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ÍNDICE
18 de Abril de 2018 - Ano XXIII - Nº 999 

Cartas Capitais
Alternativa à esquerda
Brasiliana
Silva volta do inferno

Rosa dos ventos


O massacre midiático
Especial
A inquisição cria o mártir

Especial
A glória da chicaneira
Especial
Uma multidão de Lulas

Especial
Autoritarismo e resistência
Especial
Preso político

Especial
O novo patamar do golpe
Especial
As masmorras da liberdade

Especial
Lembranças de outro país
Especial
Exército de ocupação

Especial Diálogos Capitais


Capital pelo esgoto
Especial Diálogos Capitais
"A água tratada tem um preço"

Especial Diálogos Capitais


Crise anunciada
Especial Diálogos Capitais
O Fórum em partes

Economia Abertura da Economia


Leva que é de graça
Antonio Delfim Netto
O mau humor do Brasil

Nosso Mundo Síria


Entre a tragédia e o ridículo
Plural Cinema
O reverso do mecanismo

Bravo!
Para ler, ver e ouvir
QI "O sonho é realidade"
É só o começo, continuemos o combate

QI Saúde
Cadê o médico que estava aqui?
QI Design
Quando o futuro ditou a estética

Afonsinho
Decisões
Vara
Por Venes Caitano
É
DE

CHORAR DE RIR

 Mais um triste dia no país sem futuro. Eternamente adormecido em seu


berço, sem nenhum esplendor. Onde República é apenas uma palavra
pronunciada em vão e a democracia uma falácia ameaçada por um novo
golpe. Igualdade e justiça social são utopias.
Airton Brisolla
Curitiba, PR
(Enviado via carta)

 O voto da ministra Rosa Weber foi confuso e incoerente, confirmando a


influência da declaração do general do Exército, Villas Bôas. O STF
apequenou-se, contribuindo para o julgamento politizado do ex-presidente
Lula. Lamentável.
Erivan Santana
Teixeira de Freitas, BA
(Enviado via carta)

 Com o ex-presidente Lula preso, pode-se supor que, efetivamente, se


tornou vitoriosa uma nova forma de ditadura no Brasil, cujo braço repressor
está no Judiciário. O papel da mídia consiste em manipular a opinião
pública para esse regime. Lula é um preso político.
Álvaro Gemignani
(Enviado via carta)
APURAÇÃO ENVIESADA

 O Brasil que quero para o futuro? Um país livre da parcialidade política da


Rede Globo e de sua massiva propaganda subliminar.
Luiz Edmundo Oliveira
Salvador, Bahia
(Enviado via carta)

O STF AMEDRONTADO?

 A ministra Rosa Weber não pode ser chamada de “Maria vai com as
outras”, pois, quando deu seu voto, nenhuma maioria estava formada, ao
contrário do que falou. Em vez de seguir a Constituição, os juízes
brasileiros seguem sua convicção. Prisão em segunda instância é
inconstitucional.
Maria Lídia Gomes
Belo Horizonte, MG
(Enviado via carta)

 Não há dúvidas sobre o conservadorismo contido na declaração do


general do Exército, Eduardo Villas Bôas. Isso pressionou a ministra Rosa
Weber e a fez emitir um voto impreciso, contraditório, confuso e sem
convicção. Não deveriam pairar dúvidas sobre as decisões da Justiça.
Melhor seria se tal voto fosse anulado.
Celito Brugnara
(Enviado via carta)

 Os indivíduos traem sua própria consciência. Sabem que a ministra Rosa
Weber compactuou e se vendeu aos poderosos, fazendo a vontade do
presidente mais corrupto que tivemos: Michel Temer. Armaram para Lula.
Ele era o candidato que ganharia as eleições, contra a vontade da elite, da
mídia e do empresariado. Aqueles que aprovaram sua prisão sofrerão as
consequências políticas e sociais de sua ação.
Hosanas Moura
(Enviado via Facebook)

 O STF não está somente amedrontado, mas moralmente comprometido


com políticos corruptos.
Andrea Cristina da Silva Santana
(Enviado via Facebook)

 O voto da ministra Rosa Weber deveria servir de prova a favor de Lula. Foi
prolixo para disfarçar a injustiça.
Fabíola Alencar
(Enviado via Facebook)

 Não amedrontado, mas corrupto.


Valéria Lamin
(Enviado via Facebook)

INTÉRPRETES DO PAÍS SEM FUTURO

 A prisão de Lula é política. Mostra um STF voltado para a devastação


partidária da esquerda no Brasil. Reeditam a ditadura no País para afrontar
a democracia.
Célio Borba
Curitiba, PR
(Enviado via carta)

 Sem futuro mesmo. Somos um país dividido e sem perspectiva de


mudança. A direita tem grupos radicais armados para atentar contra um ex-
presidente. O STF, que poderia acalmar os ânimos da população, não
respeita a Constituição e com isso promove ainda maiores revoltas. 
Os ministros votam de acordo com suas conveniências políticas.
Francisco Salomão Cunha
(Enviado via Facebook)

 Não deveríamos nos surpreender. Romero Jucá disse que isso aconteceria
quando falou do “grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo”.
E, se alguém for contra a decisão do STF, o general Eduardo Villas Bôas
deu o recado por meio da ameaça feita às vésperas do julgamento.
Flávio de Almeida Felinto
(Enviado via Facebook)
 O julgamento do STF sobre o habeas corpus do ex-presidente foi
comprado. A única intenção é afastá-lo das eleições presidenciais. Mais
uma vez a história se repete como farsa.
Heitor Hugo da Silveira
(Enviado via Facebook)

 Moro utiliza métodos medievais.


Ernane Reis
(Enviado via Facebook)

 Parece que os ministros do STF não leram a Constituição.


Rosimeri Oliveira Muniz
(Enviado via Facebook)

CORONELISMO DIGITAL

 Excelente artigo de Guilherme Boulos. O coronelismo digital é realmente


muito grave. Existe, porém, outro mais danoso há mais tempo: o
coronelismo midiático.
Jorge Alberto Benitz
(Enviado via Facebook)

 As notícias falsas são, principalmente, propagadas por grupos de direita.


Buscam reivindicar o bem-estar social e a luta contra a corrupção quando
vivem em uma cruzada pelo poder.
Eduardo Silva Neves
(Enviado via Facebook)
UM PAÍS DESARMADO

 Após o impeachment de Dilma Rousseff, os donos do poder entregam


cada vez mais nossas riquezas, nosso solo e nossa soberania nacional.
Enquanto isso, os tolos de verde a amarelo seguem a ocupar as ruas
cegamente.
Nilto Marchi
(Enviado via Facebook)

ALTERNATIVA À ESQUERDA

Ciro sobre Lula: “Deus sabe o quanto eu gostaria de não ter de testemunhar esse momento”

 Ciro não é perfeito. É, porém, um dos mais preparados nesta eleição


presidencial.
Lucas Gomes
(Enviado via Facebook)

ÍNDICE
 CRÉDITO DA PÁGINA: Wikimedia
CAPA: Fotos: Heuler Andrey/AFP e Nelson Jr/STF
Animação: Regina Assis
Silva volta do inferno
Um ex-PM supera diversas tragédias e reencontra no trabalho e na família o sentido
de viver

Por Marivaldo Carvalho

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Paraplégico há 17 anos

Eram quase 8 horas da noite de 17 de janeiro de 2001, quando o policial militar


Júlio César da Silva, à época com 28 anos, aguardava a esposa e a filha, de 1 ano
e 9 meses. O carro estava com o vidro aberto na porta de casa, no Jardim Dom
José, extremo da Zona Sul de São Paulo. 
Silva estava à paisana e sentado no banco do motorista com sua pistola .40 sobre a
perna direita, momento em que percebeu a aproximação de quatro suspeitos. Ao
notar a ação dos bandidos, um deles estava com arma em punho, o policial atirou e
houve o revide. Por causa do barulho dos tiros, a mulher do PM assustou-se e saiu
à rua. Para protegê-la, ele correu em direção à mulher. Acabou atingido nas costas.
Os bandidos fugiram sem levar o carro.  

A notícia de que não voltaria a andar abalou o PM. Para piorar, três meses após
receber alta, a mulher abandonou-o. Silva entrou em depressão. Ficou um ano sem
sair de casa. Como muitos em situação parecida, procurou consolo na bebida e no
jogo para diminuir a dor da perda. Chegou a ficar três dias seguidos no carteado,
sem voltar para casa. “Minha vida não fazia mais sentido. Não podia mais andar,
perdi minha mulher. Não tinha mais vontade de viver.” 
As coisas sempre podem piorar e, no caso de Silva, de fato pioraram. Dois anos
depois, durante um curso de reciclagem da PM, a brincadeira de um colega, que
sacou a pistola, mirou na cabeça de Silva e disparou por acidente, lhe custaria a
visão do olho direito. Enquanto estava internado, o irmão foi morto a tiros por
assaltantes em um ponto de ônibus. Em 2003, o cunhado mataria a irmã do PM por
ciúmes. 

“Saí do fundo do poço e estou na beira da praia me divertindo.”


Assim o paulistano descreve a situação

A vida de Silva começaria a mudar de rumo, para melhor, a partir de 2005, quando
um vizinho o indicou para o trabalho de atendente de ocorrências de uma empresa
de guincho. Sua função é anotar as demandas dos funcionários e repassar ao
chefe. “Minha história aqui na firma é melhor do que na polícia. Lá só foi sofrimento.
Estou até hoje aqui, graças a Deus e aos amigos. Minha autoestima é elevada.” 
Com o tempo, foi promovido e transferido para o plantão do serviço do guincho,
onde recebia ligações dos motoristas que solicitavam o serviço. Por último, passou
para o setor de almoxarifado. “Depois que fica na cadeira de rodas, a polícia acha
que você não vale mais nada. Aqui, ao contrário, fui muito bem acolhido”, afirma,
voz embargada e lágrimas nos olhos. “O pessoal aqui sempre pergunta se estou
precisando de alguma coisa. Às vezes, você precisa de apoio moral. Sou muito
grato a eles.” 
Fibra. Silva ao lado da mãe, Benedita, que criou sozinha 11 filhos desde a morte prematura do
marido. Ela recorda o período difícil logo após a tragédia do ex-policial: “Cuidei dele como se
fosse criança”

Silva retribui o apoio com sorrisos. Jamais fica taciturno ou claudicante. Está
sempre a postos. “Saí do fundo do poço e estou na beira da praia me divertindo”,
compara. Sua mãe, a baiana Benedita Santos da Silva, de 85 anos, fiel da igreja
Assembleia de Deus, atribui a Deus a reviravolta do filho. “Ele foi desenganado
pelos médicos”, recorda. Ela lembra daquela noite como se fosse hoje: “Achei que
ia perder ele”. Dona Benedita recebeu a notícia quando voltava da igreja. 
Hipertensa e diabética, venceu as limitações físicas e tornou-se a “mulher heroína”,
apelido que ganhou dos vizinhos na rua por ter criado sozinha o ex-PM e mais dez
crianças, desde a morte prematura do marido, também assassinado. “Sou uma
mulher muito abençoada por Deus, que me deu força de criar os filhos e depois
cuidar do Júlio como se fosse uma criança. Pegava no colo, ajudava a dar banho”,
recorda. 

