 55).

Lênin queria chamar a atenção que os termos progressista e reacionário


não deviam ser entendidos de maneira absoluta. Os iluministas foram
SURJUHVVLVWDVSRUTXHQDVGpFDGDVGHDGRVpFXOR;,;RVSUREOHPDVVRFLDLV
estavam centralizados na luta contra a servidão, as novas relações econômicas
e sociais e as suas contradições estavam em estado embrionário e os ideólogos
burgueses acreditavam e desejavam sinceramente a prosperidade, não tendo,
ainda, manifestado um interesse meramente egoísta:

dissemos que Skáldine é um burguês. As provas desta caracterização


MiFLWDGDVmRPDLVGRTXHVXÀFLHQWHVPDVpLQGLVSHQViYHOID]HUD
ressalva de que entre nós se compreende com frequência de modo
absolutamente incorrecto, estreito e anti-histórico esta palavra,
ligando-a (sem distinguir épocas históricas) à defesa egoísta dos
interesses de uma minoria. Não se deve esquecer que na época em
que os iluministas do século XVIII (que são reconhecidos pela opinião
geral como dirigentes da burguesia), e em que escreviam também
QRVVRV LOXPLQLVWDV GDV GpFDGDV GH  D  WRGRV RV SUREOHPDV
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
sociais se reduziam à luta contra a servidão e os seus vestígios.
As novas relações económicas e sociais e as suas contradições
encontravam-se ainda em estado embrionário. Por isso, nenhum
interesse egoísta se manifestava então nos ideólogos burgueses;
ao contrário, tanto no Ocidente como na Rússia eles acreditavam
com toda a sinceridade na prosperidade geral e desejavam-na
sinceramente; não viam sinceramente (e em certa medida não
podiam ver ainda) as contradições do regime que surgia do regime
de servidão. Não é sem razão que Skáldine cita Adam Smith numa
passagem do seu livro: vimos que tanto as suas concepções como o
carácter da sua argumentação repetiam em muitos pontos as tese
deste grande ideólogo da burguesia avançada (Lênin, Herança, p.
57).

D
D 185
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

Interessante registrar que Lênin chama a Adam Smith de “representante


da burguesia avançada. O conhecimento deste fato certamente surpreenderá
DRV´QRVVRVµPDU[LVWDV
/rQLQDRFRQWUiULRGRTXHGL]LDPRVSRSXOLVWDVDÀUPDYDTXHRFDSLWDOLVPR
era progressista. A razão para tal esta em que ele é uma etapa de limpeza do
passado e construção do futuro. O capitalismo é uma etapa de preparação das
bases materiais, sociais e políticas para o socialismo.
Num texto que se tornou um clássico do marxismo, “O desenvolvimento
do capitalismo na Rússia: O processo de formação do mercado interno para a
JUDQGHLQG~VWULDµGHDJRUDHPGLDQWHUHIHULGRFRPR´'HVHQYROYLPHQWRµ/rQLQ
expõe porque o capitalismo prepara as bases materiais e as bases sociais para
o socialismo.
O capitalismo prepara as bases materiais para o socialismo porque, ao
promover uma ampliação da produção sem a correspondente ampliação do
consumo, ao libertar a acumulação das barreiras impostas pela limitação do
consumo, desenvolve enormemente as forças produtivas:

O desenvolvimento da produção (e, logo, do mercado interno)


voltado predominantemente para os meios de produção parece
paradoxal e constitui, sem dúvida, uma contradição. Trata-se de
uma verdadeira ‘produção pela produção’, uma ampliação da
produção sem uma ampliação correspondente do consumo. Mas
esta não é uma contradição teórica: é uma contradição da vida
real; é precisamente uma contradição que corresponde à própria
natureza do capitalismo e às outras contradições desse sistema
de economia social. É precisamente essa ampliação da produção
sem a respectiva ampliação do consumo que corresponde à missão
KLVWyULFDGRFDSLWDOLVPRHjVXDHVWUXWXUDVRFLDOHVSHFtÀFDDSULPHLUD
consiste em desenvolver as forças produtivas da sociedade e a
segunda exclui a massa da população do usufruto das conquistas
técnicas. Há uma inequívoca contradição entre a tendência ilimitada
à ampliação da produção (tendência própria do capitalismo) e o
consumo limitado das massas populares (limitado em razão da sua
condição proletária) ... {...} Ademais, não há nada mais absurdo que
das contradições do capitalismo deduzir sua impossibilidade, seu
caráter não progressista etc., o que implica em procurar nas celestes
regiões dos devaneios românticos refúgio contra uma realidade
desagradável, porém indiscutível. A contradição que existe entre
a tendência ilimitada ao crescimento da produção e o consumo
limitado não é a única do capitalismo, que só pode existir e se
desenvolver em meio a contradições. Elas, aliás, atestam o caráter
historicamente transitório do capitalismo, iluminando as condições
D
D 
e as causas da sua decomposição e da sua transformação em uma
forma superior (Lênin, Desenvolvimento, p.25).

O capitalismo prepara as bases sociais para o socialismo porque a


´SURGXomR SHOD SURGXomRµ FDUDFWHUtVWLFD GHVVH PRGR GH SURGXomR UHTXHU D
especialização, a concentração da produção em unidades produtivas separadas
produzindo para toda a sociedade, concentrando nas cidades, uma classe livre
de velhas amarras, com maior capacidade de entendimento da realidade em que
vive e com maior capacidade de organização. A expansão das bases materiais
é, simultaneamente, a socialização do trabalho e a criação e o desenvolvimento
de duas classes sociais antagônicas: a burguesia e o proletariado, a primeira
concentrando e a segunda sendo excluída dos benefícios do progresso da
técnica. O desenvolvimento do capitalismo, portanto, prepara as bases sociais
para o socialismo:

A socialização do trabalho pelo capitalismo se manifesta nos seguintes


processos. Em primeiro lugar o próprio crescimento da produção
PHUFDQWLOS}HÀPjGLVSHUVmRGDVSHTXHQDVXQLGDGHVHFRQ{PLFDV
própria da economia natural, e reúne os pequenos mercados locais
num grande mercado nacional (depois mundial). {...} Em segundo
lugar, o capitalismo substitui a antiga dispersão da produção por
uma concentração sem precedentes, quer na agricultura, quer na
indústria. {...} Em terceiro lugar, o capitalismo elimina as formas de
dependência pessoal que são parte inalienável dos antigos sistemas
econômicos. {...} Em quarto lugar, o capitalismo cria necessariamente
a mobilidade da população, que era desnecessária aos sistemas
de economia social anteriores, {...}. Em quinto lugar, o capitalismo
provoca uma redução constante da parte da população ocupada na
agricultura (onde sempre predominam as formas mais atrasadas
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
de relações econômicas e sociais) e um crescimento do número de
grandes centros industriais. Em sexto lugar, a sociedade capitalista
aumenta a necessidade de união e associação da população e dá
às suas organizações um caráter peculiar, distinto em relação aos
períodos anteriores. Destruindo as limitadas uniões corporativas
locais da sociedade medieval e instaurando uma concorrência
impiedosa, o capitalismo fratura simultaneamente o conjunto da
sociedade em grandes grupos de pessoas que ocupam diferentes
posições na produção, impulsionando vigorosamente a constituição
de associações no interior de cada um desses grupos. Em sétimo
lugar, todas as referidas transformações do antigo regime econômico,
operadas pelo capitalismo, levam inevitavelmente á mudança da
estrutura moral da população (Lênin, Desenvolvimento, pp.374 e
375).

D
D 187
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

/rQLQQRWH[WR´4XLHQHVVRQORV¶DPLJRVGHOSXHEOR·\FRPROXFKDQFRQWUD
ORVVRFLDOGHPyFUDWDV"5HVSXHVWDDORVDUWLFXORVGH5XVVNRLH%RJDWVWYRFRQWUD
ORV0DU[LVWDVµGHDJRUDHPGLDQWHUHIHULGRFRPR´$PLJRVGHOSXHEORµPRVWUD
porque o capitalismo prepara as bases políticas para o socialismo. Na etapa da
grande indústria, a exploração está completamente desenvolvida, está com seu
aspecto puro e, por isto, o trabalhador pode ver claramente que o que o oprime
é o capital e que sua luta tem que ser contra uma classe, contra a burguesia. O
desenvolvimento do capitalismo, portanto, torna mais fácil para o trabalhador
compreender adequadamente a questão da luta pela abolição da exploração:

(...) La explotación del trabajador en Rusia es en todas partes


capitalista por esencia, si se dejan a un lado los restos agonizantes
de la economia del régimen de servidumbre; lo unico que ocurre es
que la explotación de la masa de productores es nimia, dispersa,
no desarrollada, mientras que la explotación del proletariado fabril
HV JUDQGH SUHVHQWD XQ FDUDFWHU VRFLDO \ HVWi FRQFHQWUDGD (Q
el primer caso esta explotación se encuentra todavía envuella en
IRUPDV PHGLHYDOHV UHFDUJDGD GH GLIHUHQWHV DSpQGLFHV DUWLÀFLRV \
VXEWHUIXJLRVSROLWLFRVMXULGLFRV\FRQVXHWXGLQDULRVTXHLPSLGHQDO
WUDEDMDGRU\DVXLGHyORJRYHUODHVHQFLDGHHVWDRUGHQGHFRVDVTXH
RSULPHDOWUDEDMDGRUYHUGyQGHHVWiODVDOLGDGHHO\FyPREXVFDU
HVWDVDOLGD3RUHOFRQWUDULRHQHOXOWLPRFDVRODH[SORWDFLyQ\DHVWi
FRPSOHWDPHQWH GHVDUUROODGD \ DSDUHFH  HQ VX DVSHFWR SXUR VtQ
ninguno de los aditamentos que embrollan la questión. El obrero no
SXHGH\DGHMDUGHYHUTXHORRSULPHHOFDSLWDOTXHKD\TXHVRVWHQWDU
la lucha contra la clase de la burguesia (Lênin, Amigos del pueblo,
p. 201).

Na medida em que o desenvolvimento do capitalismo torna as coisas


claras, mostra onde está a fonte da exploração, ele também desperta a
consciência do trabalhador, converte o descontentamento surdo e vago em
protesto consciente, em luta de classe pela libertação de todos os trabalhadores:

Si se compara esta aldea real con nuestro capitalismo, se comprende


entonces por qué los socialdémocratas consideram progresista la
labor de nuestro capitalismo, cuando éste concentra estos pequeños
mercados aislados en un mercado que abarca a toda Rusia, cuando
FUHD HQ OXJDU GH OD LQÀQLGDG GH SHTXHxDV VDQJXLMXHODV OHDOHV
al régimen, un puñado de grandes ‘pilares de la patria’; cuando
VRFLDOL]D HO WUDEDMR \ HOHYD VX SURGXFWLYLGDG FXDQGR URPSH HVWD
VXERUGLQDFLyQ GHO WUDEDMDGRU D ODV VDQJXLMXHODV ORFDOHV \ FUHD OD

D
D 188
subordinación al gran capital. Esta subordinación es progresista en
compración con aquella - apesar de todos los horrores de la opresión
del trabajo, de la agonía lenta, del embrutecimiento, de la mutilación
de los organismos femininos e infantiles etc. - porque DESPIERTA
/$&21&,(1&,$'(/2%5(52FRQYLHUWHHOGHVFRQWHQWRVRUGR\YDJR
en protesta cosciente, convierte el motín aislado, pequeño, ciego,
en lucha organizada de clases por la liberación de todo el pueblo
trabajador, lucha que extras su fuerza de las condiciones mismas
GH H[LVWHQFLD GH HVWH JUDQ FDSLWDOLVPR \ SRU HOOR PLVPR SXHGH
contar incondicionalmente con un EXITO SEGURO (Lênin, Amigos del
pueblo, p.128).

Contrariamente aos marxistas, os populistas se opunham ao


desenvolvimento do capitalismo. O primeiro traço distintivo do populista era não
enxergar o caráter progressista do desenvolvimento capitalista:

considerar o capitalismo na Rússia como uma decadência, uma


regressão ... esquece que ‘para trás’ deste capitalismo nada há senão
XPDH[SORUDomRLGrQWLFDDVVRFLDGDDLQÀQLWDVIRUPDVGHVXMHLomRH
de dependência pessoal, que agravam a situação do trabalhador;
nada há senão a rotina e a estagnação na produção social, e, por
conseguinte, em todas as esferas da vida social. Ao lutar contra o
capitalismo do seu ponto de vista romântico e pequeno-burguês, o
populista abandona todo o realismo histórico, comparando-o sempre
D´UHDOLGDGHµGRFDSLWDOLVPRFRPDÀFomRGDRUGHPSUpFDSLWDOLVWD
/rQLQ+HUDQoDS 

Skáldine, por seu turno, criticava o regime de servidão e defendia IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
o desenvolvimento do capitalismo. As teses de Skáldine eram, portanto,
progressistas e os discípulos deviam apoiá-las na luta contra as teses populistas:

Pois bem, se confrontarmos as aspirações práticas de Skáldine, por


um lado com as concepções dos populistas russos contemporâneos,
e por outro lado com a atitude dos <<discípulos russos>> para
com elas, veremos que os <<discípulos>> estrarão sempre a favor
das aspirações de Skáldine, pois estas expressam os interesses
das classes sociais progressistas, os interesses vitais de todo o
desenvolvimento social pela presente via, ou seja, a capitalista. E
o que foi alterado pelos populistas nestas aspirações práticas de
Skáldine ou no seu modo de formular os problemas é um facto
negativo que os <<discípulos>> rejeitam (Lênin, Herança, p. 57).

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

Entende-se, assim, a razão pela qual os discípulos vão apoiar os


iluministas contra os populistas. Estes últimos querem deter o desenvolvimento
do capitalismo. Discípulos e iluministas querem o desenvolvimento do
FDSLWDOLVPR PDV RV SULPHLURV TXHUHPQR SDUD LQWHQVLÀFDU VXDV FRQWUDGLo}HV
e acelerar sua substituição por um modo de produção superior e os segundos
querem-no para eternizar este modo de produção. A aliança entre discípulos e
iluministas, portanto, não era estratégica e sim tática.

2 LOXPLQLVWD FRQÀD QR DWXDO GHVHQYROYLPHQWR VRFLDO SRLV QmR


percebe as contradições que lhe são inerentes. O populista teme
este desenvolvimento por ter notado já estas contradições. O
GLVFtSXOR!!FRQÀDQRDWXDOGHVHQYROYLPHQWRSRLVYrDJDUDQWLD
de um futuro melhor unicamente no pleno desenvolvimento
destas contradições. A primeira e a última corrente tendem por
isso a apoiar, acelerar e facilitar o desenvolvimento pelo caminho
atual, a eliminar todos os obstáculos que entravam e retardam
este desenvolvimento. O populismo, pelo contrário, tende a deter
e paralisar este desenvolvimento, teme a destruição de certos
obstáculos que se opõem ao desenvolvimento do capitalismo. A
primeira e a última corrente caracterizam-se pelo que se pode
chamar optimismo histórico: quanto mais longe e mais depressa
as coisas caminharem, como estão a caminhar, tanto melhor. O
populismo, pelo contrário, conduz naturalmente ao pessimismo
histórico: quanto mais longe as coisas caminharem assim, tanto
pior ... Os <<iluministas>> nem sequer levantaram os problemas
relativos ao carácter do desenvolvimento posterior à reforma ...
O populismo colocou o problema do capitalismo na Rússia, mas
resolveu-o no sentido de que o capitalismo era reacionário, e por
isso não pode receber integralmente a herança dos iluministas ...
Os <<discípulos>> resolvem o problema do capitalismo na Rússia
no sentido de que ele é progressivo, e por isso não só podem como
devem aceitar plenamente a herança dos iluministas, completando-a
com a análise das contradições do capitalismo do ponto de vista dos
SURGXWRUHVTXHQmRVmRSURSULHWiULRVµ /rQLQ+HUDQoDSSH 

As divergências entre iluministas, populistas e discípulos, têm sua origem


nos diferentes interesses de classe que pretendiam representar. Os primeiros
pretendiam representar o interesse geral da nação, ainda que representassem,
de fato o interesse da grande burguesia. Os segundos pretendiam representar o
interesse do trabalho em geral, ainda que representassem o interesse da pequena
burguesia. Os terceiros pretendiam representar e, de fato, representavam, o
interesse do proletariado. Uma aliança tática progressista, entre iluministas e
D
D 
discípulos, porque representam as classes da sociedade moderna, formadas e
desenvolvidas pelo capitalismo:

Os iluministas não destacaram como objeto de atenção especial


nenhuma classe da população, falavam não só do povo em geral como
mesmo da nação em geral. Os populistas desejavam representar
RVLQWHUHVVHVGRWUDEDOKRVHPHVSHFLÀFDUFRQWXGRGHWHUPLQDGRV
grupos do sistema atual de economia; na prática, adoptavam sempre
o ponto de vista do pequeno produtor, o qual o capitalismo converte
em produtor de mercadorias. Os <<discípulos>> não só tomam como
critério o interesse do trabalho, como indicam além disso grupos
HFRQyPLFRVWRWDOPHQWHGHÀQLGRVGDHFRQRPLDFDSLWDOLVWDRXVHMDRV
produtores que não são proprietários. A primeira e última correntes
correspondem, pelo conteúdo de suas aspirações, aos interesses
das classes que são criadas e desenvolvidas pelo capitalismo;
o populismo corresponde, pelo seu conteúdo, aos interesses da
classe dos pequenos produtores, da pequena burguesia, que ocupa
uma posição intermédia entre as outras classes que compõem a
sociedade atual (Lênin, Herança, p. 72).

$V FRLQFLGrQFLDV VmR PXLWDV HQWUH 5DQJHO H 'HOÀP 1HWWR QR TXH VH
refere ao desenvolvimento da economia brasileira, em particular quanto ao
relacionamento cidade-campo. Existe, no entanto, uma diferença fundamental
HQWUHTXDQWRDRVLJQLÀFDGRGHVVHGHVHQYROYLPHQWR
Ambos estão interferindo no debate com o objetivo de ajudar a promover
o desenvolvimento, mas a avaliação e o objetivo último são absolutamente
distintos. O ponto que distingue Rangel é a avaliação crítica desse processo.
Rangel, apesar de defender o desenvolvimento da economia brasileira IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
pela via capitalista, não era ufanista. Ao contrário, Rangel apontava, denunciava,
que esse desenvolvimento se dava com uma série de distorções, com um
conjunto de irracionalidades.
A industrialização sem reformar, previamente, as relações sociais no
campo é que permitiu o pacto de poder entre o latifúndio feudal a burguesia
industrial. A tese de Rangel, no jargão atual, é que o acelerado desenvolvimento
do capitalismo, no campo brasileiro, não fora de acordo com o modelo conhecido
FRPRYLD´IDUPHUµHVLPGHDFRUGRFRPRPRGHORFRQKHFLGRFRPRYLD´SUXVVLDQDµ
A modernização da economia brasileira, consequentemente, não se deu de
maneira a assegurar as condições para o surgimento de uma policultura mercantil,
capaz de assegurar uma ocupação estável do solo. A rápida transformação do

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

latifúndio feudal em latifúndio capitalista, sem o correspondente crescimento da


indústria, que estava limitado pelo lento desenvolvimento da indústria de base,
resultou na criação de um desmesurado exército industrial de reserva de mão-
de-obra:

Êsse estado de coisas se agrava à medida que, com a penetração do


capitalismo no campo – através da conversão direta do latifúndio
feudal em latifúndio capitalista – desmantelam-se as bases
da policultura feudal (nos quadros da ocupação estável da terra
característica da servidão de gleba, sob tôdas as suas formas) sem
o aparecimento de condições para uma policultura mercantil (nos
quadros da pequena propriedade independente, capaz de assegurar,
também, uma ocupação estável do solo). Resulta que, por um lado,
aumenta a produtividade do trabalho agrícola em ritmo maior que o
da expansão do mercado para bens agrícolas e, em conseqüência
milhões de camponeses são arruinados e deslocados, dispondo-se
a disputar um lugar ao sol fora da agricultura, virtualmente por
qualquer salário 5DQJHO,QÁDomRSJULIRVQRRULJLQDO 

O esquema de distribuição de renda é um ponto fundamental no processo


de desenvolvimento e a via prussiana do desenvolvimento do capitalismo, no
campo brasileiro, gerava um enorme exército industrial de reserva de mão-
de-obra que deprimia o poder de barganha da massa trabalhadora no setor
capitalista:

tudo na operação do sistema econômico capitalista, depende,


direta ou indiretamente, do esquema de distribuição da renda
nacional, o qual encarna, em última instância, a correlação entre
a folha total de salários (V) e a mais valia (lucro, renda territorial,
rendimentos dos setores improdutivos da população), isto é (P). Tudo,
portanto, depende da razão P:V ... a razão investimento:consumo
,&  TXH .H\QHV HVWXGRX GHPRQVWUDQGR TXH QmR p XPD UHODomR
SDVVLYD PDV DWLYD LQÁXLQGR QmR DSHQDV VREUH D GLVWULEXLomR GR
dividendo nacional mas sobre a própria magnitude desse dividendo
QmRSDVVDGHXPDUHHQFDUQDomRDOJRPRGLÀFDGDGDUD]mR39
A rationaleGHVVDDÀUPDomRHVWiQRVIDWRVGHLPHGLDWDDSUHHQVmR
de que a folha de salários é o item decisivo do fundo social de
consumo, enquanto o investimento é a destinação decisiva, típica,
GDPDLVYDOLD 5DQJHO,QÁDomRSJULIRVQRRULJLQDO 
O capitalismo brasileiro recruta a sua mão-de-obra num mercado
convulsionado por todas essas manifestações da crise agrária, isto

D
D 
é, do processo de desagregação da velha estrutura agrária (feudal) e
de sua conversão na nova estrutura agrária (capitalista). Em especial,
age como elemento perturbador do mercado de trabalho capitalista
DIRUPDomRGRVH[FHGHQWHVGHPRJUiÀFRVUXUDLVSRLVLVWRLPSRUWDQD
formação de uma oferta excessiva de mão-de-obra, a qual deprime
o poder de barganha das massas trabalhadoras do setor capitalista
5DQJHO,QÁDomRS 

Essa distribuição extremamente desigual da renda, fruto do desmesurado


exército industrial de reserva de mão-de-obra, provocada pela crise agrária,
produzia uma economia com um crescimento extremamente dependente da
LQÁDomRSDUDLQGX]LURVLQYHVWLPHQWRVHFRQVHTXHQWHPHQWHFRPIRUWHWHQGrQFLD
para a geração de capacidade ociosa:

'HSULPLQGRVH D SUHIHUrQFLD SHOD OLTXLGH] FRP D LQÁDomR QXP


DPELHQWH HP TXH RV DWLYRV ÀQDQFHLURV UHGX]LDPVH SUDWLFDPHQWH
ao papel moeda e aos depósitos à vista), notaremos os seguintes
efeitos sôbre o comportamento geral da economia: 1) as camadas de
renda média ou elevadas mostrarão certa propensão por antecipar
o consumo corrente; 2) as pessoas e as famílias mostrarão certa
propensão a adquirir bens duráveis ou suscetíveis de conservação,
isto é, imobilizarão mais, embora essa imobilização não tenha
o caráter de investimento j YLVWD GR FULWpULR VLPSOLÀFDGRU GD
contabilidade social, que considera como de consumo tôdas
as compras das famílias; 3) as emprêsas e os próprios órgãos do
poder público investirão mais, isto é, realizarão imobilizações não
necessárias, à rigor, à operação das indústrias e serviços, mas que
VHMXVWLÀFDPjYLVWDGRHVSHUDGRFRPSRUWDPHQWRIXWXURGRVSUHoRV
SDUDÀQVGHUHYHQGDRXGHDQWHFLSDomRGRGLVSrQGLRQRVFDVRVHP IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
que o investimento seja necessário, se bem que sòmente para data
IXWXUD 5DQJHO,QÁDomRSJULIRVQRRULJLQDO 
Uma economia que depende para o seu simples equilíbrio e
para sua expansão, de uma elevada taxa de imobilização, tende
continuamente para o superinvestimento, considerando que os
investimentos produtivos são a destinação mais natural e típica das
LPRELOL]Do}HV JOREDLV GR VLVWHPD 4XHU LVVR GL]HU TXH SRU PXLWR
importante, que se tornem as imobilizações não produtivas ou de
consumo, a capacidade produtiva tende a tornar-se excessiva, dada
a mecânica da demanda global, presa a uma demanda de consumo
TXHVHH[SDQGHSUHJXLoRVDPHQWH 5DQJHO,QÁDomRS 

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

A culminação desse conjunto de distorções, de irracionalidades do ponto


de vista social, eram as imobilizações com rentabilidade negativa:

Isto posto, o conceito de rentabilidade negativa se investe de todo


o seu valor. Mesmo que, em data posterior, ao serem liquidados os
acervos criados, produzam, em termos reais, isto é, GHÁDFLRQDGRV,
algo menos do que neles se inverteu, para adquiri-los e conservá-los,
D DSOLFDomR VH WHUi MXVWLÀFDGR GR SRQWR GH YLVWD GR LQYHUVLRQLVWD
desde que o desconto suportado seja menor que o que se teria
YHULÀFDGR VH DTXrOH KRXYHVVH SUHIHULGR D OLTXLGH] DSHJDQGRVH j
moeda como reserva de valor, de meio de entesouramento (Rangel,
,QÁDomRSJULIRVQRRULJLQDO 

'HOÀP 1HWWR QXP WUHFKR DQWHULRUPHQWH H[SRVWR H TXH DJRUD VHUi


repetido, criticou a tese do desenvolvimento promovido pelo campo. Sem um
rápido aumento da renda e da demanda pelos produtos agrícolas, um aumento
da produtividade no campo seria repassado para a cidade, seja na forma de
aumento de salários, promovida pela queda dos preços em razão da conhecida
inelasticidade preço da demanda pelos produtos agrícolas, seja na forma de
maiores lucros para o setor de comercialização, em razão da oligopolização do
setor:

Dada a conhecida inelasticidade-preço da demanda de produtos


alimentícios, isso terá de provocar uma redução de seus preços
relativos, a não ser que a demanda aumente rapidamente. O
aumento de produtividade, será, então, transferido para os centros
urbanos na forma de salários reais mais elevados e na forma de
um aumento do lucro do setor comercial (devido à oligopolização do
VHWRU  'HOÀP1HWWR1RYRGLDJQyVWLFRS 

Uma primeira observação a ser feita é que essa argumentação está


incompleta, pois omite que tal resultado depende da existência de concorrência
entre os produtores agrícolas. Uma segunda observação a ser feita é que a
argumentação admite explicitamente a existência de oligopólio na comercialização
de produtos agrícolas.
Ora, concorrência entre produtores e cartel na comercialização,
conforme já visto, são pontos sustentados por Ignacio Rangel para criticar a tese
estruturalista de inelasticidade da oferta agrícola. Como não é de se esperar
TXH'HOÀP1HWWRQmRVDELDGDLPSRUWkQFLDGDKLSyWHVHGHFRQFRUUrQFLDHQWUH

D
D 
os produtores, cabe, então, perguntar por que ele não usou a argumentação de
5DQJHOFRPRPDLVXPDHYLGrQFLDGRHTXtYRFRHVWUXWXUDOLVWD"
A resposta não pode ser encontrada no campo da teoria econômica e sim
no campo da política. Ao não enfatizar a oligopolização do setor comercializador
GH SURGXWRV DJUtFRODV 'HOÀP 1HWWR QmR UHVVDOWD XP DUJXPHQWR XWLOL]DGR SRU
um adversário político e não ressalta uma falha no mecanismo de mercado,
justamente num ponto tão importante para o desenvolvimento do país. A falta
de ênfase na oligopolização do setor comercializador pode ser vista como uma
RPLVVmRGHOLEHUDGDPRWLYDGDSHORFRPSURPLVVRSROtWLFRGH'HOÀP1HWWR
,JQDFLR 0RXUmR 5DQJHO H $QW{QLR 'HOÀP 1HWWR DSHVDU GDV PXLWDV
coincidências no que diz respeito ao desenvolvimento da economia brasileira,
particularmente no que se refere ao relacionamento cidade-campo, têm uma
diferença fundamental: o compromisso de classe, a opção doutrinária. Rangel
quer o desenvolvimento para desenvolver a classe operária e promover a
WUDQVIRUPDomRVRFLDOLVWD'HOÀP1HWWRTXHURGHVHQYROYLPHQWRSDUDFRQVROLGDU
o capitalismo. A coincidência tática não exclui a divergência estratégica.

'LIHUHQoDVHQWUHVLHFRPRVPDU[LVWDV

Num trabalho intitulado El programa agrario de la socialdemocracia en


OD SULPHUD UHYROXFLyQ UXVD GH  GH DJRUD HP GLDQWH UHIHULGR FRPR
´3URJUDPDDJUDULRµ/rQLQFKDPDDDWHQomRTXHRFDSLWDOLVPRDRSHQHWUDUQR
campo, defronta-se com relações sociais que lhes são antecedentes e que a
ele se opõem. Defronta-se com um tipo de propriedade que é a expressão de
relações de produção diferentes das que ele traz consigo. IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
A propriedade privada da terra é uma forma de propriedade privada
que existe desde antes da sociedade organizar-se aos moldes capitalistas. A
penetração e desenvolvimento do capitalismo no campo, consequentemente,
exige que ele amolde, ao seu estilo, a propriedade que não foi criada por ele.
Não existe, portanto, uma forma única em que o capital submete a propriedade
privada da terra aos seus desígnios e impõe as relações de produção que lhes
são características.

0DU[ VHxDODED \D HQ HO WRPR ,,, GH (O &DSLWDO TXH OD IRUPD GH
propriedad agraria que encuentra en la historia el modo capitalista
de producción cuando comienza a desarrollarse, no corresponde

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

al capitalismo. El proprio capitalismo crea para sí las formas


correspondientes de relaciones agrarias, partiendo de las viejas
formas de posesión de la tierra: la terrateniente-feudal, la campesina-
comunal, la gentilicia, etc. En el lugar citado, compara Marx los
diferentes procedimientos por los que el capital crea las formas de
propriedad agraria que le corresponden. En Alemania, el cambio
de las formas medievales de propriedad agraria se desarrolló, por
decirlo así, siguiendo la senda reformista, adaptándose a la rutina, a
la tradición, a las posesiones feudales, que se fueron transformando
lentamente en haciendas de junkers, a los lotes rutinários de los
campesinos-holgazanes, que atraviesan el difícil período de tránsito
GHVGHODSUHVWDFLyQSHUVRQDOKDVWDHO¶.QHFWK·\HO¶*URVVEDXHU·(Q
Inglaterra, esta transformación fue revolucionária, violenta, pero la
YLROHQFLDVHHPSOHyHQEHQHÀFLRGHORVWHUUDWHQLHQWHVODYLROHQFLD
se ejerció sobre las masas campesinas, que fueron extenuadas
por los tributos, expulsadas de las aldeas, desalojadas, que fueron
extinguiéndose o emigraron. En Norteamérica, esta transformación
fue violenta con respecto a las posesiones esclavistas de los Estados
del Sur. Allí se ejerció la violencia contra los terratenientes feudales.
Sus tierras fueron fraccionadas; la gran propriedad agraria feudal se
convirtió en pequeña propriedad burguesa (Lênin, Programa agrario,
S 

A substituição dos métodos de exploração pré-capitalista pelos métodos


de exploração burgueses, pode ser feita paulatinamente, conservando-se a
grande propriedade fundiária, ou com maior velocidade, destruindo a grande
propriedade fundiária:

Los restos del feudalismo puedem desaparecer tanto mediante


la transformación de las haciendas de los terratenientes como
mediante la destrucción de los latifundios de los terratenientes,
HV GHFLU SRU PHGLR GH OD UHIRUPD \ SRU PHGLR GH OD UHYROXFLyQ (O
GHVDUUROOREXUJXpVSXHGHYHULÀFDUVHWHQLHQGRDOIUHQWHODVJUDQGHV
haciendas de los terratenientes, que paulatinamente se tornen cada
YH] PiV EXUJXHVDV TXH SDXODWLQDPHQWH VXVWLWX\DQ ORV PpWRGRV
IHXGDOHVGHH[SORWDFLyQSRUPpWRGRVEXUJXHVHV\SXHGHYHULÀFDUVH
también teniendo al frente las pqueñas haciendas campesinas, que
por vía revolucionaria extirpen del organismo social la ‘excrecencia’
GHORVODWLIXQGLRVIHXGDOHV\VHGHVDUUROOHQGHVSXpVOLEUHPHQWHVLQ
ellos por el camino de la agricultura capitalista de los granjeros
(Lênin, Programa agrario, p.28)

D
D 
O caso Inglês é um exemplo típico de como o capital é implacável nessa
transformação. Nesse país, todas as condições que não correspondiam ou que
se contradiziam às condições do capitalismo, foram, literalmente, “varridas sem
SLHGDGHµ 2 IDPRVR ´FOHDULQJ RI HVWDWHVµ VLJQLÀFRX D GHUUXEDGDGDV FHUFDV D
limpeza das terras para o capital. Esse processo foi tão intenso, na Inglaterra,
que pode-se dizer ter sido um processo de negação da propriedade privada das
terras para o capital, feito na perspectiva do grande proprietário de terras:

(...) a partir de la época de Enrique VII, en ninguna parte del mundo ha


sido tan implacable la producción capitalista con el régimen agrícola
tradicional, en ninguna parte se han creado unas condiciones tan
perfectas (adequadas = idealmente congruentes), en ninguna parte
ha sometido hasta tal punto estas condiciones a su arbitrio. En este
sentido, Inglaterra es el país más revolucionario del mundo. Todo
el orden de cosas herdado de la historia, allí donde contradecía
las condiciones de la producción capitalista en la agricultura o no
correspondía a estas condiciones, fue barrido sin piedad: no sólo fue
PRGLÀFDGRHOHPSOD]DPLHQWRGHORVSREODGRVUXUDOHVVLQRTXHIXHURQ
derruidos estos poblados; no sólo fueron arrasadas las vivendas
\ ORV OXJDUHV GH HPSOD]DPLHQWR GH OD SREODFLyQ QR VROR IXHURQ
barridos los centros tradicionales de la economía, sino que se puso
ÀQDODSURSULDHFRQRPtD/DH[SUHVLyQWpFQLFD¶FOHDULQJRIHVWDWHV·
OLWHUDOPHQWHOLPSLH]DGHODVÀQFDVROLPSLH]DGHODVWLHUUDV KDELWXDO
en el Reino Unido, no la encontramos en ningún país continental.
... no aceptaraon todas las condiciones de la produccióntal como
existían tradicionalmente, sino que fuero creando, en un proceso
historico, estas condiciones en forma que respondiesen en cada
caso concreto a als exigencias dela aplicación más vantajosa del
capital. En este sentido no existe, pues, realmente propriedad sobre
OD WLHUUD \D TXH HVWD SURSULHGDG RWRUJD DO FDSLWDO  DO JUDQMHUR  HO
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
derecho de explotarlibremente su hacienda, interesándose de un
modo exclusivo por obtener ingresos pecuniários. (Lênin, Programa
DJUDULRSS 

O caso inglês é uma exceção e o padrão é seguir o modelo ocorrido na


3U~VVLDTXHSRULVVRÀFRXFRQKHFLGRFRPRYLD´SUXVVLDQDµRXYLD´MXQNHUµRX
RPRGHORVHJXLGRQRV(VWDGRV8QLGRVGD$PpULFDGR1RUWHTXHSRULVVRÀFRX
FRQKHFLGR FRPR YLD ´QRUWHDPHULFDQDµ RX YLD ´IDUPHUµ 1D YLD ´SUXVVVLDQDµ R
caminho é mais lento, mantendo a grande propriedade fundiária.. Na via “norte-
DPHULFDQDµRFDPLQKRpPDLVUiSLGRGHVWUXLQGRDJUDQGHSURSULHGDGHIXQGLiULD

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

Estos dos caminos del desarrollo burgués objetivamente posible,


QRVRWURV ORV GHQRPLQDUtDPRV FDPLQR GH WLSR SUXVLDQR \ FDPLQR
de tipo norteamericano. En el primer caso, la explotación feudal
del terrateniente se transforma lentamente en una explotación
burguesa, junker, condenando los campesinos a decenios de la
H[SURSLDFLyQ\GHO\XJRPiVGRORURVRVGDQGRRULJHQDXQDSHTXHxD
minoría de ‘Grossbauern’ (‘labradores fuertes’). En el segundo
caso, no existen haciendas de terratenientes o son destruídas por
OD UHYROXFLyQ TXH FRQÀVFD \ IUDJPHQWD ODV SRVHVLRQHV IHXGDOHV
En este caso predomina el campesino, que pasa a ser el agente
H[FOXVLYRGHODDJULFXOWXUD\YDHYROXFLRQDQGRKDVWDFRQYHUWLUVHHQHO
granjero capitalista (Lênin, Programa agrario, p.28).