Ela gaba-se do fato de os filhos serem honestos, apesar das dificuldades da vida e
da vizinhança violenta. “Tem gente que coloca muita coisa à frente do dinheiro,
Deus acima de tudo. Só Jesus Cristo dá sabedoria para a gente. Eu louvo a Deus
por ter aparecido gente boa para ajudar o meu filho.” 
Um dos irmãos do ex-PM, o agente operacional André Luiz da Silva, mora no
mesmo bairro e trabalha com ele. Lembra da época que jogavam bola e empinavam
pipa em um campo de terra que deu lugar a uma oficina e a quatro casas. “O Júlio
me ensinou muita coisa, a dar valor à vida. Tem gente que reclama de coisas tão
pequenas. Ele é um cara alegre que ajuda os outros, nunca o vi triste. Ele é lição de
vida. Eu olho para o Júlio e enxergo nele uma vontade de viver enorme.” • 
ÍNDICE

 CRÉDITOS DA PÁGINA: Marivaldo Carvalho


O massacre midiático
Por Mauricio Dias

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O
ódio
a

Lula, hoje divisor dos brasileiros estabelecido pela elite política e social, é extensão
do preconceito a um metalúrgico que, após três derrotas eleitorais, tirou do poder
um partido debilitado, cujo líder é um sociólogo da classe média, o dito FHC. 
Lula tornou-se presidente da República com uma inédita agenda de programas
sociais em um país onde 10% da população concentra quase a metade da renda,
como atesta o IBGE em informação recentíssima. 
Presidente por duas vezes, Lula arrombou a porta do chamado “Clube dos Eleitos”,
em 2002. Havia por lá uma lei, não escrita, segundo a qual só se entrava com um
diploma de bacharel ou com uma espada na cinta. Advogados, militares, médicos,
economistas, um sociólogo e, de forma dissonante, um metalúrgico cujo pai foi
enterrado como indigente. Ele não ligava para isso. 

A partir do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, a mídia não mudou a roupagem.
Reagiu ao intruso. Houve, inicialmente, momentos de armistício. O novo presidente,
por exemplo, saiu de Brasília e chegou ao Rio de Janeiro para assistir ao velório na
estupenda mansão de Roberto Marinho. Leonel Brizola também esteve lá. Lula e
Brizola, dois políticos de esquerda, devem ter se surpreendido com os dois
flamingos presenteados por Fidel Castro ao poderoso dono da casa. Não demorou
muito para “o pau comer na casa de Noca”. 
O cientista político João Feres Júnior, do Laboratório de Estudos de Mídia e de
Políticas Públicas, é autor de um estudo insuperável sobre Mídia e Democracia no
Brasil, a partir da leitura de Folha de S.Paulo, Estado de S. Paulo, O Globo, Estado
de Minas e Jornal Nacional. É um flagrante da relação entre Lula e a mídia,
realizado de 2014 a 2016. Trata-se de um massacre que também se estende ao
Partido dos Trabalhadores. 

A demonização de Lula acentua-se de 2014 a 2016 e a mídia


assume o papel de “cão de guarda da mídia”, como diz João Feres
Jr.

João Feres tem uma imagem primorosa ao dizer que testou a “hipótese do papel de
cão de guarda da grande mídia brasileira” e usa como base o período que conduziu
ao impeachment de Dilma Rousseff. 
Do fim de 2014, quando a conspiração reacionária avançou, até o golpe contra a
presidenta, Lula atuava intensamente (tabela). Tiraram Dilma do governo, mas Lula
reapareceu para voltar ao governo. Foi preso agora com base na mera convicção
dos procuradores e do juiz Sergio Moro. 
Os repórteres e apresentadoras da Globo News, apêndice da TV Globo, reiteram
um falso privilégio oferecido pela Polícia Federal ao ex-presidente: quarto de 15
metros quadrados, banheiro com pia, cama, além de uma sala conexa para receber
advogados. Ele poderá tomar sol por duas horas isoladamente dos outros presos da
Lava Jato. Quanta generosidade. 
Orientados, os funcionários da Globo escondem que Lula está preso numa solitária.
Ninguém poderá devolver a ele a perda da liberdade. • 

ANDANTE MOSSO
Lula no Ibope I
Qual será o impacto da prisão de Lula nas próximas pesquisas de intenções de voto
para presidente da República? Carlos Augusto Montenegro, presidente do Ibope,
sustenta que as coisas “continuarão as mesmas”. Ou seja, ninguém ganhará e
ninguém perderá. Segundo ele, nos últimos oito meses, os números das pesquisas,
uma a cada mês, estão praticamente congeladas nos seguintes porcentuais: 
Lula mantém-se na liderança, em torno de 33% das intenções de voto. É seguido
por Bolsonaro com, aproximadamente, 14%. Marina Silva tem 12%. Em seguida
estão Alckmin e Ciro Gomes, ambos com 9%. Fernando Haddad gira em torno de
5% (tabela). Álvaro Dias tem 3%, Rodrigo Maia soma 2% e Henrique Meirelles,
Paulo Rabelo, Guilherme Boulos e Manuela D’Ávila estão empatados com 1%. “A
maioria dos eleitores ainda não sintonizou a eleição de outubro”, diz Montenegro. 

Lula no Ibope II
Em contraponto com o instituto Datafolha, o Ibope não vai retirar o nome de Lula
das pesquisas. Isso só acontecerá caso o registro da candidatura dele, em agosto,
seja rejeitado pelo Superior Tribunal Eleitoral. O TSE é presidido pelo fagueiro
ministro Luiz Fux.  

Ventos do Sul
O nordestino Lula não tem muita simpatia dos sulistas. Tem, por exemplo, apenas
20% dos eleitores no Rio Grande do Sul. No STF, Lula ficou sem os votos dos
ministros gaúchos Edson Fachin e Rosa Weber. Outro gaúcho, Claudio Lamachia,
presidente da OAB, não se manifesta sobre a prisão de Lula. Resiste à pressão.
Lamachia argumenta que a instituição não deve ser utilizada para fazer a defesa
“dos interesses de clientes dos advogados”.       

Maia filho... 
Um velho conhecido de Rodrigo Maia, em conversa recente com o presidente da
Câmara dos Deputados, perguntou o que ele faria diante de uma terceira denúncia
contra Michel Temer. Maia respondeu: “Serei obrigado a trabalhar para essa
denúncia não ir adiante. Se Temer sair e eu assumir, poderia ser candidato à
Presidência. Hoje, finjo que sou, mas não sou. Para ser novamente candidato a
deputado, não poderia assumir nenhum outro cargo. Nem eu nem o Eunício,
presidente do Senado, que precisa disputar a reeleição”. Sem que o interlocutor
perguntasse, Maia fez uma observação com expressão sorumbática: “Imagine
entregar a Presidência a Cármen Lúcia”. 

Aposentado da política?

Maia pai
Cesar Maia, pai de Rodrigo, vereador carioca, desistiu de disputar o governo do Rio
de Janeiro. Depois de ficar por 12 anos na prefeitura, disputou o Senado em 2014.
Perdeu a cadeira para Romário. O ex-craque da bola é, agora, um político
inexpressivo. Maia parece ter se aposentado da política. 

ÍNDICE
 CRÉDITOS DA PÁGINA: Márcio José Moraes
A inquisição cria o mártir
Desde a sinistra noite de 7 de abril, Lula está preso em Curitiba enquanto o país
precipita no abismo do estado de exceção. E dias piores virão...

Por Mino Carta

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A entrega de Lula nos braços do povo disposto a enfrentar a força de choque

Na noite de 19 de abril de 1980, estava eu com o presidente do Sindicato dos


Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, Luiz Inácio da Silva, melhor conhecido
como Lula, à espera da Polícia Federal, que iria prendê-lo. Ele mostrava-se tão
sereno quanto no dia 6 de abril de 2018, antes de se entregar à PF. Trinta e oito
anos depois, fui ao sindicato para constatar que Lula não perde a dignidade de
presidente, do sindicato e da República. 
Quando cheguei, por volta de 1 da tarde da sexta 6, o povaréu já se aglomerava na
rua que margeia o prédio do sindicato e uma banda, no palanque erguido em frente
à fachada do edifício, batucava uma peça clássica do racismo nativo, “O teu cabelo
não nega, mulata”, entoada em coro por muitos da multidão. Pensei com meus
botões: eis o povo brasileiro, mesmo na hora da tragédia resignado e incapaz de
perceber o significado de uma cantoria que o humilha. 
Os fatos cancelaram a primeira impressão, e ao repensar experimentei uma súbita,
pacata satisfação interior, quase alegria, a despeito do momento aziago. Aquele
povo, umas 15 mil pessoas, calcula-se, que no dia seguinte impediria a primeira
tentativa de Lula de sair do sindicato para se entregar, estava pronto para a briga,
mesmo se chegasse a tropa de choque. Rendeu-se à segunda tentativa, quando o
líder decidiu sair a pé pela rua que, em outras circunstâncias, o viu carregado em
triunfo. Ao contrário de muitos figurões petistas, aquela gente não acredita em
conciliação, como sucedâneo do célebre jeitinho brasileiro, forma lamentável de
conduzir a vida ao sabor de arreglos por baixo do pano. 

Trinta e oito anos se passaram desde a prisão de Lula no DOPS.


Tempos de Ditadura, mas o Brasil de então era ainda capaz de
muita esperança

Noite sinistra, nunca sairá da memória de quem a viveu, ou mesmo aos olhos e
sentimentos de quem acompanhou aquele longo enredo pela televisão. Cenário
plúmbeo, rasgado pelo lampejo dançante de faróis e semáforos, agitado pelas
hélices dos helicópteros, sulcado por gritos e buzinas e pela procissão fúnebre
daqueles reluzentes carros negros. Enfim, o voo do mesmo monomotor que já
transportou Fernandinho Beira-Mar. A uma TV chinesa, o inquisidor Sergio Moro
dissera ter reservado ao ex-presidente condenado sem prova o mesmo tratamento
dispensado a criminosos sentenciados. 
Quando vi Lula sair do helicóptero pousado no teto da sede central da PF
curitibana, descer uma escada à vista de assistentes divididos em dois grupos
distintos, enquanto fogos iluminavam a noite a saudar o desastre do País, e o vi sair
de cena a caminho da cela, imaginei cidadãos conscientes a caírem em profundo
desconforto igual ao meu, diante de tanta prepotência e insensatez. 
Naquela manhã, Lula havia pronunciado um forte e altivo discurso durante a
cerimônia religiosa celebrada no dia do aniversário da esposa falecida, a
inesquecível Marisa, que ainda o deixa em lágrimas quando a recorda. De
improviso, como de hábito, mas muito bem urdido em torno de uma ideia mestra: o
momento e a memória do seu governo metamorfosearam o líder com uma ideia, e
ideias não podem ser enjauladas. A imagem é bela e expõe, em primeiro lugar, o
problema central do país da casa-grande e da senzala: o monstruoso desequilíbrio
social. O discurso me diz que Lula clareou seu pensamento, percebeu os
verdadeiros inimigos e repudiou a contemporização. 

Os
Este é um cidadão de apostas altas

Este, sim, é dono de uma fortuna imobiliária

golpistas atingiram seu maior objetivo, alijaram das eleições o grande favorito. Em
compensação, criaram o mártir, o Mandela, o Mujica brasileiro. Nem por isso
garantiram a continuidade do estado de exceção a resultar do golpe de 2016, à falta
de um candidato potável. As tensões sociais, que serpenteiam debaixo da
aparência de normalidade, têm condições de agravar a crise de todos os pontos de
vista e de levar, até o fim do ano, a uma conjuntura ainda mais assombrosa do que
o cancelamento do pleito a bem da paz nacional. 
Depois das mais recentes declarações do general Villas Bôas, inequivocamente a
favor da condenação de Lula, logo aprovadas por muitas vozes militares, o futuro
comportamento das Forças Armadas é uma incógnita a turvar pesadamente o
panorama. Arrisco-me a dizer que dias piores virão. Precipitamos no abismo e a
queda não promete um pouso feliz. 
A partir de 40 anos atrás, as três greves (1978, 79 e 80) deflagradas por Lula
representaram um vigoroso desafio à ditadura. Tanto desassombro engatilha graves
riscos. O tempo não era, porém, de desalento. No começo de abril de 1980,
Raymundo Faoro, amigo fraterno, acaba de deixar a presidência da OAB e me pede
para levá-lo ao palanque de Lula na Vila Euclydes. De lá, o líder comanda a greve.
Assim conto aquele dia nas páginas de O Brasil, meu penúltimo livro (Editora
Record, 2013). 

“E é mais um dia e estou no Aeroporto de Congonhas à espera de Faoro. Estranha


figura esguia cerca-me como ectoplasma, percebo que de trás de um jornal
desfraldado me observa e segue meus vagos passos da espera. Penso em um
policial de experiência escassa, e já se aproxima sem mistério, dobrou com
diligência o jornal e pergunta a Faoro, que acaba de chegar, se ele vai a São
Bernardo. Explica: “Fernando Henrique Cardoso pede, por favor, que os senhores
passem pela residência dele antes de seguir para a Vila Euclydes”. Como souberam
da chegada do ex-presidente da OAB? 
“No apartamento de FHC, uma dama de cabelos azuis entrada em anos, a mãe do
futuro presidente, serve café em xícaras elegantes e lhes declina a origem, são de
Limoges. A tese que o dono da casa formula pretende que a visita de Faoro à Vila
seja inoportuna, conhecer Lula é uma coisa, subir no palanque armado no estádio é
outra, “bem diferente”. Por quê? “É óbvio, não é mesmo?” 
No momento, não há quem, entre intelectuais orgânicos e nem tanto, perca a
ocasião de repetir uma expressão cunhada por Nelson Rodrigues, e repetida à
exaustão em suas crônicas, com largo êxito: em certos casos qualifica o óbvio como
ululante e até os editoriais do Estadão se apossam de quando em quando da
expressão rodriguiana. O anfitrião pretende descerrar o óbvio ululante: Faoro é
“reserva moral” do País e como tal há de ser preservado, ir à Vila é risco inútil.
Faoro não se rende à (...) Admite, porém, uma etapa no Paço Municipal de São
Bernardo a caminho da greve. 

Depois das declarações do General Villas Bôas, claramente a favor


da condenação de Lula, o comportamento do Exército torna-se
incógnita assustadora

“Ali somos aguardados por uma conferência de mochos soturnos (...) À cabeceira
senta-se o prefeito e a sua direita é reservada a Fernando Henrique, o qual,
pressinto, deu uma aula prévia sobre Faoro. Quem é este Faóro, ou Faoro? Ou não
seria faraó? Fernando Henrique perora a sua causa com denodo e busca o apoio
dos mochos: Faoro não deve subir no palanque. Digo que vou partir para o campo
apinhado. Faoro ergue-se em toda a sua imponência e me segue. A massa sobre o
gramado abre-se diante daquele gigante engravatado, não sabem quem é, mas o
entendem graúdo, vindo para emprestar seus poderes, quiçá mágicos, ao líder de
uma greve também rebelião.” 
Singular figura, FHC, acima do bem e do mal, blindada, para usar uma expressão
cara aos jornalistas, perdão, propagandistas nativos. Nesta quadra trágica da nossa
história, o ex-presidente atribui-se o papel de grilo falante do Brasil. Vive em
sossego, aparentemente à larga, morador de um apartamento de 400 metros
quadrados de construção em área dita nobre da capital paulista e ainda dispõe de
uma fazenda em Minas com pista de pouso ao lado, construída pela Andrade
Gutierrez, para servir também à fazenda fronteiriça de Aécio Neves. E mais, de
outro apartamento senhorial, para variar de 400 metros quadrados. Espaço, muito
espaço, para o pensamento do príncipe dos sociólogos, na Avenue Foch, recanto
dos mais chiques de Paris, próximo do hotel dos lordes e príncipes árabes, o Plaza
Athenée. 
19 de abril de 1980: Mino entre Lula e Meneghelli quando a polícia está para chegar

Conspícua fortuna imobiliária de um professor universitário aposentado. Como


presidente, FHC comandou a maior bandalheira da história brasileira, a privatização
das comunicações, comprou votos no Congresso para lograr a emenda da reeleição
e quebrou o País mais de uma vez. Cavalheiro refinado, jamais veranearia em
apartamento de 200 metros quadrados em praias de farofeiros. Em compensação,
no seu instituto, local doado por um banco, os sofás são forrados de veludo e as
cortinas adamascadas. É estranho, bastante estranho, que inquisidores do porte de
Sergio Moro e Deltan Dallagnol não tenham sido picados por alguma suspeita, por
mais vaga. 
Trinta e oito anos atrás, Lula preso no Dops foi tratado com o justo respeito, graças
também à brandura do próprio diretor da PF, Romeu Tuma: diariamente, mandava
buscar Marisa e os filhos para visitarem o pai, servia-lhe, às vezes, lulas fritas no
almoço, frequentemente o hospedava na sala contígua ao seu gabinete para deixá-
lo à vontade. Quando, durante o cativeiro, a mãe de Lula faleceu, Tuma tirou o
uniforme de dois policiais, vestiu-os à paisana, e mandou que acompanhassem o
preso ao velório e ao funeral. Enquadrado na chamada Lei de Segurança Nacional,
Lula foi condenado em liberdade. Não cabe esperar que os atuais carcereiros
tenham um comportamento longinquamente similar. Eles também são movidos a
ódio, igual aos beócios que envergam a camiseta canarinho, ricos e pobres. 
A fórmula combina à perfeição dois preconceitos de profundidade visceral: o racial e
o social, o que torna mais surpreendente a presença na área até de miseráveis, dos
quais Cristo na cruz diria: “Perdoai-os, Senhor, não sabem o que fazem”. Já o
inquisidor Moro sabe perfeitamente o que faz com empenho atroz, e garante: o STF
impediu um grande retrocesso, para gáudio das manchetes. Ele sabe que o
Supremo poderia ter impedido não este apenas, mas o espantoso retrocesso
provocado pelo golpe de 2016, o mais grave e insano sofrido pelo Brasil, ao qual a
inquisição de Curitiba e Porto Alegre ofereceu uma contribuição decisiva. 

No

Lula passa a ser o Mujica e o Mandela brasileiro


caso a que Moro se refere, destaque para quem votou a favor de Lula, e entre estes
é a voz de Gilmar Mendes que se eleva para surpreender o auditório. O ministro
clama contra os “fascistoides das ruas” e “a mídia opressiva”. A surpresa é relativa.
Mendes é figura sempre disposta às apostas altas, bem ao contrário, por exemplo,
da patética Cármen Lúcia, ou de quem, como Rosa Weber, a confessar
candidamente votar contra seus princípios a bem da corporação, maria vai com as
outras de toga. Esta é a Justiça de um país abandonado ao seu destino ao
apresentar o rosto que merece. 
Dia 6 de abril não me escapou no sindicato, muito ampliado em relação àquele de
40 anos atrás, o comparecimento de vários hipócritas e diversos incompetentes,
maus conselheiros para quem lhes dá ouvidos. O PT de hoje em nada se
assemelha à ideia original, semeada durante as greves do final dos anos 70, enfim
realizada no começo dos 80 sobre uma plataforma francamente de esquerda, a
desaguar, às vezes, em um patrulhamento que eu tinha como exagerado. Aparadas
algumas arestas, seria um partido indispensável à evolução do País e do seu povo.
Pelo caminho perdeu o ímpeto e a determinação. O discurso de Lula indica o
retorno ao passado, a deitar raízes fundas na minha memória. • 

O LÍDER E A IDEIA

Trechos do último discurso do ex-presidente

Eu não os perdoo por ter passado para a sociedade a ideia de que eu sou um
ladrão. (...) nenhum deles dorme com a consciência tranquila como eu durmo.
O que eu não posso admitir é um procurador que fez um PowerPoint e foi para a
televisão dizer que o PT é uma organização criminosa nascida para roubar o Brasil
e que o Lula, por ser a figura mais importante desse partido, por ser o chefe e,
portanto, se é o chefe, diz o procurador, “eu não preciso de provas, eu tenho
convicção”. 

Eu sonhei, eu sonhei que era possível um metalúrgico, sem diploma universitário,


cuidar mais da educação que os diplomados e concursados que governaram este
país. Eu sonhei que era possível a gente diminuir a mortalidade infantil, levando
leite, feijão e arroz para que as crianças pudessem comer todo dia. Eu sonhei que
era possível pegar os estudantes da periferia e colocá-los nas melhores
universidades deste país, para que a gente não tenha juízes e procuradores só da
elite. Daqui a pouco vamos ter juízes e procuradores nascidos na Favela de
Heliópolis, nascidos em Itaquera, nascidos na periferia. Nós vamos ter muita gente
dos Sem-Terra, do MTST, da CUT formados. Esse crime eu cometi. 