Ambos os caminhos são trilhados pelo capital para submeter o campo ao


VHXGRPtQLRPDVDYLD´QRUWHDPHULFDQDµpPDLVGLQkPLFD

(...) cuanta más tierra hubiesen recibido los campesinos al ser


OLEHUDGRV \ FXDQWR PiV EDUDWD OD KXELHVHQ REWHQLGR WDQWR PiV
UiSLGR DPSOLR \ OLEUH KDEUtD VLGR HO GHVDUUROOR GHO FDSLWDOLVPR HQ
Rusia, tanto más alto habría sido el nivel de vida de la población,
WDQWRPiVH[WHQVRKDEUtDVLGRHOPHUFDGRLQWHULRUFRQWDQWDPD\RU
rapidez habrían sido aplicadas las máquinas a la producción; en una
palabra, tanto más se habría asemejado el desarrollo económico de
Rusia al desarrollo económico de Norteamérica (Lênin-40, Programa
DJUDULRS 

'HOÀP1HWWRQmRWHPTXDOTXHUDWHQomRSDUDDGLIHUHQoDHQWUHRVGRLV
caminhos de transformação do campo pela cidade. O ponto central de sua
preocupação, na relação cidade-campo, era se a agricultura respondia aos
preços, se tinha atendido de maneira satisfatória aos requisitos da indústria. O
ponto central da sua preocupação, no processo de desenvolvimento, era se a
indústria estava se desenvolvendo. Em ambos os casos sua resposta era positiva.
Rangel estava atento para a questão dos dois caminhos da transformação
do campo pela cidade. Conforme já referido na seção anterior, a transformação
GRODWLI~QGLRIHXGDOHPODWLI~QGLRFDSLWDOLVWDVHJXLDDFKDPDGDYLD´SUXVVLDQDµ
com manutenção da grande propriedade fundiária e grande sofrimento para os
trabalhadores.
Com o que foi exposto, fundamentado em Lênin, sobre os dois caminhos
da transformação do campo pela cidade, pode-se compreender a diferença
entre Rangel e os marxistas como Alberto Passos Guimarães, Mário Alves e

D
D 
5X\ )DFy (VWHV ~OWLPRV RX VXEHVWLPDYDP D FDSDFLGDGH GR FDSLWDOLVPR SDUD
subordinar relações sociais pré-capitalistas ou imaginavam poder transformar a
YLD´SUXVVLDQDµHPYLD´IDPHUµ2EMHWLYDYDPDVVLPGLPLQXLURVRIULPHQWRGRV
trabalhadores, melhorar suas condições de vida.
Rangel entendia ser impossível, naquela ocasião, tal transformação. A
impossibilidade decorria da falta de condições objetivas para tanto:

Na apreciação desse problema não devemos perder de vista a


observação crítica de Karl Marx, segundo a qual ‘nenhum regime
desaparece antes de haver suscitado todas as forças produtivas
que é capaz de comportar’. Neste particular, não nos podemos guiar
nem pelos nossos desejos subjetivos, tomando-os como realidade,
ou como se eles fossem a lei do mundo, nem por ideias gerais.
Trata-se de conhecer as condições concretas nas quais tem lugar o
GHVHQYROYLPHQWR 5DQJHO,QÁDomRS 

O pacto de poder vigente, entre o latifúndio feudal e a burguesia industrial,


estava longe de ter esgotado todas as suas potencialidades:

Esse estado de coisas somente esgotará suas virtualidades –


OHYDQGRjGHQ~QFLDGRSDFWRGHSRGHUGH²TXDQGRWDPEpPVH
houverem esgotado as condições para a expansão do investimento,
isto é, para a absorção da crescente massa de mais valia que
o aumento da produtividade do trabalho, não acompanhado de
HOHYDomRVXÀFLHQWHGRVDOiULRYDLVXSULQGR2UDQLQJXpPSUHWHQGHUi
que a economia brasileira, dados os seus presente níveis e
dinamismo da renda e da demanda global, já esgotou todas as
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
VXDVRSRUWXQLGDGHVGHLQYHVWLPHQWR 5DQJHOSJULIRQR
original).

$V SURSRVWDV GH WUDQVIRUPDo}HV UHYROXFLRQiULDV QD YLD ´SUXVVLDQDµ


brasileira era, portanto, obra de utopistas ou de demagogos:

É por esse motivo que a questão agrária volta periodicamente à


ordem do dia, para depois ser adiada ou receber soluções parciais
e indiretas, que não satisfazem os seus propugnadores, geralmente
utopistas bem intencionados, mas teoricamente desarmados
mas, noutros casos, demagogos que querem capitalizar o
GHVFRQWHQWDPHQWRSRSXODU 5DQJHO,QÁDomRS 

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

5HIHUrQFLDV

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UHIHULGRFRPR´4XDWURVpFXORVµ
/È1,1:,&RQWHQLGRHFRQyPLFRGHOSRSXOLVPR\VXFULWLFDHQHOOLEURGHO6HxRU
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D
D 200
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PLPHR7HVHGH'RXWRUDPHQWR6mR3DXOR)($863

D
D 201
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

Elementos de economia do
projetamento
0iUFLR+HQULTXH0RQWHLURGH&DVWUR

Escrevo este artigo como um convite aos estudiosos de economia para


participar da tarefa de destrinchar esse livro do Professor Rangel. Livro esquisito,
OLGRDSDUWLUGRVGLDVDWXDLVeWHRULDPDVpPXLWRGLIHUHQWHGDVTXHVW}HVWHyULFDV
com as quais nos defrontamos. Em determinados momentos somos induzidos a
fazer analogias com as teorias citadas, mas, para o leitor formado em economia, é
visível um uso original por parte de Rangel da herança teórica que maneja. Maior
esclarecimento sobre a obra dependeria de um estudo sobre os interlocutores
intelectuais que estão presentes no texto. Não dispondo de tempo para tanto,
deixamos a ideia com a esperança de que, se realizada, ilumine problemas que
não conseguimos esclarecer nesse trabalho.
Não devemos nos iludir com a falsa simplicidade de “ELEMENTOS DE
(&2120,$'2352-(7$0(172µ$IRUPDTXDVHVLQJHODVHGHYHDVXDIXQomR
LPHGLDWD²VHUPDWHULDOGLGiWLFRSDUDXPFXUVRQD8)%$HP
A leitura de seu conteúdo revela o objetivo do autor. Construir, a partir do
acervo da ciência econômica, com todas suas escolas e distintas abordagens,
uma teoria econômica da economia do projetamento, entendida esta como a
economia que o processo histórico estava desenhando no século XX, a partir do
FDSLWDOÀQDQFHLURGRNH\QHVLDQLVPRHGDSODQLÀFDomRVRYLpWLFD
A ambição intelectual do livro encontra paralelo indiscutível na sua
´'8$/,'$'( %É6,&$ '$ (&2120,$ %5$6,/(,5$µ H LQGLFD R LQFRQIRUPLVPR GH
Rangel com as teorias e interpretações existentes no trato das questões de sua
contemporaneidade.
Mas o presente livro não provocou nenhuma reação por parte de seus
possíveis interlocutores, sendo ignorado até por aqueles que acompanharam
mais de perto a obra rangeliana. Se isso se deve a uma imediata rejeição ao

66
Devemos registrar como exceção a conferência proferida pelo Professor Milton Santos no SEMINÁRIO IG-
NACIO RANGEL E A CONJUNTURA ECONÔMICA, em 10/11/1997, no Anfiteatro de Geografia da USP.

D
D 202
SURMHWRWHyULFRGROLYURRXSRUXPDVXSHUÀFLDODYDOLDomRGHTXHVHWUDWDYDGHXP
mero material didático não sabemos responder, mas devemos concordar que não
existe urgência em se responder essa questão.
Ao contrário, avaliar se a tentativa de síntese teórica de Rangel tem
algum sentido e se a busca de uma nova teoria, para uma pretensa nova etapa
dos modos de produção, é um programa de pesquisa válido, são questões que
PHUHFHPDWHQomRGRVSURÀVVLRQDLVGHHFRQRPLD
O artigo que se segue objetiva, quando muito, incentivar a leitura e a
avaliação de um texto que foi mantido hibernado pela ausência de debate. Não
pretende fazer um estudo exaustivo do livro. Destaca dos seis capítulos que o
compõem algumas passagens e aspectos, que incentivarão uma aprofundada
investigação do legado rangeliano.
Peço desculpas ao leitor pelo excesso de uso de citações e reproduções
do texto original, mas dado o caráter polêmico, ou original, dos enunciados preferi
esconder-me nas palavras do autor. Também abusei da utilização dos colchetes
não só para abreviar com minhas palavras as inúmeras citações, como é usual,
mas como um recurso para explicitar ideias mais íntimas, buscando num cochicho
com o leitor alguma cumplicidade.

Duas características da abordagem rangeliana

A originalidade da análise da obra de Rangel – marca reconhecida pelos


comentadores do autor- é o resultado de ecletismo teórico desinibido e de uma
profunda concepção historicista. Esta última derivada de sua visão marxista de
mundo. IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
3DUDHOHDHVSHFLÀFLGDGHGDVRFLHGDGHEUDVLOHLUDGHTXDOTXHUVRFLHGDGH
em geral, impunha uma apropriação particular das teorias que por serem
KLVWyULFDV ´GHÀQHP R FRPSRUWDPHQWR GD UHDOLGDGH HP FHUWDV  FLUFXQVWkQFLDV
H YDOHP DSHQDV HQTXDQWR HVWDV SHUGXUDPµ 5DQJHO  YRO , '8$/,'$'(
BÁSICA, 287). “A ciência econômica varia com o PRGR de produção e este muda
LQLQWHUUXSWDPHQWHµ LGHP 'HYHPRV´DGPLWLUTXHRKRPHPYDULHHPVHXVHU
67
“A obra de Rangel corresponde a um original ensaio de adaptação do materialismo histórico e da teoria
econômica à análise do caso brasileiro ” (Bielschowsky , 1988, 248) “O método utilizado por Rangel para
analisar a economia brasileira sempre foi essencialmente histórico. Sua origem marxista é evidente mas
Rangel usa Marx com absoluta liberdade” (Bresser-Pereira L C & Rego, J.M.; in Mamigonian & Rego 1998
18) “... Rangel era o menos conhecido... apesar de ser o mais criativo e original dos economistas brasileiros
” (Mamigonian in Mamigonian & Rego 1998 129)

D
D 203
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

HHPVXDFRQVFLrQFLDVHJXQGRDUHDOLGDGHVRFLDOHWHO~ULFDHPTXHVXUJHHFUHVFHµ
LGHP   'HYHPRV DLQGD ´DGPLWLU PRGLÀFDomR GHVVD UHDOLGDGH QR HVSDoR
HQmRKiFRPRQHJiODQRWHPSRµ LGHP &RQWLQXDQGRQDDERUGDJHP
historicista, Rangel relata que “em meus estudos sobre economia brasileira,
SDUWRGDKLVWRULFLGDGHGDVOHLVHPFLrQFLDµ LGHP $YHVVRjLQFRUSRUDomR
acrítica dos modelos importados – marxistas ou não- sinaliza que “o que importa
pFRQKHFHUFRPRDVRFLHGDGHFRQFUHWDVHFRPSRUWDHPVXDYLGDHFRQ{PLFDµ
LGHP 3DUD5DQJHO´HFRQRPLDSROtWLFD¶FOiVVLFD·pFHUWDPHQWHRSRQWRGH
partida de todo e qualquer estudo. Mas, é preciso compreender que não é a única
FLrQFLDHTXHVXDVYHUGDGHVQHPVmRXQLYHUVDLVQHPHWHUQDVµ LGHP .
Apesar do ecletismo teórico e do relativismo historicista, a obra tem
unidade lógico-teórica, muitas vezes desconsiderada por seus interlocutores. O
papel da teoria da dualidade básica como “princípio organizador básico de seu
SHQVDPHQWRµ UHVVDOWDGR SRU %LHOVFKRZVN\ RSFLW   DWp HQWmR WLQKD VLGR
pouco valorizado por seus interlocutores, o que provocou manifestações de
Rangel para esclarecer sua importância.
Um dos aspectos de sua obra que merece melhor atenção é seu ecletismo
teórico, explicitado na nota de rodapé do parágrafo anterior . E aqui, nosso autor
é réu confesso70.
Podemos transcrever inúmeras e provocativas passagens onde sua visão
sobre as diferentes abordagens teóricas aparece sem nenhum disfarce. Vamos a
algumas delas.
O ponto de partida é a já apresentada historicidade da economia,

68
Reforço o argumento com outras citações “economia é uma ciência histórica por excelência. Quer isso
dizer que está submetida a um duplo processo evolutivo: o fenomenal e o nomenal. O conceito vulgar ad-
mite explicitamente pen s evolução fenomenal da economia” (Rangel, 2005, vol. I, DESENVOLVIMENTO
E PROJETO, 204). Para Rangel “tudo flui – no campo da coisa representada como no campo da represen-
tação da coisa” Com revolução russa “o planejamento econômico tornou-se possível e tivemos as teorias
que correspondem à nova problemática ”(idem, 206).

69
“idéia central da dualidade [é] fecunda para explicar a evolução econômica, social e política do Bra-
sil” “embora surgissem aqueles que julgavam poder concordar em numerosas coisas sem aceitar idéia
central da dualidade” “Trata-se, evidentemente, de um equívoco, visto como toda a minha contribuição
ao esclarecimento da problemática brasileira pode ser definida como a aplicação do marxismo ao enten-
dimento da economia e da sociedade brasileiras” sem me privar “de utilizar outras contribuições, com
especial atenção para as teorias econômicas ‘ocidentais’ destacando-se, aí, Marshall e Keynes” “E a teoria
da dualidade foi precisamente chave para isso” (Rangel, 2005, vol. II, DUALIDADE E “ESCRAVISMO
COLONIAL” 634).

70
Ecletismo ressaltado por Bresser Pereira & Rego(1998) e por Santos (1997).

D
D 204
enquanto processo real e expressão teórica desse processo. No nosso caso
histórico, no caso brasileiro para sermos exatos, a historicidade da teoria é
ainda mais relativizada, na medida em que a formação social é dúplice, ou seja,
XPDGXDOLGDGH3DVVHPRVDSDODYUDDRDXWRU´4XHGL]HUGHXPDHFRQRPLDTXH
VHMD DR PHVPR WHPSR PRGHUQD H DQWLJD" 'H XPD HFRQRPLD RQGH VXEVLVWDP
virtualmente, lado a lado e agindo umas sobre as outras, todas as formas que a
KLVWyULDFOiVVLFDUHJLVWUD"$tHYLGHQWHPHQWHWRGDVDVOHLVGDHFRQRPLDDVEHP
pesquisadas, como as do capitalismo, e as imperfeitamente estudadas, podem
WHUYDOLGDGHREMHWLYDµ 5QJHOYRO,'8$/,'$'(%É6,&$ 
´4XHULVVRGL]HUTXHVRPRVDRPHVPRWHPSRDQWLJRVHPRGHUQRVTXH
nosso nômeno é G~SOLFHHTXHSRUWDQWRQRVVRIHQ{PHQRWDPEpPGHYHVrORµH
FRQWLQXDQRSDUiJUDIRVHJXLQWH´LVVRVLJQLÀFDTXHGHYHPRVHVWDUSUHSDUDGRVSDUD
XVDUDOWHUQDGDPHQWHRLQVWUXPHQWDONH\QHVLDQRRQHRFOiVVLFRRFOiVVLFRHDWpR
ÀVLRFUiWLFRVHJXQGRDVFLUFXQVWkQFLDVµ 5DQJHOYRO,'(6(192/9,0(172
E PROJETO, 207).
Ainda no mesmo livro encontramos uma argumentação didática que
DSUHVHQWDMXVWLÀFDWLYDSDUDRHFOHWLVPRHRKLVWRULFLVPRQRTXDOHVWiFRQWHPSODGD
a evolução do nômeno, ou seja, da história, e do fenômeno, da teoria.
“A história do desenvolvimento capitalista apresenta duas etapas muito
EHPGHÀQLGDV8PDHPTXHRVLVWHPDWHQGHHVSRQWDQHDPHQWHDSRUPHLRGH
ÁXWXDo}HVFtFOLFDVSURGX]LUPDLVSURFXUDHIHWLYDGRTXHRIHUWD  2XWUDHPTXH
a tendência espontânea do sistema é para a estagnação por falta de procura
HIHWLYD VXÀFLHQWH   2V HFRQRPLVWDV ¶FOiVVLFRV· HVWXGDUDP D SULPHLUD HWDSD
´RV¶PRGHUQRV· NH\QHVLDQRVHQHRFOiVVLFRV µHVWXGDUDPDVHJXQGD(DGLDQWH
conclui “Se ampliarmos um pouco a perspectiva histórica, para abarcar o período
anterior ao capitalismo – uma produção baseada no artesanato, na ‘pequena IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
produção’ não capitalista de mercadorias – quanto o que o sucede – o socialismo
– encontraremos duas situações que, díspares de todos os pontos de vista, têm
LVWRGHFRPXPTXHFRPRQDVLWXDomRGHVFULWDSHODOHLGH6D\DRIHUWDHDSURFXUD
tendem a tornarem-se efetivas no mesmo momento e são LJXDLV (Idem, 237).
Com desenvoltura pragmática em relação à ciência econômica, Rangel
UHDÀUPD R KLVWRULFLVPR H HFOHWLVPR QXP SDVVDJHP H[HPSODU GD ´'8$/,'$'(
%É6,&$'$(&2120,$%5$6,/(,5$µ´IRUDDWpFQLFDGHWUDWDPHQWRGRVIHQ{PHQRV
econômicos – que é algo que progride sempre e constitui um fundo comum -, tudo
PXGDQDFLrQFLDHFRQ{PLFDDRPXGDUDUHDOLGDGHHVWXGDGDµ S 3RGHPRV
para sublinhar o processo de evolução da teoria, retomar a já citada passagem
que sinaliza uma nova problemática teórica com o planejamento soviético. (ver

D
D 205
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

QRWDGHURGDSpQž 
É com esse espírito que Rangel se afastará do estudo da realidade
brasileira e partirá para uma de suas mais ambiciosas obras: ELEMENTOS DE
ECONOMIA DO PROJETAMENTO. É pela história, portanto, que ele chega à teoria.
Vale sublinhar que o objetivo dessa obra é construir uma teoria econômica para
um novo modo de produção que estava tomando corpo com as transformações do
FDSLWDOLVPRGRVpFXOR;;HSULQFLSDOPHQWHFRPDHFRQRPLDSODQLÀFDGDVRYLpWLFD

As categorias fundamentais do projetamento71

5DQJHOFRPHoDROLYURSRUXPFDStWXORIDOVDPHQWHWULYLDO4XHPMiHVWi
DFRVWXPDGR FRP DV WUHWDV GR DXWRU ÀFD GH VREUHDYLVR )DOD PDQVDPHQWH TXH
as FDWHJRULDV IXQGDPHQWDLV GR SURMHWDPHQWR são o custo e o EHQHItFLR E que
“projetar consiste em última análise em ordenar o emprego de... recursos [para]
obter... recursos. E “toda a teoria do projetamento... [é] um esforço para precisar
RVGRLVWHUPRVµ (I, §1 e §2).
Seria imprópria uma analogia com os clássicos e mais precisamente
FRP0DU["'XDVLGpLDVYrPORJRjFDEHoDRPRGHORULFDUGLDQRGRWULJRHVHX
GHVHQYROYLPHQWRVUDIÀDQRHRFDStWXORVREUHDPHUFDGRULDGH0DU[$VVLPFRPR
DFpOXODGDVRFLHGDGHFDSLWDOLVWD PHUFDQWLO pDPHUFDGRULDRHVSHFtÀFRGHXPD
economia do projetamento é o projeto produtor de utilidade, que se exprime no
quociente custo/benefício expresso em riqueza, entendida esta última como
´TXDOLGDGHTXHWrPFHUWDVFRLVDVGHVHUHP~WHLVjVRFLHGDGHKXPDQDµ ,† RX
seja, a riqueza como um conjunto de utilidades.
Uma questão analítica similar à questão do valor aparece quase
imediatamente. Como homogeneizar recursos para podermos construir uma
UD]mR EHQHItFLRFXVWR" ´D PLVVmR GR SURMHWDPHQWR HFRQ{PLFR FRQVLVWH HP
HQFRQWUDUDGHQRPLQDomRFRPXPµ ,† 
Um parênteses. O leitor que leu com atenção a introdução do livro, está
informado que o projetamento é uma prática que se desenvolve em paralelo
com uma teoria que evolui no tempo e se alimenta com os problemas e soluções
enfrentadas por aproximações sucessivas e sistematizando, quando for possível,
experiências dos analistas que, naturalmente, são de diferentes escolas teóricas
HGHGLIHUHQWHVSURÀVV}HV
71
As referências das citações do texto “ELEMENTOS DE ECONOMIA DO PROJETAMENTO” indica-
rão em algarismos romanos os capítulos e em arábicos os parágrafos.

D
D 
Mas vamos em frente de onde paramos: a busca de uma denominação
comum para a razão custo/benefício.
Antecede essa busca uma citação esclarecedora do pensamento do autor
sobre o caráter provisório e relativo do conhecimento teórico. “Dezenas de teorias
IRUDPHVHUmRFRQVWUXtGDVFRPHVVDÀQDOLGDGHHFRQGX]HPDDSUR[LPDo}HVPDLV
ou menos aceitáveis, segundo as condições de sua aplicação. Preliminarmente,
cabe advertir que todas essas teorias, e os critérios de prioridade que nelas
assentam, por um lado não podem conduzir senão a aproximação e, por outro,
VXDYDOLGDGHpREMHWLYDPHQWHOLPLWDGDSRUFLUFXQVWkQFLDVHVSHFtÀFDVµ
“Todas estão subordinadas à cláusula FRHWHULV SDULEXV a qual pode
HVFRQGHU FLUFXQVWkQFLDV DFHVVyULDV RX HVVHQFLDLV GHÀQLQGR YDOLGDGH RX
LQYDOLGDGHUHODWLYDVGRFULWpULRµ ,† 
O que tem de comum o custo e o benefício “é qualidade que esses objetos
WrP GH FRQVWUXtUHP ULTXH]Dµ , †  ( FRPR PHQFLRQDPRV DFLPD ´ULTXH]D
é qualidade que tem certas coisas de serem ~WHLVjVRFLHGDGHKXPDQDµ72 e,
FRQWLQXD R WH[WR ´SRGHPRV DJRUD GHÀQLU EHQHItFLR H FXVWR FRPR D VRPD GH
utilidade contida respectivamente nos produtos e nos fatores. O objetivo da
unidade produtiva ou do projeto é produzir, e produzir é, muito estritamente,
conferir o atributo de utilidade a coisas que não o tinham, ou acrescentar utilidade
DFRLVDVTXHMiDWLQKDPµ ,† 
Devemos concordar que, em termos de heterodoxia e ecletismo, Rangel
apresenta-se sem disfarces. Faz reengenharia de questões da economia clássica
com soluções próximas do neoclassicismo. Veremos no segundo capítulo a
combinação Marx-Marshall determinando o valor da força de trabalho pela
utilidade marginal.
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
E para não deixar dúvidas com relação à naturalidade de suas composições
teóricas explica.
“É mister advertir que não cogitamos aqui da antiga polêmica em torno
do valor. Os fatores e produtos devem, a rigor, ser medidos enquanto recursos,
ULTXH]DSRUWDGRUHVGHXWLOLGDGHµ ,† 1DVGXDVSUHVWLJLRVDVHVFRODVDULTXH]D
uma quantidade de utilidade, “pode ser diferente da soma dos valores de bens e
VHUYLoRVµ ,† 
Talvez seja oportuno abrir outro parênteses para esclarecermos um
aspecto central. A economia do projetamento é um modo de produção que está

72
“ as coisas são úteis quando o homem pode satisfazer suas necessidades por meio delas” (I §9) um con-
ceito genuinamente marshalliano.

D
D 207
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

em desenvolvimento, no ocidente e no oriente, para usar palavras do autor.


Seu objetivo é produzir valor de uso (como é universal na atividade econômica
qualquer que seja o modo de produção) regulado pela vontade consciente e
racional, através de um cálculo econômico. A categoria utilidade, apesar de seus
problemas de medida, é a nova base para o cálculo econômico. Plano e projeto,
através de seleção de técnicas e alocação de recursos, são seus instrumentos
fundamentais. Isto difere do capitalismo onde a produção de valores de uso é
regulada pelo mercado através do valor, seja ele explicado pelo trabalho, para os
clássicos, ou pela a utilidade marginal, para os neoclássicos.
Tendo se afastado da categoria valor e chegado à utilidade como o
homogeneizador dos recursos, o próximo passo é chegar à utilidade abstrata “que
se exprime no fato de que todos os objetos úteis atendem a uma necessidade
KXPDQDHVRFLDOµ ,† 
>3RUTXHFRQVWUXLUDFDWHJRULDXWLOLGDGHVHDIDVWDQGRGDFDWHJRULDYDORU"2
valor como nômeno e a categoria teórica valor como fenômeno estão relacionados
a uma economia mercantil. A economia do projetamento, que começa a tomar
corpo, é o devir, está relacionada a outro momento histórico, outro nômeno,
portanto. A utilidade está relacionada com essa problemática.]
Mais uma passagem reforça seu ecletismo e sua visão da práxis
KXPDQDDRDÀUPDUTXH´FRQYHUVmRGDXWLOLGDGHFRQFUHWDHPDEVWUDWDpPLVVmR
GR FRQVXPLGRUµ ´D XWLOLGDGH GRV IDWRUHV H SURGXWRV VH GHWHUPLQD VRFLDOPHQWH
através das opções dos consumidores e superiores [no caso de uma economia
VRFLDOLVWD@µ ,† 
'HÀQLGD D XWLOLGDGH DEVWUDWD p SRVVtYHO FRPHoDU R HVWXGR GR SURMHWR
que é o criador de utilidade que só existiria anteriormente ao projeto em termos
YLUWXDLV5DQJHOGHÀQHDOJXPDVFDWHJRULDVRSHUDFLRQDLVHVXDVUHODo}HVSDUDVH
analisar projetos e vai enfrentar a questão da contribuição dos fatores para a
utilidade do produto.
Descarta a fatoração, a contribuição isolada de cada fator para a utilidade
YLUWXDOHWUDEDOKRFRPR´WRWDOLQGLYLVRµ ,† (DOHUWDTXHDDWULEXLomRGHVVH
acréscimo a um dos fatores e sua apropriação por parte de “pessoas detentoras
de certas posições de comando no processo produtivo, sujeito a condições
institucionais, isto é externas ao projeto... é um fato de GLVWULEXLomR da riqueza
criada, que interessa à Economia Política, sem dúvida, mas não no que concerne
RSUREOHPDTXHRUDQRVRFXSDµ ,† 
O problema da medição da utilidade dos fatores leva Rangel a lançar mão
do conceito de utilidade marginal para contabilizar o custo alternativo do fator “Em

D
D 208
FHUWDVFRQGLo}HVDVRFLHGDGHFULDXPPHFDQLVPRSHORTXDOÀFDRUGLQDULDPHQWH
excluído o emprego menos produtivo de quantos tenham o fator, ou HPSUHJR
PDUJLQDO É pela utilidade total do fator nesse emprego – utilidade marginal –
TXHGHYHPRVFRQWDELOL]iORFRPRFXVWRµ. E prossegue “O custo, portanto, SRGH
VHUUHGHÀQLGRFRPRDVRPDDOJpEULFDGDVXWLOLGDGHVPDUJLQDLVDOWHUQDWLYDVµ ,
† GRVIDWRUHV HPSUHJDGRVSHORSURMHWRSimilarmente, “REHQHItFLRSRGH, pois,
VHUUHGHÀQLGRFRPRDVRPDDOJpEULFDGDVXWLOLGDGHVPDUJLQDLVGRVSURGXWRVGR
SURMHWRPHQRVRFXVWRWDOFRPRDFLPDIRLGHÀQLGRµ ,† 
A ponte entre a microeconomia e a macroeconomia começa a ser
superada ao mostrar como o projeto afeta o sistema da economia nacional pela
PRGLÀFDomRGDXWLOLGDGHPDUJLQDOGRVSURGXWRVHGRVIDWRUHVTXHLQWHUDJHPFRP
as demais unidades através dos respectivos mercados “O efeito líquido sobreWRGR
RVLVWHPDGDHFRQRPLDQDFLRQDO encontra sua expressão característica... [e] se
exprime através de variações da XWLOLGDGH´SHUFDSLWDµ (que encontra expressões
aproximativas como produto SHUFDSLWD e renda SHUFDSLWD µ (I, §41).
As relações entre projeto e economia nacional geraram polêmicas em torno
da validade ou mesmo viabilidade de projetar e planejar. Rangel, entretanto, não
se deixa enredar nestas polêmicas. Alerta que os fatos desmentem os argumentos.
O projetamento está evoluindo e planos e projetos estão se aperfeiçoando. Unindo
as duas práticas, temos “circunstância já apontada de que o efeito global – seja
do projeto, seja do plano – encontra sua expressão mensurativa na referência
da XWLOLGDGHWRWDO dos fatores a um só desses fatores. Ora, esse efeito pode ser
investigado QRQtYHOGHFDGDSURMHWRHVSHFtÀFR . É graças a isso que podemos e
GHYHPRVDERUGDUFRQÀDGDPHQWHDFKHJDUDRSODQRSHORSURMHWRµ (I, §43).
Como “os efeitos de cada projeto são, ao mesmo tempo, globais e
HVSHFtÀFRVµRSURMHWRGHGHVHQYROYLPHQWRVHUiDTXHOHTXHSRUVXDVLQWHUUHODo}HV IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
“conduz o resultado buscado da elevação da utilidade SHUFDSLWDµ ,† 
Como conclui Rangel “desenvolvimento não é perseguição do equilíbrio,
mas a introdução de causas de novos desequilíbrios de natureza especial.
Essas mudanças assumem duas causas: mudança tecnológica e realocação de
UHFXUVRVµ ,†H† 

A medida da utilidade

8PD YH] GHÀQLGR TXH RV UHFXUVRV ² IDWRUHV H SURGXWRV ² GHYHP VHU
expressos em utilidade e que esta deve ser entendida como utilidade abstrata, a

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

questão da medida da utilidade deve ser enfrentada.


Rangel começa descartando o valor de uso como a explicação para as
relações de troca. E assinala que “os clássicos referiram o valor a quantidade de
WUDEDOKRQHFHVViULDjSURGXomRµ ,,† 0DVDSHVDUGDDÀQLGDGHFRPDHFRQRPLD
política clássica-marxista registra que a discordância com os marginalistas, a
outra grande escola dominante do pensamento econômico contemporâneo, “gira
em torno de fatos de superfície, e que é chegado o momento de levar adiante
o trabalho encetado por Schumpeter, para recolher os frutos do pesado labor
OHYDGRDHIHLWRGHSDUWHDSDUWHµ ,,† 
Adiante questão da “contabilidade da riqueza em termos de trabalho
>TXH@HPFHUWDVFRQGLo}HVSRGHVHUD~QLFDSRVVtYHOµpSRQGHUDGDFRPRIDWR
de que os três fatores se combinam em todo ato de produção para produzir nova
utilidade – utilidade virtual. Mas, apesar disso, opta por usar o trabalho, pois
´UHGXomRjPHVPDGHQRPLQDomRpXPUHFXUVRFRQWiELOµ ,,† 
Nos próximos passos, seguindo Ricardo, é feita a redução da contribuição
da terra em termos de trabalho e capital. Com o que é possível fazer uma redução
GRFDSLWDODRWUDEDOKR'HÀQLQGRHVWHFRPRDPHGLGDGDXWLOLGDGH73
“Por trabalho devemos entender aqui utilidade alternativa da mão-de-
obra – da força de trabalho, na sistemática marxista. Por capital, os instrumentos
e materiais usados, medida sua utilidade alternativa na mão-de-obra, que, em
GLIHUHQWHVFRPELQDo}HVHQWURXHPVXDSURGXomRµ ,,† 3RUWDQWRFRQFOXLR
trabalho é a medida de todas as utilidades alternativas dos fatores absorvidos
pelo projeto. E para não deixar dúvidas quanto a sua posição encerra o argumento
GL]HQGR TXH ´R WUDEDOKR p D PHGLGD QDWXUDO GD FRQWDELOLGDGH HFRQ{PLFDµ ,,
§12)
Como o trabalho concreto é heterogêneo ele tem diversas utilidades,
chegou a hora de buscarmos a utilidade do trabalho nas condições menos
SURGXWLYDVDXWLOLGDGHPDUJLQDOGRWUDEDOKR4XHpSDUDRQGH´WHQGHVHJXQGRD
escola marginalista, o salário, isto é, o preço do trabalho como fator, como mão-
de-obra. Consequentemente, teríamos, nesse suposto, não apenas a unidade
natural da utilidade, mas também sua expressão monetária, o que facilita
seu emprego como medida de todas as utilidades contidas nos fatores e nos
produtos. Obtida essa expressão monetária, podemos abandonar sua primitiva
forma natural, e medir simplesmente a utilidade marginal de todos os fatores pelo
VHXSUHoRµ ,,† 
73
A solução rangeliana em termos formais lembra a redução ao trabalho datado, realizada por Sraffa. Afir-
ma que podemos fazer redução semelhante a partir de qualquer insumo da matriz de insumo-produto.

D
D 210
A partir da relação marginalista entre salário e utilidade marginal da mão-
de-obra, Rangel faz ponderações mostrando que nas condições de desemprego
ou de subemprego a igualdade entre salário e utilidade marginal do trabalho não
ocorreria. Para a empresa, entretanto, o salário igualaria a utilidade marginal da
mão-de-obra empregada, que seria diferente da utilidade marginal da mão-de-
obra total. Da mesma maneira, a utilidade total do produto é diferente da receita
da empresa, que expressa a utilidade marginal que determina o preço. Tudo isso
LQGLFDTXH´FRQWDELOLGDGHGDÀUPDQmRUHJLVWUDRHIHLWRWRWDOGRSURMHWRVREUHD
HFRQRPLDQDFLRQDOµ ,,† 
A percepção da discrepância entre salário e utilidade marginal do trabalho,
TXHHVWiQDEDVHGDYLVmRNH\QHVLDQDH[SOLFDRGHVHQYROYLPHQWRGDHFRQRPLDGR
projetamento, na medida em que não podemos garantir que o melhor emprego
GRVIDWRUHVSDUDDÀUPDVHULDRPHOKRUHPSUHJRSDUDDVRFLHGDGH
Mas, apesar de todas essas ponderações sobre o construto neoclássico
DÀUPDTXH´LVVR>RXVHMDRVSUREOHPDVVLQDOL]DGRVGDGLIHUHQoDHQWUHXWLOLGDGH
marginal e total] não impediu o suposto marginalista de instruir a solução de
QXPHURVRV SUREOHPDV GH HFRQRPLD GD HPSUHVD H GH SDVVDJHP UHÀQDU
grandemente os instrumentos de análise, que provavelmente nos permitirão
em breve retomar as teses abandonadas provisoriamente dos clássicos, para
UHIRUPXOiODVµ ,,† 
As páginas se sucedem apresentando a ideia de que o esforço de
construção da ciência econômica deve continuar e, para isso, todas as heranças
– a ocidental e a oriental - são válidas. Discorrendo sobre esta questão, comete
XPDLURQLDÀQDDRDÀUPDUTXHTXDQGRRVVRFLDOLVWDVFKHJDUDPDRSRGHUWLYHUDP
TXHODQoDUPmR´GRVPpWRGRVRFLGHQWDLVGHFRQWDELOLGDGHTXHUHÁHWLDPPXLWRGD
contribuição teórica do marginalismo. Isso, entre parênteses, não os impediu de IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
continuarem a cultivar cuidadosamente a ignorância mais completa de todos os
aspectos teóricos dessa elaboração – do que, de resto, eram pagos na mesma
PRHGDSDJRVHFRQRPLVWDVRFLGHQWDLVµ ,,† 
Além da convergência teórica na construção de uma teoria da economia
GRSURMHWDPHQWRUHVSHFWLYDPHQWHPHLRHÀQDOLGDGHGROLYURGXDVLGpLDVGRPLQDP
DSDUWHÀQDOGRVHJXQGRFDStWXOR
A primeira delas é o reconhecimento do “defeito fundamental do trabalho
FRPR PHGLGD GD XWLOLGDGHµ ,, †  $ H[SUHVVmR PRQHWiULD GD XWLOLGDGH GR
trabalho, o salário, depende dos preços [o que também implicaria em circularidade,
argumento que não foi explorado pelo autor], mas os preços expressam a utilidade
marginal e não a utilidade média, que se relaciona com a utilidade total. Com o

D
D 211
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

tempo a utilidade marginal diminui e com ela a média. A não consideração desse
aspecto pode levar a uma superestimação do produto total expresso em utilidade.
Continuando a ponderação sobre o trabalho como medida da utilidade,
levanta hipótese de que “os graves desequilíbrios ultimamente denunciados no
seio da economia dos países socialistas podem estar perfeitamente relacionados
FRP HVWD OLPLWDomR GR WUDEDOKR FRPR PHGLGD GH ULTXH]D LVWR p GH XWLOLGDGHµ
0DVDSHVDUGRUHFRQKHFLPHQWRGHVVHSUREOHPDDÀUPDTXH´pOtFLWRVXSRUTXH
HVWDGHÀFLrQFLDGRWUDEDOKRFRPRPHGLGDGHXWLOLGDGHQmRVHMDVXÀFLHQWHPHQWH
JUDYHSDUDLQXWLOL]DUGHYH]RLQVWUXPHQWRµ ,,† 
“Em resumo, portanto, o problema capital do projetamento, a medida da
XWLOLGDGHFRQWLQXDSHQGHQWHSRUIDOWDGHXPSDGUmRUHDOPHQWHUHSUHVHQWDWLYRµ
,,† 74
A segunda ideia foi expressa em duas frases lapidares “É indispensável
WUDEDOKDUSDUDFRQVWUXLUXPDFRQWDELOLGDGHGDÀUPDTXHVHUHÀUDGLUHWDPHQWHj
contabilidade social e  YLFHYHUVDµ , e, enquanto esse objetivo não se alcança,
[devemos] elaborar [balanços separados]  (40) “O primeiro balanço, deverá
GHÀQLU R TXH VH FRQYHQFLRQRX FKDPDU GH UHQWDELOLGDGH GD HPSUHVD; outro, o
HIHLWRGDQDomRµ ,,HVSHUDGRVREUHDSURGXWLYLGDGH¶SHUFDSLWD·§ 41).

Seleção de técnica

5DQJHO LQLFLD R FDStWXOR SRQGR XP SRQWR ÀQDO QD TXHVWmR GD PHGLGD
da utilidade, com um pragmatismo emblemático. “Embora informados de que
mensuração desse atributo [utilidade] comum é problema que não comporta
senão soluções tópicas e aproximativas, o fato de que, em casos particulares, tal
VROXomRpHYHQWXDOPHQWHSRVVtYHODXWRUL]DQRVDFRQVLGHUiORUHVROYLGRµ ,,,† 
Trata-se, agora, de analisar os fatores em sua heterogeneidade, ou seja,
HPVHXYDORUGHXVRDTXHOHTXHUHÁHWHDV´OLPLWDo}HVGHRUGHPWpFQLFDµ ,,,† 
Rangel cria um conjunto de exercícios onde um mesmo produto pode ser
produzido com diferentes funções de produção. A escolha entre elas é orientada
pela melhor razão benefício/custo. Este resultado nos permitirá escolher a técnica.
Pondera que além da substituição imediata entre os fatores poderá haver uma
substituição com a interposição de uma produção intermediária que resolverá
possíveis estrangulamentos de recursos, o que é feito em algum intervalo de

74
Esse problema será mencionado diversas vezes ao longo do texto.

D
D 212
tempo. A busca da elaboração de soluções com produção intermediária, quando
esta for a escolha técnica, pode ser melhor viabilizada no projetamento.
O passo seguinte é discutir a relação seleção de técnica e desenvolvimento
econômico.
,QLFLDDÀUPDQGRTXH´RGHVHQYROYLPHQWRHFRQ{PLFRSRGHVHUFRQFHLWXDGR
como o aumento de produto SHUµ ,,,† 2SURGXWRp´RÁX[RWRWDOGHXWLOLGDGHV
FDSLWD JHUDGDV HP FDGD DQRµ H GLIHUH GD UHQGD SRUTXH FRQWpP SURGXomR GH
autoconsumo E “o objetivo do projetamento é promover o desenvolvimento e,
SRUWDQWRDH[SDQVmRµGRSURGXWRSHUFDSLWD . (III, §23).
Avançando na explicação da seleção de técnicas, demonstra que, no
pleno emprego, o aumento do produto SHUFDSLWD , ou seja, o desenvolvimento,
só poderá ocorrer devido a funções de produção que substituam trabalho por
terra(recursos naturais). “Podemos, pois, conceituar o desenvolvimento como
IUXWRGHXPDVpULHGHPXGDQoDVQDWpFQLFDGHSURGXomRWDLVTXHUHVXOWHPHP
FRPELQDo}HV GH IDWRUHV RQGH R WUDEDOKR SDUWLFLSH FDGD YH] PHQRV H D WHUUD
SDUWLFLSHFDGDµ ,,,† >SRGHPRVSHQVDUHPDOJXPDDQDORJLDYH]PDLVcom a
elevação da composição orgânica do capital].
4XDQGR H[LVWH GHVHPSUHJR p SRVVtYHO HOHYDU R SURGXWR SHU FDSLWD
independentemente da conversão de trabalho por terra. O objetivo, portanto, do
projetamento nessa situação será buscar o emprego de toda a mão-de-obra. (III,
§34).
Conclui o capítulo dizendo que o projetista deve ser orientado por um
plano-mestre geral, mesmo que este não esteja formulado e “se há desemprego
deve trabalhar para induzir o emprego pleno; alcançado este, deve buscar a
JUDGXDOUHWLUDGDGRWUDEDOKRGHQWUHRVIDWRUHVGHSURGXomRµ ,,,†  IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

A alocação de recursos

No capítulo anterior foi discutido como seriam produzidos os bens. Agora


GHYHPRVGHÀQLURTXHGHYHUiVHUSURGX]LGR
Esta questão levou ao estudo da demanda. Inicia por uma discussão sobre
QHFHVVLGDGHHVXSULPHQWRGRVEHQVQDVTXDQWLGDGHVQHFHVViULDVRTXHFRQÀJXUD
uma estrutura de demanda, que deverá ser atendida por uma estrutura de oferta
´4XDOTXHUGLVFUHSkQFLDHQWUHDVGXDVVLJQLÀFDTXHQmRVHHVWiREWHQGRWRGDD
XWLOLGDGHSRVVtYHOGRVIDWRUHVXVDGRV²VLJQLÀFDTXHHVWiKDYHQGRGHVSHUGtFLRµ
(IV, §4).

D
D 213
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

'DGRTXHDSURMHomRGHGHPDQGDUHÁHWHRSDVVDGRRTXHpYHUGDGHLUR
para o projetista e menos verdadeiro para o planejador, e o projeto está voltado
para o futuro, o esforço do projetamento será para compatibilizar as duas
estruturas. No projetamento complexo – GRSODQHMDPHQWR - a relação entre os
diferentes projetos e a demanda derivada de bens de capital formata uma opção
consciente, inteiramente subordinada aos imperativos da técnica.
O equilíbrio formal via preços pode ser aparente “... a análise da
contabilidade das indústrias, tomadas estas isoladamente, poderá revelar
GHVHTXLOtEULRV VRE D IRUPD GH UD]}HV EHQHItFLRFXVWR GLIHUHQWHVµ ,9 †  (
alerta que o equilíbrio microeconômico pode diferir do verdadeiro equilíbrio do
sistema. “O sistema não estará operando ao seu maior rendimento a menos que
as razões benefício/custoFRQVROLGDGDV de todas as indústrias tenham o mesmo
valor, e que qualquer discrepância... implica em desperdício de recursos, isto é,
VLJQLÀFDTXHDVRFLHGDGHQmRHVWiREWHQGRWRGDDXWLOLGDGHDTXHSRGHDVSLUDUµ
,9† 
Rangel constrói um exercício para apresentar o argumento ou seja “se
não seria possível obter um razão consolidada melhor para as duas indústrias
[do exemplo apresentado], tomadas conjuntamente, independentemente de
melhoramento da técnica, assunto que foi objeto do capítulo anterior. Noutros
termos, trata-se de saber se não poderíamos melhorar dita razão consolidada pela
WUDQVIHUrQFLDGHUHFXUVRVGHXPDLQG~VWULDSDUDDRXWUDµ ,9† ,VVRpSRVVtYHO
de acontecer no socialismo, onde os recursos podem ser alocados levando-se
em conta a razão benefício/custo consolidada das indústrias; no capitalismo,
cada empresa cuida apenas de sua própria razão e a igualação ocorre entre as
empresas independentemente das indústrias.
Em resumo, o desenvolvimento, o aumento do produto SHU FDSLWD,
depende da técnica selecionada e da alocação de recursos. [Mas a alocação
de recursos pressupõe uma coordenação, entre as unidades produtivas, mais
complexa e abrangente do que a seleção de técnicas, que na maioria dos casos
pode ser feita pela empresa individualmente]75 .
A partir desse ponto duas questões são explicitadas. A primeira mostra
que pela expansão de diferentes indústrias podemos nos aproximar “da
FRPELQDomRVRFLDOGHPDLRUEHQHItFLRµPDVHVVDDSUR[LPDomRpIHLWDDWUDYpVGH
projetos marginais, ou, nas palavras do autor, “desde que nos possamos apoiar

75
Será que encontramos nessa passagem a diferença entre capitalismo e socialismo no que se refere à
inovação? Até que ponto o planejamento atrasou a incorporação no aparelho produtivo dos avanços tec-
nológicos?

D
D 214
QRVUHVXOWDGRVUHODWLYRVGHVVDV~OWLPDVHPSUHVDVµ ,9† 
A segunda questão gira em torno das “correlações entre as razões das
~OWLPDV HPSUHVDV H DV UD]}HV FRQVROLGDGDV GDV LQG~VWULDVµ ,9 †  $TXL LUmR
DSDUHFHU VLJQLÀFDWLYDV GLIHUHQoDV HQWUH HFRQRPLD FDSLWDOLVWD RQGH D UD]mR
consolidada por indústria não tem sentido, pois as empresas tendem igualar
as razões e o “regime socialista, onde em princípio, é possível operar à base
do balanço consolidado, [e] a exigência da identidade das razões das últimas
HPSUHVDVSRGHVHUDEDQGRQDGDµ ,9† GHVGHTXHDUD]mRFRQVROLGDGDVHMD
considerada.
“Mas ainda aí no regime socialista regra prática deve ser a identidade das
razões marginais benefício/custo de todas as empresas a criar, isto é, de todos
RVSURMHWRVµ ,9† 6mRYLVtYHLVDVUHODo}HVHQWUHPLFURHPDFURHFRQRPLDEHP
como entre projeto e plano.
Rangel retoma a diferença entre a receita da empresa e a utilidade
criada, (diferença que é a renda do consumidor), para discutir a diferença entre a
FRQWDELOLGDGHGDÀUPDHRVHIHLWRVWRWDLVGRSURMHWRVREUHDHFRQRPLD0DVDOHUWD
TXHVREFLUFXQVWkQFLDVDFRQWDELOLGDGHGDÀUPDWHQGHDLPSHOLURVLQYHVWLPHQWRV
SULYDGRV´QRVHQWLGRJHUDOGDFRPELQDomRGRPDLRUEHQHItFLRµ ,9† 
Mas nem sempre as decisões privadas levarão ao equilíbrio. Esta seria
uma das razões para a intervenção do estado na economia. O que não se faz
sem problemas. “Intervenção do estado na economia apresenta problemas
absolutamente novos... todas as soluções até aqui oferecidas... são... parciais e
FRQWLQJHQWHV²LQFOXVLYHRSODQHMDPHQWRVRYLpWLFRRPDLVH[DXVWLYRGHWRGRVµ ,9
§40).

IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil


A assimetria básica do projeto

Como a riqueza social se mede pela utilidade e não pelo valor, é “útil
FRQVHUYDU DQWLJD GLVWLQomR GRV FOiVVLFRV HQWUH YDORU H XWLOLGDGHµ $ TXHVWmR GD
medida da utilidade, a discrepância entre valor (= utilidade marginal) e utilidade,
reaparece na abertura desse capítulo para apresentar outra questão. “O progresso
da técnica permite-nos vislumbrar a possibilidade de uma sociedade onde as
coisas úteis [utilidades] sejam tão abundantes que não mais tenham utilidade
PDUJLQDOYDORUµ 9† 
“Vimos que essa marcha no sentido da abundância resulta de inovações
tecnológicas... cuja essência está no fato de permitirem a progressiva substituição

D
D 215
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

do fator trabalho pelo fator terra, único meio de elevar o produtoµ 9† (QWUHWDQWR
a inovação só se SHUFDSLWDefetivará através de novos projetos “o que implica
HPVXERUGLQiODjFRQGLomRGHWHPSRµ 9† (VVD¶FRQGLomRGHWHPSR·VHUiD
principal questão tratada nesse capítulo.
Parte de ideias simples. A descoberta, no tempo, de utilidade nova para
coisas já existentes é “fonte de enriquecimento... independente da técnica de
SURGXomRµ 9† 0DVDSDUWLUGRWHPSRHSRUFDXVDGHOH5DQJHOFRPHoDHVWXGDU
o papel do capital na produção. [E faz uma análise do que poderíamos chamar de
‘fetichismo do capital’. Alerta que a participação do capital no processo produtivo
deve ser analisada com cuidado. Na aparência, “o que parece acontecer é maior
participação do capital, enquanto os GRLVRXWURVIDWRUHVGHFOLQDPµ 9† 0DV
como já foi visto “no aumento líquido de capital não vamos encontrar senão terra
HWUDEDOKRFRPRIDWRUHVµ 9† 
A resultante da acumulação de capital, portanto, é o aumento do produto
SHU FDSLWD e um aumento da razão terra/trabalho. O capital abaixo da superfície,
o que só pode ser visto através de análise, é apenas o meio para substituir o
trabalho humano pela natureza ou seja “o meio objetivo para poupar o fator
OLPLWDGR²RWUDEDOKR²QRVTXDGURVGRSURFHVVRGHGHVHQYROYLPHQWRHFRQ{PLFRµ
9† 
Mas na aparência, o fetichismo se impõe “de modo que os méritos [da
FRPELQDomRWHUUDWUDEDOKRRVGRLVRXWURVIDWRUHV@VmRDWULEXtYHLVDRFDSLWDOµ 9
† ´,VWRH[SOLFDSRUTXH>QRFDSLWDOLVPR@DVSHVVRDVGHWHQWRUDVGRFRQWUROHGR
capital assumem o comando de todo o processo produtivo e podem [se apropriar
de uma parcela do produto]. Mas, vale prestar atenção, “essas considerações
dizem respeito à GLVWULEXLomR da utilidade criada, escapando, assim, a nossas
SUHVHQWHVFRJLWDo}HVµ 9† &RPRPHQFLRQDGRDQWHULRUPHQWHDGLVWULEXLomR é
assunto da economia política (I, §20).
E segue o caminho para ligar tempo e capital.
“O que importa compreender é que, qualquer que seja o regime [capitalista
ou socialista], o capital terá sempre custo diferente do custo dos fatores usados,
elo fato de que implica em LPRELOL]DomR . É como FXVWRGHLPRELOL]DomR que, em
HFRQRPLDGHSURMHWDPHQWRGHYHPRVHVWXGDURFXVWRGRFDSLWDOµ 9† 
O investimento é um “DSUD]DPHQWR GR FRQVXPR. Noutros termos, a
utilidade alternativa contida nos fatores usados para a produção do bem de capital
será transitoriamente HVWHULOL]DGDµSRLV irá decorrer um “lapso de tempo... entre
o momento em que é produzido o bem de capital e aquele em que a sociedade
UHFHEHUiFRPRSURGXWRÀQDODXWLOLGDGHµ 9† 

D
D 
Vamos tentar explicitar algumas diferenças entre a economia política
e a economia do projetamento. Supondo que o processo de desenvolvimento
(aumento do produto SHU FDSLWD) prossiga, haverá o aumento da relação terra/
trabalho “qualquer redução relativa da participação do trabalho implica em declínio
GRFXVWRGHSURGXWRSDUDDVRFLHGDGHLPSOLFDHPDXPHQWRGDSURGXWLYLGDGHµ(
agora atenção “O preço da terra é um fato de GLVWULEXLomR [de economia política],
TXHVLJQLÀFDTXHDVSHVVRDVGHWHQWRUDVH[FOXVLYDVGHFHUWRVUHFXUVRVQDWXUDLV
eventualmente se colocam em condições de cobrar ao resto do corpo social certa
parcela das utilidades produzidas. Mas, para a sociedade como todo, a terra
é rigorosamente gratuita, de modo que o aumento relativo de sua participação
UHSUHVHQWDUHGXomRGHFXVWRµ 9† 
Voltemos ao tempo.
Como o capital é produto “e como tal, cristaliza certa soma de utilidade
>H@WHPXPFXVWRTXHpH[SUHVVRHPFHUWDTXDQWLGDGHGHWUDEDOKRµ 9† VHX
custo diminui no tempo desde que ocorra aumento da produtividade, ou seja, com
o desenvolvimento econômico. Dessa maneira, deverá ser paga uma diferença
entre o menor custo futuro, quando do consumo, e o custo maior efetivado no
momento de produção.
A questão da valoração do capital no tempo põe em relevo a taxa de
desconto, isto é, a taxa que atualiza os valores futuros, que assume a forma de
taxa de juros.
Para Rangel, os economistas do século XIX, de Menger a Marx, não
aprofundaram o estudo sobre a taxa de juros.
$FRQVWUXomRGHWHRULDVPDLVHVSHFtÀFDVVXUJLUiFRPRUHÁH[RGDHYROXomR
GRFDSLWDOLVPRFRPRVXUJLPHQWRGHXPQRYRFDSLWDOÀQDQFHLURHSHODFRQVWUXomR IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
GR VRFLDOLVPR Y †·V   H   $ VHSDUDomR HQWUH D JHVWmR GR FDSLWDO H D
propriedade, fato típico do capitalismo avançado, provocará uma distinção entre
lucro – utilidade virtual dos fatores – e o juros – preço do fator capital (V, §17), que
é a HÀFiFLDPDUJLQDOGRFDSLWDO e, como qualquer preço, varia inversamente a
quantidade ofertada. Dessa forma “o juro tem... fundamento material, relacionado
ao processo real de crescimento [e o juro é] a expressão monetária da utilidade
PDUJLQDOGRVEHQVGHFDSLWDOµ 9† 
A visão dos economistas modernos, de que a taxa de juros seria
determinada no mercado monetário, levaria a uma distinção entre taxa monetária
e taxa natural de juros.
5DQJHOHQWUHWDQWRDÀUPDTXH´SDUDDIHULomRGRHIHLWRGRSURMHWRVREUHR

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D 217
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

produto SHUFDSLWD não nos interessa senão a taxa real de juros, para o efeito
de desconto, e que a única maneira de pesquisá-la é a referência ao ritmo de
crescimento do produto SHUFDSLWDµ (V, §20).
A taxa monetária não é um instrumento válido para a avaliação dos
YDORUHVDWUDYpVGRWHPSR(ODGHYHUiVHUFRQVLGHUDGDQDVSURMHo}HVÀQDQFHLUDV
´PDV Dt VHP TXDOTXHU SUHRFXSDomR TXDQWR DRV VHXV IXQGDPHQWRV UHDLVµ 9
§20). Adiante retorna ao tema e reforça a conclusão “taxa corrente de juros pode
discrepar da taxa natural por estar presa muito mais a vicissitudes da moeda... do
que à taxa real de crescimento... [portanto] torna-se indispensável relacionar os
valores futuros com os preços por um fator que exprima o crescimento esperado
GDHFRQRPLDµ 9† 
Em sendo o projeto, do ponto de vista das projeções dos custos e benefícios
QRWHPSRXPÁX[RGHXWLOLGDGHV>VHPHOKDQWHDXPÁX[RGHFDL[D@PDUFDGRSRU
uma assimetria estrutural, a determinação do fator, que relacione as utilidades no
tempo é fundamental “Esse fator é a taxa de crescimento do produto SHUFDSLWD
TXHWUDGX]GLUHWDPHQWHDUHGXomRGRFXVWRVRFLDOPHGLGRHPWUDEDOKRµ 9† 
E nesse fator, e não a taxa monetária de juros, temos uma fundamental diferença
entre a cálculo econômico do projetamento e o do capitalismo.
0DVHVVHIDWRUDIHWDRSHUÀOGRVLQYHVWLPHQWRVHDVHOHomRGHWpFQLFDV
pois quanto maior a taxa de crescimento, que se projetará na taxa de desconto,
maior depressão dos valores futuros o que será “fator tendente a dar preferência
– FRHWHULV SDULEXV ² DRV SURMHWRV GH YLGD PDLV EUHYHµ 9 †  H LQWURGX] XPD
dialética na adoção de novas técnicas, na medida em que a inversão, que mobiliza
nova técnica também a imobiliza e, uma vez realizada, impede, ordinariamente,
inovação subsequente. As consequências dessa dialética da técnica – do
congelamento fruto do investimento, com uma estabilização temporária da
função de produção, e adiamento de novas inovações fruto da não depreciação
GR LQYHVWLPHQWR UHFHQWH ² DWXDUmR QRV FLFORV H QR GHVHPSUHJR 4XHVW}HV TXH
serão tratadas no último capítulo.

A macroeconomia do projeto

O desenvolvimento, crescimento do produto SHUFDSLWD, no longo prazo,


depende do progresso técnico, isto é, de “novas combinações de fatores que em
última instância viabilizem a substituição de trabalho por terra [recursos naturais
QRSURFHVVRSURGXWLYRµ 9,† ´0DVSDUDXVDUPRVRGLWRFKLVWRVRGH.H\QHV¶QR

D
D 218
ORQJRSUD]RWRGRVHVWDUHPRVPRUWRV·µ 9,† 
É desta maneira que Rangel introduz o tema do último capítulo que versa
sobre a estratégia do desenvolvimento diante de uma economia com desemprego.
Pois diante dessa circunstância “o projetista deve ajustar seus critériosµ 9,† 
3DUDWUDWDUGHVVHSUREOHPDFRPELQDDDERUGDJHPNH\QHVLDQDFRPDYLVmR
de projetamento, mas, nesse arranjo, diante do desemprego, recupera a idéia
desenvolvida no capítulo IV de que o crescimento do produto SHUFDSLWD pode
RFRUUHUSHODUHDORFDomRGHUHFXUVRVVHPLQWHQVLÀFDomRGDWpFQLFD>HOHYDomRGD
razão terra/trabalho].
“O desemprego dos fatores limitados trabalho e capital] representa
a possibilidade de expansão do produto  SHU FDSLWD independentemente de
mudança nas combinações de fatores. Noutros termos, o produto pode crescer
LQFOXVLYHQRVTXDGURVGHFHUWDUHYHUVmRWHFQROyJLFDµ 9,† 
1RLQtFLRGRFDStWXORDERUGDDVGLÀFXOGDGHVTXHWrPRVPHFDQLVPRVGH
mercado de engendrarem uma solução para o desemprego.
'HVFDUWD D ÁH[LELOL]DomR GRV SUHoRV >KLSyWHVH SUpNH\QHVLDQD@ FRPR
forma de promover o pleno emprego e alerta que “as empresas não dispõem
GHWDPDQKRJUDXGHOLEHUGDGHQDPRGLÀFDomRGHVXDVFRPELQDo}HVGHIDWRUHVµ
rigidez das combinações de fatores da indústria moderna, (VI, §12)] O que faz com
“que no curto prazo, a demanda de fatores [seja] consideravelmente inelástica ao
SUHoRµ 9,† 
Em seguida levanta a questão do mercado para o produto das empresas
Resgata o argumento fundamental de “que a fonte última que nutre o poder de
FRPSUD VmR RV SDJDPHQWRV IHLWRV SHODV HPSUHVDV DRV IDWRUHV GH SURGXomRµ
HQXQFLDGRLQHTXtYRFRGHGHPDQGDHIHWLYDTXHHQFRQWUDPRVQRDUWLJRGH .H\QHV IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
 @ 'HVWD IRUPD XPD GLPLQXLomR GRV VDOiULRV DIHWDULD QHJDWLYDPHQWH ´R
YROXPHGDVYHQGDVHFRQVHTXHQWHPHQWHDSURGXomRµ 9,† (FRQFOXLFLWDQGR
DOHLGH6D\QXPDSURYRFDomRH[SRVLWLYD´TXHGHPDQGDGRVSURGXWRVGRSURMHWR
GHWHUPLQDVHHP~OWLPDLQVWkQFLDQRLQWHULRUGRSUySULRSURMHWRµ 9,† 
Por esse chiste, para usarmos uma palavra grata ao autor, imediatamente,
se vê obrigado explicar “o modo como realmente o projeto cria sua própria
GHPDQGDµ
Duas ideias são combinadas para esclarecer a questão. A primeira é a já
apresentada DVVLPHWULDGRSURMHWR que nada mais é do que o reconhecimento
GH´TXHRÁX[RGRVSDJDPHQWRVDRVIDWRUHV FXVWR pIRUWHQRLQtFLRHGpELOQRÀP
GDYLGDGRSURMHWRDRSDVVRTXHRÁX[RGHSURGXWRV EHQHItFLR SHVDPDLVSDUD

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IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

R ÀPµ 9, †  >,GpLD TXH p DQiORJD DR DUJXPHQWR NDOHFNLDQR GH GHIDVDJHP
entre criação de demanda e de capacidade produtiva]. Essa assimetria estará na
explicação dos movimentos cíclicos, como se lê na seguinte passagem “é graças
a essa característica, que se torna cada vez mais acentuada, à medida que a
técnica progride, que, ao invés de uma tendência continuada para a depressão
RXSDUDDSURVSHULGDGHWHPRVDDOWHUQDWLYLGDGHGHGHSUHVVmRHGHSURVSHULGDGHµ
(VI, §15). Mas, apesar do movimento cíclico “o capitalismo tende no longo prazo a
uma situação de emprego menos que pleno por causa do modo como se distribui
UHQGDµ ( GDGR TXH FLWDQGR SDODYUDV NDOHFNLDQDV HQFRQWUDGDV HP .DOGRU ´R
gasto dos capitalistas é (relativamente) independente de seus lucros correntes,
ao passo que o gasto dos trabalhadores depende de seus salários, os capitalistas,
FRPRFODVVHJDQKDUmRRTXHJDVWDUHPµ 9,† LVWRp´GHPDQGDJOREDOYDULD
segundo os capitalistas encontram ou não interesse em gastar além de suas
necessidades correntes de consumo – vale dizer, na medida em que descubram
LQWHUHVVHHPLQYHUWHUµ 9,† 
A diminuição de salário em condições de desemprego levaria a redução da
demanda global ao invés do aumento de investimentos. Por um lado, a rigidez da
técnica impede a substituição dos fatores, por outro, o barateamento do trabalho
com relação à terra e ao capital [que pode ser decomposto em terra e trabalho]
OHYDUi ´XP HVIRUoR SRU SDUWH GRV FDSLWDOLVWDV SDUD LQWHQVLÀFDU R HPSUHJR GR
fator mais barato – o trabalho – e que portanto diminuirá a procura de bens de
FDSLWDOµ 9,† ´7UDWDVHGRGHVHQYROYLPHQWRGHGLDQWHSDUDWUiVGRLQYHUVRGR
GHVHQYROYLPHQWRµ 9,† 
Mas a demanda de mão-de-obra diminuiria em função da queda dos
investimentos. E nada levaria os capitalistas a investir “se produção corrente não
pYHQGLGDµ 9,† $FULVHSRUWDQWR´QmRSRGHFHVVDUSRUHIHLWRGHLOXVyULRV
aumentos de inversão induzidos por uma queda no salário, mas por algo que
provoque independentemente, com relação a este, um aumento geral nas
FRPSUDVµ 9,† 
Podemos esperar, para os países de capitalismo pouco desenvolvido,
uma espontânea saída da crise. O setor pré-capitalista de subsistência sustenta
níveis absolutos de salário e consumo. Com a quebra das empresas mais débeis
“demanda efetiva os preços vigentes torna -se maior do que a oferta, criando-se
FOLPDSDUDRODQoDPHQWRGHQRYRVSURMHWRVµ 9,† 0DVRFDVRJHUDOpGLIHUHQWH
“Nos países de capitalismo desenvolvido esse mecanismo de sustentação do
salário pela via do emprego alternativo na produção para autoconsumo perde
LPSRUWkQFLDUHODWLYDµ 9,† 3HODGRXWULQDNH\QHVLDQD´OXWDFRQWUDFULVHSDVVD

D
D 220
DVHUHQFDUJRREULJDWyULRGR(VWDGRµFXMD´HVVrQFLDGDSROtWLFDDQWLFtFOLFDpD
VXVWHQWDomRGRSUHoRGRWUDEDOKRUHODWLYDPHQWHDRGRFDSLWDOµ 9,† 
A variável chave é o preço do capital, que pode ser entendido como “duas
FRLVDV GLVWLQWDV D  R SUHoR GRVµ 9, †  0DV EHQV GH FDSLWDO ; b) a  WD[D GH
juros preferência pela liquidez pode impedir a queda ou mesmo elevar a taxa
de juros e, com isso, o preço do capital. Aqui, encontramos papel para a política
econômica “manipulação do poder emissor pode satisfazer a sede de liquidez do
S~EOLFRHSRUHVVHPHLRGHL[DUDVDXWRULGDGHVÀQDQFHLUDVHPFRQGLo}HVGHÀ[DU
livremente a taxa de juros... Desta maneira, o capital pode tornar-se relativamente
mais barato que o trabalho e induzir combinações de fatores propendentes a
HQIDWL]DURHPSUHJRGHFDSLWDOHDUHGX]LURHPSUHJRGHWUDEDOKRµ 9,† 
No curto prazo, o aumento do investimento provoca a expansão do
emprego nas palavras de Rangel “DGHPDQGDGHPmRGHREUDDXPHQWDTXDQGR
RVFDSLWDOLVWDVGHFLGHPSRXSDUPmRGHREUDSHORHPSUHJRLQWHQVLYRGHFDSLWDOµ
E com essa observação introduz outra problemática alertando que
“iludido pelas aparências o planejador ou o projetista de país subdesenvolvido ou
de país em depressão pode sentir-se inclinado a preferir técnicas que enfatizem
diretamente o emprego de mão-de-obra, no nível do SURMHWRSULPiULRµ (VI, §30),
o que não seria atitude sábia
Mas informa que, excepcionalmente, “há um caso em que escolha do
projeto mais primitivo do ponto de vista técnico... é o [projeto] que assegura a
PDLRUGHPDQGDWRWDOGHPmRGHREUDµ (VI §31). É quando a demanda derivada de
um “projeto mais avançado do ponto de vista tecnológico (mais poupador de mão
GHREUD µpDWHQGLGDSRUXQLGDGHVSURGXWLYDVORFDOL]DGDVIRUDGDHFRQRPLDHP
questão. Em outras palavras, é necessário um estudo sobre aspectos espaciais
do efeito multiplicador dos investimentos. IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
Conclui o capítulo chamando atenção para as possíveis formas de utilização
dos fatores locais na formação de capital. Como a construção civil, principalmente
na época da elaboração do livro, tendia a empregar fatores locais, a questão incidia
sobre os equipamentos. Estes poderiam ser fabricados localmente ou comprados
por recursos locais que seriam materializados em produtos de exportação ou de
substituição de importações. Seguindo a ponderação, Rangel alerta que, no caso
GRÀQDQFLDPHQWRGREHPGHFDSLWDOSDVVDDH[LVWLUXPLQWHUYDORGHWHPSRHQWUH
o investimento e um possível efeito no emprego de recursos locais. E conclui
“análise do custo social de um projeto pode obrigar-nos a investigações em
DWLYLGDGHVVHPTXDOTXHUFRQH[mRLPHGLDWDFRPHVVHSURMHWRµ 9,† 

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IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

3DODYUDVÀQDLV

Gostaríamos de concluir este artigo com algumas observações pontuais.


A primeira é o reconhecimento de que “ELEMENTOS DE ECONOMIA
'2 352-(7$0(172µ DR FRQWUiULR GDV RXWUDV REUDV GH 5DQJHO IRL OLYUR SRXFR
FRPHQWDGR5HJLVWUDPRVFRPDOHJULDDVSDODYUDVGH0LOWRQ6DQWRV  TXH
considerava este livro o mais importante trabalho de Rangel e acrescento, numa
SRXFRXVXDOFRQÀGrQFLDELRJUiÀFDTXHRDXWRUPHFRQÀGHQFLRXDOJRVHPHOKDQWH
$ VHJXQGD H[SOLFLWDPHQWH REVHUYDGD SRU 6DQWRV   p VREUH D
LPSRUWkQFLD ÀORVyÀFD GD FDWHJRULD XWLOLGDGH $ QRomR HVWi OLJDGD D GHÀQLomR
de necessidades e está carregada de juízos de valor. Pois estamos diante de
XPDDQWURSRORJLDÀORVyÀFDTXHSHQVDRKRPHPHPVXDDÀUPDomRUDFLRQDOVHP
fetiches e senhor de seu destino. A crença no progresso e traços prometéicos na
relação com a natureza completam uma visão que tem raízes no racionalismo
clássico. O socialismo não é um fato fortuito, é o devir esperado que está sendo
construído historicamente.
A terceira refere-se ao, hoje inexistente, objeto teórico principal da obra:
a economia do projetamento, que, quando da elaboração da obra, estava em
construção e tinha no planejamento soviético sua mais notável expressão.
Essa economia do projetamento está historicamente superada ou, pelo
PHQRVHPDJXGRUHWURFHVVR$SHUHVWUyLFDRÀPGD8566HDWUDQVLomRDFHOHUDGD
para o capitalismo dos países da antiga cortina de ferro eliminaram, naquelas
plagas, qualquer elemento de uma economia de projetamento. Da mesma
IRUPD R NH\QHVLDQLVPR DUPDPHQWLVWD GRV QRUWHDPHULFDQRV VH GLVWDQFLRX GD
convergência, esperada por Rangel, na produção de utilidades dentro de uma
SROtWLFD GH HPSUHJR 3RU ~OWLPR D FRQYHUVmR &KLQD HP RÀFLQD GR PXQGR FRP
HPSUHVDV JOREDLV  HVWUDQJHLUDV RX QDFLRQDLV  H D DÀUPDomR GD HFRQRPLD GH
mercado em condições de capitalismo selvagem atuam em sentido contrário
a qualquer coisa próxima a uma economia de projetamento, pois já deve estar
FODURTXHDH[LVWrQFLDGHSODQRVTXLQTXHQDLVRXQmRpLQVXÀFLHQWHSDUDGHÀQLUR
projetamento produtor de utilidades.
A economia do projetamento também entrou em colapso em nosso
WHUFHLUR PXQGR $ IRUPD IRL D LQWHJUDomR ÀQDQFHLUD H SURGXWLYD GHQWUR GR
processo de globalização contemporâneo. Os estados perderam a capacidade de
SURJUDPDURVLQYHVWLPHQWRVHGHÀQLUDXWLOL]DomRGRVIDWRUHVQDFLRQDLV2VEDQFRV
de desenvolvimento se transformaram em bancos de investimentos. O projeto

D
D 222
como instrumento de avaliação de investimentos e alocação de recursos cedeu
a vez para operações de mercado onde os usos e as fontes são desprezadas
WHQGRHPYLVWDDVSHUVSHFWLYDVGHYDORUL]DomRÀFWtFLDV1DVSDODYUDVNDQWLDQDV
de Rangel, poderíamos falar que o nômeno deixou de existir tirando o substrato
histórico da teoria.

5HIHUrQFLDV

%,(/6&+2:6.< 5 Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do


GHVHQYROYLPHQWR5LRGH-DQHLUR,SHD,QSHV
BRESSER PEREIRA, L. C. e REGO, J. M. Um mestre da economia brasileira Ignacio
Rangel. In: MAMIGONIAN, A. e REGO, J. M. (orgs.). 2 SHQVDPHQWR GH ,JQDFLR
5DQJHO São Paulo:(GLWRUD
KEYNES, J. A teoria geral do emprego. In: SZMRECSÁNYI,T. (org.). .H\QHV. São
3DXOR(GLWRUDÉWLFD
MAMIGONIAN, A. Notas sobre as raízes e originalidade do pensamento de Ignacio
Rangel In: MAMIGONIAN, A. e REGO, J. M. (orgs.). 2 SHQVDPHQWR GH ,JQDFLR
5DQJHO São Paulo:(GLWRUD
MAMIGONIAN, A. e REGO, J. M. (orgs.). 2SHQVDPHQWRGH,JQDFLR5DQJHO São
3DXOR(GLWRUD
RANGEL, I. 2EUDVUHXQLGDV YRO,H,,  Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2005.
_______. Desenvolvimento e projeto. In: RANGEL, I. 2EUDV UHXQLGDV Rio de
Janeiro: Editora Contraponto, vol. I, 2005.
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
_______. Dualidade básica da economia brasileira. In: RANGEL, I. 2EUDVUHXQLGDV
Rio de Janeiro: Editora Contraponto, vol. I, 2005.
_______. Elementos de economia do projetamento. In: RANGEL, I. 2EUDVUHXQLGDV
Rio de Janeiro: Editora Contraponto, vol. I, 2005.
_______. Dualidade e escravismo colonial. In: RANGEL, I. 2EUDVUHXQLGDV Rio de
Janeiro: Editora Contraponto, vol. II, 2005.
SANTOS, M.2SHQVDPHQWRGH,JQDFLR5DQJHO. Conferência no seminário Ignacio
5DQJHOHDFRQMXQWXUDHFRQ{PLFDQR$QÀWHDWURGH*HRJUDÀDGD863'LVSRQtYHO
KWWSZZZLQWHUSUHWHVGREUDVLORUJVLWH3DJHDY$FHVVRHP.

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A importância histórica da
teoria de Ignacio Rangel:
um breve ensaio
$ULVVDQH'kPDVR)HUQDQGHV

Ignacio Rangel é detentor de uma obra reconhecida por sua originalidade


HLQGHSHQGrQFLDWHyULFD3DUD5LFDUGR%LHOVFKRZVN\SRUH[HPSORHOHIRL´RPDLV
FULDWLYR H RULJLQDO DQDOLVWD GR GHVHQYROYLPHQWR HFRQ{PLFR EUDVLOHLURµ. Para
Bresser Pereira e José Márcio Rego, Rangel foi um economista que “sempre se
GLVWLQJXLXSHORSLRQHLULVPRSHODFULDWLYLGDGHSHORSHQVDPHQWRLQGHSHQGHQWHµ77.
(VVD´LQGHSHQGrQFLDLQWHOHFWXDOµWDPEpPIRLHQIDWL]DGDSRU$UPHQ0DPLJRQLDQ78,
Paulo Davidoff Cruz  e por Fernando Cardoso Pedrão80. Essas análises, que
em grande medida discutem a teoria rangeliana sob um viés econômico,
esclarecem aos leitores que desconhecem a obra de Ignacio Rangel, que ele foi
um economista que, na maior parte da sua vida, esteve vinculado a instituições
burocrático-administrativas fundamentais para a economia brasileira, como o
BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), onde Rangel
foi funcionário por mais de 20 anos, e a Assessoria Econômica do presidente
Vargas. Além disso, tais análises também destacam o fato de que Rangel
SURGX]LXXPDLQWHUHVVDQWHWHRULDVREUHD´UHDOLGDGHEUDVLOHLUDµ IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
O intelectual em questão, desempenhou um papel fundamental na
consolidação das chamadas condições de produção capitalistas no Brasil,
HVVHQFLDOPHQWHQRVDQRV&RPRDVVHVVRUHFRQ{PLFRGRSUHVLGHQWH

76
Bielschowsky, 2000:209.

77
Bresser Pereira e Rego, 1998:13.

78
1998:131.