Não adianta tentar me impedir de andar por este país, porque têm milhões e
milhões de Boulos, de Manuelas, de Dilmas Rousseffs para andar por mim. Não
adianta tentar acabar com as minhas ideias, elas já estão pairando no ar e não tem
como prendê-las. Não adianta parar o meu sonho, porque, quando eu parar de
sonhar, eu sonharei pela cabeça de vocês e pelos sonhos de vocês. 
Não adianta eles acharem que vão fazer com que eu pare, eu não pararei porque
eu não sou um ser humano, sou uma ideia, uma ideia misturada com a ideia de
vocês. E eu tenho certeza que companheiros como os sem-terra, o MTST, os
companheiros da CUT e do movimento sindical sabem que a morte de um
combatente não para a revolução.

ÍNDICE

 CRÉDITOS DA PÁGINA: Paulo Pinto/FotosPúblicas, Nelson Jr/STF, Fábio Motta/Estadão Conteúdo, Hélio
Campos Mello, David Turnley/Corbis e Wanezza Soares
A glória da chicaneira
Delícias e desventuras da juíza amiga do presidente encrencado e carrasca do ex-
presidente encarcerado. Temer vai ao Peru falar sobre corrupção (?) e Cármen Lúcia
o substitui por dois dias

Por André Barrocal

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Que será que o ilegítimo murmura no ouvido da carinhosa amiga?

Cármen Lúcia, a mineira no comando do Supremo Tribunal Federal até setembro,


completa 64 anos dia 19, mas o presente vem antes, obra do destino e de uma
gozação. Michel Temer iria ao Peru para a VIII Cúpula das Américas, cujo tema é
“Governabilidade democrática frente à corrupção”. O presidente, investigado por
negociatas no Porto de Santos, tema em que CartaCapital traz uma revelação nesta
reportagem, e que, após o mandato, tem dois processos por corrupção à espera,
comparece a um debate sobre corrupção. E num país onde o chefe da nação
renunciou em março acusado de aceitar suborno da Odebrecht e de comprar votos
contra um impeachmentno fim de 2017. É graças a essa piada que Carminha,
apelido da juíza do STF entre amigos, assume o Palácio do Planalto por dois dias.
Não fosse ano eleitoral, a faixa iria para o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ou
o do Senado, Eunício Oliveira. Se um deles a vestisse, não poderia ir às urnas em
outubro. 

É a glória para Carminha. A segunda mulher a presidir o Brasil, ainda que de forma
relâmpago. E no lugar de um grande amigo. Seus sentimentos por Temer ganharam
as ruas em 7 de março, no evento de 25 anos da AGU, o time de advogados
defensores das decisões do governo. Luís Roberto Barroso, o juiz do Supremo
condutor do inquérito portuário contra Temer, deu meia-volta ao saber da presença
do investigado. E Cármen? Em 10 minutos de discurso, citou Temer seis vezes, a
sorrir na direção dele, parecia que o presidente era o centro da festa. Chamou-o de
“meu professor”, contou ter aprendido muito com ele ao tornar-se procuradora de
Minas, em 1983, época em que Temer chefiava os procuradores paulistas. Houve
até um momento confessional. “Agora, senhor presidente, eu fiquei com uma pena
de mim, porque eu não tenho mais 25 anos...” 

A pichação à porta da residência mineira da suprema algoz alvoroça a polícia

Presidência por dois dias talvez seja vista pelos antipetistas como um prêmio
merecido a Cármen, por ela ter facilitado a prisão de Lula com lances ardilosos.
Recusou-se, e não mudou de ideia, a pôr em julgamento duas ações prontas desde
dezembro contrárias à prisão de condenados em segunda instância, decisão com
mais chance de vitória para o petista. Preferiu pautar o habeas corpus dele,
enquanto despistava amotinados colegas de corte. Quem deve achá-la digna da
recompensa é o cafetão de luxo Oscar Maroni, dono do bordel Bahamas, de São
Paulo. Em 2016, Maroni prometeu cerveja grátis quando Lula fosse em cana.
Cumpriu a palavra. Na hora da comemoração, o Bahamas exibia um cartaz com a
foto de Cármen e do juiz Sergio Moro. 

Enquanto o Bahamas fervia, o prédio onde a juíza tem um apartamento em Belo


Horizonte era alvo de uns petardos de tinta vermelha. A rua foi pintada com os
dizeres “Lula Livre” e “Cármen Lúcia Golpista”. E enfeitada por um cartaz com a foto
daquele encontro dela com Temer em sua casa em Brasília em um sábado de
março. A propósito do “convescote”, batismo disparado por um “perplexo” Rodrigo
Janot, o ex-PGR que foi aluno de Carminha em Minas e é chamado por ela de
Rodriguinho, fica a dúvida. Deveria um juiz abrir a casa a um amigo processado na
Corte que poderá julgá-lo? No dia seguinte à pichação, gente dos movimentos
direitistas MBL e Vem Pra Rua muniu-se de bandeiras do Brasil e esfregão e limpou
o prédio. Justo. Quando Cármen anunciou em 21 de março que poria o HC de Lula
em julgamento, tinha se reunido antes com líderes do Vem Pra Rua. Estes saíram
do papo com a promessa da juíza de tentar salvar a prisão de condenados em
segunda instância, compromisso retribuído por eles com um vídeo elogioso à
mineira no Facebook. 

No evento de 25 anos da AGU, Carminha em 10 minutos de


discurso citou Temer 6 vezes e sorriu na direção dele outras tantas

O general de pijama Sergio Etche-goyen, ministro do GSI, foi outro a solidarizar-se


com a juíza. Telefonou-lhe para dizer que a pichação era “lamentável” e ofereceu
ajuda para investigar a autoria. O GSI controla o órgão de inteligência do governo, a
Abin. Em junho de 2017, Veja noticiou que, por ordem do Planalto, a Abin
espionava o juiz Edson Fachin, encarregado no Supremo das “flechadas” de Janot
em Temer. “Inadmissível”, coisa de “ditadura”, disse Cármen na época. Temer ligou
para ela, divulgou uma nota a negar a espionagem e a ordem, e a mineira deu-se
por satisfeita: “Não há o que se questionar quanto à palavra do presidente”. Não
terá sido muito crédula por tratar-se de um amigo? Naquele dia, o deputado Carlos
Marun, hoje ministro palaciano de Temer, dizia a CartaCapital: “O presidente não
usou a Abin. Mas, e se tivesse usado, qual o problema?” E apontava na Lei da Abin
o artigo que abençoaria a espionagem. Nova dúvida. Se não houve nada, por que
ter respaldo jurídico à mão? 

A Polícia Federal, que substituiu seguranças próprios do Supremo na proteção dos


juízes da Casa por decisão de Cármen desde que ela assumiu o comando da Corte,
em setembro de 2016, apura a autoria da pichação. A Polícia Militar de Minas havia
prendido dois suspeitos. Há pistas de que tenha sido coisa dos sem-terra. No dia da
pichação, o MST divulgou no Facebook um vídeo a mostrar um protesto bem-
humorado na porta do prédio, com samba e bandeiras vermelhas. A divulgação era
acompanhada do comentário de uma dirigente, Miriam Muniz: “Não vamos dar
descanso para toda essa corja que deturpa as leis para beneficiar interesses do
capital. Vimos nessa semana que o Supremo é tão golpista quanto Temer”. 

Celso de Mello, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio Mello contestam sua presidente

MST já se sentia motivado a infernizar Cármen desde que Temer convocara o


Exército para reprimir uma marcha em Brasília contra o presidente, em maio de
2017. Um dia depois, Alexandre Conceição, outro líder sem-terra, esteve com a
juíza, juntamente com senadores da oposição, para conversar sobre a convocação
de Temer. E reclamou da omissão da Justiça diante das chacinas de camponeses.
Segundo testemunhas, Cármen ficou incomodada, interrompeu-o e comentou que
era preciso ter cuidado para não expor o Supremo e o Judiciário. “A mensagem que
ficou para mim é de que ela não se importa com o assassinato de sem-terra”, diria
Conceição depois. 

Se não se importa, Cármen candidata-se a uma carapuça jogada pelo juiz Ricardo
Lewandowski no dia do julgamento do HC lulista. Ao votar a favor do petista, disse
que “esses magistrados” que hoje tanto falam de combate à corrupção nem sempre
“emprestam a mesma ênfase a outros problemas igualmente graves, tais como o
inadmissível crescimento da exclusão social, o lamentável avanço do desemprego,
o inaceitável sucateamento da saúde pública e o deplorável esfacelamento da
educação estatal”. Quando Temer, o amigo de Cármen, tomou posse em definitivo,
havia 12 milhões de desempregados, agora são 13 milhões. De 2016 a 2017, a
renda média dos 50% mais pobres caiu de 773 para 754 reais e a dos 5% mais
miseráveis, 40% segundo o IBGE. De um ano a outro, a miséria ganhou 1,5 milhão
de pessoas no País. 
Etchegoyen apressou-se ao solidarizar-se com Carminha

Lewandowski é um dos integrantes do motim causado por Cármen no Supremo


devido às manobras sobre o HC de Lula e a prisão após segunda instância. A
mineira esteve a ponto de ser peitada e derrotada durante uma sessão, algo inédito
com um presidente do tribunal. A jornalistas, o juiz com mais tempo de Casa, Celso
de Mello, quase a chamou de sem palavra, por ela topar conversar com colegas de
Corte para acalmar os ânimos e depois não ter organizado e ainda dito que achava
que a preparação cabia ao decano. Uma história que não surpreende. Um
advogado conta que uma vez pediu a Cármen para ela esperar antes de botar para
votar um caso, ela concordou, ele foi embora e no rádio do carro ouviu que o caso
estava com julgamento marcado. Um funcionário do STF lembra que, em 2012,
quando ela comandou o Tribunal Superior Eleitoral, Cármen deu um jantar em seu
gabinete no TSE e, mesmo com copos e pratos à vista, negava que haveria algo.
Organizara o repasto com assessores do Supremo, às escondidas dos do TSE. 

Dois dos juízes do STF mais revoltados com ela são Marco Aurélio Mello, o vice-
decano, e Gilmar Mendes, o terceiro mais antigo. No dia do HC de Lula, Cármen
tomou várias cotoveladas de Marco Aurélio, chamada de “toda poderosa, no tocante
à pintura da pauta”. Por não ter levado adiante aquela questão de ordem que
poderia tê-la derrotado como jamais aconteceu, ele declarou que, “se
arrependimento matasse, eu seria hoje um homem morto” e que só não tinha ido
adiante em respeito à cadeira de presidente da Corte, não à ocupante. “Em síntese,
presidente, que isso fique nos anais do tribunal: vence a estratégia.” O triunfo dos
que se fingiram de “espertos” e criaram um grave problema, diria Mendes em
Lisboa no dia seguinte. A vitória da “chicana”, disse à reportagem Eugênio Aragão,
ex-ministro da Justiça. Está lá, no Dicionário Houaiss: chicana é abuso dos
recursos, sutilezas e formalidades na Justiça, é manobra capciosa, e por aí vai. 

O dono do bordel Bahamas, à vista dos seus heróis, serviu cerveja grátis quando Lula foi preso

Enquanto chicaneava, Cármen foi à TV Justiça, na antevéspera do HC de Lula,


pedir “serenidade”, pois “vivemos tempos de intolerância”. Curioso, na opinião do
editor da revista Sociologia e Política, da UFPR, o cientista político Adriano Codato.
“Ir à tevê dizer isso foi meio infeliz, ela mesma partidarizou o assunto.” Uma nova
chicana prolongará o cárcere de Lula na terra da UFPR, obra agora da política. As
duas ações sobre prisão após segunda instância, aquelas prontas para uma
decisão desde dezembro, poderiam ter um desfecho contra a vontade de Cármen
graças a um pedido de liminar. Marco Aurélio, relator das ações, levaria o pedido ao
plenário na quarta-feira 11. Liminar não depende do presidente do Supremo para
ser julgado. Mas o autor de uma das ações e da liminar, o Partido Ecológico
Nacional, resolveu destituir seu advogado e voltar atrás. O motivo? “Sou de direita”,
explicou didaticamente o chefe do PEN, Adilson Barroso, “não quero ajudar petista”.
Queria ajudar o deputado cassado reacionário Eduardo Cunha, ao propor a ação,
em 2016. 

Na prisão desde 7 de abril, Lula lê o livro A Elite do Atraso e tem uma tevê, única
concessão de Sergio Moro. Na terça-feira 10, nove governadores amigos dele, a
maioria do Nordeste, tentaram, mas não puderam visitá-lo, pois o juiz não deixou.
Saíram dali a anunciar que iriam a Cármen contra os “abusos” de Moro. Adianta?
Entre antipetistas, a mineira é vista quase como uma versão feminina do juiz de
Curitiba, ao menos no caso Lula. Quando Lula decolava em um avião da PF do
Aeroporto de Congonhas rumo a Curitiba, alguém disse na frequência de rádio da
Aeronáutica: “Leva e não traz nunca mais”. Na chegada ao destino, outra pérola:
“Manda esse lixo janela abaixo”. Os áudios são autênticos, mas, segundo a FAB, as
frases não foram ditas por controlador de voo, a frequência é aberta e pode ser
acessada por estranhos. Esquisito. Após o comentário sobre o “lixo”, uma voz
feminina pede cuidado e que fosse usada a “fraseologia” padrão, pois a gravação
da conversa poderia ser usada contra todos ali. 

Cada vez mais envolvido no escândalo do Porto de Santos, que


pode dizer Temer sobre corrupção na cúpula das Américas?

Enquanto as piadas corriam nas ondas da Aeronáutica, um delegado da PF, Milton


Fornazari Junior, da divisão de combate à corrupção e crimes financeiros,
comentava no Facebook: “Agora é hora de serem investigados, processados e
presos os outros líderes de viés ideológico diverso, que se beneficiaram dos
mesmos esquemas ilícitos que sempre existiram no Brasil (Temer, Alckmin, Aécio
etc.)”. Se só Lula for preso, “tudo poderá entrar para a história como uma
perseguição política”. Apagou o comentário no dia seguinte, mas era tarde. Na
segunda-feira 9, a PF avisou que tomaria medidas administrativo-disciplinares
contra ele, reação condenada pela associação dos delegados, a ADPF, que
defendeu que Fornazari Jr. não podia ser punido por uma opinião. 

Opinião com jeito de profecia. Na quarta-feira 11, a juíza Nancy Andrighi, do


Superior Tribunal de Justiça, mandou para a Justiça Eleitoral paulista um inquérito
aberto em novembro contra o presidenciável do PSDB, Geraldo Alckmin, com base
em três delações da Odebrecht. Após o tucano deixar o governo e perder o foro
privilegiado do STJ, o MPF em São Paulo queria o caso com um juiz de primeira
instância e pediu isso ao número 2 da PGR em Brasília, Luciano Mariz Maia, que
atua no STJ. Por ordem da “xerife” Raquel Dodge, Maia propôs à juíza Nancy o
envio do processo à Justiça Eleitoral, onde Alckmin será investigado apenas por
caixa 2, não por corrupção nem pela Operação Lava Jato. É por essas e outras que
Raquel é chamada de “tucana” por certos colegas. Consolo para Fornazari Jr.:
Paulo Preto, o prestador de serviços sujos ao PSDB paulista, foi preso
preventivamente. 

Na
As autoridades barradas por Sergio Moro pretendem recorrer a Carminha. Adianta?

presidência do Supremo, Cármen também socorre tucano. Em setembro, seu


conterrâneo Aécio Neves amargou um castigo noturno e o afastamento do mandato
de senador, em um julgamento com 5 dos 11 juízes do STF. Diante da revolta
tucana no Senado, Cármen sacou da gaveta uma ação de 2016 proposta por
aliados de Eduardo Cunha. Os cunhistas defendiam que o ídolo só poderia ter sido
tirado pelo STF do comando da Câmara se os deputados tivessem permitido. O
jeitinho de Cármen seria aplicar essa lógica ao caso Aécio, em um julgamento
plenário. Deu certo. E com o voto de Minerva dela. Por 6 a 5, o Supremo decidiu em
outubro que Aécio ficaria longe do mandato apenas se o Senado deixasse. O aval
não foi dado. 

Mas até que Carminha pode ser dura com conterrâneo – ao menos se for petista.
Acusado de corrupção na Operação Acrônimo, o governador Fernando Pimentel
conseguiu do STJ, em outubro de 2016, uma decisão que impunha autorização
prévia da Assembleia Legislativa ao andamento de processos contra ele. A
oposição a Pimentel achava o contrário e foi ao Supremo, com uma ação que, para
vencer, precisava de no mínimo 6 dos 11 votos, regra em questões constitucionais.
A ação foi julgada em março de 2017, com dois juízes ausentes. Houve 5 votos a
favor da ação e 4 para ela ser arquivada com base em um argumento da PGR.
Cármen poderia ter encerrado o julgamento, e Pimentel venceria. Resolveu tirar o
caso de pauta e esperar um dia sem desfalques. Quando isso ocorreu, Pimentel
perdeu. “Foi vingança da Cármen”, afirma um advogado que transita nas cortes de
Brasília. O motivo, diz, é que na época em que Lula a indicou ao STF, em 2006,
Pimentel apoiava outra procuradora mineira, Misabel Derzi. 
Terminal de Libra: para Temer, os problemas no Porto de Santos avolumam-se

Hoje Pimentel é réu no STJ, decisão tomada em dezembro. E Temer, o amigo de


Carminha? Terá de encarar uma terceira denúncia criminal? Seu camarada de 40
anos José Yunes e seu nebuloso colaborador João Batista Lima Filho, o coronel
Lima, acabam de virar réus em Brasília no processo conhecido como “Quadrilhão
do MDB”. A dupla também é personagem do inquérito sobre o Porto de Santos,
tema que pode custar aquela nova denúncia contra o presidente. Rolos nessa seara
não faltam. CartaCapitaldescobriu outro, de novo a envolver o grupo Libra, da
família Borges Torrealba, financiadora de campanha de Temer e Cunha. 

Libra tinha um contrato de 1998 com o Porto que foi renovado em setembro de
2015. Ao mesmo tempo, as duas partes fizeram um acordo para resolver fora dos
tribunais uma disputa de 2,8 bilhões de reais em valores de hoje. A solução da briga
através de arbitragem foi possível graças à parceria Temer-Cunha na votação, em
2013, de uma medida provisória baixada por Dilma Rousseff em 2012. A
autorização para a arbitragem foi dada nessa lei. Para ir à arbitragem, Libra e o
Porto teriam de concordar em tirar da Justiça as ações movidas contra o outro lado.
Agora se sabe que o Porto se esqueceu, digamos assim, de retirar uma delas. A
única que perdia, uma lambança – se é que foi lambança – de mais de 2 milhões de
reais. 
Fornazari Jr. dispunha-se a investigar Aécio. Logo desistiu. O ministro Edinho, nomeado por
Dilma, prometia salvar Temer

Esse caso começou em 2008 na 2a Vara Cível de Santos. O Porto processou Libra,
mas errou o nome de Libra na ação. A barbeiragem bastou para o juiz Claudio
Teixeira Villar arquivar o assunto. Os advogados de Libra queriam seus honorários
mesmo assim. Convenceram o juiz e este, em junho de 2015, determinou ao Porto
que pagasse 1,3 milhão de reais, mais 1% de multa e um adicional de 10% adiante.
Naquele momento, Libra, o Porto e o Ministério dos Portos negociavam os termos
da arbitragem. Era a chance de os órgãos públicos matarem a ação de 2008 e
pouparem o Erário. Em 2 de setembro de 2015, saiu o acordo quanto aos termos da
arbitragem. O primeiro a assinar era o então ministro dos Portos, Edinho Araújo.
Que Temer havia pressionado para Dilma nomear, pois era a garantia de salvação
de Libra. Pelo acordo, nove ações seriam retiradas da Justiça. A da 2a Vara Cível
não estava na lista. 

Em dezembro de 2016, o juiz Villar fixou os valores finais que o porto teria de pagar
aos advogados de Libra: 2,1 milhões de reais. O pagamento foi feito, e o caso
acabou em junho de 2017. Quem recebeu a grana foi o escritório do advogado
Daltro de Campos Borges Filho, defensor de Libra na arbitragem. “Com esse valor,
e dado o pouco trabalho que o escritório teve nessa ação, foi como se o Porto
tivesse antecipado os honorários dos caras para a arbitragem”, diz uma pessoa
participante da disputa arbitral entre Libra e Santos. Será que Edinho e o Porto
deixaram a ação de 2008 de fora para ajudar Libra a custear os advogados? É de
4,5 milhões o honorário da banca que atende o Porto, Wald Advogados. Com esse
tipo de rolos a cercá-lo, que cara e discurso Temer levaria dias 13 e 14 à Cúpula
das Américas sobre corrupção, desfalcada de última hora de Donald Trump e sem
Nicolás Maduro, da Venezuela, contra quem, parece, o encontro seria usado? E aí,
presidente da República Cármen Lúcia, qual o palpite sobre o desempenho do
amigo? • 

ÍNDICE

 CRÉDITOS DA PÁGINA: Wilson Dias/ABr, Douglas Magno/AFP, Nelson Jr/STF, Rosinei Coutinho/STF, Bob
Duarte/Fotoarena, Antonio Cruz/ABr, Joka Madruga/Ag. Pt, José Patrício/Estadão Conteúdo, Marcelo Camargo/Abr,
Gerdan Wesley e Rovena Rosa/ABr
Uma multidão de Lulas
Quem são e o que pensam os acampados nas imediações da Superintendência da
Polícia Federal em Curitiba

Por René Ruschel

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A militância mantém vivo o acampamento

A professora Claudia Mortari Schmidt filiou-se ao Partido dos Trabalhadores na


tarde do sábado 7. Ela não imaginava, porém, que seu primeiro dia como militante
oficial quase terminaria em tragédia. Schmidt estava entre os cerca de 600
apoiadores de Lula aglomerados no portão principal da Superintendência da Polícia
Federal, em Curitiba, à espera da chegada do ex-presidente, quando foram
atacados por bombas de efeito moral e balas de borracha. Saiu ilesa. 
Nos dias seguintes, a professora engrossou o grupo de manifestantes que transita
pelas ruas ao redor da PF. Além de gritar palavras de ordem e ouvir os
pronunciamentos, Schmidt distribui roupas e convida mulheres acampadas a tomar
banho em residências particulares. “É o mínimo que posso fazer por esse pessoal
que veio de tão longe.” 
Schmidt destoa do perfil da maioria das curitibanas de sua classe social. É casada
com um major do Exército Brasileiro, e um de seus filhos, formado pela Academia
Militar das Agulhas Negras, ocupa a patente de capitão, mas a família não
influencia suas posições. O DNA progressista herdou da mãe, ex-militante do
Partido Comunista Brasileiro. “Meu marido e meu filho, embora discordem de
minhas posições políticas, respeitam. O que nos diferencia é que os militares não
são treinados para se preocupar com questões sociais.” 