79
1980:01.

80
No artigo “Ignacio Rangel”, publicado em 2001.

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*HW~OLR9DUJDV HQWUHH HOHSDUWLFLSRXGDHODERUDomRGRVSURMHWRV


GD3HWUREUiVHGD(OHWUREUiVHOHWDPEpPFKHÀRXR'HSDUWDPHQWRGH(FRQRPLD
do BNDES (que, na época, desempenhava o papel que, anos depois, caberia ao
Ministério do Planejamento) e participou da elaboração do Plano de Metas81, no
governo de Juscelino Kubitscheck. Essa trajetória político-institucional se
demonstra ainda mais interessante se for levado em consideração o fato de
TXHDQRVDQWHVHVSHFLÀFDPHQWHQDVGpFDGDVGHH5DQJHOIRLXP
militante do PCB (Partido Comunista Brasileiro), tendo inclusive participado de
uma luta armada ocorrida no estado do Maranhão no contexto da chamada
5HYROXomRGH
Além disso, ainda no período de sua militância política82, após ter adotado
RSURJUDPDGD$1/ $OLDQoD1DFLRQDO/LEHUWDGRUD HOHRUJDQL]RXXPD´JXHUULOKDµ
TXHVHJXQGRDVXDSHUFHSomRFXOPLQDULDFRPD´UHYROXomRDJUiULDµ83 (enquanto
pré-requisito para a revolução democrático-burguesa84), fato que lhe rendeu 10
anos de prisão (entre o presídio Frei Caneca, no Rio de Janeiro e 8 anos de prisão
domiciliar). O que chama a atenção, em sua trajetória política, é que de opositor a
Vargas, Ignacio Rangel se tornou um de seus principais assessores e, a partir daí,
se consolidou nos cargos burocrático-administrativos do Estado. Uma vez inserido
nesses cargos e tendo participado de cursos na CEPAL (Comissão Econômica
81
Enquanto chefe do Departamento de Economia e do Conselho de Desenvolvimento, ambos do BN-
DES.

82
A militância política de Ignacio Rangel ocorreu entre 1930 e 1947, ano em que ele se desvinculou do
Partido Comunista.

83
Revista Geosul, 1991/92:117.

84
A revolução democrático-burguesa constitui, na ótica comunista, uma etapa da revolução socialista
na qual se consolidaria a chamada ditadura do proletariado, quando os trabalhadores assumiriam o
controle do Estado. Naquela etapa os “entraves” para um desenvolvimento capitalista autônomo seriam
eliminados, essencialmente o imperialismo e, com ele, o latifúndio e a burguesia vinculada ao capital
estrangeiro, tidos como os seus “sócios internos”. Essa etapa da revolução seria realizada por uma asso-
ciação entre camponeses, operários e a burguesia nacional. Assim, as duas etapas fundamentais desse
programa nacional democrático da revolução brasileira seriam a “revolução agrária” (suprimindo as
relações de produção baseadas no monopólio latifundiário da terra e instaurando relações de produção
em que os trabalhadores assumissem o controle da terra) e a “revolução nacional”, que visava suprimir a
dominação imperialista. Juntas, essas duas “revoluções” eliminariam os obstáculos à produção nacional
e ao progresso social, condições tidas como essenciais para que a “ditadura do proletariado” pudesse
RFRUUHU 0RUDHV $VGLVFXVV}HVVREUHDUHYROXomRGHPRFUiWLFREXUJXHVDDQWLLPSHULD-
lista e antifeudal, foram reverberadas no Brasil a partir da década de 1920, através do PCB, advindas da
teoria leninista e da Internacional Comunista. A partir daí essa temática passou a ser discutida por vários
intelectuais (como Astrojildo Pereira, Otávio Brandão, Caio Prado Jr., Nelson Werneck Sodré e Jacob
*RUHQGHU RVTXDLVVHHPSHQKDUDPHPGH¿QLUDVEDVHVGHVVHSURFHVVRGHQWURGDVFRQGLo}HVEUDVLOHLUDV

D
D 230
para a América Latina e Caribe) e, também, composto o quadro de professores do
,6(% ,QVWLWXWR6XSHULRUGH(VWXGRV%UDVLOHLURV XPGRV´DSrQGLFHVLGHROyJLFRVµ
do governo JK – Rangel desenvolveu um modelo teórico de fato original o qual
representava não somente sua percepção sobre a realidade brasileira, mas a
defesa de seus próprios interesses (enquanto integrante de uma classe social)
no aparelho de Estado.
Dessa maneira, a intenção deste ensaio é chamar a atenção para a
importância histórica da teoria rangeliana a qual, ao apresentar uma interpretação
da realidade brasileira tinha uma intenção concreta: intervir nessa realidade,
através de uma análise que buscava propostas efetivas de ação. A l é m
dessa característica, a teoria desenvolvida por Ignacio Rangel apresenta uma
abordagem interessante da história econômica brasileira, uma leitura da chamada
´UHYROXomREUDVLOHLUDµ1HOD5DQJHOQmRDSHQDVGHPRQVWURXVXDLQWHUSUHWDomR
acerca desse processo como defendeu que o grupo ao qual ele pertenceu, os
quais podem ser denominados de intelectuais nacionalistas, deveria ocupar
uma posição privilegiada na condução (ou assessoria) das decisões políticas do
SDtV&RQVLGHUDQGRHVVHDVSHFWRDÀUPDVHTXHXPDDQiOLVHTXHVHSURSRQKD
D FRPSUHHQGHU R VLJQLÀFDGR KLVWyULFR GD WHRULD GH ,JQDFLR 5DQJHO EHP FRPR
a importância de sua atuação político-institucional, não pode desconsiderar
o contexto no qual esse intelectual atuou e as relações institucionais que ele
GHVHQYROYHX DV TXDLV LQHJDYHOPHQWH LQÁXHQFLDUDP VXD SURGXomR WHyULFD 2X
VHMD,JQDFLR5DQJHORFXSRXXPHVSDoRGH´REVHUYDomRµSULYLOHJLDGRGHQWURGR
DSDUHOKR GH (VWDGR H VXD WHRULD UHÁHWH LQHYLWDYHOPHQWH VHX SRVLFLRQDPHQWR
dentro desse espaço.
$RUHDOL]DUXPUHVJDWHELRJUiÀFRGH,JQDFLR5DQJHOFKDPDDDWHQomR
o fato de que a sua militância (prematura), teria terminado a partir de uma IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
discordância teórica com a direção do Comitê Central do Partido Comunista
Brasileiro85. Esse desacordo teria emergido, anos antes, de constatações surgidas
DSyVXPDWHQWDWLYDIUDFDVVDGDGH´UHYROXomRDJUiULDµQR0DUDQKmRFLWDGDKi
pouco, da qual Rangel teria sido um dos dirigentes. Após esse episódio, em
HOHWHULDVLGRSUHVRHDLQGDQRSUHVtGLR)UHL&DQHFDQR5LR-DQHLUR5DQJHO
teria iniciado uma espécie de revisão das bases do pensamento comunista,
do qual ele teria sido adepto até ali. A dissidência de Rangel em relação à
teoria comunista, como já apontado, estaria na ideia de que, ao contrário do
que o PCB postulava, a reforma agrária não necessariamente deveria preceder o
85
Rangel, 1991:62-63.

86
Revista Geosul, 1991/92: 117-118.

D
D 231
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

processo de industrialização e esse, na perspectiva rangeliana, seria o caso do


Brasil, uma realidade sui generis na história universal (RANGEL, 2005a: 537). O
IUDFDVVRGDUHIHULGD´UHYROXomRµLQWHQWDGDSRU,JQDFLR5DQJHO HRH[WHQHQWHGD
Coluna Prestes, Euclides Neiva), teria sido o ponto de partida para a construção
da teoria rangeliana, cujas ideias iniciais teriam sido mal recebidas por parte
GHDOJXQVFRPXQLVWDVHPXPDUHXQLmRGR&RPLWr&HQWUDOGR3&%HP2
resultado da não aceitação dessas ideias teria sido o desligamento de Rangel do
Partido, por iniciativa dele, dois anos depois desse episódio87.
No mesmo ano desse rompimento, Rangel teria feito o primeiro
esboço do que viria a ser a base da sua WHRULDGDGXDOLGDGHEiVLFDGDHFRQRPLD
brasileira. De acordo com o próprio intelectual, essa primeira aproximação teria
sido apresentada em uma prova na faculdade de Direito, já no Rio de Janeiro, em
88.
Anos depois, os conhecimentos técnicos apresentados por Ignacio
Rangel, em sua leitura dualista do Brasil, lhe abriram as portas de importantes
órgãos governamentais, propiciando sua consolidação nos cargos de poder.
Dentre esses órgãos estava a Assessoria Econômica do presidente Vargas e de
Juscelino Kubitscheck e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social (BNDES), além de instituições fundamentais na formulação da ideologia
desenvolvimentista, tais como a Comissão Econômica para a América Latina e
Caribe (CEPAL) e o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). Mas a sua
SDUWLFLSDomRQHVVDVLQVWLWXLo}HVEHPFRPRVXDVDtGDGR3&%QmRVLJQLÀFRXXP
rompimento com a esquerda. Ao contrário, com base nas temáticas discutidas
naquelas instituições, Rangel aprimoraria suas análises sobre a dualidade
EUDVLOHLUDDVTXDLVFRQVWLWXHPDVXD´OHLWXUDµGDUHDOLGDGHQDFLRQDOHPDLVGR
que isso, seu projeto político-ideológico.

A realidade brasileira sob a perspectiva teórica de Ignacio Rangel

As análises apresentadas por Rangel, ao abordarem a economia sob


uma perspectiva histórica, traçam um interessante e detalhado panorama da
realidade brasileira o qual é arregimentado pela teoria da dualidade.
Nessa abordagem, seguindo os pressupostos básicos da teoria
cepalina, Rangel (2005a: 225) via o Brasil como um país subdesenvolvido e, por

87
Rangel, 1991:62.

88
Rangel, 1991:67.

D
D 232
conseguinte, a economia brasileira era tida como uma economia complementar
ou um “complemento de outras economias muito mais desenvolvidas, aquelas
TXH FRPSUDP SURGXWRV HP EUXWR H YHQGHP SURGXWRV HODERUDGRVµ 6HJXLQGR
HVVHV SDUkPHWURV R UHIHULGR LQWHOHFWXDO DÀUPRX TXH ´RULJLQDULDPHQWH DV
unidades econômicas aqui surgidas como um prolongamento da economia
europeia, relacionavam-se diretamente com o mercado europeu e eram, a rigor,
SDUWHGHOHµ 
Sendo assim, Rangel (2005a: 448) via o Brasil como “uma formação
social periférica, que toma algum tempo para se aperceber de certos fatos
ocorridos no centro dinâmico em torno do qual gravita, muito embora sofra muito
SUHFRFHPHQWHHDPSOLÀFDGDPHQWHVXDVFRQVHTXrQFLDVµ1HVVHVHQWLGR5DQJHO
explicou que, justamente por ser dependente das economias centrais, a dinâmica
da economia brasileira, seria marcada por movimentos que alternavam uma
LQWHQVLÀFDomRGDVH[SRUWDo}HVRXXPDLQWHQVLÀFDomRGRSURFHVVRGHVXEVWLWXLomR
de importações, conforme a conjuntura externa. Conforme explicações do próprio
Rangel:

Ao longo de nossa história econômica, o movimento mais elementar


de nossa economia tem sido esse: segundo a conjuntura externa,
através das mudanças induzidas nos termos de intercâmbio e
na capacidade para importar, o Brasil realça seus fatores entre a
produção para exportação e a produção para o consumo interno.
No primeiro caso, substitui produção nacional por importações; no
VHJXQGRLPSRUWDo}HVSRUSURGXWRQDFLRQDO 5$1*(/D 

O Brasil, de acordo com essa análise, possuía uma GXSOLFLGDGH a qual


Rangel resumiu da seguinte forma: “como parte da economia mundial, ou seja, IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
pelo seu comércio exterior, é parte de um complexo econômico, enquanto o
mesmo Brasil, por sua produção orientada ao mercado interno, é uma economia
FDSLWDOLVWDSRXFRGHVHQYROYLGDµ 5DQJHOD +DYHULDSRUWDQWRXPD

contradição entre a posição da economia dependente, vista em si


mesma (ou seja, como economia capitalista não desenvolvida e
dotada de pré-requisitos para uma pronta recuperação), e a mesma
economia vista como parte do mercado mundial (situação em que
esses pré-requisitos não aparecem). A substituição é a forma como
VHUHVROYHHVVDFRQWUDGLomR 5$1*(/D  

D
D 233
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

Essa situação, ainda de acordo com essas premissas, só teria indicado


VLQDLV GH PXGDQoD D SDUWLU GD &ULVH GH  TXDQGR GLDQWH GD UHGXomR GD
demanda externa por seus produtos (e com ela a redução de sua capacidade
GH LPSRUWDomR  D HFRQRPLD EUDVLOHLUD WHULD FRPHoDGR D ´UHDJLUµ FRP XPD
industrialização incipiente, pautada na substituição de importações. Na
análise rangeliana, portanto, a dinâmica da economia brasileira (até a o início
GDLQGXVWULDOL]DomRQDFLRQDO WHULDVLGRFRPSOHWDPHQWHGHÀQLGDSRUVXDUHODomR
com o comércio exterior e, inclusive, o início do processo de industrialização
no país teria sido uma resposta da economia brasileira diante da crise nas
economias centrais, a qual resultou em uma diminuição da demanda externa
pelos produtos brasileiros, diminuindo, em consequência, a sua capacidade de
importação (dentro daquele sistema de trocas de matérias-primas por produtos
elaborados). Nas palavras de Rangel (2005a: 42): “só em certo
momento, quando a demanda externa por seus produtos começou a reduzir-
se, essa situação precisou mudar, pois a economia brasileira converteu-se
então em um complemento maior do que necessitavam as economias que
HOD FRPSOHPHQWDYDµ RX VHMD ´FRQIURQWDGD FRP D GLPLQXLomR DEVROXWD RX
relativa, da capacidade para importar, a economia reage com a substituição
GHLPSRUWDo}HVµ. Sendo assim, segundo essa análise, “o comando de todo o
SURFHVVR GH GHVHQYROYLPHQWR HVWi SRUWDQWR QR PHFDQLVPR GH VXEVWLWXLo}HVµ
e a “chave de tudo está em sustentar o processo de substituições, uma vez
LQLFLDGRµ. Isso porque a industrialização, inicialmente a partir da substituição
de produtos que até então eram importados, criava condições para que a
economia brasileira começasse a se desvincular de uma situação de completa
dependência aos movimentos (de ascensão e depressão) do comércio exterior.
89
'HDFRUGRFRP5DQJHO D ³>@DKLVWyULDGR%UDVLOQmRUHWUDWD¿HOPHQWHDKLVWyULDXQL-
versal, especialmente a européia, porque nossa evolução não é autônoma, não é produto exclusivo de
suas forças internas. Nossa economia nasceu e se desenvolveu como complemento de uma economia
heterogênea e sempre esteve sujeita às suas vicissitudes”.

90
(VVDVLWXDomRIRLH[SOLFDGDSRU,JQDFLR5DQJHO D DSDUWLUGDDGRomRGRPpWRGRGLDOpWLFR
De acordo com ele, “toda a marcha do nosso desenvolvimento em forma mais abstrata” poderia ser resu-
mida no seguinte “processus dialético”: “Tese: uma contração da capacidade para importar e do volume
físico de nossas exportações rompe o equilíbrio anterior nas relações interindustriais de nossa economia.
Antítese: a economia nacional reage por um esforço de substituição de importações que implica aumento
das inversões capitalistas e crescimento do setor capitalista da economia.
Síntese: aumenta a produtividade per capita, PRGL¿FDVHDHVWUXWXUDGDSURFXUDQDFLRQDOH[SDQGHVHD
procura de importações, impelindo o sistema a repetir o processo, em nível superior”.

91
5DQJHOD

92
Nas análises de Celso Furtado, semelhantemente, a consolidação da indústria brasileira resultaria em

D
D 234
O desenvolvimento da economia brasileira estaria, essencialmente, na
LQGXomR da transferência de fatores (mão-de-obra e capital) do setor agrícola
aos setores não agrícolas (manufatura e serviços), ou seja, na substituição da
GLYLVmRIDPLOLDUGRWUDEDOKRSHOD´VRFLDORXQDFLRQDOµDTXDOJHUDULDXPDXPHQWR
GH SURGXWLYLGDGH H SRU ÀP GHVHQYROYLPHQWR 5DQJHO D  (VVD VHULD
a condição para que a economia dualista brasileira alcançasse um nível mais
elevado de crescimento. Ainda de acordo com essa perspectiva, pelo fato de a
industrialização brasileira ter ocorrido sem uma reforma agrária prévia (dada a
´IRUoDµTXHRODWLI~QGLRIHXGDODLQGDH[HUFLD RGHVHQYROYLPHQWRGRFDSLWDOLVPR
EUDVLOHLUR WHULD RFRUULGR HP ´FRQGLo}HV HVSHFLDLVµ (VVDV FRQGLo}HV FRPR
5DQJHO D H[SOLFRXWHULDPVLGRFDUDFWHUL]DGDVSRUXPDHOHYDGDWD[D
de exploração (cuja tendência seria se elevar ainda mais com o aumento da
produtividade do trabalho), não compensada por uma “paralela elevação dos
VDOiULRVµUHVXOWDQGRHPLQÁDomR.
 1HVVH VHQWLGR 5DQJHO D  DSRQWRX TXH D LQÁDomR EUDVLOHLUD
HUD XP ´IHQ{PHQR OLJDGR DR GHVHQYROYLPHQWR GR FDSLWDOLVPR QR %UDVLOµ XP
“fenômeno característico de uma economia capitalista, que se desenvolve
VREDLQÁXrQFLDGHXPDHFRQRPLDIHXGDOHPFULVHHPGHVDJUHJDomRµ
A teoria da dualidade preconizava que à medida que o
´FDSLWDOLVPRSHQHWUDVVHQRFDPSRµD´FHUWDDOWXUDGRQRVVRGHVHQYROYLPHQWRµ
TXDQGRRVODWLIXQGLiULRVIHXGDLVGHL[DVVHPGHVHU´VyFLRVµLQWHJUDQWHVGRSRGHU
no Estado, a taxa de exploração dos trabalhadores cairia e o consumo tenderia a
DXPHQWDUPXGDQGRRTXDGURGDLQÁDomRQR%UDVLO 5DQJHOD 1HVVD
ótica, era necessária uma mudança no pacto de poder, o que só se efetivaria
com o desenvolvimento das forças produtivas e a queda total do latifúndio
IHXGDO%XVFDQGRUHVSRVWDVDRTXHFKDPRXGH´SDUWLFXODULGDGHVEUDVLOHLUDVµ,
5DQJHO D GHÀQLXDHFRQRPLDEUDVLOHLUDFRPRVHQGRUHVXOWDGRGD IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

uma internalização do centro de decisão, o qual modificaria a situação de dependência da economia do


Brasil em relação às economias externas. A partir desse processo, de acordo com Furtado, o país deixaria
de ser uma “economia reflexa”. Essa discussão foi apresentada, de maneira mais pontual, na obra Desen-
volvimento e Subdesenvolvimento.

93
Essas particularidades seriam resultantes do fato de a economia brasileira ser essencialmente dualista.
Daí, a industrialização ter ocorrido sem uma reforma agrária prévia a qual, na percepção de Rangel
E VXSULPLULDRXDRPHQRVOLPLWDULDDVLQVWLWXLo}HVKHUGDGDVGDV DUFDLFDV HVWUXWXUDVIHXGDLV
Dentre as “particularidades” ou “anomalias” advindas desse processo, podem ser citadas: a crise agrária
(com a alternação de superpopulação/ superprodução e escassez (sazonal) de mão-de-obra e de matérias-
-primas; a atuação dos monopólios de produtos agrícolas; o preço da terra e todos os efeitos gerados pelo
r[RGRUXUDO DLQÀDomREUDVLOHLUD TXHDJUDYDULDDLQGDPDLVDFULVHDJUiULD HXPDLQGXVWULDOL]DomR³DV
avessas”, iniciada pelo Departamento II da Economia (de bens de consumo) e não pelo Departamento I
(de bens de produção) , como ocorreu com as economias centrais.

D
D 235
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

FRPELQDomRGH´WUrV]RQDVµ RXstracta)GHÀQLGDVGHDFRUGRVXDVIRUPDVGH
organização:
1) A “]RQD QDWXUDOµ GD HFRQRPLD (ou a economia natural): nela, a
produção que seria consumida pelo próprio produtor e, para alcançar
um maior nível de desenvolvimento econômico, deveria haver uma
“alteração no modo de distribuição do tempo de trabalho no interior da
SUySULDXQLGDGHµ
2) A “]RQD FDSLWDOLVWD SULYDGDµ RX D HFRQRPLD GH PHUFDGR) – nessas
áreas dominaria um capitalismo, mas semelhante ao capitalismo
europeu do século XIX;
3) A “]RQD GR FDSLWDOLVPR GH (VWDGRµ RX D HFRQRPLD FDSLWDOLVWD GH
PRQRSyOLR) – essas relações econômicas seriam dominantes no campo
do comércio exterior.
A existência dessas três estruturas superpostas, as quais estariam
´VXEPHWLGDVDVVXDVSUySULDVOHLVHVSHFtÀFDVµSRGHPVHUFRQVLGHUDGDVFRPRR
´UHFXUVRGLGiWLFRµTXH5DQJHOLQLFLDOPHQWHXWLOL]RXSDUDH[SOLFDUDVEDVHVGHVXD
WHRULDGDGXDOLGDGHDTXDOVHULDPDLVEHPHODERUDGDDRÀQDOGRVDQRV
$VVLP5DQJHO D GHÀQLXTXH

[...] uma viagem através do Brasil é como uma viagem através dos
tempos. Encontramos aqui, lado a lado, formações socioeconômicas
da mesma índole das contemporâneas dos países mais desenvolvidos
e outras que não podemos encontrar senão recuando no tempo.
Noutros termos, no Brasil, coexistem e se condicionam mutuamente
a Idade Moderna e a Idade Média [...].

94
A tese dos 3 níveis (strata) econômicos distintos que coexistem na economia brasileira foi apresenta-
da já na primeira obra de Rangel, O Desenvolvimento Econômico no Brasil – 1954 (Rangel, 2005a:92
- 94), no ano seguinte ela foi retomada em ,QWURGXomRDR'HVHQYROYLPHQWR(FRQ{PLFR%UDVLOHLUR (Ran-
JHODH HHPHODS{GHVHULJXDOPHQWHYLVXDOL]DGDHPDesenvolvimento e
Projeto (p.213). Mas foi no livro Dualidade Básica da Economia Brasileira 5DQJHOD 
GHTXHHVVDTXHVWmRIRLDSULPRUDGDGHPRQVWUDQGRPHOKRUDVGXDOLGDGHVGDHVWUXWXUDHFRQ{PLFD
brasileira, ou seja, a idéia de que essas três formações se opõem duas a duas, dando origem a duas dua-
lidades diferentes - os stratas 1/2 e 2/3. O desenvolvimento, nessa ótica, estaria na segunda dualidade:
a passagem da economia de mercado para o comércio externo. Ao que tudo indica, essa tese consistiu
em uma prévia do quadro das dualidades, apresentado de maneira realmente detalhada em um artigo
publicado em 1981, intitulado A História da Dualidade Brasileira.

95
5DQJHOD

96
Em Desenvolvimento e Projeto (1956)5DQJHO D FKDPRXHVVHVHWRUGH³UHVWRGRPXQGR´

D
D 
Ao considerar que a economia brasileira não seria “uma simples
superposição das três zonas, mas sim uma combinação das três, que
permanentemente interferem umas sobre as outras, cada uma delas reagindo ao
VHXPRGRµ, Rangel estabeleceu que o processo de desenvolvimento econômico
brasileiro (que se consolidaria a partir da industrialização), ocorreria a partir de
dois princípios básicos: um aumento da produtividade, principalmente da mão-
de-obra inserida nas zonas 2 e 3; e a absorção, por essas duas zonas, de uma
´PmRGHREUDDGLFLRQDOµFRQFHQWUDGDQD]RQDRXVHMDQRVHWRUDJUtFROD
Sucintamente, essa análise defendia a ideia de que o desenvolvimento
econômico brasileiro resultaria da transferência da população da economia
QDWXUDO UXUDO SDUDRQtYHOGDVHJXQGD´]RQDµGDHFRQRPLDGHPHUFDGR1DV
palavras do próprio Rangel:

O nosso desenvolvimento tem resultado e provavelmente resultará


cada vez mais no futuro previsível, da transferência dessa população
para o nível da segunda formação, daquele onde domina o
capitalismo privado - razão porque prognosticamos um prolongado
desenvolvimento capitalista para o Brasil (RANGEL, 2005a:148).

Essas colocações deixam explícitas duas questões importantes: primeiro,


que a ideia de SURFHVVR está na base da teoria rangeliana e, segundo (sob a
LQÁXrQFLDGDWHRULDFHSDOLQD , que o desenvolvimento da economia brasileira
se daria a partir de PXGDQoDV estruturais. A respeito desse último aspecto,
DOLiV5DQJHO D DÀUPRXTXHSDUDDVHFRQRPLDVQmRGHVHQYROYLGDVR
´HVWXGRGRVSUREOHPDVGRGHVHQYROYLPHQWRµVHULD´LQVHSDUiYHOGDVPXGDQoDV
HVWUXWXUDLVµXPDYH]TXH´QmRKiGHVHQYROYLPHQWRVHPHVVDVPXGDQoDVµ(D
´PXGDQoDHVWUXWXUDOEiVLFDµVHULDD´WUDQVIHUrQFLDGHIDWRUHVGRVHWRUDJUtFROD IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
SDUDRUHVWRGDHFRQRPLDµ
Essa mudança, processual, deveria acabar com oIHXGDOLVPR que ainda
H[LVWLULD QR %UDVLO RQGH HOH ´WRPRX D IRUPD HVSHFtÀFD GH ODWLI~QGLRµ $ LGHLD
presente na teoria rangeliana, era que, embora o latifúndio brasileiro apresentasse

97
5DQJHOD

98
(VVDLQÀXrQFLDDOLiVIRLUHFRQKHFLGDSHORSUySULR5DQJHORTXDOQRSUHIiFLRGDSULPHLUDHGLomRGR
seu livro ,QWURGXomRDR'HVHQYROYLPHQWR(FRQ{PLFR%UDVLOHLUR  D¿UPRX³1mRVHULDMXVWRSDVVDU
sem uma palavra de gratidão para a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) e, em especial
para don Jorge Ahumada, diretor do curso de capacitação, em Santiago do Chile. Foi aí que metodo-
logicamente fui informado das modernas teorias sobre desenvolvimento econômico, e que, encontrei
também contradita sábia e fecunda, dessas que apuram o espírito e o animam a prosseguir.

D
D 237
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

DVSHFWRV GH XPD ´HPSUHVD FRPHUFLDOµ HOH QmR SRGHULD VHU GLVVRFLDGR GH XP
feudo medieval1HVVHVHQWLGR5DQJHOGHÀQLXTXH

O latifúndio brasileiro distingue-se do feudo europeu ou asiático pelo


fato de ser, ao contrário deste, uma empresa comercial, como já o
fora antes da fazenda brasileira de escravos. Enquanto os barões
europeus cobravam tributo aos seus servos para atender diretamente
às suas próprias necessidades de alimento, de moradia, de luxo, o
latifundiário brasileiro apropriava-se desse tributo na intenção de
vendê-lo, de auferir uma renda monetária. Mas o modo de organizar
a produção dentro da fazenda era essencialmente o mesmo do
feudo medieval, embora, muitas vezes, o tributo assumisse formas
diferentes, isto é, se disfarçasse em lucro comercial ou industrial
(RANGEL, 2005a:150).

Nessa perspectiva analítica, as relações de produção que prevaleciam no


VHWRUDJUtFROD RXQDHFRQRPLDQDWXUDO MiQRVDQRVDLQGDPDQWLQKDPHVVHV
´HOHPHQWRVIHXGDLVµ6HQGRDVVLPSHORIDWRGH5DQJHOQmRLGHQWLÀFDUSULQFtSLRV
FDSLWDOLVWDV PDV´FRQGLo}HVSUpFDSLWDOLVWDVµ 100 nas relações econômicas que
RFRUULDPQDTXHOHVHWRUHOHRVGHÀQLXHQTXDQWRXPDHVWUXWXUDFXMDEDVHQmRHUD
capitalista, mas que estaria bem próximo das práticas presentes no feudalismo.
Como ele mesmo explicou:

Se observarmos o modo de produção que corresponde a essa


estrutura jurídica, vamos descobrir que só uma parte do tempo de
trabalho e dos meios de produção ao dispor do camponês se aplica
na produção de bens destinados ao mercado. Uma parte desses
bens é entregue ao proprietário da terra – como aforamento ou
como lucro comercial, pouco importa – e a outra parte é vendida
pelo próprio camponês. Da parte recebida pelo latifundiário uma
parcela variável é vendida e outra consumida diretamente por
ele. A parte que o latifundiário vende, assim como a parte que o

99
É importante demarcar a semelhança dessa perspectiva com a abordagem feita por de Nelson Werneck
Sodré, o qual apontou a estrutura econômica colonial composta por diferentes relações de produção.
([HPSORGLVVRHVWiQDD¿UPDomRIHLWDSRU6RGUp  GHTXHQDDJULFXOWXUDDVUHODo}HVVmRHVFUD-
vistas e estão ligadas aos interesses do mercado externo, às necessidades do desenvolvimento do capital
comercial. Já na pecuária e na mineração, predominariam as relações feudais. Ou seja, aproximando-se
da perspectiva rangeliana, Sodré via a economia brasileira como sendo composta por duas ordens: exter-
namente mercantil (através do modo de produção escravista), seguindo os interesses da ordem mundial
capitalista e internamente feudal.

100
5DQJHOD

D
D 238
SUySULRFDPSRQrVYHQGHFRQYHUWHVHHP´PHUFDGRULDµHGiRULJHP
a uma renda monetária. A parte que o camponês e o latifundiário
consomem diretamente não é mercadoria e não resulta em renda
monetária. Note-se bem: ao contrário do que ocorre numa economia
monetária, onde a cada produto corresponde uma renda, razão pela
qual ao medirmos a renda nacional estamos medindo o produto
nacional, aquela parte do produto do meeiro, que ele próprio e o
latifúndio consomem, não corresponde renda alguma, senão no
VHQWLGRÀJXUDGR 5$1*(/D 

Longe de haver, por parte da teoria rangeliana, um interesse em ressaltar


a questão da exploração dos trabalhadores rurais, a ênfase dessa teoria recaía
sobre o fato de que esses camponeses destinavam grande parte do seu tempo
HP ´DWLYLGDGHV QmR DJUtFRODVµ FRPR D FRQVWUXomR GH FDVDV PRLQKRV H D
´VHPLPDQXIDWXUDµ GH DOJXQV SURGXWRV DWLYLGDGHV TXH QmR FDEHULDP D HVVH
VHWRU3RUHVVHPRWLYR5DQJHO D DÀUPRXTXH´RFDUDFWHUtVWLFRGDV
atividades não agrícolas da agricultura é o fato de resultarem, do ponto de vista
das necessidades que satisfazem, na produção dos mesmos bens que, numa
HFRQRPLD GHVHQYROYLGD VDHP GH LQG~VWULDV GH IiEULFDVµ101. Considerando
que para Rangel (assim como para o ISEB e para CEPAL) o desenvolvimento
HFRQ{PLFRHVWDYDDVVRFLDGRjFRQVROLGDomRGDLQG~VWULDQDFLRQDOÀFDFODUDD
intenção da sua argumentação: defender a necessidade de transferir fatores
(essencialmente mão-de-obra e capital) do setor agrícola para os demais setores
GDHFRQRPLD RXRTXHHOHFKDPRXGHSDVVDJHPGD´]RQDµGHHFRQRPLDQDWXUDO
para o nível 2, da economia de mercado). Rangel resumiu esse argumento da
seguinte maneira:

IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil


2%UDVLOUHSLWDPRVpXPDHFRQRPLDVXEGHVHQYROYLGDRTXHVLJQLÀFD
que, ao lado de um pequeno setor capitalista, tem enormes reservas
de mão-de-obra empregadas em condições pré-capitalistas, parte
dentro da economia e parte, a maior, fora dela. O desenvolvimento
da economia brasileira supõe, pois: primeiro, a gradual transferência
da mão-de-obra empregada em condições naturais para a economia
de mercado (incorporação ao esquema nacional da divisão do
trabalho); segundo, a expansão do setor capitalista a custa dos pré-
FDSLWDOLVWDV 5$1*(/D 

101
Deve-se destacar que essa perspectiva é observada nas análises rangelianas desenvolvidas entre os
DQRVH1RVDQRVVHJXLQWHVFRQIRUPHVHUiUHWRPDGRSRVWHULRUPHQWH QRVXEWySLFRGHVLJQDGR
DWUDWDUHVSHFL¿FDPHQWHGDTXHVWmRDJUiULD ,JQDFLR5DQJHODSUHVHQWDULDXPDHVSpFLHGHUHYLVmRGHVVD
perspectiva analítica.

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

Em 'XDOLGDGH %iVLFD GD (FRQRPLD %UDVLOHLUD   R DXWRU GHL[RX


explícito que a dualidade brasileira não se resumia a coexistência de atividades
HFRQ{PLFDV FDSLWDOLVWDV H SUpFDSLWDOLVWDV PDV ´DVSHFWRV EHP GHÀQLGRV GH
WRGDV DV HWDSDV GR GHVHQYROYLPHQWR GD VRFLHGDGH KXPDQDµ 6HQGR DVVLP
nessa percepção, a economia brasileira seria composta pelo:

comunismo primitivo, nas tribos selvagens; certas formas mais ou


menos dissimuladas de escravidão, em algumas áreas retrógradas,
onde, sob a aparência de dívidas, se compram e se vendem, não
raro, os próprios homens; o feudalismo, em diversas formas, um
pouco por todo o país; o capitalismo em todas as suas etapas,
PHUFDQWLO LQGXVWULDO H ÀQDQFHLUR $OpP GH WXGR LVVR R FDSLWDOLVPR
de Estado que, do ponto de vista formal, pode ser confundido com o
VRFLDOLVPR 5$1*(/D 

Diante dessas circunstâncias, das particularidades da realidade


brasileira, Rangel chamou a atenção para o fato de que as teorias estrangeiras
não deveriam ser meramente importadas pelas análises que se empenhassem
em compreender essa realidade102 ´VXL JHQHULVµ 6HQGR DVVLP MXVWDPHQWH
por perceber a economia brasileira ser constituída por “aspectos de todas as
HWDSDVGRGHVHQYROYLPHQWRGDVRFLHGDGHKXPDQDµpTXHRDXWRUSURS{VXPD
´H[SOLFDomRVLVWHPDWL]DGDµGHVVDUHDOLGDGH1DVSDODYUDVGHOH

Houve quem pretendesse também explicar a história do Brasil como


importação de formas e culturas estrangeiras, sem atentar para o
fato de que realmente vamos construindo um edifício original e que,
se aqui ressurgem institutos de outras eras que a história clássica
registra, a única razão disso está em que a história da civilização não
pQHPPLODJUHQHPDFDVR 5$1*(/D 

6HJXLQGRHVVHUDFLRFtQLR5DQJHODÀUPRXDLQGDTXHDVOHLVGDHFRQRPLD
EUDVLOHLUDVmR´SHFXOLDUHVµHDJHP´XPDVVREUHDVRXWUDVµHPXPSURFHVVRGH
FRQVWDQWHFRQÁLWRDÀPGHVHHVWDEHOHFHUTXDOGHVVDVOHLVLPSRUiVXD´GLQkPLFD
HVSHFtÀFDµDRVLVWHPD2UHVXOWDGRGHVVHFRQÁLWRGHVVD´XQLmRGLDOpWLFDµ RX
´XQLGDGHGHFRQWUiULRVµ VHULDXP´VLVWHPDRULJLQDOµGRWDGRGHGLQkPLFDSUySULD
5DQJHOD 6REUHHVVDGLQkPLFDHOHHVFODUHFHX´0XGDPRVWHUPRV

102
(VVHWLSRGHD¿UPDomRSRGHVHUREVHUYDGRHPJUDQGHSDUWHGRVLQWHOHFWXDLVGRVDQRVQRWDYHO-
mente nos isebianos e cepalinos.

D
D 240
HPFRQÁLWR²HDKLVWyULDGHVVDPXGDQoDpRTXHKiGHHVSHFtÀFRQDKLVWyULDGR
%UDVLO²HPERUDRSUySULRFRQÁLWRFRQWLQXHµ103.
Nesse sentido, ele deixava bem claro qual era a sua intenção: ordenar e
VLVWHPDWL]DUD´LGpLDSUHOLPLQDUµTXHHOHWLQKDGHVVHSURFHVVRDÀPGHTXH´QRV
torne capazes não apenas de prever a marcha dos acontecimentos, mas nela
LQWHUYLUSDUDGLULJLURSUySULRSURFHVVRµ 5DQJHOD (VVHDOLiVpXP
princípio visivelmente presente na teoria rangeliana o qual pode ser resumido na
ideia de FRQKHFHUSDUDLQWHUYLUOu seja, a teoria desenvolvida por Rangel foi sua
´DUPDGHFRPEDWHµQRFRQÁLWRGHFODVVHVMiTXHDSDUWLUGHODHOHHVWDEHOHFHX
parâmetros de intervenção na sociedade brasileira os quais delimitavam os
papéis a serem desempenhados por cada uma das classes sociais.
Partindo desse princípio, e com base na teoria da dualidade é que Ignacio
Rangel escreveu sua compreensão da história brasileira. E na sua tentativa de
´KLVWRULFL]DUDVOHLVHFRQ{PLFDVµHOHGHÀQLXTXHDKLVWyULDGR%UDVLOWHYHLQtFLRFRP
DSDVVDJHPGHXP´FRPXQLVPRSULPLWLYRµ TXHGRPLQDYDFRPRVLQGtJHQDV SDUD
o regime escravista. Uma vez que a teoria da dualidade é o modelo explicativo
que Ignacio Rangel desenvolveu para abordar as transformações econômicas
no Brasil (as que estariam em curso e as que deveriam ocorrer) e, a partir dela,
DKLVWyULDGRSDtVFRPDH[SOtFLWDÀQDOLGDGHGHQHODLQWHUYLUDFRPSUHHQVmRGD
análise rangeliana deve, necessariamente, partir da WHRULDEiVLFDGDGXDOLGDGH
brasileira.

Considerações Finais

Visando compreender o porquê de a industrialização ter ocorrido IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
sem reforma agrária prévia, Rangel desenvolveu um modelo original e bem
estruturado no qual não só a economia nacional foi discutida, mas a história
do Brasil de uma maneira geral. O que se constata é que a teoria da dualidade
é uma leitura histórica do processo de crescimento econômico brasileiro e não
se encerra numa demonstração da historicidade dos fatos que apresentou, mas
ela é, essencialmente, uma tentativa de compreender a dinâmica da economia

103
Retomando as palavras de Rangel: “As leis da economia brasileira são, em certo sentido, próprias,
peculiares. As diferentes economias que nela coexistem não se justapõem mecanicamente. Ao contrário,
DJHPXPDVVREUHDVRXWUDVDFKDPVHHPFRQVWDQWHFRQÀLWRDYHUTXDOLPSRUiVXDGLQkPLFDHVSHFt¿FD
ao sistema. Noutros termos, estão em unidade dialética, unidade de contrários. A resultante não é nem
XPQHPRXWURGRVWHUPRVGRFRQÀLWRPDVXPVLVWHPDRULJLQDOGRWDGRGHGLQkPLFDSUySULD´ 5$1*(/
D 

D
D 241
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

GRSDtVFRPDÀQDOLGDGHYLVtYHOGHQHODLQWHUYLU104. Em linhas gerais, as análises


apresentadas por Rangel teorizavam medidas que pudessem impulsionar o
GHVHQYROYLPHQWRHFRQ{PLFRGRSDtVGHVID]HQGRRV´SRQWRVGHHVWUDQJXODPHQWRµ
que fossem apresentados no decorrer desse processo.
Já no que se refere aos diferentes grupos sociais (os trabalhadores,
rurais e urbanos, os industriais, os intelectuais) e ao Estado, suas teorizações se
GHUDPQRVHQWLGRGHGHÀQLURV´SDSpLVVRFLDLVµTXHOKHVFDEHULDDÀPGHTXH
o crescimento econômico brasileiro fosse mantido. Na abordagem de Rangel,
diferente da comunista, a classe trabalhadora estaria muito longe de ser o
personagem central na condução do Estado socialista o qual, aliás, não nasceria
de uma revolução dos trabalhadores, que tomariam o controle decisório, mas de
revoluções graduais, resultantes da dinâmica das dualidades brasileiras.
Deve-se destacar o fato de que o maranhense Ignacio de Mourão Rangel
foi um economista autodidata que se tornou um importante tecnocrata do Estado,
mas que se mantém praticamente desconhecido nos círculos acadêmicos.
As poucas análises ao seu respeito foram realizadas essencialmente por
economistas os quais, com unanimidade, apontam a sua independência e
originalidade teórica105.
Entretanto, ao resgatar informações referentes à sua atuação nos quadros
burocráticos do Estado, bem como o núcleo dos tecnocratas com os quais ele
DWXRX SHUFHEHVH TXH HVVD ´LQGHSHQGrQFLD LQWHOHFWXDOµ GHYH VHU UHODWLYL]DGD
uma vez que foi a partir das temáticas discutidas pelo grupo da Assessoria, do
ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) e da CEPAL (Comissão Econômica
da América Latina e Caribe) que Rangel desenvolveu as bases da sua teoria.
Além disso, embora Rangel tenha se desvinculado do PCB (Partido
&RPXQLVWD %UDVLOHLUR  HP  DR TXDO HOH KDYLD VH ÀOLDGR QRV DQRV 
p LQWHUHVVDQWH SHUFHEHU TXH DV VXDV DQiOLVHV FRQÀJXUDP XP PRGHOR WHyULFR
(pautado na teoria GD GXDOLGDGH básica) no qual as questões discutidas pelos
FRPXQLVWDV FRPRDLGpLDGH´UHYROXomRDJUiULDµSRUH[HPSOR IRUDPUHDYDOLDGDV
104
Um bom exemplo disso é que a teoria da dualidade desenvolvida por Ignacio Rangel partiu das pre-
missas deixadas pelo “planejador soviético” Nikolai Kondratieff com o objetivo, ao que tudo indica, de
estabelecer uma cronologia (com a intenção inclusive de prever os futuros comportamentos da economia
EUDVLOHLUD QDTXDOHVWDULDPGH¿QLGRVRVSHUtRGRVGHH[SDQVmRHUHFHVVmRGDHFRQRPLDEUDVLOHLUD(VVD
KLSyWHVHSDUWHGDVHJXLQWHD¿UPDomRGH5DQJHO E ³FODURHVWiTXH.RQGUDWLHIIQmRSRGLDWHU
ido além de 1920, pois dele não há notícia desde os últimos anos daquela década, mas a extrapolação é
perfeitamente admissível”.

105
- Dentre esses autores estão: Armen Mamigonian, Márcio Rego, Bresser Pereira e Ricardo Bielscho-
wsky.

D
D 242
(P XP DUWLJR GH  5DQJHO UHDÀUPRX VHX ´HVTXHUGLVPRµ H
VHX HVIRUoR ´SRU WUDoDU SDUD R SDtV FDPLQKRV SURJUHVVLVWDV FLHQWLÀFDPHQWH
mapeados, livres do voluntarismo utopizante [...]107. Mas é interessante perceber
como esse mesmo esquerdismo, que resultou no fechamento do ISEB (o qual ele
integrou) e no afastamento de Jesus Soares Pereira (seu amigo da Assessoria
Econômica) dos cargos burocráticos do Estado, não afastou Ignacio Rangel
de suas funções tecnocráticas. Acredita-se que essa situação se deveu à sua
habilidade política, e o exemplo mais representativo disso foi a intervenção do
´GLUHLWLVWDµ 5REHUWR &DPSRV HP GHIHVD GD VXD SHUPDQrQFLD QRV TXDGURV GR
%1'(PHVPRVHPR´DWHVWDGRLGHROyJLFRµUHTXLVLWDGRDRVRFXSDQWHVGHFDUJRV
político-administrativos na época.
&RQVLGHUDQGRTXHR´FDVREUDVLOHLURµVHGLIHUHQFLDYDGR´FDVRFOiVVLFRµ
(segundo os preceitos socialistas) de revolução democrático-burguesa, Rangel
passou a questioná-los, situação que culminou com a sua saída do PCB. O que
o intrigava era o fato de que, diferente do que era postulado pela ANL108 e pelo
PCB, o Brasil continuava se desenvolvendo economicamente, mesmo sem ter
UHDOL]DGRXPDUHIRUPDDJUiULDDPSODRXD´UHYROXomRDJUiULDµFRQWUDRODWLI~QGLR
feudal e antiimperialista.
$SDUWLUGDtQRÀQDOGRVDQRV,JQDFLR5DQJHOFRPHoRXDGHVHQYROYHU
sua interpretação acerca da revolução socialista que deveria se processar dentro
das condições apresentadas pela realidade brasileira. Sua WHRULDGDGXDOLGDGH
básica foi a forma encontrada para explicar essas questões. Segundo ela, como
já foi apontado, o caso brasileiro era uma particularidade, um caso sui generis na
história universal, dada a sua GXSOLFLGDGHcomo parte da economia mundial
(por suas relações com o comércio exterior) ela era vista como parte de um
complexo econômico, mas, por sua produção orientada ao mercado interno, era IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
uma economia capitalista pouco desenvolvida110.

106
O título desse artigo é “O direitismo da esquerda”, publicado na obra Ciclo, tecnologia e crescimento
(1982) e republicado no segundo volume das Obras Reunidas GH,JQDFLR5DQJHO  

107
5DQJHOE

108
Aliança Nacional Libertadora.

109
5DQJHOD

110
5DQJHOD

D
D 243
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

1D yWLFD UDQJHOLDQD GDGDV DV ´SDUWLFXODULGDGHV EUDVLOHLUDVµ111, o


processo revolucionário no país (diferente das economias centrais) seria parcial,
GLYLGLGRHP´GRLVSURFHVVRVTXHQRUPDOPHQWHQmRFRLQFLGHPQRWHPSRµ6HQGR
DVVLP LQYDULDYHOPHQWH HOH VHULD FRPSRVWR SRU XPD ´PHLD UHYROXomRµ QDV
UHODo}HVH[WHUQDVGHSURGXomR TXHVHFRPSOHWDULDSRURXWUD´PHLDUHYROXomRµ
(nas relações internas de produção)112. Desse modo, a passagem de um modo
de produção para outro seria um processo muito lento e gradativo no qual o
PRGR GH SURGXomR DQWHULRU FRQWLQKD HP VL PHVPR ´IXOFURVµ GR PRGR GH
SURGXomRVHJXLQWH2VRFLDOLVPRHVWDULDQRÀPGHWRGRHVVHSURFHVVRHQTXDQWR
´VXSHUDomRµGRPRGRGHSURGXomRFDSLWDOLVWD
Em sua interpretação da revolução democrático-burguesa no Brasil,
a qual culminaria com o estabelecimento de um Estado socialista, embora
se utilizando de referenciais teóricos russos (como Lenin, Kondratieff e M.
'UDJXLOHY  ,JQDFLR 5DQJHO GHÀQLX XP ´PRGHORµ GH (VWDGR EHP GLIHUHQWH GR
SUHFRQL]DGR SHORV VRFLDOLVWDV 1D VXD GHÀQLomR GH ´SDSpLV VRFLDLVµ SDUD RV
integrantes da Nação brasileira, a classe trabalhadora estaria muito longe de
ser o personagem central na condução do Estado socialista o qual, aliás, não
nasceria de uma revolução dos trabalhadores que tomariam o controle decisório
(a chamada ditadura do proletariado), mas de revoluções graduais, resultantes da
GLQkPLFDGDVGXDOLGDGHVEUDVLOHLUDV1HVVDVPHVPDVGHÀQLo}HVDWHFQRFUDFLD
é que deveria assumir a condução desse Estado. No projeto político-ideológico
proposto por Rangel, havia a intenção de criar um projeto de unidade entre as
FODVVHV´SURJUHVVLVWDVµPDVQHVVHFDVRHQWUHRVLQGXVWULDLVHRVODWLIXQGLiULRV
capitalistas. Sendo assim, diferente do modelo socialista, esse projeto não
FRQWUDULDYDGLUHWDPHQWHRVLQWHUHVVHVGRVODWLIXQGLiULRVMiTXHRÀPGR´DWUDVRµ
QRFDPSR DVVRFLDGRDRIHXGDOLVPR VHULDXPD´LPSRVLomRHYROXWLYDµGDVIRUoDV
produtivas e, além disso, com a expansão do capitalismo para o setor agrícola,
haveria uma aproximação entre os interesses dos latifundiários capitalistas e os
industriais.
Em sua atuação político-administrativa, Rangel realizou uma complexa
tarefa: tentou conciliar a defesa de seus interesses de classe com a formulação
GH XP PRGHOR WHyULFR SDXWDGR QRV LGHDLV ´HVTXHUGLVWDVµ GD UHYROXomR

111
As principais “particularidades” ou “anomalias” eram a crise agrária, a atuação dos monopólios de
SURGXWRVDJUtFRODVDLQÀDomRHXPDLQGXVWULDOL]DomRFRQWUiULDjGDVHFRQRPLDVFHQWUDLVMiTXHIRLLQL-
ciada pelo Departamento II da Economia (de bens de consumo) e não pelo Departamento I (de bens de
produção) , como ocorreu com as economias centrais.

112
5DQJHOD

D
D 244
VRFLDOLVWD 2 PHFDQLVPR HQFRQWUDGR SRU HOH SDUD UHVROYHU HVVD ´FRQWUDGLomRµ
foi a proposição de uma releitura da revolução democrático-burguesa para as
condições brasileiras, através da sua teoria GD 'XDOLGDGH %iVLFD. Nela, Rangel
GHPRQVWURX VHX ´DSRLRµ DR FRUSRUDWLYLVPR GH 9DUJDV ID]HQGR LQFOXVLYH D
clássica diferenciação desse modelo político-ideológico com os regimes fascistas
H WRWDOLWDULVWDV FRPR R À]HUDP $]HYHGR $PDUDO H 2OLYHLUD 9LDQQD QRV DQRV
 GRLV JUDQGHV IRUPXODGRUHV DGDSWDGRUHV  GD GRXWULQD FRUSRUDWLYLVWD
no Brasil), mas sem deixar de ser coerente com o seu modelo teórico, pautado
na teoria da dualidade.
Foi a partir da perspectiva dualista que Rangel resolveu a questão do
´DWUDVRµ FRQWLGR QD OHJLVODomR WUDEDOKLVWD 6H SRU XP ODGR 5DQJHO DVVRFLRX R
direito trabalhista à manutenção e expansão das relações de produção feudais
DRVHWRUXUEDQRSRURXWURHOHWDPEpPDÀUPRXTXH´RFRUSRUDWLYLVPREUDVLOHLUR
não implicava retorno algum, pois ainda não tínhamos sindicalismo moderno,
e correspondia aos interesses não apenas das indústrias e do patronato, como
WDPEpPDRVGDVSUySULDVPDVVDVWUDEDOKDGRUDVµ113.
Tal contradição, vista sob a perspectiva dualista, torna-se aparente,
já que para a teoria rangeliana, a CLT114, por excluir os trabalhadores rurais
(dos benefícios das leis trabalhistas), demonstrava a força política que os
´FRURQpLVµDLQGDGHWLQKDPQRVDQRVHQTXDQWR´VyFLRVPDLRUHVµ HPERUD
´UHWUyJUDGRVµ GDFRDOL]mRGHSRGHUTXHSUHYDOHFLDQDTXHOHPRPHQWR IDVH%GD
terceira dualidade).
A perspectiva dualista, portanto, para além de constituir os fundamentos
do modelo teórico rangeliano, foi fundamental na luta político-ideológica
que Rangel enfrentou dentro do aparelho de Estado. A partir de sua teoria
da dualidade, ele demonstrou sua interpretação sobre a história econômica IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
brasileira, formulou sua concepção de revolução brasileira e defendeu a posição
de uma elite intelectual na condução do processo político nacional.
3RUÀPFRQVLGHUDQGRWRGDVHVVDVTXHVW}HVFKDPDDDWHQomRRIDWRGH
que a teoria rangeliana da dualidade não esteja sendo estudada ao lado das
análises desenvolvidas pelos intelectuais da esquerda brasileira, tais como Alberto
3DVVRV*XLPDUmHV&DLR3UDGR-U1HOVRQ:HUQHFN6RGUpH-DFRE*RUHQGHU115.
113
5DQJHOD

114
Consolidação das Leis Trabalhistas.

115
5DQJHOLQFOXVLYHGHEDWHXFRP*RUHQGHURTXDOHPVXDREUD2escravismo colonial, questionou a
perspectiva rangeliana da dualidade que via a coexistência entre feudalismo e escravismo no Brasil.

D
D 245
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

Pois, assim como eles, Ignacio Rangel apresentou uma interpretação da história
do Brasil na qual as condições da revolução democrático-burguesa foram
discutidas, mas com uma variável fundamental: o fato de ele ter desenvolvido
suas análises a partir de uma posição privilegiada, dentro do aparelho de Estado.
A comemoração do centenário de Ignacio Rangel (cuja teoria ecoa de
discussões fundamentais dentro da esquerda brasileira e a qual, não obstante
alguns distanciamentos, se manteve como um ponto de diálogo durante sua
trajetória político-institucional), acaba sendo um convite à (re)visitar sua obra e a
GLVFXWLODVREQRYDVSHUVSHFWLYDVTXHHQÀPSRVVDPOHYiODDRFXSDUDSRVLomR
KLVWRULRJUiÀFDTXHHODPHUHFH

5HIHUrQFLDV

%,(/6&+2:6.<5LFDUGR RUJ &LQTXHQWD$QRVGH3HQVDPHQWRQD&HSDO trad.


9HUD5LEHLUR5LRGH-DQHLUR5HFRUG SS 
BRESSER-PEREIRA; REGO. Luís Carlos; José Márcio. Um mestre da economia
brasileira: Ignacio Rangel. In: MAMIGONIAN, Armen; REGO, José Márcio (orgs.). O
SHQVDPHQWRGH,JQDFLR5DQJHO6mR3DXOR(G
CRUZ, Paulo Roberto Davidoff Chagas. ,JQDFLR5DQJHOXPSLRQHLUR – o debate
econômico dos anos sessenta. Dissertação de Mestrado. Campinas, Unicamp,

MAMIGONIAN, Armen; REGO, José Márcio (orgs.). 2 SHQVDPHQWR GH ,JQDFLR
Rangel6mR3DXOR(G
025$(6-RmR4XDUWLPGH2SURJUDPDQDFLRQDO²GHPRFUiWLFRIXQGDPHQWRVH
permanência. In: 025$(6-RmR4XDUWLPGH'(/52,20DUFRV RUJV +LVWyULD
GRPDU[LVPRQR%UDVLOVol. IV, Campinas, Ed. da Unicamp, 2000.
5$1*(/,JQDFLR$'LQkPLFDGD'XDOLGDGH%UDVLOHLUD  ,Q2EUDV5HXQLGDV,
5LRGH-DQHLUR&RQWUDSRQWREžYROSS
BBBBBB $ +LVWyULD GD 'XDOLGDGH %UDVLOHLUD   ,Q 2EUDV 5HXQLGDV, Rio de

$VFUtWLFDVGH*RUHQGHUIRUDPUHEDWLGDVSRU5DQJHOHPXPDUWLJR LQWLWXODGR³'XDOLGDGHHHVFUDYLVPR
colonial”) publicado no terceiro volume da 5HYLVWD(QFRQWURVFRPD&LYLOL]DomR%UDVLOHLUD, em 1978.
Esse mesmo artigo foi republicado no segundo volume das Obras Reunidas de Ignacio Rangel. Segun-
do a teoria da dualidade, desenvolvida por Rangel, “a escravidão, salvo como exceção – antecipação,
sobrevivência ou acidente – numa sociedade feudal é, por certo, um contra-senso, mas numa sociedade
(e economia) externamente feudal, pode haver relações de produção essenciais de caráter escravista,
LQWHUQDPHQWH´ 5$1*(/E 

D
D 
-DQHLUR&RQWUDSRQWREžYROSS
BBBBBB $ LQÁDomR %UDVLOHLUD   ,Q 2EUDV 5HXQLGDV, Rio de Janeiro,
&RQWUDSRQWRžYROSS
BBBBBB  $ SUREOHPiWLFD SROtWLFD GR %UDVLO &RQWHPSRUkQHR   ,Q Obras
5HXQLGDV5LRGH-DQHLUR&RQWUDSRQWREžYROSS
BBBBBB $ 4XDUWD 'XDOLGDGH   ,Q 2EUDV 5HXQLGDV, Rio de Janeiro,
&RQWUDSRQWREžYROSS
BBBBBB  'R SRQWR GH YLVWD QDFLRQDO   ,Q 2EUDV 5HXQLGDV, Rio de
-DQHLUR&RQWUDSRQWREžYROSS
______. Desenvolvimento industrial do Brasil e suas características dominantes
 ,Q2EUDV5HXQLGDV5LRGH-DQHLUR&RQWUDSRQWREžYROSS

BBBBBB'XDOLGDGHEiVLFDGDHFRQRPLDEUDVLOHLUD  ,Q2EUDV5HXQLGDV, Rio
GH-DQHLUR&RQWUDSRQWRžYROSS
BBBBBB 'XDOLGDGH H &LFOR /RQJR   In: 2EUDV 5HXQLGDV, Rio de Janeiro,
&RQWUDSRQWREžYROSS
BBBBBB 'XDOLGDGH H ¶(VFUDYLVPR &RORQLDO   ,Q 2EUDV 5HXQLGDV, Rio de
-DQHLUR&RQWUDSRQWREžYROSS
BBBBBB(FRQRPLDEUDVLOHLUDFRQWHPSRUkQHD  2EUDV5HXQLGDV, Rio
GH-DQHLUR&RQWUDSRQWREžYROSS
BBBBBB,QWURGXomRDR'HVHQYROYLPHQWR(FRQ{PLFR%UDVLOHLUR  ,QObras
5HXQLGDV5LRGH-DQHLUR&RQWUDSRQWREžYROSS
BBBBBB2GHVHQYROYLPHQWRHFRQ{PLFRQR%UDVLO  ,Q Obras 5HXQLGDV, Rio
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
GH-DQHLUR&RQWUDSRQWRžYROSS
BBBBBB7H[WRVVREUHD4XHVWmR$JUiULD  ,Q2EUDV5HXQLGDV, Rio de
-DQHLUR&RQWUDSRQWRžYROSS
BBBBBB,QiFLR VLF 5DQJHO GHSRLPHQWR 5LRGH-DQHLUR&HQWURGD0HPyULD
GD(OHWULFLGDGHQR%UDVLOS
______. Entrevista com o professor Ignacio de Mourão Rangel. Revista Geosul.
)ORULDQySROLVQžDQR,9žVHPHžVHPSS
62'5e 1HOVRQ :HUQHFN ,QWURGXomR j 5HYROXomR %UDVLOHLUD Rio de Janeiro:
FLYLOL]DomREUDVLOHLUD
PEDRÃO, Fernando Cardoso. Ignacio Rangel. Estud. av., São Paulo , v. 15, n.
DEU'LVSRQtYHOHPKWWSZZZVFLHOREU$FHVVRHPGH]

D
D 247
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

A categoria dualidade básica como


uma interpretação do Brasil
0DULD0HOORGH0DOWD

Introdução

Ignacio Rangel foi um pensador do Brasil. Sua contribuição transcende a


de um estudioso em temas e questões brasileiras. Tem a cara da complexidade
desse país que, segundo ele, seria irretratável por teorias estrangeiras, precisava
de uma teoria própria que descrevesse seus movimentos tão particulares e, ao
mesmo tempo, tão conectados às inquietações da ordem externa.
Maranhense da cidade de Mirador, nascido no segundo décimo do século
;;HPQRGLDGHIHYHUHLUR6HXSDLHUDXPMXL]FUtWLFRGRJRYHUQRORFDOH
muito provavelmente por isso, era transferido constantemente entre localidades
no interior do Estado. O menino Rangel teve que se construir intelectualmente
como autodidata, na medida em que em muitas das cidades em que viveu não
SRVVXtDPHVFRODV2SUySULRSDLIRUDDÀJXUDIXQGDPHQWDOQDIRUPDomRGRUDSD]
HVXDSHUFHSomRGRÀOKRDFDERXSRU´SUHGHVWLQiORµSDUDRGLUHLWRGHVGHFHGR
 (PIRLSDUDDFDSLWDOID]HURJLQiVLR8PSRXFRSHORFDUiWHUFXULRVR
HFUtWLFRXPRXWURWDQWRSHODLQÁXrQFLDGHVHXSDLTXHOKHFRQWDYDGHVGHFHGR
as venturas e desventuras da Coluna Prestes, Rangel acabou integrando-se à
5HYROXomRGHSDUWLFLSDQGRGDVXEOHYDomRGRž%DWDOKmRGH&DoDGRUHV
6XDVDQKDUHYROXFLRQiULDQmRDUUHIHFHXQXQFDPDVHPSDUWLXSDUDPDLV
uma ação: a Aliança Nacional Libertadora. Desta vez terminou preso.
Enviado para cumprir pena no Rio de Janeiro participou de uma espécie
de Universidade Popular do presídio que, segundo o próprio, tratava de dar
cabo do estudo de alemão, francês, inglês, sociologia, economia e matemática
5DQJHO /LEHUWDGRGHSRLVGHGRLVDQRVUHWRUQRXDR0DUDQKmRGHRQGHIRL
impedido de sair durante oito anos.
 -iQHVWDpSRFDFRPHoRXDUHÁHWLUVREUHRVSUREOHPDVGRSURMHWRQDFLRQDO

D
D 248
dominante. Percebia que o país vivia os estertores de uma crise e que não era
possível pensar o Brasil sem esta dimensão. Por isso Rangel foi um dos autores
TXH PDLV LQÁXHQFLRX D SURGXomR FUtWLFD VREUH D TXHVWmR GR GHVHQYROYLPHQWR
brasileiro sob crise. Seu trabalho marca as penas de autores fundamentais
para a construção do debate, inclusive universitário, no Brasil, como é o
caso da professora emérita Maria da Conceição Tavares, que já se declarou
muitas vezes rangeliana em sua análise sobre o desenvolvimento brasileiro.
Contraditoriamente, não é amplamente reconhecido como um pensador
importante na academia brasileira.
Rangel, como teórico, ainda que não acadêmico, organizava seu
pensamento a partir de um esquema analítico que construíra com base no método
dialético de aplicação do materialismo. A este esquema de compreensão da
realidade brasileira chamou de tese da dualidade básica da economia brasileira.
O objetivo deste trabalho é mergulhar na compreensão da tese rangeliana da
GXDOLGDGH EiVLFD SDUD YHULÀFDU D SRVVLELOLGDGH GH UHFXSHUiOD FRPR XPD ULFD
chave de leitura, no campo da economia política, para a interpretação do Brasil.

A dualidade básica e seu método

A tese da dualidade básica corresponde a uma adaptação original do


materialismo histórico e da teoria econômica para a análise do caso brasileiro.
Desta análise o autor pretendia retirar leis gerais da formação histórica
e de funcionamento da economia brasileira, descrevendo o processo de
desenvolvimento do país, no campo da economia política.
Rangel via a história como uma sequência de etapas nas quais se IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
articulavam os modos de produção da vida, suas relações sociais de produção e o
desenvolvimento das forças produtivas. Rangel considerava que, correspondentes
a tais formas estruturais, existiam formas superestruturais que derivavam e

116
Podemos destacar sua referência na introdução a sua obra “Da substituição de importações ao capi-
WDOLVPR¿QDQFHLURHQVDLRVVREUHHFRQRPLDEUDVLOHLUD´jSRVLomRLQRYDGRUDGH5DQJHOQRGHEDWHVREUH
o padrão de acumulação brasileiro que continha uma forte crítica a interpretação estagnacionista do
GHVHQYROYLPHQWREUDVLOHLURQDHQWUDGDGRVDQRV1HVWHWH[WR7DYDUHV  D¿UPDVREUH5DQJHO
TXH³VXDVLGHLDVRULJLQDLVVREUHLQÀDomRVXSHULQYHVWLPHQWRHFDSDFLGDGHRFLRVDIRUDPOHYDQWDGDVDQWHV
que o sistema entrasse em crise total e não deixa de ser uma ironia para um intelectual crítico que o
governo posterior aplicasse “ortodoxamente” não poucas das receitas “heterodoxas” recomendadas por
HOHQRVHXOLYUR,QÀDomR%UDVLOHLUDQRTXHUHVSHLWDD¿QDQFLDPHQWRS~EOLFRHPHUFDGRGHFDSLWDLVFRP
um sentido histórico inteiramente distinto daquele que aconselhava o autor (p.18).”

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

eram limitadoras desta infraestrutura117. Cada etapa de desenvolvimento deste


conjunto dialético de estrutura e superestrutura corresponderia a um modo
GH SURGXomR HVSHFtÀFR $ VHTXrQFLD GHVWDV HWDSDV SRUpP QmR HVWDULD SUp
GHWHUPLQDGD H SRGHULD LQFRUSRUDU XPD VpULH GH HVSHFLÀFLGDGHV GLVWLQWLYDV $
dinâmica de seu argumento preservava a essência dialética do materialismo,
ainda que permeado por um tanto de esperança evolucionista, ou seja, seguia a
lógica de que um modo de produção se transformaria em outro, mais avançado,
no momento em que as suas relações de produção deixassem de estimular o
desenvolvimento das forças produtivas e passassem a entravá-lo.
 1RFDVRSHULIpULFRPDLVHVSHFLÀFDPHQWHQRFDVREUDVLOHLURTXHpRVHX
YHUGDGHLURREMHWR5DQJHOGHVWDFDYDTXHDVHVSHFLÀFLGDGHVHUDPIXQGDPHQWDLV
para se perceber como a sequencia de etapas brasileiras se distinguira da
trajetória do centro capitalista durante seu processo de formação. Assim, abriu
espaço em sua teoria para a adaptação crítica das teses econômicas existentes
no campo do marxismo e da teoria econômica ocidental para a análise do Brasil,
HPVXDLQVHUomRHVSHFtÀFDQDHFRQRPLDPXQGLDOHQDKLVWyULDGHIRUPDomRGR
capitalismo.
Segundo Rangel, o elemento fundamental que diferenciaria, desde
o ponto de partida, a análise de uma economia como a economia brasileira
seria a evolução das suas relações com as economias centrais. Tais relações,
combinadas com a interação entre o desenvolvimento das forças produtivas e das
relações sociais de produção, dariam origem aos processos sociais, econômicos
e políticos brasileiros. Em larga medida as relações externas são determinantes
do desenvolvimento das forças produtivas internas e, consequentemente,
também das relações de produção internas.
Não se poderia encontrar um método mais marxista autêntico no sentido
de preocupar-se em ser materialista, histórico e dialético. Materialista por
jamais perder o concreto como ponto de partida e de retorno do processo de
FRPSUHHQVmRKLVWyULFRSRUSRGHUSHUFHEHUFRPRDVHVSHFLÀFLGDGHVKLVWyULFDV
YmR LQÁXHQFLDU DV WUDMHWyULDV GH GHVHQYROYLPHQWR H GLDOpWLFR SRU VH SUHRFXSDU
com todas as contradições presentes como constituintes do movimento do
todo. No entanto Rangel foi obscurecido no debate da história do pensamento
econômico brasileiro por ser considerado um determinista, dualista e por isso
QDGDGLDOpWLFR&RPRVHUiTXHLVVRRFRUUHX"
117
As formas superestruturais eram muito importantes na análise de Rangel, pois sendo compostas das
leis, das formas políticas de governo e sucessão, bem como de todo o aparato da consciência social (em
larga medida ideológico), traziam em si o espaço de concretude da disputa das ideias. Para ele, conhecer
as leis de um país era uma parte fundamental do processo de compreensão da sua formação histórica, na
medida em que é nas leis que se inscreve a história dos vencedores.

D
D 250
A dualidade básica enquanto categoria e enquanto teoria

'XDOLGDGH %iVLFD GD (FRQRPLD %UDVLOHLUD IRL SXEOLFDGR HP 


pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiro (ISEB) na série 7H[WRV EUDVLOHLURV
GH HFRQRPLD. Neste período, a noção de dualidade estava associada a dois
grupos: a direita agrarista conservadora e o stalinismo ortodoxo118. Apesar
de representarem pensamentos bastante opostos do ponto de vista político,
ambos eram largamente contestados pelo pensamento crítico libertador da
época. 5Dt]HVGR%UDVLO e )RUPDomRGR%UDVLO&RQWHPSRUkQHR, respectivamente
de Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Junior, já tinham sido publicados
há cerca de duas décadas e eram o norte do pensamento daqueles, como
GL] $QW{QLR &kQGLGR ´TXH DGRWDYDP SRVLo}HV GH HVTXHUGD FRPR HX SUySULRµ
&kQGLGR  S [LLL  $VVLP QDTXHOH PRPHQWR KLVWyULFR R %UDVLO GXDO HUD R
Brasil conforme interpretado por aqueles que tinham como norte uma orientação
metodológica ou naturalista, ou de tipo positivista, apresentando uma visão
hierárquica e/ou autoritária da sociedade.
 5DQJHO QmR WLQKD QHQKXPD GDV GXDV ÀOLDo}HV &RPR Mi PHQFLRQDPRV
sua juventude foi marcada por pensamentos e ações revolucionários, o que o
incompatibilizava com o pensamento de direita. Do outro lado, não havia entrado
no Partido Comunista Brasileiro (PCB) por possuir uma interpretação teórica
WmR KHWHURGR[D TXH QmR FRQVHJXLD VH LGHQWLÀFDU FRP D FRUUHQWH SULQFLSDO GR
partido. A visão de dualidade rangeliana era (e é) extremamente original, como
veremos a seguir. Neste ponto, nos parece razoável supor que o autor fez recurso
a expressões já institucionalizadas no âmbito de várias teorias com vistas à
UHVVLJQLÀFiODV QD LQWHQomR GH FULDU XPD QRYD WHRULD SDUD D FRPSUHHQVmR GR
Brasil, porém falhando simbolicamente na construção de novas referências.·. IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
A categoria de dualidade básica aparece na obra de Rangel sempre
DSOLFDGDDXPFRQWH[WRKLVWyULFR1ROLYURGHMiDQWHULRUPHQWHPHQFLRQDGR
o autor assume no prefácio sua tarefa crítica e seu elemento conservador. Lá
DÀUPD TXH R FRQFHLWR GH GXDOLGDGH QmR p QRYR PDV TXH DLQGD QmR VH KDYLD
H[WUDtGRGHOHWRGDVDVVXDVFRQVHTXrQFLDVHTXHXWLOL]iORUHÁHWLULDVXDSRVLomR
de não abandonar a ciência econômica estrangeira, ou “demoli-la, para, sobre
os seus escombros erigir uma ciência autóctone, mas, ao contrário, de salientar
XP DVSHFWR SUySULR GH QRVVD HFRQRPLD D ÀP GH IDFLOLWDU R HPSUHJR GRV
LQVWUXPHQWRVFLHQWtÀFRVWDLV TXDLV RVLPSRUWDPRVHTXHQmRUDURVmRLQ~WHLV
VHPHVWDSUHFDXomRµ 5DQJHO>@S $VVLPDÀUPDYDTXHVHXV

118
Sobre esta questão ver Freitas (2000).

D
D 251
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

estudos o haviam levado a conclusão de que o que há de peculiar no Brasil é a


dualidade, no sentido de que todas as nossas instituições e categorias possuem
dupla natureza, e se apresentam como coisas diversas, se vistas do interior ou
do exterior, partindo imediatamente para aplicá-la à formação histórica da nação
brasileira, cujo ponto de partida seria a abertura dos portos.
Em todos os seus textos Rangel tem sempre como referência analítica
sua teoria da dualidade básica. Seus textos sobre a questão agrária, sobre
tecnologia e crescimento e sobre economia brasileira e projeto nacional, escritos
no calor de debates fundamentais na história brasileira do século XX, possuem a
marca indelével desta teoria original. Por isso não é possível pensar Rangel sem
compreender esta estrutura básica. Então vamos a ela.
A primeira questão a ser compreendida é que a categoria dualidade
pretende descrever a complexidade da formação histórico-social predominante
em um período no Brasil. Deste modo, podemos dizer que esta categoria cumpre
RSDSHOGHLGHQWLÀFDURVPRGRVGHSURGXomR DUWLFXODomRGLQkPLFDHQWUHHVWUXWXUD
e superestrutura) existentes no Brasil em cada época. A condição histórica de
se ter constituído como nação tardiamente em relação aos países do centro
capitalista, na compreensão de Rangel, trazia a necessidade de apreciar sempre
o movimento, de forma simultânea, de uma perspectiva interna e externa.
Assim, cada dualidade da economia brasileira como um todo seria originada
a partir da dupla determinação das relações internas e externas, que também
vão consubstanciar a dualidade presente em todas as instituições econômicas
brasileiras.
Vale a pena esclarecer que Rangel articula os dois lados (interno e
H[WHUQR GDVGXDOLGDGHVWRGRRWHPSRHRVLGHQWLÀFDFRPRSDUWHVGHXPDPHVPD
dinâmica de desenvolvimento, construindo uma unidade de contrários, mas uma
unidade, ainda assim preferiu descrevê-la como dualidade.
Como em toda análise dialética, nosso autor introduz um movimento que
ao mesmo tempo é a essência e a explicação da tese da dualidade brasileira.
Cada dualidade é um modo de produção complexo que combina elementos de
diferentes modos de produção já referenciados na análise da história europeia/
mundial. Os modos de produção brasileiros (dualidades) se sucedem segundo
uma lógica que se expressa em cinco leis que organizam os movimentos dos
componentes da dualidade.
Cada dualidade possui um polo externo e um polo interno e cada polo
possui dois lados.
O polo interno expressa a convivência de dois modos de produção no

D
D 252
país. O lado interno do polo interno diz respeito à relação interna de produção
mais arcaica, ainda que predominante em parte do tempo. É no lado interno do
polo interno que está a forma a ser superada. O lado externo do polo interno
representa a nova forma de organização produtiva que começa minoritariamente
convivendo com a antiga até o momento em que o desenvolvimento das forças
produtivas indica que é a hora de superar-se o modo arcaico e substituí-lo. O
lado externo do polo interno comunica-se com o lado interno do polo externo na
dualidade.
O polo externo representa as relações do país com o exterior tanto em
sua face de inserção no mercado mundial, como em sua face de recepção do
movimento mundial. O lado interno do polo externo é a forma por meio da qual
o país se relaciona com o exterior, e que traz em si o modo de produção mais
adiantado. Segundo Rangel, será esta a forma de produção que ocupará o lado
H[WHUQRGRSRORLQWHUQRTXDQGRDTXHOHVHPRGLÀFDU)LQDOPHQWHRODGRH[WHUQR
do polo externo representa o modo de produção vigente no centro do sistema.
Assim, os lados interno e externo do polo interno, bem como o lado interno
do polo externo dizem respeito às formas das relações sociais de produção e às
forças produtivas vigentes no Brasil, enquanto o lado externo do polo externo
retrata o andamento das relações sociais e forças produtivas em curso no centro
capitalista, ao qual o país está submetido.
A caracterização dos polos e dos lados da dualidade é importante para
sua compreensão, mas ainda não revelam sua chave analítica, qual seja, o seu
movimento. Rangel pretendia apresentar uma leitura baseada na lógica dialética,
portanto o aspecto essencial para sua compreensão está na sua capacidade de
descrever o movimento das estruturas caracterizadas.
A descrição do movimento transformador das dualidades foi sumariado IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
pelo autor nas cinco leis de funcionamento da dinâmica das dualidades. As leis
foram apresentadas do modo a seguir:
1. o desenvolvimento das forças produtivas muda a dualidade, mas
a mudança ocorre apenas em um dos polos;
2. os polos interno e externo mudam alternadamente;
3. o polo muda pelo processo de internalizar o modo de produção
existente no seu lado externo;

119
Vale destacar as semelhanças entre a visão de Rangel e a formulação da teoria da dependência de
Cardoso e Faletto (1967), no entanto tais autores não possuem referências explícitas ao economista
maranhense.