“Não tenho dúvidas de que ele é um preso político e lutar por sua
liberdade é lutar pela nossa liberdade”, diz o jornalista uruguaio
Gabriel Mazzarovich

Caminhar pelas cercanias da PF, no bairro de Santa Cândida, em Curitiba, seria um


ótimo exercício para esses militares de plantão. Equivale a uma aula prática sobre
as carências sociais na era Temer. Homens e mulheres acampados sonham em
retomar uma vida melhor, com mais oportunidades. Mas essas disciplinas, de fato,
não contemplam os interesses da caserna. Um documento interno, de circulação
restrita e assinado pelo comando da 5ª Região Militar, proibiu a tropa de transitar,
fardados ou à paisana, nas imediações. 
Se os militares, e os curitibanos de forma geral, conhecessem a história de Ari
Xavier, 68 anos, que deixou o acampamento Zattarlândia, no qual vivem cerca de
cem famílias, na pequena Pinhão, região central do Paraná, talvez pudessem
entender os campesinos. “A gente só quer regularizar nossa situação, depois
plantar e produzir alimentos. Queremos um pedaço de terra para criar nossos
filhos.” No governo Lula, lembra o agricultor, a vida era melhor. “Hoje, para
sobreviver, temos de trabalhar como boias-frias em colheitas de batata e fazer bicos
na cidade.” Além de Xavier, outros 109 pequenos agricultores do Zatalândia
alugaram dois ônibus, trouxeram alimentos, improvisaram a cozinha e dormem em
barracas. “Nossa presença é o nosso protesto pela liberdade de Lula”, afirmou. 

No acampamento da PF, Xavier e sua turma encontraram as cearenses Cristiane


Farias, tradutora e intérprete na Língua Brasileira de Sinais, e Antônia Félix,
professora e mestre em Políticas Públicas. “Lula mudou a cara deste País. A grande
mudança foi a inclusão social de todos os movimentos historicamente excluídos.
Pela primeira vez, milhões tiveram acesso a água e luz. Pode parecer pouco para
quem tem muito, mas, para nós, nordestinos, é quase tudo”, resume Antônia. 
O baiano Marcelo de Souza, 29 anos, recém-formado em Engenharia Elétrica, não
pensou duas vezes. Saiu de Eunápolis para pedir liberdade a Lula. “Minha família é
muito pobre. Eu não teria condições de concluir o ensino superior. Estudei o ensino
médio no Cefet e me formei pela Universidade Federal da Bahia. Ambos os cursos
foram criados por Lula na minha cidade. Não aguentei ficar em casa. Embarquei
sozinho e estou aqui para ser, também, a sua voz.” 

A professora Claudia Schmidt distribui roupas e providencia banho para quem precisa

Para o jornalista uruguaio Gabriel Maz-zarovich, editor do semanário El Popular, a


prisão de Lula não produz reflexos apenas no Brasil, mas em toda a América Latina.
“Sua liderança ultrapassa as fronteiras brasileiras. Não tenho dúvidas de que ele é
um preso político e lutar por sua liberdade é lutar pela nossa liberdade no Uruguai.”
Mazzarovich justifica sua presença em Curitiba: “Não podemos nos calar, não
podemos esperar. Viemos aqui hoje para nos solidarizar com os brasileiros e dizer
que ninguém pode encarcerar nossos sonhos. Lula representa a esperança do
Brasil e da América Latina”. 
A vigília transformou-se em um pacífico movimento de protesto. Além dos militantes
e acampados, jovens, estudantes, idosos e famílias com crianças misturam-se no
entorno da superintendência. A esquina de uma das ruas que dão acesso à sede da
PF, onde militares do Bope fortemente armados aguardavam quem fugia das
bombas no sábado à noite, foi batizada de Praça Olga Benario. Ali, diariamente, um
palco improvisado transforma-se em tribuna livre. São realizadas apresentações
culturais e os oradores se revezam. Pela manhã, os militantes aglomeram-se para,
em alto e bom som, dar um “bom dia” coletivo ao ex-presidente, encarcerado a
pouco mais de 100 metros do local. 

Na
Ari Xavier e outros 109 pequenos agricultores saíram de Pinhão para a vigília em Curitiba

barraca vizinha, é possível escrever cartas para Lula. Depositadas em uma


pequena caixa, as correspondências são depois entregues no setor de protocolos
da Polícia Federal. “Fiquei muito emocionado enquanto escrevia. Ele não me
conhece, não sabe quem sou eu, mas é uma forma de dar forças nessas horas
difíceis e dizer obrigado por tudo o que ele fez por nós, os mais pobres”, afirmou o
eletricista Devanir Pereira de Santana, 56 anos. 
Na terça-feira 10, oito governadores e três senadores foram impedidos de visitar
Lula. O pedido foi negado pela juíza Carolina Moura Lebos, da 12ª Vara de
Execuções Penais. “Trata-se de mais uma arbitrariedade, uma agressão ao bom
senso. Obviamente, é outro abuso judicial contra Lula”, afirmou na saída o
governador do Maranhão, Flávio Dino, porta-voz do grupo.
Marlene Betiol, 62 anos, cozinheira, resolveu “dar uma olhada no movimento”,
quando retornava do trabalho na segunda-feira 9. Desembarcou em um dos
maiores terminais de ônibus da cidade, a cerca de 500 metros do acampamento.
“Votei no Lula. Ele fez um bom governo. No restaurante que trabalho a gente era
em 23 na cozinha. Agora só tem 12. E já falam em diminuir. Tenho fé que ele vai
voltar.” 

O apoio a Lula incomoda a Polícia Federal. Na quarta-feira 11, o Sindicato dos


Delegados solicitou a transferência do ex-presidente para outra prisão. Segundo a
associação, o entorno da superintendência foi alvo de “uma invasão de movimentos
sociais e outras facções”. 
Enquanto a multidão permanece em vigília em Curitiba, as investigações do
atentado à caravana de Lula em Quedas do Iguaçu avança lentamente. A polícia
apura se os tiros partiram da propriedade de Leandro Bonotto, fazendeiro em
disputa judicial com o MST pela posse de terras na região. Foram dois disparos.
Uma das balas alojou-se debaixo da cadeira do jornalista Gianni Carta, que
acompanhava a viagem do ex-presidente Lula pelo Sul para a produção de um
documentário francês. O outro, por causa da distância, não conseguiu perfurar a
janela do ônibus. Caso contrário, teria atingido a cabeça de Clarice Cardoso, da
equipe de comunicação do PT. • 

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 CRÉDITOS DA PÁGINA: Leandro Taques e René Ruschel


Autoritarismo e
resistência
É clara a intenção persecutória contra Lula. Como é claro o fortalecimento de sua
imagem

Por Pedro Estevam Serrano*

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Os desembargadores do TRF4 validam a perseguição política

Há tempos tenho afirmado que, como regra geral no mundo ocidental, o


autoritarismo deixou de se manifestar pela forma de governos ou de estados de
exceção típicos e passaram a ser externados por meio de medidas de exceção,
que, embora sob uma roupagem democrática, trazem em si conteúdo
extremamente tirânico ou arbitrário. 
No Primeiro Mundo, essas medidas de exceção apresentam duas características
essenciais. Primeiro, trata-se de atos que fortalecem o Executivo, ou seja, o Poder
Executivo é o autor, o soberano que impõe a exceção. Em segundo lugar, são
medidas justificadas pela necessidade de se combater o inimigo social, figura
inerente à prática de exceção, que, no caso específico, é o estrangeiro, o
muçulmano associado ao terrorismo. Utiliza-se para tanto um regime jurídico
especial de suspensão de direitos vocacionado apenas para o ambiente jurídico da
segurança nacional onde se aplicam essas medidas de exceção. 

Na América Latina, e marcadamente no Brasil, o autoritarismo manifesta-se com


características diferentes. Ainda que não sejam raros os atos de exceção
promovidos pelo Legislativo e pelo Executivo, o vértice desse paradigma é o
sistema de Justiça, que produz ou referenda, normalmente, dois tipos básicos de
medidas de exceção: impeachments inconstitucionais que suspendem o ciclo
democrático, casos de Honduras, Paraguai e Brasil, e processos penais de exceção
que visam fazer o controle social da pobreza. Elegem-se como inimigos o “bandido”
ou, sobretudo mais recentemente, figuras políticas do campo da esquerda. 
Essas medidas de exceção, num entendimento mais abrangente, significam o
esvaziamento de sentido das constituições do pós-Guerra e da Constituição
brasileira de 1988, instaurando, como observa o jurista Luigi Ferrajoli, um processo
ou um poder desconstituinte. 
Exemplo desse fenômeno de processo penal de exceção, termo precisamente
alcunhado pelo jovem advogado Fernando Hideo Lacerda, é a ação instaurada
contra o ex-presidente Lula. 

A análise desse caso emblemático tem sido feita por inúmeros juristas, inclusive
pelos que reuniram seus pontos de vista no livro Comentários a uma Sentença
Anunciada: O processo Lula, para o qual contribuí com o texto “A sentença de Lula
como medida de exceção”. 
O processo penal contra Lula serviu apenas para maquiar a persecução política da
qual é vítima, o que se evidenciou do começo aos últimos momentos do processo
antes da sua prisão. O ex-presidente foi julgado por uma acusação logicamente
incongruente e condenado por uma causa criada na hora da sentença, deslocada
da acusação original contra a qual se defendeu. 
Depois, seguiram-se a rejeição do pedido de habeas corpus pelo STF e a forma
abrupta como se deu a ordem de prisão, descumprindo decisão da própria Corte,
que determinava que a execução da pena ocorresse somente após o fim do
processo em segunda instância. 