D
D 253
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

4. R ODGR H[WHUQR GR SROR HP PXGDQoD WDPEpP VH PRGLÀFD


incorporando elementos de um modo de produção mais avançado;
5. as mudanças na dualidade brasileira são provocadas por
mudanças no centro dinâmico.
Assim, as leis de movimento garantem que cada polo muda sempre
sozinho e que uma mudança no polo externo será sempre seguida por uma
mudança do polo interno e vice-versa. Não é possível que um dos polos mude
sem implicar em mudanças no outro, ou que mude novamente antes do outro
polo o acompanhar. A dinâmica da mudança é sempre a incorporação do externo
para dentro. O que implica, em última instância, que o movimento detonador
do processo de mudança vem sempre de fora. Esta visão evidencia o grau de
GHSHQGrQFLD TXH 5DQJHO LGHQWLÀFDYD QDV GXDOLGDGHV EUDVLOHLUDV 3RU LVVR
também, muitos o chamaram de determinista.
A interpretação deste trabalho como determinista padece da
incompreensão de que se trata de uma explicação para a história do Brasil.
A tese da dualidade básica, ao descrever a história, fala de algo que já está
determinado e aponta para uma dinâmica que pode ser mantida ou rompida.
Porém, permanece a questão de se o rompimento teria que também vir do
centro do capitalismo, ou se está aberto um movimento nacional ou da periferia
articulada como possível saída. O devir presente na análise de Rangel restringe-
se à quarta dualidade que mudou fartamente de caracterização a partir de sua
análise de conjuntura de cada período (apesar de sua esperança desejar sempre
encontrar o socialismo no lado externo do polo externo na quarta dualidade).
Para Rangel a dinâmica do centro também segue uma lógica, que é a do
ciclo de Kondratieff. Segundo Kondratieff a economia capitalista se desenvolve
em ciclos de aproximadamente 50 anos. Esses ciclos longos são relacionados
com o processo de difusão das inovações tecnológicas, cuja dinâmica implica
em uma progressiva substituição técnica, em que a onda de investimento
produtivo gera emprego até o ponto onde a nova técnica passa a dominar a
anterior. Esta dominância determina uma obsolescência da tecnologia antiga que
determinará um sacrifício de recursos materiais e humanos correntemente em
uso, se expressando na forma de crise. A superação da crise é dada pela própria
dinâmica do ciclo, sob o qual após um período de crise, em que há queima de
capital e desemprego de trabalho, abre-se espaço, posterior à maturação no
último ciclo de investimento, para a introdução progressiva de uma novíssima
técnica, restaurando seu movimento ascendente por meio do investimento em
nova tecnologia.

D
D 254
A questão de Rangel era que, no entanto, no Brasil não era possível
LGHQWLÀFDU D GLQkPLFD GRV FLFORV GH .RQGUDWLHII QD PHGLGD HP TXH pUDPRV
uma economia dependente do ponto de vista tecnológico. Nossa dinâmica de
inovação não era traçada internamente. Rangel era bem radical desse ponto
de vista, supunha totalmente ilusória para o Brasil a hipótese de independência
WHFQROyJLFDLPHGLDWDIXQGDPHQWDOPHQWHSHODDXVrQFLDGHXPVHWRUÀQDQFHLUR
estruturado. De seu ponto de vista, o efeito fundamental deste ciclo longo na
dualidade brasileira é que na fase recessiva do ciclo há uma mudança dos
parceiros da aliança de poder que domina as relações político econômicas. Isto
RFRUUHSRUTXHDHFRQRPLDGHSHQGHQWHÀFDIRUoDGDDYROWDUVHSDUDGHQWURQD
medida em que há um estrangulamento do comércio exterior nos momentos de
crise na infraestrutura, passa por rupturas, seguindo a lógica dos ciclos longos
de Kondratieff.
Põe-se então nossa última questão: como este complexo esquema
WHyULFRGDULDRULJHPDXPDLQWHUSUHWDomRGR%UDVLO"

A dualidade como uma interpretação do Brasil

A teoria da dualidade de Rangel foi construída como uma crítica marxista


ao etapismo que vigorava na ortodoxia do pensamento deste campo sob o
stalinismo ou no marxismo destituído de sua dialética. O próprio Rangel, em
OXWDUDMXQWRD$OLDQoD1DFLRQDO/LEHUWDGRUDWHQGRFRPRLQWHUSUHWDomRGH
referência o etapismo ortodoxo. Acreditava que sem a reforma agrária não seria
possível que o Brasil se industrializasse. Em seguida assistiu a primeira fase
do processo substitutivo de importações, precisou parar para compreender os IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
limites da abordagem que seguira e chegou à teoria da dualidade. Não rompeu
completamente com a visão de que o desenvolvimento ocorre em etapas, mas
GHL[RX GH DFHLWiODV FRPR À[DV RX SUHGHWHUPLQDGDV FRQIRUPH D KLVWyULD GH
outros países que pudessem ser considerados mais avançados que o Brasil.
Em sua primeira formulação a teoria da dualidade partia da concepção de que
“fora da história, a economia se reduz à lógica, à dialética e a uma gnosiologia,
que tanto são econômicas como físicas ou químicas. Não existe, pois, economia
‘pura’ (…). A ciência econômica, porém, varia com o modo de produção e este
PXGD LQLQWHUUXSWDPHQWHµ 5DQJHO >@  SS   6XD UHIHUrQFLD
para dar partida ao intento de interpretar o Brasil com sua teoria historicizada é
Mauá.

D
D 255
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

Rangel destaca em Mauá a preocupação de fazer uso do “bom senso


QDFLRQDOµ TXH VHJXQGR R PDUDQKHQVH WLQKD LPSOtFLWR XP DVSHFWR HVVHQFLDO
da noção de historicidade das leis da ciência social. De seu ponto de vista,
estava aí colocada a ideia de que o homem varia seu ser e sua consciência
VHJXQGRDUHDOLGDGHVRFLDOHPTXHVXUJHHFUHVFH(VWH0DXiVHULDUDWLÀFDGR
SHORSHQVDPHQWRGH.H\QHVTXHVyWHULDSURSRVWRVXD7HRULD*HUDO para explicar
XPDHFRQRPLDPRQHWiULD²DOJRTXH5DQJHODÀUPDYDQmRVHUFRPSOHWDPHQWH
o caso da economia brasileira – bem como por Prebisch, por ter se recusado
a admitir o sentido de universalidade que normalmente se pretende atribuir às
teorias formuladas nos centros mundiais.
 'HVWDSHUVSHFWLYDDÀUPD

Recuso-me a admitir que a economia de uma tribo indígena pré-


cabralina seja regida pelas mesmas leis que regem o funcionamento
da bolsa de Nova York ou os planos quinquenais soviéticos. (Rangel,
>@S 

Sob esta certeza Rangel formula questionamentos sobre o comportamento


KLVWyULFR GR FDSLWDOLVPR H DÀUPD TXH VH Ki DOJR TXH SRGH VHU FRQVLGHUDGR
permanente em uma economia capitalista é que períodos de depressão se
alternam com períodos de prosperidade. Indica, inclusive, que alternativas
solucionar esta instabilidade cíclica foram sendo construídas historicamente.
(VWDV VDtGDV LGHQWLÀFDGDV SRU HOH FRPR SUHVHQWHV QR FHQWUR GR VLVWHPD
estariam postas pelo socialismo, de um lado, e pelos gastos públicos, no contexto
capitalista. Destaca, em ambos os casos, a ação humana deliberada em prol da
estabilidade, e assim o sentido do planejamento. Para nosso autor uma lei que
IRUDDQWHVYHUGDGHLUDQDPHGLGDHPTXHUHÁHWLDFRPVXÀFLHQWHÀGHOLGDGHXP
processo real, torna-se falsa com o correr da história. Isto porque é substituída
por outra cuja construção é resultado deliberado de ações humanas, “porque o
DFDVR « QmRSRGHVHURXWUDFRLVDTXHDH[SUHVVmRGHQRVVDLJQRUkQFLDµ RS
FLWS 
Se isto é verdade para as economias modernas, centrais, Rangel
se pergunta, o que dizer então de uma economia que seja ao mesmo tempo
PRGHUQDHDQWLJD"
A resposta que encontra a esta pergunta é a dualidade. No Brasil,
a convivência de modos diversos de organização social da vida implicaria
a impossibilidade de se aplicar as leis do capitalismo a partes importantes

D
D 
constituintes do sistema econômico vigente dentro de nossas fronteiras. Em
 TXDQGR HVFUHYHX SHOD SULPHLUD YH] VREUH D LQWHUSUHWDomR GR %UDVLO D
SDUWLUGDGXDOLGDGHEiVLFDLGHQWLÀFRXDFRH[LVWrQFLDGHXPVHWRUFDSLWDOLVWDH
XPSUpFDSLWDOLVWDQDHFRQRPLDEUDVLOHLUD$ÀUPDYDWDPEpPTXHRSUySULRVHWRU
capitalista não era homogêneo, na medida em que se articulava externamente
com um capitalismo que estaria, em sua visão na fase descendente do ciclo,
enquanto internamente a própria crise mundial articulava um “vigoroso
FDSLWDOLVPRQDFLRQDOµGHVHQYROYLGRFRPEDVHQDVXEVWLWXLomRGHLPSRUWDo}HV
 3DUDDOpPGDLGHQWLÀFDomRGDFRH[LVWrQFLDGHYiULDVHWDSDVFDUDFWHUtVWLFDV
do desenvolvimento da economia ao longo da história em nosso país, o que
intrigava o intelecto de Rangel era descobrir como as leis dos vários modos de
produção coetâneos se articulavam, auxiliavam ou limitavam umas às outras.
Com esta questão em mente Rangel apresentou, talvez de forma
mais acabada em seu artigo $ KLVWyULD GD GXDOLGDGH EUDVLOHLUD GH  XPD
interpretação sobre o Brasil na forma da construção de dualidades que se foram
transformando.
A primeira dualidade iniciar-se-ia com a abertura dos portos em 1808,
pois considera que este movimento gestou a integração do polo externo brasileiro.
A hipótese implícita de Rangel é que só com a vinda da Família Real a economia
do Brasil passou a ter centralidade real e formal para ser pensada em sua
dinâmica própria. De seu ponto de vista, a sanção política desde movimento foi
dada pela Carta da Lei de 1815, criando o Reino do Brasil, ganhando sua forma
ÀQDOFRPRVHWHGHVHWHPEURGH1DLQWHUSUHWDomRGH5DQJHODVGXDOLGDGHV
brasileiras mudam a partir de alterações que ocorrem no centro capitalista, mais
HVSHFLÀFDPHQWHQDIDVHE IDVHGHFOLQDQWH GRFLFORGH.RQGUDWLHII1RFDVRGD
primeira dualidade, o autor destaca que os movimentos no centro iniciaram-se IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
FRPD5HYROXomR)UDQFHVD  HWHUPLQDUDPVXDFDUDFWHUL]DomRHP:DWHUORR
(1815), com a restauração.
Assim, o polo externo na primeira dualidade brasileira teria em seu lado
externo o capitalismo industrial europeu, que se articulava com o lado interno
por meio do capitalismo mercantil constituído dentro do Brasil, a partir de 1808,
com a instituição de um aparelho de intermediação mercantil distinto do serviço
público concedido a uma empresa pela Coroa de Portugal.
O polo interno da primeira dualidade tem outras referências, pois havia
se caracterizado em seu lado interno pela organização da produção escravista,
centrada na fazenda de escravos que “tende a tudo reduzir à condição dos
HVFUDYRV LQFOXVLYH WUDEDOKDGRUHV OLYUHV H VHPLOLYUHVµ 5DQJHO  >@

D
D 257
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

S 2ODGRH[WHUQRGRSRORLQWHUQRVHULDDIDFHWDIHXGDOGHVWHPHVPRVLVWHPD
na medida em que a produção escravista, segundo Rangel, se dava sobre uma
estrutura de propriedade e uso feudal da terra, seguindo as máximas “toda terra
pWHUUDGR5HLHQHQKXPDWHUUDVHPVHQKRUµ
 5DQJHOLGHQWLÀFDDVRFLHGDGHEUDVLOHLUDVREDSULPHLUDGXDOLGDGHFRPR
caracterizada pelo domínio de apenas duas classes (duais) representativas
GRV GRLV SRORV (VWDV FODVVHV VHULDP RV ´YDVVDORVVHQKRUHV GH HVFUDYRVµ
como hegemônicos e representando o polo interno, e os capitalistas mercantis,
representando o polo externo. O grupo social hegemônico Rangel denomina de
VyFLRPDLRU da dualidade, enquanto o outro grupo dominante é intitulado de
VyFLRPHQRU. O movimento de mudança interno é apresentado com a lógica
GDOXWDGHFODVVHVHSRULVVRDÀUPDTXHRVyFLRPHQRU teria a função precípua
de “fortalecer-se economicamente, assumir novas posições de comando no
sistema e amadurecer politicamente, ganhando coesão, homogeneidade e clara
FRQVFLrQFLDGHVHXVLQWHUHVVHVµ RSFLWS 
Caracterizada assim e nascida sob o signo na transição da fase A para a
fase B do primeiro Kondratieff, a primeira dualidade teria como papel histórico
resolver o problema de assegurar o crescimento da economia, não obstante o
estancamento prolongado do comércio exterior, ou em outras palavras, promover
um processo de substituição de importações120.
As considerações que acerca da substituição de importações elaboradas
pelo autor são muito heterodoxas. Em sua visão a permissão de existência de
LQG~VWULDVQRSDtVGDGDFRPDDEHUWXUDGRVSRUWRVQmRVLJQLÀFRXDSRVVLELOLGDGH
de instalação de uma indústria substitutiva de exportações, no sentido próprio,
HP YLUWXGH GD YLROrQFLD GD FRQFRUUrQFLD H[WHUQD 1R HQWDQWR DÀUPD TXH SRU
outro lado houve substituição de importações no Brasil no contexto do feudo-
fazenda de escravos. Em suas palavras:

Com efeito, escorraçado da economia de mercado, o esforço de


substituição de importações, nas condições da fase B do Kondratieff
  DVVXPLULD D IRUPD HVSHFtÀFD GH GLYHUVLÀFDomR GD
atividade produtiva, no interior da fazenda de escravos, vale dizer
nas condições da economia natural, onde o poder de competição da

120
Esta será a dinâmica de ajustamento em toda dualidade. As mudanças de dualidade são sempre prece-
didas deste tipo de movimento, cuja dinâmica é dado pelo ciclo de Kondratieff das economias centrais.
Somente após a instauração de um setor produtor e desenvolvedor de bens de capital no Brasil é que
poderíamos pensar em uma dinâmica de transformação movida por nosso próprio ciclo de inovação e
investimento.

D
D 258
indústria capitalista do centro dinâmico chegava mais enfraquecido
GRTXHOLPLWDGRSRUXPDIRUWHWDULIDDGXDQHLUD RSFLWS 

A esta ação substitutiva de importações Rangel atribui a mudança de


natureza da fazenda de escravos, que crescera em escala e se tornara menos
agrícola, na medida em que realocava seus recursos internos para atividades
como construção, indústria de transformação e serviços. Em sua visão, o feudo-
fazenda de escravos se tornara mais autárquico, o que implicava que o país
FRPR XP WRGR VH WRUQDYD PDLV DXWRVVXÀFLHQWH H FDSD] GH FUHVFHU HP ULWPR
diferenciado daquele marcado pelo padrão do comércio exterior.
Foi este mesmo movimento que deu origem a agudização das contradições,
internas à fazenda de escravos, representadas pelo arcaísmo das relações
sociais de produção e pelas mudanças vivenciadas nas forças produtivas. Destas
contradições nasce a mudança do polo interno na qual há uma transformação
da fazenda escravocrata em uma estrutura feudal para dentro, enquanto da
´SRUWHLUDµ SDUD IRUD VH FRQYHUWH HP XPD HPSUHVD FRPHUFLDO LQWHUQDOL]DQGR R
modo de produção do lado interno do polo externo. Neste contexto os “vassalos-
VHQKRUHVµ WRUQDPVH ´EDU}HV FRPHUFLDQWHVµ TXH SUHFLVDUDP VH DGDSWDU jV
transformações das limitações legais de importação da mão de obra escrava e a
lei de terras, ambas iniciadas em 1850.
A passagem da primeira para a segunda dualidade foi resultado de um
longo processo de trabalho das contradições mencionadas. Na nova dualidade
a fazenda internamente feudal tinha seus produtos – extraídos como tributo
IHXGDODRVSURGXWRUHVGLUHWRV²FRQYHUWLGRVHPPHUFDGRULDVSHORQRYRSHUÀOGH
HPSUHVDFRPHUFLDOTXHDGTXLULUDGD´SRUWHLUDµSDUDIRUD
Sobre esta base econômica se assentava a superestrutura de um Estado IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
cujo VyFLRPDLRU agora era a burguesia comerciante (capitalistas mercantis),
IRUWDOHFLGD SHOR SURFHVVR GH FRQWUDGLo}HV YLYHQFLDGR QR ÀP GD GXDOLGDGH
anterior, e como VyFLRPHQRU os fazendeiros, latifundiários feudais por um lado e
comerciantes outro. Nesta dualidade o antigo VyFLRPHQRU fortalecera-se e fora
capaz de tomar a posição de VyFLRPDLRU na ocupação do Estado.
As condições externas sob as quais nascera esta segunda dualidade
também se referiam a uma fase recessiva do ciclo longo. Neste caso, era a
fase recessiva do segundo Kondratieff. Novamente a questão chave estava na
substituição de importações. Agora o esforço principal estaria nas mãos do
FDSLWDOLVPRPHUFDQWLOTXHGHYHULDSURPRYHUEDVLFDPHQWHXPDGLYHUVLÀFDomRGD
produção interna por processos artesanais e manufatureiros.

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

A interpretação rangeliana aponta para uma mudança na fazenda no


período de ascensão do segundo ciclo longo que levou a uma acumulação, nas
mãos dos senhores, de uma renda monetária que fora convertida em gastos
na direção do espaço urbano, especialmente no que tange à moradia. Levaram
FRQVLJR XPD FULDGDJHP HVFUDYD TXH IRUD FRQYHUWLGD HP ´QHJURV GH JDQKRµ 
trabalhadores escravos aplicados em serviços urbanos e atividades artesanais
e cujo recebimento era totalmente entregue aos seus proprietários. O autor
FRQVLGHUDTXHIRLDSDUWLUGHVWD´SHTXHQDSURGXomRGHPHUFDGRULDVµTXHVRE
a orientação do capitalismo mercantil, nos preparamos para a nova fase da
industrialização substitutiva de exportações que viria a ocorrer na dualidade
seguinte.
A segunda dualidade também fora marcada pela 1ª Guerra Mundial,
TXH UHÁHWLX QR %UDVLO QD IRUPD GH XPD H[SUHVVLYD FULVH GR FRPpUFLR H[WHUQR
o que reforçou a necessidade do processo de substituição de importações,
DQWHFLSDQGR R PRYLPHQWR TXH VH GHÀQLULD QR GHFOtQLR GR WHUFHLUR FLFOR GH
Kondratieff, representado pela Grande Depressão Mundial, que abriria as portas
para nossa terceira dualidade.
A terceira dualidade se forma a partir da mudança do polo externo da
segunda dualidade, pois este era o polo mais antigo e que tenderia a ser alterado.
A alteração esperada pelo esquema de Rangel seria a internalização do modo de
produção do lado externo do polo externo, ou seja, a introjeção do capitalismo
industrial com forma de organizar as relações entre o país e o exterior.
Do lado externo, a organização mundial pós Grande Depressão teve como
FHQWUR IXQGDPHQWDO D RUJDQL]DomR GR FDSLWDOLVPR ÀQDQFHLUR FXMR QDVFLPHQWR
anárquico tinha dado origem à fase B do terceiro Kondratieff, além de carregar
em si a dualidade capital industrial – capital bancário. A estrutura multinacional
GRFDSLWDOLVPRÀQDQFHLURHVSHFLDOPHQWHRQRUWHDPHULFDQRWHULDQRVIDFLOLWDGR
a implantação do capitalismo industrial no lado interno do polo externo.
Revelando não apenas uma troca de hegemonia interna, mas também uma
troca de hegemonia no plano internacional (hegemonia inglesa pela hegemonia
americana).
A superestrutura da terceira dualidade era formada por um VyFLRPHQRU
que era a burguesia industrial nascente, representando o polo externo, mas
interessantemente Rangel destaca que o VyFLRPDLRU eram os fazendeiros-
comerciantes, representantes do polo interno. “Tal como das outras vezes,
a origem desse sócio-menor foi uma dissidência da classe hegemônica da
DQWHULRUGXDOLGDGHµ RSFLWS QRHQWDQWRRVyFLRPDLRU aparece como uma

D
D 
dúvida: o que seria a tal burguesia comercial brasileira, se não os fazendeiros-
FRPHUFLDQWHV" 3RU RXWUR ODGR D GLQkPLFD GH UHSUHVHQWDomR GDV FODVVHV GH
Rangel parece revelar em si uma dualidade entre urbano e rural na disputa da
dominação do Estado brasileiro.
Nestas condições percebia-se o nascimento de uma economia periférica
que produzia seu próprio ciclo, na medida em que desenvolvia um processo
de substituição de importações industrializante, no qual o Estado entrava
subsidiando o capital por meio de uma acumulação de recursos em suas mãos
engendrada pela nova legislação trabalhista.
Assim, considera a entrada em cena dos ciclos de Juglar (ciclos de
investimento independentes de um novo padrão tecnológico que ocorrem
aproximadamente a cada 10 anos) para explicar a dinâmica da dualidade
brasileira a partir do advento da industrialização no Brasil, ou seja, de seu
SRQWRGHYLVWDDSDUWLUGRVDQRVGDWHUFHLUDGXDOLGDGH2VFLFORVGH-XJODU
brasileiros seriam causados pelo acentuado desajustamento estruturais do
nosso processo de industrialização, orientando o ajustamento da capacidade
ociosa intersetorial e gerando a necessidade periódica de ajustes institucionais
para reestruturação de sua fase de ascensão.
Outra singularidade da terceira dualidade está no fato de que a
industrialização não se interrompeu quando da fase A do quarto Kondratieff.
“O dinamismo do processo de industrialização, engendrando demandas de
importações sempre novas, fez com que o impulso se mantivesse, não obstante
DFRQVLGHUiYHOH[SDQVmRGDFDSDFLGDGHGHLPSRUWDU RSFLWS µ$VVLPD
industrialização brasileira teve fôlego, passando de sua fase de produção apenas
de bens não duráveis de consumo, para a produção industrial de peças, bens
duráveis de consumo, bens de investimento e insumos básicos. Rangel ainda IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
destaca que esta industrialização esteve presente também na própria agricultura,
tornando mais agudas as contradições internas do setor e do sistema como um
todo.
 )LQDOPHQWH FRPR 5DQJHO HVWi HVFUHYHQGR HP  DEUH VXD DQiOLVH
VREUH D TXDUWD GXDOLGDGH DÀUPDQGR TXH HOD ´HVWi REYLDPHQWH QR IXWXUR « 
QmRREVWDQWHGHFHUWRSRQWRGHYLVWDpWmRDWXDOFRPRVHWLYHVVHDFRQWHFLGRµ
RSFLWS 'DtVXDJUDQGHFRQWULEXLomRSDUDSHQVDUDFULVHGRVDQRV
Enxerga ali a crise da terceira dualidade e a possibilidade de se desembocar na
TXDUWDIRUPDGHRUJDQL]DomRGR´PRGRGHSURGXomREUDVLOHLURµSHORTXHWHPGH
contradições internas.
O quadro externo também indicaria o movimento de entrada na fase B

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

GRTXDUWR.RQGUDWLHIILQLFLDGRVHJXQGRRDXWRUSRUYROWDGRDQRGHFRPD
primeira crise do petróleo. Também estava presente a crise do comércio exterior
normalmente diagnosticada como o elemento detonador de um processo interno
de reorganização da produção para substituição de importações crucial para o
acirramento das contradições internas e a mudança de dualidade brasileira. A
diferença é que esta crise não viria inicialmente pelos fatores tradicionais de
restrições expressivas de quantum exportados e piora dos termos de troca,
ao contrário o aumento de exportações, por meio da desvalorização cambial,
DSUHVHQWRXVHFRPRXPDIRUPDGHVDtGDGDFULVHTXHVHFRQÀJXURXGLDQWHGR
FRUWHGRÀQDQFLDPHQWRjGtYLGDH[WHUQD
Nesta análise, ainda destaca que o esforço de substituição de exportações
que seria necessário para a criação das condições para uma mudança na
dualidade brasileira seria o de substituir mais do que apenas o petróleo
internacional por sua produção interna ou por fonte de energia alternativa, mas
uma mudança na forma de produzir os vários bens dependentes desta base
energética em nossa matriz insumo-produto. Nosso autor preocupava-se, pois
este tipo de alteração na estrutura industrial demandaria vultosas imobilizações
GH FDSLWDO H R SDtV FDUHFLD GH XP DSDUHOKR GH LQWHUPHGLDomR ÀQDQFHLUD TXH
permitisse viabilizar esta notável formação de capital.
Daqui nascia sua observação mais polêmica, pois a mudança da
terceira para a quarta dualidade implicaria em uma alteração no polo interno da
dualidade e de seu ponto de vista, isto implicaria em enfrentar a questão agrária.
Aqui retomava a questão que lhe fez pensar os problemas do desenvolvimento
EUDVLOHLURQRVDQRVDÀUPDQGRTXH

com efeito, estivemos industrializando o país com uma estrutura


agrária por reformar, e isso somente foi possível pelo motivo (…)
de que a execução de projetos industriais (elevada relação capital/
produto), num país de capacidade para importar inelástica e não
dispondo ainda de um parque moderno produtor de meios de
produção, implicava a produção desses meios por processos pré-
LQGXVWULDLVFRPHPSUHJRLQWHQVLYRGHPmRGHREUD RSFLWSS
 

A novidade agora seria que tal industrialização se maturou,


caracterizando-se pelo tradicional formato poupador de mão de obra, inclusive
na agricultura, levando o sistema a produzir um exército industrial de reserva
superdimensionado, cuja solução efetiva seria limitada pelo preço proibitivo da

D
D 
terra. Em sua opinião este preço não era inerente à terra, mas ligado a este ativo
VHUXVDGRQR%UDVLOFRPRUHVHUYDGHYDORURTXHVLJQLÀFDDÀUPDUTXHRSUHoR
GDWHUUDpXPIHQ{PHQRÀQDQFHLURVHQVtYHODPXGDQoDVTXHVHREVHUYDPQR
FDPSRÀQDQFHLUR
Esta excelente observação, especialmente no que tange a tentativa de
compreender o fenômeno da terra urbana hoje, provavelmente foi a origem
GRRVWUDFLVPRGHÀQLWLYRGDWHRULDGDGXDOLGDGHEiVLFDGDHFRQRPLDEUDVLOHLUD
&DVWURDÀUPDHPVHXWH[WRGHTXHDSDUWLUGHHVWDWHVHGHYHXPD
aceitação inversamente proporcional à sua importância para a compreensão do
desenvolvimento brasileiro. Acredita que tenha sido sufocada pelo debate da
Revolução Brasileira.

A ideia de dualidade não se encaixava sem na posição


ortodoxa, nem na revisão teórica que tomou corpo a partir
de A revolução brasileira, de Caio Prado Junior. A visão da
questão agrária, dela derivada, afastava a teoria da dualidade
das duas posições dominantes. Antes de provocar uma
grande polêmica, foi ignorada e envolvida por um manto de
silêncio. (Castro, 2005, p. 20)

Conclusão

Ao recuperar o fôlego após este mergulho em apneia na categoria


GXDOLGDGHEiVLFDSRGHVHLGHQWLÀFDUTXH5DQJHOWLQKDXPDSURSRVWDPHWRGROyJLFD
clara para interpretar o Brasil, que encontra naquela categoria sua chave de
leitura. IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
A dualidade básica tem a função de representar os modos de produção
tipicamente brasileiros, por meio de uma combinação delicada entre formas
estruturais e formas superestruturais.
 4XDQWR jV IRUPDV HVWUXWXUDLV 5DQJHO SULYLOHJLD D REVHUYDomR GH WUrV
HOHPHQWRV LQWHUQRV H XP H[WHUQR SDUD HQWmR LGHQWLÀFDU DV YDULHGDGHV GH
formas dominantes e dominadas que compõem a produção social da vida em
nossas fronteiras. Internamente a organização da produção das atividades
dominantes e subordinadas na economia brasileira, o instituto da propriedade
sobre a terra e as relações de trabalho no interior do país formam o eixo de
análise. Externamente é a maneira como o Brasil se insere no mercado mundial
que indica sua relação dinâmica com as economias centrais.

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

 1RTXHVHUHIHUHjVIRUPDVVXSHUHVWUXWXUDLV5DQJHOVHÀ[DQDOXWDGDV
classes e frações de classe pela direção política. De seu ponto de vista, a expressão
mais concreta das vitórias e derrotas deste processo é dada pela transformação
das leis. Para o autor, pensar a disputa pelo poder a que corresponde cada forma
estrutural, é fundamental pois ao mesmo tempo dá os termos e a dinâmica do
desenvolvimento da formação econômico-social brasileira.
 3RUHVWHVHOHPHQWRVQmRWHPRVG~YLGDVHPSHUÀODU,JQDFLR5DQJHOFRPR
um dos grandes intérpretes do Brasil, na medida em que coloca a formação
da nação em perspectiva histórica, busca captar o sentido desta formação
no passado, analisa a conjuntura presente, sempre atualizando os termos da
mudança prenhe de um seu programa político para o futuro.
 )LFDHQWmRSDUDROHLWRUDUHÁH[mRGHSRUTXHXPDLQWHUSUHWDomRGR%UDVLO
tão rica e articuladora de teoria e história pode ser tão amplamente abandonada.
Inscreve-se aqui uma possibilidade interpretativa que está no campo da análise
das condições sócio-históricas que levam à alimentação de certas visões com
respeito ao funcionamento da sociedade e não de outras.
De nosso ponto de vista, a dualidade básica da economia brasileira
tantas vezes trabalhada e transformada por Rangel tem o limite de sua época,
pois representava uma visão, um modo de pensar, que era irreconciliável com o
movimento real que Rangel pretendia revelar e explicar. Neste sentido, uma teoria
que não representasse a visão de nenhum dos grupos sociais mais destacados
na política e na economia brasileira caía no campo das curiosidades, muitas das
vezes incômodas, que pensamentos de vanguarda podem carregar.
De outro lado, a visão de Rangel também não encontrava base nas
formulações dos dominados e de suas vanguardas representativas. Seu marxismo
era mais brasileiro que universal, mais original que ortodoxo. Sua dialética era
mais evolucionista que dinâmica e carregava a ordem de um cientista do seu
tempo.
Sem base social concreta a heterodoxia de Rangel, sua criatividade e seu
ecletismo foram ao mesmo tempo a fonte de sua inovação interpretativa que deu
origem a uma autêntica interpretação do Brasil e o motivo de seu ostracismo.

5HIHUrQFLDV

%,(/6&+2:6.< 5LFDUGR 3HQVDPHQWR HFRQ{PLFR EUDVLOHLUR o ciclo ideológico


GRGHVHQYROYLPHQWR5LRGH-DQHLUR&RQWUDSRQWR

D
D 
%,(/6&+2:6.< 5LFDUGR H 0866, &DUORV ´2 SHQVDPHQWR GHVHQYROYLPHQWLVWD
QR %UDVLO  H DQRWDo}HV VREUH µ 7H[WR SUHSDUDGR SDUD
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IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

A conjuntura, o setor privado e o


caminho brasileiro ao socialismo em
Ignacio Rangel
Elias Jabbour

3HODSDVVDJHPGRFHQWHQiULRGHVHXQDVFLPHQWRDPHOKRUKRPHQDJHP
D VHU SUHVWDGD DR PDLRU GRV SHQVDGRUHV EUDVLOHLURV HVWi HP SURYDU SDUWLQGR
GHVXDVLGHLDVDDWXDOLGDGHGHVHXSHQVDPHQWR6HUPRVWmRWHUUHQRVTXDQWR
UHYROXFLRQiULRVDLQGDpRPDLRUGHVDÀRDVHUHQIUHQWDGDSRUDTXHOHVTXHDLQGD
RXVDPSHQVDUHPXPSURMHWRHVWUDWpJLFRHGHFXQKRVRFLDOL]DQWHDRQRVVRSDtV
'HVWDIRUPDpTXHVHDXWRLQWLWXODU´UDQJHOLDQRµHVWiDOpPGHXPDGHWHUPLQDGD
SRVWXUD GH SHQVDPHQWR H YLVmR GH PXQGR H SDtV 7UDWDVH GH XPD SRVWXUD
SROtWLFDWmRSROtWLFDTXDQWRVHGL]HUPDU[LVWDHWmRPDU[LVWDHSDWULRWDTXDQWRR
IRL,JQDFLRGH0RXUmR5DQJHO
2HQVDLRTXHVHJXHpXPDWHQWDWLYDGHSOHQDDWXDOL]DomRGDVLGHLDVGH
,JQDFLR5DQJHODR%UDVLOGHKRMH8PSDtVFRPLPHQVDVSRWHQFLDOLGDGHVSRUpP
DLQGD SUHVR D FRUUHQWHV LQVWLWXFLRQDOL]DGDV SHOR JROSH LPSHWUDGR SHOR 3ODQR
5HDOQXPSURFHVVRKLVWyULFRLQLFLDGRFRPDFULVHGDGtYLGDGHDPSOLÀFDGR
SHODFRQWUDUUHYROXomRQD8566HDHOHLomRGH)HUQDQGR&ROORUHP2%UDVLO
DWXDO p VtQWHVH GH XPD OXWD UHQKLGD HQWUH GHVHQYROYLPHQWLVWDV H QHROLEHUDLV
QR VHLR GH XP ´JRYHUQR SRSXODU PRGHUDGRµ TXH HQWUH HUURV H DFHUWRV HQFHWD
SROtWLFDVVpULDV %ROVD)DPtOLD3$&SROtWLFDH[WHUQDLQGHSHQGHQWHFRQFHVV}HV
GHLQIUDHVWUXWXUDVHVWUDQJXODGDVjLQLFLDWLYDSULYDGDHWF HWDPEpPVHULDPHQWH
HTXLYRFDGDV SROtWLFDV FDPELDO H GH MXURV EXVFD GD ´HVWDELOLGDGH PRQHWiULDµ
HWF 
(VSHURTXHRTXHVHJXHFRQWULEXDDXPGLDJQyVWLFRDPSORHSURIXQGRGH
QRVVRSDtVHGDVSRVVLELOLGDGHVDLQGDHPDEHUWR/RQJHGDSURIXQGLGDGHHGD
DPSOLWXGHLQHUHQWHVDHVWHPDU[LVWDPDUDQKHQVHJHQLDO3RUpPFRPRPHVPR
HVStULWRGHFRPEDWH
4XH,JQDFLR5DQJHOFRQWLQXHSUHVHQWHQRFRPEDWHHQRGHEDWHGHLGHLDV
WmRQHFHVViULRVDRIXWXURGHQRVVRSDtVHGDKXPDQLGDGH

D
D 
No último decênio nosso país tem patinado numa faixa de 18% na relação
PIB x investimentos. Já é consenso desde neoliberais até desenvolvimentistas
que uma relação neste patamar constitui-se no grande nó górdio que paralisa
a economia brasileira, demonstrando – assim – não somente os limites de um
crescimento pautado pela combinação, nada paradoxal, entre incentivos ao
FRQVXPRHFRPEDWHjLQÁDomR2TXHHVWiFODURVmRRVOLPLWHVGDLQVWLWXFLRQDOLGDGH
FULDGDHP 3ODQR5HDO TXHLQWHQWRXFRPLPHQVRVXFHVVRQDWUDQVIRUPDomR
em estratégia estatal a busca da estabilidade monetária pela via do câmbio
ÁXWXDQWHGDSROtWLFDGHMXURVHGRHTXLOtEULRRUoDPHQWiULRHÀVFDO

7D[DGHLQYHVWLPHQWRVVHWRUSULYDGRH3ODQR5HDO

Deveríamos crer que a discussão acerca do papel do capital privado a


um novo ciclo de desenvolvimento econômico tem sido feita pela sua “porta
GHVDtGDµHQmRSHOR´UROGHHQWUDGDµ'LVFXWHVHDOJRVREUHDLPSRVVLELOLGDGH
de maiores taxas de investimentos sem a participação mais profunda do setor
privado. Inclusive, o governo acerta em cheio ao promover um amplo programa
de concessões no âmbito das infraestruturas e na área do petróleo. Porém,
está fora de cogitação colocar em questão os limites institucionais que travam o
desenvolvimento e, por conseguinte, o investimento privado.
Neste aspecto, é importante frisar que nos últimos dez anos de governos
GHPRFUiWLFRV VXD SULQFLSDO PDUFD IRL DODYDQFDU R SDSHO GR ´IDWRU WUDEDOKRµ
nos ombros de amplas parcelas do empresariado nacional. Medida de corte
progressista, mas que não devidamente acompanhada por subsídios sob a
IRUPDGH´IDWRUFDSLWDOµRXVHMDVREDIRUPDGHVXSRUWHPDFURHFRQ{PLFRGHWLSR IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
câmbio e juros, cuja consequência mais clara é a baixa taxa de investimentos
YHULÀFDGRHMiIULVDGR7UDWDVHGHXPDFRQWUDGLomRTXHVHDJXGL]DHSRGHFRORFDU
em xeque o desenvolvimento DSRVWHULRUL do próprio modelo nascido em 2003.
Desenvolvimento este que não deverá ocorrer, como não ocorre em nenhum país
de desenvolvimento capitalista tardio, sem a combinação de amplos subsídios
FRQFHGLGRVWDQWRDR´IDWRUWUDEDOKRµTXDQWRDR´IDWRUFDSLWDOµ121.
Neste sentido, se a baixa taxa de investimentos é uma poderosa
MXVWLÀFDWLYDjGLVFXVVmRVREUHRSDSHOGRVHWRUSULYDGRID]VHPLVWHUVDOLHQWDU
TXH D WD[D GH LQYHVWLPHQWRV GLÀFLOPHQWH FKHJDUi j FDVD GRV  GHQWUR GRV

121
 6REUH LVWR OHU 5$1*(/ ,JQDFLR ³$UURFKR VDODULDO QmR FULD HPSUHJR´. In, Folha de S. Paulo,
27/12/1983. Disponível em: http://www.interpretesdobrasil.org.