O ex-presidente foi vítima de uma contumácia na prática de


decisões tirânicas, o que o transforma em alvo de medida de
exceção
Os advogados do ex-presidente declararam que ainda não tinham sido intimados da
decisão sobre os embargos de declaração impetrados anteriormente, e que ainda
não estavam exauridos, o que demonstra que a prisão teve o claro objetivo de evitar
que Lula adotasse medidas legítimas de defesa de seus direitos. Por todos esses
fatos, a medida de prisão é o que chamamos no Direito de inexistência jurídica, uma
agressão elevada à ordem jurídica, às suas próprias regras mínimas de pertinência
ao sistema. 
Tais equívocos não são meras nulidades ocasionais. O ex-presidente foi vítima de
uma contumácia na prática de decisões tirânicas, o que o caracteriza como alvo de
medida de exceção. 
Determinada a ordem de prisão, reproduziu-se na mídia uma série de
incompreensões sobre seu conteúdo. O juiz Sergio Moro estabeleceu o prazo de 24
horas para o réu se apresentar, uma incorreção. A ordem não é dada ao réu, que
não é obrigado a se entregar, mas à polícia, para que a execute. Assim, o que
houve de fato foi a suspensão dos efeitos dessa determinação pelo período
estabelecido, para aguardar que Lula se entregasse. Essa decisão deixa claro que
não havia suspeita de evasão do réu, o que derruba qualquer hipótese de
emergência na decisão. 

Em nenhum momento o ex-presidente pode ser apontado como desobediente da


ordem, pois estava em lugar conhecido, o que pôde ser acompanhado ao vivo pela
tevê. 
No plano político, entretanto, Lula teve a oportunidade de demonstrar uma
desobediência civil simbólica que chamou a atenção do mundo para o fato de que
ele, a partir de então, é um preso político, e não um detento comum. 
Como se sabe, toda medida de exceção suspende direitos, retirando daquele ou
daqueles que são seus alvos a condição humana entendida em seu sentido jurídico,
ou seja, suprimindo a proteção a que todo ser humano tem direito na esfera política
e jurídica. Tal proteção foi retirada de Lula, que não teve seus direitos mínimos
assegurados. 

O que talvez não estivesse previsto é que trabalhadores e militantes, por meio da
sua mobilização e comovido apoio, recuperariam a ideia de dignidade política do ex-
presidente, gerando solidariedade em todo o ambiente da esquerda democrática no
mundo. 
Quando Lula disse que não era mais uma pessoa, mas uma ideia, traduziu essa
percepção. Ao defender sua vida simbólica com um ato de aparente desobediência
civil, que não foi de fato uma desobediência, pois ele não se contrapôs à máquina
judiciária do Estado, Lula mostrou que as arbitrariedades lançadas contra si não
foram suficientes para aniquilá-lo. Antes, o simbolismo do ato no sindicato dos
metalúrgicos, onde o ex-presidente se viu cercado pela proteção e pela resistência
dos trabalhadores, demonstrou que Lula está vivo e, ao menos no campo das
ideias, ainda mais forte. • 

*Advogado e professor de Direito da PUC-SP


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 CRÉDITOS DA PÁGINA: Sylvio Sirangelo/TRF4


Preso político
A resistência no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC entra para a história do país

Por Guilherme Boulos

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No sábado 7 o juiz Sergio Moro realizou seu último ato espetacular ao prender o ex-
presidente Lula. Foi o dia D da Operação Lava Jato. Consumou-se a farsa judicial,
marcada por uma condenação sem provas, um processo repleto de irregularidades
e o flagrante desrespeito da maioria do Supremo Tribunal Federal à Constituição,
no que tange à prisão sem trânsito em julgado. O processo do triplex era, de longe,
o mais frágil de todos os movidos contra Lula, ao ponto de fazer lembrar O
Processo, de Franz Kafka. Mas era o único capaz de inviabilizar sua candidatura,
dados os prazos judiciais. 
Foi uma condenação sob encomenda, com viés casuístico e eleitoral. Manteve-se a
aparência do rito judicial, em alguns momentos nem isso, mas as cartas estavam
marcadas. Visivelmente, Moro e os trigêmeos do TRF4 tinham pronto o juízo
condenatório antes mesmo de qualquer audiência. A defesa não era escutada,
apenas tolerada ritualmente. Lula é, portanto, um preso político. 

Por essa razão, os dias de resistência no Sindicato dos Metalúrgicos de São


Bernardo do Campo ganharam uma conotação histórica. Um capítulo a mais numa
história bem conhecida, um déjà-vu da conjuntura que levou ao suicídio de Getúlio
Vargas e à derrubada de Jango. Uma vez mais o Brasil diante de sua disjuntiva
eterna: ante uma mobilização popular de resistência, por Lula, pela democracia e
por um horizonte de consolidação de direitos de todos, a faca afiada e arbitrária de
Moro, que tudo pode. A faca odiosa da hipocrisia do novo paladino da moral da
casa-grande. Daquele que vive em apartamento próprio, e confortável, mas recebe
seu auxílio-moradia como “jeitinho” para atualizar um salário exclusivo a menos de
1% dos brasileiros. 
Diante de um quadro tão flagrante de afronta à Constituição e aos direitos de Lula a
um juízo justo e imparcial, o aspecto mais funesto do ponto de vista jurídico se
revelou com o apequenamento do Supremo às permanentes chantagens da Rede
Globo e às ameaças por parte de uma corporação militar, historicamente impune no
nosso País. A mesma Rede Globo que, recordemos, no primeiro dia da ditadura de
1964, noticiou: “Ressurge a democracia no Brasil”. 

Contra o fascismo, contra a barbárie, não se brinca. Ou nos unimos


ou morremos. Quantos mais de nós necessitam ser detidos?
Quantos mais de nós necessitam ser mortos?

No caso dos militares, a situação é ainda mais preocupante. Não por se tratar da
enésima bravata anacrônica e corporativista, recorrentes nas últimas décadas, de
algum general de pijama. Desta vez, atentando diretamente contra o próprio código
disciplinar das Forças Armadas, quem se colocou politicamente foi o próprio
comandante do Exército Brasileiro, o general Eduardo Villas Bôas. O que deveria
ser tratado como uma questão de Estado, para o golpista Michel Temer e seu
ministro da Defesa tratou-se de mera questão de liberdade de expressão. 
O efeito mais deletério dessa espiral antidemocrática e fascista seria revelado,
porém, no seio da sociedade brasileira, com uma escalada de ódio, sectarismo e
intolerância. A intervenção militar no Rio de Janeiro seria sua expressão
institucional. Os ataques à Caravana de Lula, a coroação social de acosso
e censura experimentados nos últimos meses. Lembremos das exposições culturais
fechadas por razões ideológicas, com manifestos episódios de agressões físicas e
intolerância, como aqueles que sucederam recentemente em São Paulo nas
palestras da filósofa americana Judith Butler. A maior e mais grave expressão foi o
bárbaro assassinato da nossa companheira Marielle Franco, que, apesar de
comover o País, passado um mês de sua morte, continuamos sem saber quem
disparou os tiros. 
A situação obriga a nós, democratas, a uma reflexão profunda. Se não for por
disposição política, que seja então por uma questão de sobrevivência: contra o
fascismo, contra a barbárie, não se brinca. Ou nos unimos ou morremos. Quantos
mais de nós necessitam ser presos? Quantos mais de nós necessitam ser mortos? 
Quem diria que 30 anos após a Cons-tituição que selou o fim da ditadura no Brasil,
ainda teríamos de continuar a assistir à morte de quem defende o que acredita e
outros serem presos por decisão política. 
Diante dessa situação, urge uma Frente Democrática e Antifascista. Nesses
momentos nos quais a História se acelera, não existe espaço para dúvida. A besta
do fascismo pôs suas garras para fora. É nosso dever nos unir para enfrentá-la, nas
ruas e nas urnas. 
Enfrentá-la por justiça no caso de Marielle Franco, pela liberdade de Lula... E pelo
resgate da democracia e pelo respeito à vontade soberana do povo. • 

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 CRÉDITOS DA PÁGINA: René Ruschel


O novo patamar do golpe
Diante da escalada das Arbitrariedades, não se deve descartar a volta da Ditadura

Por Lindbergh Farias*

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Manifestantes em São Paulo pedem a libertação de Lula

Getúlio Vargas ofereceu a própria morte em testamento. Lula ofereceu os


derradeiros anos de vida, feito um cavaleiro da esperança do começo do século
XXI. Ambos viraram o jogo. Responderam àqueles que pensaram os haver
derrotado com a sua própria vitória, que não é uma vitória pessoal, mas de
mensagem e identidade com as causas do sofrido e humilhado povo brasileiro.
Assim disse Lula no território livre do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e
Diadema: “Não adianta tentar acabar com as minhas ideias, elas já estão pairando
no ar e não tem como prendê-las (…) Não adianta parar o meu sonho, porque,
quando eu parar de sonhar, eu sonharei pela cabeça de vocês e pelos sonhos de
vocês”. 
 Para Walter Benjamin, articular historicamente o passado não significa conhecê-lo
“como ele de fato foi”, mas se “apropriar de uma reminiscência, tal como ela
relampeja no momento de um perigo”. Por tudo isso, um fio iluminado da história
liga as pontas entre Lula e Vargas: a voz do líder que se faz voz de milhões. A
nossa história, povo, pobres e trabalhadores brasileiros, é a história dos vencidos.
Mas há de chegar o dia em que seremos vencedores. São mensagens possantes,
vocacionadas a se transformar em força material. 
 Estive em São Bernardo e acompanhei de dentro a resistência histórica de Lula no
sindicato do ABC. Ali obtivemos uma imensa vitória política. Qual era o indisfarçável
objetivo político de Sergio Moro? Flagrar Lula cabisbaixo em uma foto, entregue ao
destino traçado por seus algozes. Na palavra da moda, vencer a guerra de
narrativas. 