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

PDUFRVGHXPD´HVWUDWpJLDQDFLRQDOµEDVHDGDQD estabilidade da moeda, 


HPXPDSROtWLFDGHMXURVHGHFkPELRYROWDGDDRFRPEDWHjLQÁDomR longo
SUD]R VXEVXPLGR DR FXUWR SUD]LVPR LQHUHQWH DRV REMHWLYRV ´HVWDELOL]DWyULRVµ H
 uma economia completamente indexada a uma única taxa de referência, a
SELIC122.
Se a chave da anatomia do macaco é a anatomia humana, nada
mais correto do que colocar em seus devidos termos o poder determinante
da macroeconomia sobre os rumos da participação do capital privado no
processo. O debate tende à esterilidade e ao diletantismo caso não exista uma
justa combinação entre uma estratégia de tomada, pelo setor privado, de seu
devido lugar na história econômica brasileira, com os parâmetros institucionais
e macroeconômicos capazes de abrir condições objetivas a este processo:
HVWDELOLGDGHPRQHWiULDHFRPEDWHjLQÁDomRQmRFRPELQDPFRPPDLRUHVWD[DV
de investimentos. Em suma, pouca gente costuma colocar em questão a relação
HQWUH LQÁDomR H H[FHVVR GH GHPDQGD H TXH SRUWDQWR GHYH VHU FRPEDWLGD
através de mais abertura comercial e certa dose de arrocho salarial. Por outro
ODGRQmRpH[DJHURDÀUPDUTXHH[LVWHXPDUHODomRQDGDFDVXDOHQWUHDEDL[D
taxa de investimentos no Brasil e a barbárie que vivenciamos no dia-a-dia das
grandes cidades123.

(VWDWDOHSULYDGRQXPDIRUPDomRVRFLDOFRPSOH[D

Posta uma discussão H[ DQWH – baseada na centralidade da política


monetária – ao papel do setor privado em um Novo Projeto Nacional de
Desenvolvimento, passemos ao SRVW DQWH, sem antes colocar o seguinte
SUHVVXSRVWR: a história econômica e política de uma IRUPDomRVRFLDOFRPSOH[D
como o Brasil indica uma transição nada reta ao socialismo. De certo é que esse
socialismo chegará pelas mãos do FDSLWDOLVPRGH(VWDGR sob a forma de um Novo
122
É imprescindível eliminar, gradativamente, a indexação da dívida pública pela taxa SELIC. O Brasil
é a única grande economia do mundo onde a mesma variável mediadora da dívida pública também serve
GHUHIHUrQFLDDRUHVWDQWHGDHFRQRPLD$UHGXomRFRQVHTXHQWHGDVWD[DVGHMXURVGHSHQGHGR¿PGD
indexação da dívida pública pela SELIC. Por outro lado, a manutenção de taxas de investimento na casa
GRVDpDPDLRUJDUDQWLDGHTXHDLQÀDomRFRQWLQXDUiVHUXPDVRPEUDGDGLUHLWDjHVTXHUGD
no curto, médio e longo prazos.

123
Sobre esta relação entre a taxa de investimentos x barbárie, ler: RANGEL, Ignacio: “Criminalidade e
crise econômica”. In, Ensaios FEE, v.1 nº 1 (1980). Disponível em: http://revistas.fee.tche.br/index.php/
ensaios/article/view/38/377 Ler também: JABBOUR, Elias: “As manifestações, neoliberalismo x mais de-
senvolvimento”. In, Portal da Fundação Maurício Grabois, 06/2013. Disponível em, http://grabois.org.br/
SRUWDOQRWLFLDSKS"LGBVHVVDR  LGBQRWLFLD 
D
D 270
3URMHWR1DFLRQDOGH'HVHQYROYLPHQWR. E HVVH131'GHYHUiQDVFHUFRPRFDSLWDO
ÀQDQFHLURQDFLRQDOHSRUFRQVHJXLQWHQmRSUHVFLQGHGDXQLGDGHGHFRQWUiULRV
HQWUHRJUDQGHFRQJORPHUDGRSULYDGRHVXDFRQJrQHUHHVWDWDO Conglomerado
privado este surgido nas entranhas de imensas concessões de serviços públicos.
A compreensão dialética deste processo demanda um alto grau de abstração.
Desta forma, neste todo complexo que envolve concessão e privatização o
SDUDGLJPDKLVWyULFR da função do Estado passa por uma transformação: (VWDGR
HVWHTXHGHYHUiDOoDUVHXSDSHODRXWURSDWDPDUSULQFLSDOPHQWHQRTXHWDQJH
DFRQGXomRGDSROtWLFDPRQHWiULDHQDWUDQVIRUPDomRGRFRPpUFLRH[WHULRUHP
DOJRSDVVLYRGHSODQHMDPHQWRHPHVPRGHHVWDWL]DomR
Post ante. Decifrando o conceito, por IRUPDomRVRFLDOFRPSOH[Dpodemos
compreender, partindo de uma formação hegemonicamente capitalista, como o
Brasil, onde resquícios de remotos modos de produção convivem com formações
HLQVWLWXLo}HVDYDQoDGDVHPHVPR´SDUDVRFLDOLVWDVµ SULPyUGLRVGHSODQLÀFDomR
do comércio exterior sob os governos de Ernesto Geisel e Lula). Daí termos
claros resquícios feudais em instituições como o Supremo Tribunal Federal e
FRUSRUDo}HV´SDUDVRFLDOLVWDVµGRQtYHOGD3HWUREUiVHD(PEUDSD&RPELQDomR
coerente com um país que em pequenas distancias territoriais convivem, em
XQLGDGHHOXWDGHVGHRFDSLWDOÀQDQFHLURSDXOLVWDDWpDDJULFXOWXUDPDLVSULPLWLYD
possível. Em uma formação deste tipo a complementaridade entre os setores
público e privado da economia funciona quase que como uma OHL REMHWLYD GD
IRUPDomRVRFLDOLogo, esta convivência deverá nos acompanhar – inclusive –
nos estertores de nossa transição ao socialismo124.
Ainda quando abordamos a transição ao socialismo numa formação
atípica como a brasileira devemos ter em mente que o sistema sendo capitalista
ou socialista, haverá momentos em que a competição e a empresa privada se IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
FRQVWLWXLUmRHPLQVWUXPHQWRVHÀFD]HVGHPRELOL]DomRHDORFDomRGHUHFXUVRV
Haverá casos, também, em que a competição – posta historicamente –será
LQHÀFD]SDUDÀQVGHDORFDomRGHUHFXUVRV3RUÀPRXWUDJDPDGHFLUFXQVWkQFLDV
coloca à disposição a possibilidade de opção (e mesmo de combinação/
competição) entre a empresa pública e a privada125.

124
Esta convivência pode ser observada em outras formações sociais complexas, cabendo destaque à
China e Índia. Nestas formações onde desenvolvimento ocorre, apesar e em plena consonância com a
convivência entre o “velho” e o “novo”. Desta forma advém outra lei objetiva desta morfologia de for-
mação social na combinação entre atraso e dinamismo.

125
6REUHDFRPSHWLomRHQWUHRHVWDWDOHRSULYDGRQRVRFLDOLVPROHU(1*(/6)ULHGULFK³7KH3ULQFL-
ples of Communism”. In, Selected Works of Marx & Engels, Volume One, p. 81-97, Progress Publishers,
Moscow, 1969. Disponível em: http://www.marxists.org/archive/marx/works/1847/11/prin-com.htm
D
D 271
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

Sob este prisma, é oportuno assinalar menção ao fato de trabalharmos


categorias como economia de mercado e propriedade privada levando-as
em conta como categorias históricas, ou seja, cuja superação demanda o
surgimento de condições objetivas e subjetivas para tal. Em outras palavras:
o mercado e a iniciativa privada só devem ser proscritos no momento em que
a existência deste tipo de instituição se constituir em verdadeiras barreiras ao
desenvolvimento das forças produtivas.
Assim, vaticinamos que a diferença entre capitalismo e socialismo é
uma questão que, afora a composição de classes no âmbito da superestrutura,
obedece a certa ênfase. O capitalismo só recorre ao setor público em casos
extremos (acumulação de tipo tardia), enquanto que o socialismo poderá
recorrer ao capital privado sob duas hipóteses:  como complemento das forças
produtivas socialistas e  TXDQGRRSODQHMDPHQWRVHWRUQDHÀFD]SDUDVHDWLQJLU
determinados objetivos em determinadas cadeias produtivas.

A reorganização de atividades

O que extrair desta combinação entre baixas taxas de investimentos,


desenvolvimento histórico em uma IRUPDomR VRFLDO FRPSOH[D e a transição a
outro sistema social mediado por uma espécie de capitalismo de Estado sob o
PRWHSROtWLFRGHXP131'"
A resposta não deve ter um SDUWLSULV ideológico e a-histórico. O Brasil é
um país capitalista e o desenvolvimento de seu capitalismo é fator de aumento
de tensões externas e internas que, por sua vez, poderá gerar as condições
políticas necessárias à transição ao socialismo.
A baixa taxa de investimentos, muito antes dos averages em PIB, demonstra
uma crise quase invisível aos olhos que se remetem somente às menores taxas
históricas de desemprego $V ÀQDQoDV GR (VWDGR QmR FRPSRUWDP UHFXUVRV
PLQLPDPHQWHVXÀFLHQWHVQHPSDUDXPDUHYROXomRSURGXWLYDQHPWDPSRXFRDR
DODYDQFDPHQWRGHLQYHVWLPHQWRVSHODYLDÀVFDO&KHJDVHDRPRPHQWRKLVWyULFR
HP TXH R VLVWHPD ÀQDQFHLUR EDQFRV SULYDGRV H HVWDWDLV H EROVD GH YDORUHV 
GHYHVH IXQGLU FRP D JUDQGH HPSUHVD YLDELOL]DQGR D UHSURGXomR DPSOLDGD H
RSUySULRFDSLWDOLVPRQDFLRQDOVXEVWLWXLQGRIRUPDVDUFDLFDVGHÀQDQFLDPHQWR

126
É nesse contexto que, historicamente, a discussão entre estatal x privado ganha força. Uma polêmica
nada recente e sempre presente em nosso processo de desenvolvimento desde os tempos em que a Coroa
de Portugal geriu um verdadeiro estanco para gerir nosso comércio exterior.

D
D 272
SHODYLDGRHQGLYLGDPHQWRH[WHUQRHGDVLPSOHVXWLOL]DomRGHUHFXUVRVGRWHVRXUR
HGRRUoDPHQWRJDUDQWLQGRRÀQDQFLDPHQWRGR131'
Neste ponto, a grande problemática passa pela necessidade de uma
completa reorganização das funções da grande empresa privada (e de seu
UHVSHFWLYR EUDoRV ÀQDQFHLUR  R (VWDGR H VHXV FRQJORPHUDGRV HPSUHVDULDLV $
grande empresa, o grande conglomerado empresarial privado deve ser chamado
a assumir seu papel, sobretudo no desatamento do ponto de estrangulamento
infraestrutural (via concessões de serviços públicos, muitas já em andamento)
e reorganizando, para si, todo o arsenal produtivo ainda legado da instalação –
brilhante – do Departamento 1 Novo da economia (indústria mecânica pesada)
RFRUULGRQRÀQDOGDGpFDGDGH127 (7). É nesse aspecto que repetimos o já
GLWR´R131'GHYHUiQDVFHUFRPRFDSLWDOÀQDQFHLURQDFLRQDOHSRUFRQVHJXLQWH
não prescinde da unidade de contrários entre o grande conglomerado privado
e sua congênere estatal. Conglomerado privado este surgido nas entranhas de
LPHQVDVFRQFHVV}HVGHVHUYLoRVS~EOLFRVµ128.
E a crise urbana em andamento apenas acelera essa necessidade.

O novo papel do Estado

A VXSHUYDORUL]DomR GD DEVWUDomR (visão de SURFHVVR KLVWyULFR) e a


GHVYDORUL]DomRGRDEVWUDWR (visão LGHRORJL]DGD) deve nos remeter à constatação
para quem uma grande ordem de concessões e/ou privatizações deverá ser
seguida pela estatização de umas tantas outras atividades.
O 131'GHYHQDVFHUFRPRFDSLWDOÀQDQFHLURQDFLRQDO pelo claro motivo
GHGHVDWDPHQWRGRQyGRÀQDQFLDPHQWRGDJUDQGHSURGXomRORJRVXEVWLWXLQGRR IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
RUoDPHQWRLQyFXRVLQFHQWLYRVÀVFDLVRHQGLYLGDPHQWRH[WHUQRHRVUHFXUVRVGR
WHVRXURFRPRIRUPDVGHLQWHUPHGLDomRÀQDQFHLUD(VWDOyJLFDQmRVHHQFHUUDHP

127
 6REUH LVWR OHU 5$1*(/ ,JQDFLR ³&RQWUDGLo}HV HQWUH VHUYLoRV S~EOLFRV H SULYDWL]DomR  ´. In,
Folha de S. Paulo, 'LVSRQtYHOHPhttp://www.interpretesdobrasil.org.

128
6HJXQGR5DQJHO  2(VWDGRQXQFDSRGHUiUHQXQFLDUjFRQGLomRGHSRGHUFRQFHGHQWHLQYHV-
WLGRVGHIXQo}HVQRUPDWLYDVHVSHFLDOPHQWHDIXQomRGH¿[DomRGDWDULIDRULHQWDGDHVWDSDUDRFXVWR
GHVHUYLoR8PDSULYDWL]DomRTXHHVFDSHDHVWDUHJUDVRPHQWHVHSRGHDGPLWLUQRVFDVRVGHGHVDSDUH-
cimento do monopólio.

129
Sobre isto ler: RANGEL, Ignacio: “A história da Dualidade Brasileira”. In, Obras Reunidas de Ignacio
Rangel, Vol. 2, p. 655-686. Contraponto. Rio de Janeiro, 2005. Ler também: “As polêmicas teses de Ignacio
Rangel”. In, Voz da Unidade. Disponível em: http://www.interpretesdobrasil.org.

D
D 273
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

si, pois a participação privada (nacional e estrangeira) em imensos processos de


concessões de infraestrutura não prescinde da LQVWLWXFLRQDOL]DomRGDUHVHUYDGH
PHUFDGRaos produtores nacionais.
Para tanto, esta nova função do Estado demanda sua participação em
outro patamar no que tange a política monetária (políticas cambial e de juros),
podendo chegar ao limite de institucionalização do monopólio estatal sobre as
instituições que gerenciam os instrumentais macroeconômicos. Momento este
HPTXHDFKDPDGD´IDFHLQWHUQDGD4XHVWmR1DFLRQDOµFRUUHUiHPYLDVSOHQDV
de solução.
A constituição do capitalismo de Estado (NPND) em sua plenitude,
GHPDUFDQGRIURQWHLUDDR´FRQWH~GRQDFLRQDOµSHODYLDGDLQVWLWXFLRQDOL]DomRGD
reserva de mercado, não prescinde da WUDQVIRUPDomRGRFRPpUFLRH[WHULRUHP
HOHPHQWR SDVVLYR GH SODQLÀFDomR HVWDWL]DomR H PRQRSROL]DomR. A estatização
da taxa de câmbio (como ocorre na China e Índia) tem centralidade numa
estratégia de fortalecimento dos conglomerados nacionais (estatais e privados),
conformando uma teia onde pulsarão forte os dois elementos constituidores
de uma forte nação moderna: JUDQGHVHPSUHVDVEDVHDGDVHIXQGLGDVFRPXP
SRGHURVRVLVWHPDGHLQWHUPHGLDomRÀQDQFHLUD
Desta forma, não apenas estaremos dando plenas condições ao um
SURFHVVR YHUWLJLQRVR LQWHUQR GH GHVHQYROYLPHQWR FRPR ² HQÀP ² QRVVR SDtV
estará diante de sua libertação na mesma proporção em que o monopólio do
comércio exterior exerça e jogue papel na neutralização dos efeitos, sobre o
nosso futuro, da lei do desenvolvimento desigual e combinado.

A revolução brasileira no desenvolvimento

Assim encerramos este breve ensaio onde intentamos expor a


importância do setor privado ao nosso processo de desenvolvimento não como
XPÀPHPVL7UDWDVHGHXPGHEDWHTXHQmRSUHVFLQGHGHFRPELQDUHOHPHQWRV
que vão da macroeconomia, passando por sua historicidade e desembocando
num arcabouço histórico/teórico capaz de delinear os escaninhos da transição
ao socialismo numa formação atípica como a brasileira.
6HP VHUPRV NDXWVN\DQRV SRUpP HP SRGHU GD KLVWyULD H GDV OHLV GH
funcionamento de uma formação social complexa como a brasileira, temos
FODUH]DTXHRGHVHQYROYLPHQWRHVXDSODQLÀFDomRFRQVWLWXHPVHHPHVVrQFLD
do que chamaram um dia de revolução brasileira.

D
D 274
O caminho exposto aqui é por deveras tortuoso e com grande margem
de improbabilidade diante de uma conjuntura de sobrevivência e hegemonia do
pensamento neoliberal no Brasil. Porém, temos claro que, sendo vitorioso este
caminho, estaremos mais próximos do socialismo do que imaginamos e mesmo
do que poderão imaginar aqueles que estarão a viver este momento em seu
devido tempo histórico.

IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

D
D 275
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

Ignacio Rangel e o problema da


LQÁDomRQDPDFURHFRQRPLDEUDVLOHLUD
da industrialização
7KLDJR/HRQH0LWLGLHUL

Ignacio de Mourão Rangel foi um dos mais importantes economistas


brasileiros do século XX, e um dos mais notáveis servidores públicos da história
GRSDtV(PFRPDSXEOLFDomRGROLYUR$LQÁDomREUDVLOHLUDODQoDQRGHEDWH
econômico nacional ideias inovadoras sobre a economia brasileira, revelando ao
público a originalidade do seu pensamento. Formulou um sistema teórico que
busca explicar a dinâmica da economia brasileira, conferindo sentido à evolução
histórica da estrutura socioeconômica do país e fundamentando nela sua análise
GRIHQ{PHQRLQÁDFLRQiULREUDVLOHLUR
Rangel reúne em sua pessoa o intelectual que se propõe interpretar Brasil
e o homem político, engajado na transformação da estrutura socioeconômica
brasileira, num primeiro momento como revolucionário em armas, e,
posteriormente, como servidor público, na assessoria econômica do segundo
governo Vargas, no Conselho de Desenvolvimento e no BNDE130.
(VVH DUWLJR SUHWHQGH DERUGDU D REUD ´$ ,QÁDomR %UDVLOHLUDµ DVVXPLQGR
nela três objetivos principais: fazer uma análise estrutural da economia
brasileira, ser uma crítica do Plano Trienal e traçar as linhas gerais para uma
política econômica alternativa.
$SULPHLUDPHWDGHGDGpFDGDGHIRLXPGRVPRPHQWRVPDLVWHQVRV
GDKLVWyULDEUDVLOHLUDFRQWHPSRUkQHDVLWXDGRQXPLQWHUUHJQRFUtWLFRHQWUHRÀP
GRFLFORSURPRYLGRSHOR3ODQRGH0HWDVHRJROSHPLOLWDUHP$LQÁDomR

130
5DQJHOIH]SDUWHGD$VVHVVRULD(FRQ{PLFDGRSUHVLGHQWH9DUJDVFKH¿DGDSRU5{PXOR$OPHLGDGH
D3RVWHULRUPHQWHHPLQJUHVVRXQR%1'(QRSULPHLURFRQFXUVRS~EOLFRUHDOL]DGR
pelo banco. Nestas instituições, participou ativamente do processo de industrialização do Brasil, tendo
sido o relator do projeto de lei que criou a Eletrobrás e sendo chefe do departamento econômico do
BNDE durante o Plano de Metas.

D
D 
EUDVLOHLUD p XP SURGXWR GD UHÁH[mR GH 5DQJHO QDV FLUFXQVWkQFLDV SROtWLFDV HP
que se encontrava o país naquele momento, com a economia pressionada pela
DFHOHUDomRLQÁDFLRQiULDGHXPODGRHDUHFHVVmRSRURXWURWXGRLVVRDPSOLÀFDGR
pelo desejo popular de se avançar no processo de modernização da estrutura
socioeconômica brasileira.
O debate econômico brasileiro e latinoamericano havia se polarizado,
nos anos 50, em torno da questão da industrialização. De um lado estavam
RV ´HVWUXWXUDOLVWDVµ UHXQLGRV QD &RPLVVmR (FRQ{PLFD SDUD D $PpULFD /DWLQD
(CEPAL), defensores da industrialização e do planejamento como meio de
DOFDQoiODHGRRXWURODGRHVWDYDPRV´PRQHWDULVWDVµGHIHQVRUHVGDVGRXWULQDV
liberais e neoclássicas em economia, contrários à industrialização promovida por
meio de intervenção estatal.
Ao longo dos anos 50, Rangel esteve junto aos estruturalistas na defesa da
LQGXVWULDOL]DomRSODQHMDGD$SDUWLUGRVDQRVDVVXPHSRVLomRLQGHSHQGHQWHH
VHRS}HDR3ODQR7ULHQDOFRQVLGHUDGRSRUHOHRPRPHQWRHPTXH´HVWUXWXUDOLVWDVµ
H´PRQHWDULVWDVµTXHKDYLDPSXJQDGRIRUWHPHQWHQDGpFDGDDQWHULRUID]HPDV
SD]HVHVHDOLDPQDIRUPXODomRGRSODQR2V´HVWUXWXUDOLVWDVµDFUHGLWDQGRTXHR
processo de industrialização por substituição de importações havia se esgotado
(tese estagnacionista131 FRQFRUGDUDPFRPRXVRGDSROtWLFDÀVFDOHPRQHWiULD
UHVWULWLYD SDUD FRPEDWHU D LQÁDomR ID]HQGR R PHVPR GLDJQyVWLFR GH LQÁDomR
SRU H[FHVVR GH GHPDQGD GRV ´PRQHWDULVWDVµ H UHWLUDQGR R IRFR GD SROtWLFD
HFRQ{PLFDGDLQGXVWULDOL]DomRHGRGHVHQYROYLPHQWRSDUDDLQÁDomR
A obra possui um objetivo político franco de contestação do Plano
Trienal e de refutação de seus alicerces teóricos, principalmente, nos aspectos
UHODFLRQDGRVDRGLDJQyVWLFRGDLQÁDomRHGDVPHGLGDVSURSRVWDVSDUDFRPEDWr
la. Para rechaçar as medidas do receituário monetarista contido no Plano Trienal, IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
elaborou uma análise complexa e original da realidade econômica brasileira
SDUD DR ÀQDO SURSRU XP SURJUDPD HFRQ{PLFR DOWHUQDWLYR TXH REMHWLYDPHQWH
não levasse o país nem à estagnação econômica nem a rupturas sociais132. Para
Rangel, a experiência econômica em países latino-americanos que adotaram a
PHVPDSROtWLFDHFRQ{PLFDSUHFRQL]DGDSHOR3ODQR7ULHQDOVHULDVXÀFLHQWHSDUD

131
Sobre as teses estagnacionistas ver: Hirschman, A. “The Political Economy of Import-Substituting
Industrialization in Latin America”.The Quarterly Journal of Economics, Vol. 82, No. 1 (Fev.,1968).

132
O Plano Trienal acabou se mostrando um fracasso.Contrariando o espírito do tempo, precipitou pelo
lado econômico pressões sociais que vieram a culminar, posteriormente, no golpe militar em 1964.

D
D 277
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

demonstrar seus efeitos sobre a economia133.


Em sua obra como um todo, Rangel buscou demonstrar como a dinâmica
da economia brasileira esteve subordinada aos movimentos cíclicos propagados
desde as economias centrais, fazendo alternar no interior da economia brasileira,
de modo relativamente regular, desde o ciclo da economia açucareira até o ciclo
´LQGXVWULDOLVWDµEUDVLOHLURGRVpFXOR;;IDVHVGHIRUWHFUHVFLPHQWRGRFRPpUFLR
exterior, puxado pelas exportações, seguida de uma fase caracterizada pelo
processo de substituição de importações134.
A evolução da economia brasileira, nestas circunstâncias, condicionava
a estabilidade do pacto de poder em vigor e das forças sociais hegemônicas. Os
momentos de ruptura do pacto de poder eram suscitados, em última instância,
por interesses econômicos emergentes que orientavam a ação política, e
levavam, inevitavelmente, à formação de um novo pacto de poder, que acabava
por promover mudanças jurídicas e institucionais necessárias ao surgimento
de novas oportunidades de acumulação desejadas pelos membros da classe
dominante135.
Em Rangel, a categoria analítica do Pacto de Poder constitui o ponto de
partida institucional de sua análise. São os interesses das classes sociais que
compõem o pacto de poder vigente que vão determinar as decisões fundamentais,
TXHLQÁXHQFLDUmRDVGLUHWUL]HVGDSROtWLFDHFRQ{PLFDDVHUVHJXLGDHGRDUFDERXoR
macroeconômico do país.
A crise do capitalismo nos países centrais, consumada na 1ªGuerra
0XQGLDOHQDTXHEUDGDEROVDGH1RYD,RUTXHHPUHYHUEHURXQR%UDVLOH
precipitou uma série de eventos que culminaram na revolução de 30, momento
de formação, segundo os esquemas duais de Rangel, de um novo pacto de poder,

133
Segundo Rangel, “os autores do Plano Trienal não tomaram em consideração essas múltiplas inter-
-relações que fazem com que tudo dependa de tudo. Mas, embora sem retraçar a trama lógica desse
FRPSOH[tVVLPRTXDGURQmRSRGLDPLJQRUDURVHIHLWRV¿QDLVGRPRYLPHQWRVREUHRSUySULRRUoDPHQWR
UHGX]LQGRDUHFHLWDHWHQGHQGRSDUDRDXPHQWRGDGHVSHVDHGRGp¿FLW3DUDWDQWRQmRID]IDOWDQHQKXPD
análise econômica profunda, porque isso pode ser constatado empiricamente: foi o que aconteceu em
WRGDSDUWHRQGHVHDSOLFRXHVVDSROtWLFDHFRQ{PLFDH¿QDQFHLUD´ 5DQJHO>@ 

134
(P,QWURGXomRDRGHVHQYROYLPHQWRHFRQ{PLFREUDVLOHLURGH5DQJHOGHWDOKDFRPRRSURFHVVR
de substituição de importações evoluiu ao longo de seus diversos ciclos na história brasileira.

135
Esse processo, na obra de Rangel, representa um dos mecanismos da sua teoria da dualidade. As
dualidades interior/exterior, arcaico/moderno, campo/cidade, correspondem a uma estrutura dual básica
na qual se sucedem os esquemas duais de pacto de poder dependente do desenvolvimento das forças
SURGXWLYDVFODVVL¿FDGRVVHJXQGRDWD[RQRPLDPDU[LVWDGDVIDVHVGRFDSLWDOLVPRWHQGRFRPRPRWRUR
capitalismo, no “estado da arte”, dos países centrais.

D
D 278
constituído pela burguesia industrial nascente e o latifúndio feudal137.
A crise havia deixado um enorme problema para ser resolvido. Na década
GHDHVWUXWXUDGHPRJUiÀFDEUDVLOHLUDWLQKDGLVWULEXLomRLQYHUVDGDDWXDO$
GLVWULEXLomRGDSRSXODomREUDVLOHLUDHQWUHFDPSRHFLGDGHLQYHUWHXVHHQWUH
H$FULVHGHIRLXPFKRTXHTXHGHÁDJURXDGLVVROXomRGRFRPSOH[R
rural brasileiro carregado de capacidade ociosa, na forma conjugada de uma
superprodução agrícola e de uma superpopulação rural.
Segundo Rangel, o fato da industrialização brasileira não ter sido precedido
por um processo de reforma agrária gerou graves desequilíbrios estruturais e um
alto custo econômico para o desenvolvimento brasileiro. O grande contingente
de mão de obra originado do complexo rural em dissolução, migrou em direção
aos centros urbanos, em busca de empregos na indústria (e serviços), e criou um
grande desequilíbrio no mercado de trabalho que estava se institucionalizando
em bases capitalistas. O desemprego criado nas cidades, pelo excesso de mão
de obra, contribuía para a redução do poder de barganha dos trabalhadores138,
levando ao quadro de achatamento dos salários.
Como o fundo de salários constitui a base do consumo agregado, a
depressão dos salários tornou o mercado consumidor doméstico reduzido e
inadequado face à capacidade produtiva que estava sendo criada ao longo do
processo de industrialização por substituição de importações, elevando os custos
XQLWiULRVHH[HUFHQGRSUHVVmRLQÁDFLRQiULDVREUHRVSUHoRVGRVEHQVHVHUYLoRV

136
O conceito de feudalismo usado por Rangel está relacionado à forma dominante de propriedade e das
relações de produção existentes no meio rural brasileiro após a abolição da escravatura. O controle da
riqueza, da mão de obra e dos recursos produtivos passa a ser determinado pela propriedade da terra, e
não mais pela posse de escravos. A analogia entre o instituto jurídico determinante do feudalismo clás-
sico e do feudalismo no Brasil é ponderado pela própria dualidade de Rangel, no sentido de que o Brasil
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
é um país que se constrói sobre estruturas duais, ao mesmo tempo em que predominavam no complexo
rural brasileiro instituições características do feudalismo, nos centros urbanos brasileiros, e em nossas
relações exteriores, predominavam formas econômicas urbanas e capitalistas.

137
No esquema rangeliano, o latifúndio feudal foi o sócio menor no pacto de poder da República Velha
que tinha como sócio maior o capitalismo comercial, ligado aos interesses do comércio exterior. A partir
de 30, o latifúndio feudal foi elevado à posição de sócio maior no novo pacto de poder, encarnado na
¿JXUDGRODWLIXQGLiULRJD~FKR*HW~OLR9DUJDV

138
Pelo reduzido poder de barganha dos trabalhadores, os aumentos de produtividade do trabalho não
eram traduzidos em aumentos de salários.

139
O custo de oportunidade do trabalhador rural brasileiro migrar para as cidades era muito baixo nas
condições de dissolução do complexo rural, porque as condições de vida eram muito precárias e a pro-
dutividade do trabalho no campo muito baixa.

D
D 
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

produzidos pela indústria brasileira, com repercussões em todo o sistema.


Para Rangel, as raízes dos problemas econômicos brasileiros residem em
VXDHVWUXWXUDHFRQ{PLFRGHPRJUiÀFDQDTXLORTXHHOHGHQRPLQRXGHDTXHVWmR
agrária. Rangel utilizou o conceito de taxa de exploração do sistema140 para
representar as consequências econômicas do quadro econômicoGHPRJUiÀFR
corrente nas condições da dissolução do complexo rural brasileiro como
RFRUULGR QR %UDVLO SyVFULVH GH   6HJXQGR 5DQJHO D HFRQRPLD EUDVLOHLUD
possuía uma elevada taxa de exploração, isto é, os lucros correspondiam,
desproporcionalmente, à parcela majoritária da renda nacional.
Em Rangel, a taxa de exploração da economia determina as condições do
desenvolvimento industrial brasileiro. No esquema teórico rangeliano, a elevada
taxa de exploração levava a uma baixa propensão a consumir do sistema, que
por sua vez, tornava o crescimento da renda nacional muito dependente dos
gastos de investimento por causa da restrição do mercado consumidor. Os
investimentos realizados, além dos efeitos sobre a renda real, resultavam em
aumento da capacidade produtiva, que nas condições de uma elevada taxa
de exploração e baixa propensão a consumir do sistema, tendiam a se tornar
capacidade ociosa.
A observação de acúmulo de capacidade ociosa no setor industrial, à
medida que os setores vão sendo instalados ao longo do processo de substituição
de importações, é a principal evidência empírica de que a economia brasileira
não poderia sofrer, em nível macroeconômico, de excesso de demanda, conforme
premissa assumida no diagnóstico do Plano Trienal. Rangel inverte o diagnóstico
DVVXPLGR SHOR 3ODQR 7ULHQDO DR DÀUPDU TXH D HFRQRPLD EUDVLOHLUD VRIUH GH
HVFDVVH]RXLQVXÀFLrQFLDGHGHPDQGDHYLGHQFLDGRSHORDF~PXORFUHVFHQWHGH
capacidade ociosa em sua estrutura econômica. Como resultado desse quadro
GH LQVXÀFLrQFLD GH GHPDQGD UHDO 5DQJHO IRUPXOD R FRQFHLWR GH WHQGrQFLD
estrutural da economia brasileira à depressão141.
Rangel entendia que sem condições políticas para a realização da reforma
agrária, como forma de melhorar a distribuição da renda nacional, a continuação
do processo de desenvolvimento dependeria majoritariamente do investimento.

140
A taxa de exploração do sistema, que corresponde à razão entre lucros e salários pagos pela economia
num determinado período, equivale ao conceito de distribuição funcional da renda.

141
“Para que o Brasil pudesse fugir ao império dessa lei, que exige que sua economia se expanda a ritmo
crescente, como alternativa à depressão, seria mister alterar o esquema fundamental de distribuição de
sua renda. Em última instância, seria necessário aumentar o poder de barganha das massas trabalhadoras,
D¿PGHTXHRVDOiULRFRUUHVSRQGHVVHDXPDSDUFHODPDLRUGDUHQGDQDFLRQDO´ 5DQJHO>@ 

D
D 280
$FULVHHFRQ{PLFDGRLQtFLRGRVDQRVHUDHPSDUWHFRQVHTXrQFLDGHXPD
LQGHÀQLomRSROtWLFDVREUHRUXPRDVHJXLU5DQJHODFUHGLWDYDTXHGDGRRJUDX
de maturidade do problema, cuja raiz residia em sua estrutura socioeconômica,
a solução mais pragmática consistia em planejar os investimentos, que
promoveriam o próximo ciclo de crescimento econômico, retirando a economia
de sua tendência à depressão.
(P VXD REUD GH  5DQJHO SURS{V TXH R SUy[LPR SURJUDPD GH
investimentos ocorresse no setor de serviços de utilidade pública, basicamente
infraestrutura. O setor escolhido para ser o novo campo de oportunidade para
os investimentos era um grave ponto de estrangulamento causando prejuízos e
perda de produtividade (até hoje).
Da perspectiva do planejador, Rangel havia proposto uma direção pelo
lado dos usos, mas cumprida essa etapa restava equacionar o problema das
IRQWHV3DUD5DQJHORSUREOHPDGRÀQDQFLDPHQWRUHVLGLDHPRUJDQL]DURVPHLRV
de canalizar os recursos acumulados nos setores com capacidade ociosa142 para
os setores que constituem os gargalos ou pontos de estrangulamento. Segundo
Rangel, historicamente, cada etapa do processo de substituição de importações
costumava ser precedida por mudanças institucionais que tinham por objetivo
YLDELOL]DURÀQDQFLDPHQWRHDHVWUXWXUDomRGDVJDUDQWLDVVHMDMXULGLFDPHQWHRX
administrativamente.
Para viabilizar a montagem da indústria leve, o controle cambial e as
taxas múltiplas de câmbio permitiram baratear as importações de máquinas e
equipamentos destinadas às indústrias de bens de consumo não durável. Rangel
considerava a correção monetária uma inovação institucional que viabilizou a
HVWUXWXUDomRGDVJDUDQWLDVDRVÀQDQFLDPHQWRVDRVVHWRUHVGHEHQVGHFRQVXPR
duráveis e construções residenciais, os motores do crescimento no período do IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
milagre econômico brasileiro.
Rangel esquematiza as mudanças institucionais e jurídicas necessárias
SDUDYLDELOL]DURÀQDQFLDPHQWRGRVLQYHVWLPHQWRVHDRSURSRUTXHDERODGDYH]
dos investimentos fosse o setor de serviços de utilidade pública, se incumbe
WDPEpP HP VXD PLVVmR GH SODQHMDGRU GD UHÁH[mR VREUH FRPR RUJDQL]DU
D IRUPD SUySULD SDUD R ÀQDQFLDPHQWR GHVVHV LQYHVWLPHQWRV H TXH PXGDQoDV
institucionais seriam necessárias.
142
O conceito de capacidade ociosa em Rangel é amplo e representa todos os recursos econômicos dis-
poníveis, sejam os contabilizados como imobilizado das empresas, mão de obra ou os recursos líquidos,
que não estejam ativos produtivamente ou aplicados operacionalmente. O conceito de capacidade ociosa
RIHUHFHDPHGLGDSDUDDTXDQWLGDGHGHGHVSHUGtFLRHFRQ{PLFRH[LVWHQWHVLJQL¿FDQmRID]HURXVRSUR-
dutivo dos recursos econômicos disponíveis levando a um estado geral de menor bem estar econômico.

D
D 281
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

(P5DQJHOGHIHQGHXTXHRIXWXURGRGHVHQYROYLPHQWREUDVLOHLUR
passaria pelo desenvolvimento e estruturação do mercado de capitais, que fosse
FDSD]GHRUGHQDURÁX[RGHFDSLWDLVGRVVHWRUHVFRPDF~PXORGHFDSDFLGDGH
ociosa para os setores que representariam as novas oportunidades de
investimento.
A estrutura rangeliana de polos sistêmicos, passivo e ativo, sendo o
primeiro, o local de acumulação de capacidade ociosa, e o segundo, onde se
encontram as oportunidades rentáveis de investimento, constitui uma ferramenta
de análise aplicada por Rangel ao processo de industrialização, seja em suas
etapas sequenciais internas (ou ciclos) de substituição de importações143, seja
na realocação de recursos campoindústria ocorrida, a partir da crise dos anos
30, decorrente da ruptura do complexo rural brasileiro.
No auge da crise dos anos 30, o país estava diante de um quadro em
que havia de um lado um setor carregado de capacidade ociosa (polo passivo), e
de outro, um setor que prometia ser capaz de absorver essa capacidade ociosa
(naquelas circunstâncias, majoritariamente constituída por mão de obra), e ser
um novo campo de oportunidades para aplicação do capital em investimentos
mais rentáveis (polo ativo). A indústria representou para o capital nacional, a
abertura de novos campos para aplicação, e assim, a industrialização brasileira
se tornou assunto de Estado144, passando a ser objeto de uma política industrial
HIHWLYDFRPDÀQDOLGDGHGHFULDUXPDHVWUXWXUDSURGXWLYDLQGXVWULDOPRGHUQDH
urbanizar o país.
3DUD 5DQJHO D LQGHÀQLomR SROtWLFD EUDVLOHLUD VREUH R UXPR HFRQ{PLFR
GR SDtV QR LQtFLR GRV DQRV  H PDLV FRQFUHWDPHQWH D LQGHÀQLomR VREUH RV
LQYHVWLPHQWRVTXHGHYHULDPVHUUHDOL]DGRVFURQLÀFDYDPRSUREOHPDLQÁDFLRQiULR
brasileiro. Face à tendência da economia brasileira para a depressão, Rangel
VXVWHQWDUi D WHVH GH TXH D LQÁDomR EUDVLOHLUD DSDUHFLD FRPR XP PHFDQLVPR
KHWHURGR[R PDV HÀFD] TXH HUD FDSD] GH VXVWHQWDU D UHQGD UHDO H LPSHGLU D
recessão.
143
O processo de industrialização por substituição de importações ocorre em etapas, as próximas etapas
tornam-se os novos campos para investimento e os últimos setores instalados o lócus onde se acumula
a capacidade ociosa.

144
2LQYHVWLPHQWRQDLPSODQWDomRGHXPSDUTXHLQGXVWULDOQDFLRQDOGLYHUVL¿FDGRQDVFRQGLo}HVGH
LQG~VWULDQDVFHQWHHGRHVWDGRGDVDUWHVLQGXVWULDLVGRVpFXOR;;UHTXHUHXQmRDSHQDVLQYHVWLPHQWRV
GLUHWRV SRU SDUWH GR (VWDGR FRPR XPD PDFURHFRQRPLD HVSHFt¿FD YROWDGD SDUD D LQGXVWULDOL]DomR 2
desenvolvimento industrial, o motor do desenvolvimento econômico nacional, era o centro de todas as
preocupações. Industrializar era a meta a alcançar e as demais variáveis desempenhavam papel secun-
dário. O pacto de poder formado nos anos 30, cujo um dos sócios era a burguesia industrial, sustentava
politicamente o modelo macroeconômico.

D
D 282
Em condições macroeconômicas onde prevaleciam taxas reais de juros
negativas145, os agentes econômicos fugiam da moeda correndo para os bens
SDUDVHSURWHJHUHPGDHURVmRLQÁDFLRQiULDRQGHSXGHVVHPSUHVHUYDURYDORUGH
sua riqueza ou evitar o máximo possível de perdas. Em nível macroeconômico,
Rangel chama esse movimento de fuga da moeda de depressão da preferência
pela liquidez do sistema.
Os agentes econômicos não tendo como manter sua poupança em caixa
RX HP DSOLFDo}HV ÀQDQFHLUDV TXH SRVVXtDP WD[DV GH MXURV UHDLV QHJDWLYDV
buscavam imobilizar esses recursos em partes do ativo menos suscetíveis a
HURVmRLQÁDFLRQiULD2XVHMDDLQÁDomRQHVVDVFRQGLo}HVOHYDYDDXPDGHPDQGD
SRU EHQV TXH VHUYLVVHP GH SURWHomR FRQWUD D LQÁDomR 5DQJHO GHQRPLQRX D
GHPDQGDLQGX]LGDSHODLQÁDomRGHLPRELOL]Do}HVTXHLQFOXLGHPDQGDSRUEHQV
TXHWHQKDPDSURSULHGDGHGHVHUYLUHPGHSURWHomRFRQWUDDHURVmRLQÁDFLRQiULD
FRPRUHVHUYDGHYDORUH´HVWDFLRQDPHQWRµSDUDDULTXH]DVHQGRQRPLQDOPHQWH
FRUULJLGDVSHODLQÁDomR.
5DQJHODUJXPHQWDTXHSRUWHUVHLQVWLWXFLRQDOL]DGRDLQÁDomREUDVLOHLUD
HUDFDSD]GHJHUDUH[SHFWDWLYDVREUHDWD[DIXWXUDGHLQÁDomRRXVHMDDLQÁDomR
HUDDQWHFLSDGDHSRUPHLRGDH[SHFWDWLYDLQGX]LDÀUPHPHQWHDVGHFLV}HVGH
LPRELOL]DomR(VVHIRLRPHFDQLVPRSHORTXDODLQÁDomRFRQWULEXLXSDUDDUHGXomR
da preferência pela liquidez do sistema, induzindo as imobilizações, ou seja, a
SURFXUDSRUEHQVPRWLYDGDSHODLQÁDomRWLQKDSRUÀQDOLGDGHGHIHQGHURYDORUGD
riqueza. É por meio da taxa de imobilização do sistema que Rangel estabelece
D HQJUHQDJHP SHODTXDOD LQÁDomRSURGX]HIHLWR VREUH D UHQGDUHDO$ PRHGD
perde a sua função de reserva de valor, e em condições de taxas de juros reais
negativas, as imobilizações em ativos reais, ganham importância nas decisões
ÀQDQFHLUDVGDVHPSUHVDVHIDPtOLDV IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
Dessa forma, a sustentação da taxa de imobilização provocada pela
LQÁDomRFXPSUHDIXQomRGHVXVWHQWDUDGHPDQGDUHDO HDUHQGDUHDO DWXDQGR
como uma força contrária à tendência à depressão da economia brasileira147. A
demonstração desse mecanismo é a grande contribuição teórica da obra de Rangel.

145
$WD[DGHLQÀDomRHUDPDLRUTXHDVWD[DVGHMXURVQRPLQDLV$OHLGDXVXUDHVWDEHOHFLDHPDD
o teto da taxa de juros.

146
Rangel considerava as imobilizações tanto no âmbito das empresas como no das famílias. Nas em-
presas demandavam-se bens de capital e bens intermediários e nas famílias bens de consumo duráveis.

147
“Nestas condições a economia é particularmente sensível às variações da taxa de imobilização. A
LQÀDomRHPHUJHFRPRXPUHFXUVRKHWHURGR[RPDVH¿FD]SDUDPDQWHUHOHYDGDDWD[DGHLPRELOL]DomR
TXDQGRHVWDPDQLIHVWDWHQGrQFLDGHFOLQDU´ 5DQJHO>@ 

D
D 283
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

O grande problema desse mecanismo é que as novas imobilizações só


faziam agravar o problema da capacidade ociosa. A lógica das imobilizações
HVWDYDHPVHXDVSHFWRGHIHQVLYRRXVHMDDLQÁDomRLPSOLFDYDQXPDSHUGDPDLRU
que a rentabilidade negativa das novas imobilizações148. Porém, seria necessária
XPD LQÁDomR FDGD YH] PDLRU SDUD LQGX]LU LPRELOL]Do}HV FRP UHQWDELOLGDGHV
negativas crescentes. Segundo Rangel, “com efeito, à medida que passe o tempo,
VHPTXHVHPRGLÀTXHVXEVWDQFLDOPHQWHRHVTXHPDGHGLVWULEXLomRGDUHQGDH
sem que se abram novos campos de investimento, a economia se aproximará
VLPXOWDQHDPHQWH GD LQÁDomR JDORSDQWH H GD GHSUHVVmR HFRQ{PLFDµ 5DQJHO
>@ 
5DQJHO QmR ID] HORJLRV j LQÁDomR FRPR VH HOD IRVVH XPD LQVWLWXLomR
em si, macroeconomicamente meritória. Mas também não vitupera contra a
LQÁDomR2IRFRGDVXDUHÁH[mRQmRHVWDYDQRODGRÀQDQFHLURGDHFRQRPLDPDV
no seu lado industrial, produtivo. O objetivo de todos os intelectuais brasileiros de
esquerda da geração do Rangel era transformar o Brasilfazenda numa moderna
sociedade industrial. Na visão de Rangel, o processo de FDWFKLQJXS não ocorre
HPHTXLOtEULR$LQÁDomRFHUWDPHQWHHUDXPGHVHTXLOtEULR mas não deveria ser
combatida como propugnava o Plano Trienal.
3DUD 5DQJHO DV PHGLGDV GH FRPEDWH j LQÁDomR SURSRVWDV SHORV
´PRQHWDULVWDVµHVWDYDPIXQGDPHQWDGDVHPSUHPLVVDVTXHQmRVHHQTXDGUDYDP
na realidade concreta da economia brasileira. A incompatibilidade entre a teoria
monetarista e a realidade econômica nacional, segundo Rangel, tornava o
GLDJQyVWLFRPRQHWDULVWDVREUHDLQÁDomREUDVLOHLUDHTXLYRFDGR
1D DQiOLVH UDQJHOLDQD LQÁDomR VmR VLPXOWDQHDPHQWH GRLV IHQ{PHQRV
elevação de preços e aumento da quantidade de moeda. Rangel assume que
existe uma correlação positiva entre o nível de preços e a quantidade de moeda,
e, para representar essa relação, usa a equação de trocas, base da teoria
quantitativa da moeda.
Rangel utiliza a equação de trocas, mas, inverte as premissas
normalmente assumidas pela teoria monetarista, obtendo resultados distintos.

148
“Com efeito, se sobem os preços, é razoável esperar que subam também os valores nominais dos
ativos imobilizados em cuja compra se aplicam os excedentes da mais valia (...) mesmo nos casos em
TXHD³YDORUL]DomR´VHMDLQIHULRUjWD[DGHHOHYDomRGRVSUHoRVHODVLJQL¿FDUiTXHRSUHMXt]RIRLPL-
nimizado, que não foi tão grande quanto o teria sido se o inversionista houvesse ‘preferido a liquidez”
5DQJHO>@ 

149
P.Y = M.V, onde P são preços, Y, renda real, M, quantidade de moeda e V, velocidade de circulação
da moeda.

D
D 284
$VVXPHFRPRSUHPLVVDDLGHLDGRVHVWUXWXUDOLVWDVGHTXHDLQÁDomRpHQGyJHQD
ou seja, a elevação de preços corresponde à decisão autônoma dos agentes
econômicos, tomada no âmbito de suas atividades, e, nas circunstâncias do
ambiente econômico em que se encontram. Ao invés do aumento da quantidade
GHPRHGDHPFLUFXODomRSURYRFDUDXWRPDWLFDPHQWHLQÁDomRFRPRQDKLSyWHVH
PRQHWDULVWDGHSURGXWRHPSOHQRHPSUHJRpDLQÁDomRTXHOHYDDRDXPHQWRGD
quantidade de moeda150. Nesse sentido, o aumento da quantidade de moeda é
IXQomRGDLQÁDomR
(PUHODomRjUHQGDUHDO<5DQJHOUHMHLWDDSUHPLVVDGHUHQGDUHDOÀ[DGD
em nível de pleno emprego e assume que os fatores de produção estão sujeitos
a dinâmica da capacidade ociosa, variável dependente do ciclo. Sob as novas
premissas estabelecidas por Rangel, a equação de trocas leva a resultado
distinto. Primeiro, os preços sobem, autonomamente, no bojo da economia,
o que torna a equação de trocas, imediatamente, uma inequação, sendo P’.Y
>M.V (sendo P’ o nível de preços elevado após a contabilização de um período
LQÁDFLRQiULR 5DQJHODÀUPDTXHRUHFHLWXiULRPRQHWDULVWDGHFRPEDWHjLQÁDomR
prevê que se a quantidade de moeda M não for aumentada, os preços voltariam
ao nível anterior, restabelecendo novamente a equação.
Rangel demonstra que se a quantidade de moeda não for aumentada a
igualdade da equação de trocas poderia ser igualmente restabelecida por uma
redução de Y, sendo P’.Y’ = M.V, onde Y’ é o produto reduzido após o ajuste
hipotético que poderia fazer a inequação voltar à equação. Segundo Rangel, os
preços poderiam se elevar num setor e a redução da renda ocorrer em outro;
o setor agrícola era seu ponto de partida teórico para analisar a elevação de
preços que teria como consequência a redução da renda no setor industrial.
Rangel considerava haver uma anomalia de mercado no mecanismo IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
de formação dos preços agrícolas que era responsável por uma pressão
LQÁDFLRQiULD GH IXQGR WUDQVPLWLGD SDUD WRGD D HFRQRPLD &RPR LQWHUPHGLiULR
entre os produtores rurais e os mercados consumidores urbanos, as empresas
comercializadoras de produtos agrícolas atuavam como um oligopsônio face
aos produtores rurais e como um oligopólio face aos consumidores151. Eles
deprimiam os preços aos produtores e elevavam os preços aos consumidores,
elevando a sua margem até onde o mercado fosse capaz de suportar; por um

150
Pela teoria quantitativa da moeda ortodoxa, em que se considera o pleno emprego, o aumento da
TXDQWLGDGHGHPRHGDQmRWUD]QHQKXPDXPHQWRUHDOGHUHQGDDSHQDVLQÀDomR

151
Rangel dizia que eram, simultaneamente, um oligopólio e um oligopsônio, que atuavam como se
monopólio e monopsônio fossem.

D
D 285
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

lado não incentivavam o aumento da produção agrícola, e por outro, mantinham


uma oferta relativamente cara152.
$LQÁDomRGRVSURGXWRVDJUtFRODVUHGX]LDRVDOiULRUHDOHLPSDFWDYDQD
demanda real de bens do setor industrial153. Como os produtos agrícolas são
EiVLFRVDUHGXomRGRVDOiULRUHDOFDXVDGDSHODLQÁDomRGRVDOLPHQWRVOHYDULDj
redução no consumo dos bens menos básicos, exatamente os bens industriais
QDKLSyWHVHGHTXHRVDOiULRQRPLQDOQmRIRVVHFRUULJLGRSHODLQÁDomR /RJR
voltando à equação de trocas, caso não ocorresse um aumento da quantidade
de moeda (de M para M’) que restabelecesse a igualdade da equação de trocas
em P’.Y = M’.V, o ajuste se daria por uma redução do produto (de Y para Y’).
As empresas industriais, face à redução da demanda por seus produtos
UHFRUULDPDRVLVWHPDEDQFiULRSDUDUHFRPSRUVHXHTXLOtEULRHFRQ{PLFRÀQDQFHLUR
(seus estoques cresciam a custa de seu disponível). Os bancos, por sua vez,
recorriam à autoridade monetária, o poder emissor, para recompor a sua
própria liquidez. Segundo Rangel, esse é o mecanismo primário do aumento
da quantidade de moeda. As empresas industriais para amortizarem suas
obrigações junto ao sistema bancário precisavam aumentar suas vendas, para
o qual se fazia necessário o restabelecimento da renda real dos consumidores
mediante o aumento do salário nominal154.

152
A descrição de Rangel sobre o modus operandi do setor comercializador de produtos agrícolas se
aproxima muito do conceito de Sabotage, desenvolvido pelo economista americano Thorstein Veblen
em seu livro The engineers and the price system. Em Veblen, o conceito de Sabotage é muito mais
FRPSOH[RVHQGRTXHDSUySULDLQÀDomRpXPDIRUPDGHSabotage. O sistema industrial contemporâneo,
nos países centrais, atingiu uma capacidade produtiva acima da capacidade de absorção do mercado, o
que levou a consolidação de empresas e o controle da produção por oligopólios. A Sabotage, por um
lado, reduz a oferta (causando aumento dos custos unitários) e, por outro, cobra o preço que o mercado
é capaz de suportar, buscando permanentemente colocar os produtos ao nível de preço mais caro pos-
sível e criando uma pressão para a elevação de preços. Os atacadistas agiam como prediz o conceito
de Sabotage, UHGX]LDPFRQVFLHQWHPHQWHDH¿FLrQFLDSURGXWLYDGDDJULFXOWXUDUHVWULQJLQGRDRIHUWD DR
deprimirem os preços aos produtores rurais não criavam incentivo para o aumento da produtividade) e,
DRPHVPRWHPSRHUDPXPIRFRLQÀDFLRQiULRGHVWDFDGRQRHVTXHPDWHyULFRGH5DQJHOFRPRVHXSRQWR
de partida lógico, pelo alto peso que os produtos agrícolas, em especial os alimentos, representava na
cesta de consumo de parcela majoritária da população.

153
)D]HQGRXVRGDHTXDomRGHWURFDV5DQJHOYHUL¿FDTXHRVSUHoRVVREHPQXPVHWRUHDUHGXomRGDUHQ-
da real se dá em outro setor, levando a um aumento do nível geral de preços P, e à redução de Y, podendo
DHFRQRPLDVHPDQWHUQXPQtYHOFRPPDLVLQÀDomRHUHQGDUHDOPHQRU3DUDTXHDUHQGDUHDO<YROWDVVH
a seu nível anterior, assumindo que a velocidade de circulação da moeda é constante no curtoprazo, M
precisaria se elevar, isto é, fazia-se necessário aumentar a quantidade de moeda.

154
Para Rangel, o mecanismo de reajuste salarial, institucionalizado pela legislação trabalhista cumpria
XPSDSHOHVVHQFLDOQDPHFkQLFDLQÀDFLRQiULDEUDVLOHLUD

D
D 
Nas palavras de Rangel: “a elevação dos preços, começando no setor
de bens agrícolas, deprime a renda real do público consumidor e, através do
mecanismo das elasticidadesrenda da demanda, provoca o aparecimento
de estoques noutros setores, nas empresas produtoras de bens de elevada
HODVWLFLGDGHUHQGDGDGHPDQGDURPSHQGRVHXHTXLOtEULRHFRQ{PLFRÀQDQFHLUR
fazendo crescer o realizável (estoques), a custa do disponível, levando-as a
pressionar, através do sistema bancário, o poder emissor, isto é, o Estado. O
restabelecimento do disponível das empresas não resolve todo o seu problema,
porque os estoques persistem e o resgate dos seus compromissos com os bancos
H[LJLUiDOLTXLGDomRGHVVHVHVWRTXHV3DUDUHVROYHUGHÀQLWLYDPHQWHRSUREOHPD
é indispensável que se restabeleça a renda real dos consumidores – dentre
RV TXDLV VH GHVWDFDP RV WUDEDOKDGRUHV ² H LVVR GDGD D LQÁDomR VRPHQWH p
SRVVtYHOVHVHHOHYDDUHQGDQRPLQDOµ 5DQJHO>@ 
1R HVTXHPD WHyULFR GHVFULWR DFLPD 5DQJHO HVWDEHOHFH D LQÁDomR GRV
produtos agrícolas como ponto de partida teórico de sua análise, embora existissem
RXWUDVHVWUXWXUDVHIDWRUHVTXHWDPEpPJHUDYDPLQÁDomRRXFRQWULEXtDPSDUD
a sua transmissão via custos ou recomposição de perdas. Rangel destaca como
IDWRUHVFDXVDGRUHVGHLQÁDomRDOpPGRPHFDQLVPRDQ{PDORGHIRUPDomRGH
preços dos produtos agrícolas pela sabotagem do aparelho comercializador;
a estrutura precocemente oligopolizada da indústria brasileira; do ponto de
YLVWD UHJXODWyULR R PHFDQLVPR ´IURX[Rµ GH UHDMXVWH GDV WDULIDV GRV VHUYLoRV
de utilidade pública (preços administrados); as desvalorizações cambiais e os
reajustes salariais.
3RU ÀP D WUDJpGLD LQÁDFLRQiULD EUDVLOHLUD VHJXQGR 5DQJHO YDL
GHVHPERFDUQRRUoDPHQWRGD8QLmRRQGHpHQFHQDGRVHX~OWLPRDWR$LQÁDomR
uma vez institucionalizada, deve estar prevista no orçamento da União, levando IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
consequentemente à emissão de moeda. Rangel coloca o orçamento da União
FRPR R ´SRQWR GH FKHJDGDµ GD LQÁDomR H QmR VHX ´SRQWR GH SDUWLGDµ FRPR
ID]HPRV´PRQHWDULVWDVµ
1XPD UHFRQVWLWXLomR GH ´WUiV SUD IUHQWHµ D LQÁDomR EUDVLOHLUD VHJXLULD
a seguinte lógica, segundo Rangel: “a emissão é necessária, nas presentes
condições brasileiras, para que os preços subam; a elevação dos preços
é necessária, para que se deprima a preferência pela liquidez do sistema;
a depressão da preferência pela liquidez é necessária, para que a taxa de
imobilização do sistema se mantenha; a sustentação da taxa de imobilização
é necessária, para que o nível geral da atividade econômica se sustente, por
sua vez, contrariando a tendência para a depressão implícita na crescente
DFXPXODomRGHFDSDFLGDGHRFLRVDµ 5DQJHO>@ 

D
D 287
IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

Face ao quadro econômico desenvolvido em sua análise e considerando


uma rigidez estrutural relativa ao esquema de distribuição da renda, Rangel
SURS}HTXHQDGLQkPLFDHQWUHLQÁDomRHFUHVFLPHQWRHFRQ{PLFRQDVFRQGLo}HV
FRQFUHWDV GR SURFHVVR GH GHVHQYROYLPHQWR HFRQ{PLFR EUDVLOHLUR D LQÁDomR
tenderia a se acelerar nos momentos de crise e desacelerar quando a economia
UHWRPDYDDWUDMHWyULDGHFUHVFLPHQWR$OyJLFDGRSURFHVVRLQÁDFLRQiULREUDVLOHLUR
para Rangel era oposta à lógica econômica tradicional onde crescimento e
LQÁDomRVmRSRVLWLYDPHQWHFRUUHODFLRQDGRV155.
$FRUUHODomRFOiVVLFDH[LVWHQWHHQWUHLQÁDomRHFUHVFLPHQWRHFRQ{PLFR
SRVVXL FRUUHODomR SRVLWLYD D LQÁDomR VH DFHOHUD HP SHUtRGRV GH UiSLGR
crescimento do PIB e se reduz quando a atividade econômica começa a esfriar.
2 IHQ{PHQR GD LQÁDomR DVVRFLDGR j UHFHVVmR HFRQ{PLFD URPSHX D OyJLFD
HFRQ{PLFD WUDGLFLRQDO HQWUH LQÁDomR H FUHVFLPHQWR FDXVDQGR HVWUDQKH]D DRV
economistas, naturalmente, não habituados a esse fenômeno. A formulação
rangeliana se aproxima muito do conceito de VWDJLQÁDWLRQcunhado em língua
inglesa, nos anos 70, como consequência do efeito recessivo do choque de
preços do petróleo nas economias centrais durante os anos 70. O fenômeno
GD´HVWDJXLQÁDomRµTXHSRVVXtDQDREUDGH5DQJHOHPXPFDUiWHUGH
SHFXOLDULGDGHGDHFRQRPLDEUDVLOHLUDÀFRXFRQKHFLGRLQWHUQDFLRQDOPHQWHDSyV
ter entrado para o conjunto de fenômenos econômicos ocorridos nos países
centrais.
$FRQFOXVmRDTXDO5DQJHOFKHJRXSDUDRDWDTXHDRPDOLQÁDFLRQiULRQmR
H[LJLULDDLQWHUUXSomRGRSURFHVVRGHGHVHQYROYLPHQWR6HDLQÁDomRVHUHGX]LD
TXDQGR D HFRQRPLD YROWDYD D FUHVFHU D VXSHUDomR GR SUREOHPD LQÁDFLRQiULR
dependeria da continuidade do processo de desenvolvimento econômico, e a
política econômica apropriada seria estruturar os investimentos no polo ativo
do sistema fazendo uso da capacidade ociosa existente no interior da economia
brasileira. A sustentabilidade desse processo dependeria dos investimentos,
como também, em mais longo prazo, dos avanços institucionais e da melhoria do
esquema de distribuição da renda nacional. A conclusão de Rangel, e a solução
implícita para o problema, não poderia ser mais oportuna para um país que não
poderia àquela altura interromper o processo que estava em pleno curso.
2 DJUDYDPHQWR GD LQÁDomR HP PHLR DR SURFHVVR GHÁDJUDGR SHOD

155
$RWHRUL]DUXPDFRUUHODomRQHJDWLYDHQWUHLQÀDomRHFUHVFLPHQWR5DQJHOSUHYLXR³PLODJUH´HFRQ{-
mico brasileiro. O termo milagre econômico, cunhado para se referir ao período econômico brasileiro
entre 1968 e 1972, expressa exatamente o aparente paradoxo entre o rápido crescimento e a tendência
GHTXHGDGDLQÀDomRREVHUYDGRVQRSHUtRGR2FRPSRUWDPHQWRGDLQÀDomRQRVDQRVWDPEpPVHJXLX
RPHVPRSDGUmRHPTXHDHVWDJQDomRGRSHUtRGRIRLDFRPSDQKDGDGHXPSURFHVVRKLSHULQÀDFLRQiULR

D
D 288
UHYROXomRGHHDLQGDQmRFRQFOXtGRQRVDQRVVHULDFRUULJLGRSHODSUySULD
FRQWLQXLGDGH GR SURFHVVR FRPR RV ´HVWUXWXUDOLVWDVµ SHQVDYDP HP UHODomR j
LQÁDomRQRVDQRV$IpGH5DQJHOQRGHVHQYROYLPHQWREUDVLOHLURSRGHULDVHU
resumida na seguinte passagem de sua obra: “quem ainda não sabe que o Brasil
é useiro e vezeiro em acertar por equívoco, não sabe da missa a metade. Se
estivermos certos no fundamental – ou seja, se acreditarmos no país – iremos
corrigindo os erros FXUUHQWHFDODPRµ 5DQJHO>@ 

Conclusão

Reserva de mercado, controle do comércio exterior, correção monetária,


taxas de juros reais negativas, monopólio de recursos naturais, planejamento,
ÀQDQFLDPHQWR S~EOLFR FULDomR GH HPSUHVDV HVWDWDLV H SURPRomR GR FDSLWDO
privado nacional foram alguns dos principais instrumentos utilizados pela política
econômica brasileira durante o período de industrialização, ocorrido entre as
GpFDGDVGHHQR%UDVLO
A política econômica heterodoxa estava lastreada no pacto de poder
constituído mediante a revolução de 30, entre a classe latifundiária e a
burguesia industrial nascente, que prevaleceu ao longo de todo o período
desenvolvimentista. O objetivo estratégico da política econômica era a
industrialização. A transformação do Brasilfazenda em uma economia moderna
exigiria o desenvolvimento de instituições e estruturas que o país não tinha,
fundamentais para se atingir uma sociedade de consumo em bases capitalistas.
Sem um Estado que pudesse mobilizar as forças sociais e econômicas
que levasse ao sucesso do empreendimento, a industrialização não passaria de IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil
XPDLGHLD´H[yWLFDµ2JRYHUQRHUDR~QLFRDJHQWHFDSD]GHFXPSULUHVVHSDSHOH
o Estado o único ente capaz de mobilizar os recursos necessários para suportar
os investimentos vultosos.
2VXFHVVRGRSURFHVVRGHSHQGHGDVXDFDSDFLGDGHGHLQFOXLUHEHQHÀFLDU
toda a população, pelo aumento da renda SHUFDSLWD, criação de um mercado
interno dinâmico, urbanização e melhoria das condições de vida da parcela
majoritária da população.
1DYLVmRGH5DQJHODLQÁDomRGHVHPSHQKDYDQRVSHUtRGRVGHLQWHUUHJQR
entre os ciclos, um papel de sustentação da demanda real, via as imobilizações.
As imobilizações adicionais, nessas condições, levavam ao acúmulo de
FDSDFLGDGHRFLRVDHÀQDQFHLUDPHQWHWLQKDPUHQWDELOLGDGHQHJDWLYD&RPRWRGR

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IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

HVVHSURFHVVRHVWDYDEDVHDGRHPPLQLPL]DomRGHSHUGDVDSHQDVXPDLQÁDomR
cada vez maior poderia compensar imobilizações com rentabilidade cada vez
mais negativas.
2ÀPGDPDFURHFRQRPLDGDLQGXVWULDOL]DomRQR%UDVLOIRLGHÁDJUDGDSHOD
crise da dívida externa no início dos anos 80 e sua dissolução levou cerca de
10 anos até a implantação do Plano Real, que consolidou o novo arcabouço
macroeconômico, sustentado na abertura comercial, âncora cambial, e
posteriormente no sistema de metas, desindexação, taxas de juros reais positivas
(e elevadas), privatização, entrada de capital estrangeiro, criação das agências
reguladoras condizentes com o novo papel governamental do Estadoregulador.
A nova macroeconomia aboliu a política econômica anterior pondo no
OXJDUXPDPDFURHFRQRPLDYROWDGDSDUDDHVWDELOLGDGHHRFRQWUROHGDLQÁDomR
A crise dos anos 80 engendrou a formação e consolidação de um novo pacto
GHSRGHUÀUPDGRHQWUHRFDSLWDOÀQDQFHLURHRQRYRODWLI~QGLRFDSLWDOLVWDTXHD
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GRXWULQDULDPHQWHÀOLDGDDRFRQVHQVRGH:DVKLQJWRQHTXHWURX[HQRYDVIRUPDV
de acumulação para a classe dominante brasileira, mediante estratégias de
arbitragem de juros e cambio, gerando aplicações com retornos extraordinários,
sustentada no alto diferencial entre taxa de juros interna e externa e cambio
valorizado157.
As condições da economia brasileira se alteraram radicalmente com
a transição da macroeconomia da industrialização para a macroeconomia da
LQÁDomR $ PHFkQLFD GD LQÁDomR FRPR DQDOLVDGD HP $ LQÁDomR EUDVLOHLUD QmR
poderia suceder no ambiente macroeconômico pós-real em que as taxas de juros
reais são positivas e elevadas, anulando a engrenagem das imobilizações.
O processo de desenvolvimento econômico brasileiro legou um país
FRPSOHWDPHQWH GLIHUHQWH GR %UDVLOID]HQGD GH  2 SURFHVVR GH WUDQVLomR
GHPRJUiÀFD RFRUULGR D SDUWLU GRV DQRV  PRGLÀFD D HVWUXWXUD GD HFRQRPLD
causando impactos no mercado de trabalho, por exemplo, com efeitos sobre o
esquema de distribuição de renda.
(PERUD SRVVXD FRQWULEXLo}HV WHyULFDV RULJLQDLV $ LQÁDomR EUDVLOHLUD p
essencialmente uma obra com um objetivo político. Ao demonstrar os equívocos
teóricos que fundamentavam o diagnostico do Plano Trienal sobre o problema

156
$SDUWLUGHDkQFRUDIRLVXEVWLWXtGDSHORVLVWHPDGHPHWDVFRPFDPELRÀH[tYHO

157
Incluindo-se na conta a “farra do boi” das privatizações brasileiras, a rentabilidade supramencionada
seria mais que extraordinária.

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sobre a estrutura e funcionamento da economia brasileira. Por essa obra,
Rangel poderia ser considerado o mais heterodoxo dos economistas brasileiros.
2 FRQKHFLPHQWR GDV HVSHFLÀFLGDGHV GD HFRQRPLD EUDVLOHLUD TXH OKH SHUPLWLX
refutar tão categoricamente premissas e proposições oriundas da ciência
econômica tradicional somente poderia vir de alguém que ocupou posições
de observação privilegiada da economia brasileira por um longo período. E a
FRUDJHPSDUDVXVWHQWDULQGHSHQGHQWHPHQWHXPD´KHUHVLDµVRPHQWHSRGHULD
vir de alguém profundamente comprometido com o desenvolvimento do país.

5HIHUrQFLD

RANGEL, Ignacio. 2EUDV 5HXQLGDV. Volumes 1 e 2. Rio de Janeiro: Editora


Contraponto 2005.

IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

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IGNACIO RANGEL, decifrador do Brasil

5DQJHOHD*HRJUDÀDDOJXPDV
considerações
-RVp0HVVLDV%DVWRV

Ignacio Rangel pensador da formação social brasileira em seu mais


DPSOR VLJQLÀFDGR LVWR p GDV UHODo}HV VRFLDLV GH SURSULHGDGH H GH WUDEDOKR
(pode-se citar, por exemplo, o Senhor de Engenho que era ao mesmo tempo
vassalo do Rei de Portugal e Senhor de Escravo); da estrutura política (pacto de
poder onde as classes dominantes se sucedem duas a duas) e da organização
do território brasileiro (integração do arquipélago brasileiro com o fechamento
das fronteiras externas, a quebra das fronteiras estaduais e a rodoviarização
que se acelera após 30), não foi poluído pelo academicismo imperante nas
universidades que sempre estiveram limitadas a interpretar o mundo e não
de transformá-lo. Como um verdadeiro profeta se antecipava aos problemas
debatendo com rigor, com seus pares e adversários, as medidas nacionalistas
a serem tomadas pela administração pública federal de acordo com a realidade
FRQFUHWD DSUHVHQWDGD $VVLP ÀFD PXLWR WUDQVSDUHQWH HP VXD REUD TXH VHX
voluntarismo, longe de ser determinista, guardava estreito vínculo com o
estágio alcançado pelo desenvolvimento das forças produtivas no âmbito das
infraestruturas econômicas e numa escala superior - política superestrutural -
das relações de produção.
Consciente do seu tempo como cidadão numa formação social periférica
DVVLQDODYD TXH ´D KLVWyULD QmR UHVROYH SUREOHPDV QmR IRUPXODGRVµ RX VHMD
se perguntava a todo o momento, qual a vantagem em concentrar energias
QXPD PXGDQoD UDGLFDO VH DV FRQGLo}HV QHFHVViULDV H VXÀFLHQWHV SDUD WDO
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