 É não conhecer a têmpera de Lula. Jamais o principal líder político brasileiro se


entregaria bovinamente. Existem os motivos de ordem fática, plasmados nos
sucessivos desrespeitos, cometidos por Moro, aos princípios da presunção de
inocência e ao devido processo legal. Moro expediu uma “ordem de apresentação
voluntária” de Lula no tempo recorde de 19 minutos. A ação era totalmente
arbitrária, tendo em vista que a defesa ainda tinha prazo para a apresentação de
recursos, os chamados “embargos dos embargos”. Tanto que o presidente do
TRF4, Thompson Flores, afiançava, horas antes, não haver possibilidade de prisão
imediata de Lula.  
As questões jurídicas e processuais têm a sua importância, evidentemente.
Contudo, a decisão de Lula em resistir no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC
obedeceu principalmente a um imperativo de ordem histórica. Lula fora preso pela
Polícia do Exército na greve dos metalúrgicos em 1979, em plena ditadura. Saiu da
prisão para fundar o PT, ao lado de companheiros de luta, no ano seguinte.
Começa aí o movimento de construção democrática que permitiu o pacto político da
Constituição de 1988 e a ascensão de um trabalhador à Presidência da República
em 2002. 
 Infelizmente, por decisão de classe da burguesia brasileira e seus paus-mandados,
desde a consecução do golpe que levou ao impeachment de Dilma Rousseff em
2016, o pacto da Constituição de 1988, cujo mais destacado princípio era o respeito
à alternância democrática de poder, foi rompido. Chegou ao poder o regime de
neoliberalismo ortodoxo de Michel Temer e seus asseclas, conhecidos caciques
partidários da tradicional elite política.   

Estive entre aqueles que achavam que havia espaço para Lula
resistir por mais tempo em São Bernardo. Respeito, no entanto, sua
decisão

Pior, os acontecimentos da bárbara execução de Marielle Franco, o atentado à bala


contra o ônibus da caravana de Lula e a sua prisão, combinados, confirmam que a
crise chegou a um novo patamar em termos de história recente no Brasil. O assim
chamado “centro político” praticamente desapareceu. Os polos da luta política se
deslocaram para a esquerda e a direita.  
 Embora o Brasil não seja ainda uma ditadura (algumas liberdades civis e políticas
teimam em permanecer em vigor), não se deve descartar a evolução do processo
político no rumo de algum tipo de autocracia. O fato é que não vivemos uma
democracia plena. Nicos Poulantzas dizia que o estado de exceção pode ser
plasmado em três alternativas distintas: fascismo, bonapartismo e ditadura. A
tragédia brasileira atual é viver no compasso de espera dessas sombrias
alternativas de futuro. 
 A tragédia ainda não aconteceu, mas precisa ser evitada. A partir dos
acontecimentos da prisão de Lula, o golpe escalou um novo patamar. Para evitar a
tragédia, a esquerda também precisa escalar um novo nível, à altura da
radicalidade do processo histórico. A partir dessa análise, estive entre aqueles que
achavam que havia espaço para Lula resistir por mais tempo em São Bernardo. O
ato de Moro era ilegal e o nosso movimento crescia em termos de apoio popular e
solidariedade internacional. Respeito, no entanto, a decisão de Lula, que preferiu
oferecer a própria liberdade, com altivez e resiliência impressionantes, não sem
antes nos desafiar a intensificar a luta das massas pela democracia.  

Já se escreveu que o discurso de Lula em São Bernardo pode ser comparado à


carta-testamento, pela inegável dimensão histórica. Mas seria precipitado comparar
as circunstâncias. Vargas estava numa situação-limite em 1954. E ofereceu o
próprio corpo tombado em sacrifício para a reconstrução da causa. Diferentemente
de hoje, quando o jogo está em curso. A manutenção da candidatura presidencial
de Lula e a campanha #LulaLivre são os eixos da ampla mobilização social pela
democracia hoje seriamente sob ameaça.  
 Os escribas reacionários investem suas penas para decretar a “morte política de
Lula, do PT e da esquerda”. Mas eles sabem que tais declarações são pura guerra
ideológica, até para o conforto moral de seus exércitos surpreendidos pela força de
nossa resistência. Estamos mais vivos que nunca. A bela foto do jovem Francisco
Proner (Lula carregado nos braços da multidão) demonstra que podemos ser
vitoriosos. Depende de nós. 
Em 1945, na Argentina, Juan Domingo Perón, foi preso. A mobilização das massas
arrancou-o da cadeia em poucos dias. No passo seguinte, foi eleito presidente da
República. Forte sempre é o povo. No Brasil de hoje, a nossa luta, guardadas as
diferenças de tempo e espaço, também é libertar Lula e elegê-lo novamente. • 

*É senador pelo PT-RJ

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 CRÉDITOS DA PÁGINA: Miguel Schincariol/AFP


As masmorras da
liberdade
Os meios de comunicação nativos reivindicam a neutralidade e a isenção.
Ingenuidade ou excesso de esperteza?

Por Luiz Gonzaga Belluzzo

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Agressões não se justificam, tampouco o fato de a mídia ser bastante agradável para uns e
desagradável com outros

Sete da manhã, segunda-feira 9 de abril, ano da graça de 2018. Na posteridade da


prisão de Lula, enfiei os olhos na página de opinião da Folha de S.Paulo. Topei com
o artigo Pau na Imprensa, Tiros na Democracia, assinado por Ricardo Gandour,
diretor-executivo da Rádio CBN e professor da ESPM. 
Na onda de turbações que se seguiram à prisão do ex-presidente Lula, jornalistas
foram hostilizados e agredidos por populares inconformados com o ocorrido. Sob a
inspiração de Michael Schudson, Gandour assevera aos leitores da Folha que as
“democracias precisam de uma imprensa desagradável”. Não há como discordar.
Suspeito que os brasileiros sabem que a grande mídia brasileira é bastante
agradável para uns e desagradável para outros. Resta saber quem são uns e
outros. 
O leitor atilado de CartaCapital há de julgar se, no Brasil, a liberdade de opinião e
de informação vem se ampliando e favorecendo o esclarecimento dos cidadãos ou
se transformando em seu contrário, num exercício do poder monopolista que viola
os direitos reconhecidos como essenciais. 

Há tempos, escrevi nas páginas de nossa brava e sobrevivente CartaCapitala


respeito do relatório final da Comissão sobre a Liberdade de Imprensa nomeada
pelo Congresso dos Estados Unidos no imediato pós-Guerra. Concluído em 1947, o
relatório advertia: existe uma razão inversamente proporcional entre a vasta
influência da imprensa na atualidade e o tamanho do grupo que pode utilizá-la para
expressar suas opiniões. Enquanto a importância da imprensa para o povo
aumentou enormemente com o seu desenvolvimento como meio de comunicação
de massa, “diminuiu em grande escala a proporção de pessoas que podem
expressar suas opiniões e ideias através da imprensa”. 
O relatório procurou apontar “o que a sociedade tem direito de exigir de sua
imprensa”. Definiu duas regras essenciais para o legítimo exercício da liberdade de
informação e de opinião: 1. “Todos os pontos de vista importantes e todos os
interesses da sociedade devem estar representados nos organismos de
comunicação de massa”. 2. “É necessário que a imprensa dê uma ideia dos grupos
que constituem a sociedade. Dizer a verdade a respeito de qualquer grupo social –
sem excluir suas debilidades e vícios – inclui também reconhecer os seus valores,
suas aspirações, seu caráter humano.” 

A liberdade de opinião e de informação vem se ampliando e


favorecendo o esclarecimento dos cidadãos ou se transformando
em seu contrário?

As recomendações exaradas no relatório da Comissão sobre a Liberdade de


Imprensa refletem o espírito do tempo nos Estados Unidos e na Europa Ocidental: a
aposta no aperfeiçoamento dos processos de controle democrático sobre o Estado
e o poder privado. O trauma das duas guerras mundiais e da Grande Depressão
saturou o ambiente intelectual dos anos 40 do século XX da rejeição ao mercado
despótico e ao totalitarismo político. O sociólogo Karl Mannheim, pensador
representativo de sua época, escreveu em 1950 no livro Liberdade, Poder e
Planejamento Democrático: “... não devemos restringir o nosso conceito de poder
ao poder político. Trataremos do poder econômico e administrativo, assim como do
poder de persuasão que se manifesta através da religião, da educação e dos meios
de comunicação de massa, tais como a imprensa, o cinema e a radiodifusão”. Para
Mannheim, deve-se temer menos os governos, que podemos controlar e substituir,
e muito mais os poderes privados que exercem sua influência no “interior” das
sociedades capitalistas. 
Na aurora do século XXI, as forças democráticas sobreviventes, os que ainda
conseguem respirar no “admirável mundo novo” construído pelo capitalismo da
finança e das fake news mal conseguem defender o que restou dos direitos sociais
e econômicos obtidos pelos subalternos no imediato pós-Guerra. 

Os

A mídia realimenta simplificações no afã de manipular a massa informe dos Homer Simpsons,
confessou Bonner

meios de comunicação empresariais nativos reivindicam a neutralidade e a isenção.


Ingenuidade ou excesso de esperteza?  O relatório de 1947 não advoga a
neutralidade impossível, mas reconhece a disparidade de situações sociais e
defende a diversidade de visões do mundo. Compelida pela disputa de audiência a
mídia contemporânea, não raro, é arrastada para o abismo da vulgaridade. O
âncora do Jornal Nacional, William Bonner, conseguiu escapar, certa vez, de seu
teleprompter: confessou que a grande mídia repercute e realimenta as
simplificações e slogans no afã de manipular a “massa informe dos Homer
Simpson”. 
Para manter o status quo, os senhores da informação e da opinião empenham-se
em abastardar as faculdades de compreensão dos indivíduos entregues à solidão
em meio à bulha das multidões. No interior da sociedade de massa, a relação
perversa entre a linguagem midiática e o desamparo dos indivíduos sem relações
acolhedoras instiga a prática de tropelias e brutalidades. As boas intenções de
Ricardo Gandour naufragam nas águas profundas e traiçoeiras da oligarquia
colonial brasileira. 
A defesa da liberdade de opinião e de informação é fundamental para a
sobrevivência do espaço público democrático, mas incompatível com o controle
social e político exercido pelos monopólios midiáticos. Defende seus privilégios com
eficiência crescente numa sociedade encantada pela “inversão” de significados e
pelo ilusionismo da liberdade de escolha do indivíduo-consumidor. A censura da
opinião e até do silêncio alheios, a intimidação sistemática, deve “aparecer” aos
olhos do público consumidor como legítimo exercício dos direitos de opinar, de
informar e de defender a comunidade. • 

ÍNDICE

 CRÉDITOS DA PÁGINA: João Cotta/Tv Globo


Lembranças de outro país
Com Lula, o Brasil andava de cabeça erguida. Sem arrogância, sem bravatas, mas
sem subserviência

Por Paulo Nogueira Batista Jr.

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Para surpresa geral, Lula e Bush estabeleceram uma relação cordial

Hoje quero fazer a minha pequena homenagem ao ex-presidente Lula. Muitos já se


manifestaram sobre ele, nos últimos dias, em textos e depoimentos emocionados e
emocionantes. O que poderia eu acrescentar a tudo que foi dito? Talvez relatar
brevemente episódios que testemunhei e que revelam algumas das muitas
qualidades de Lula. 
Um desses episódios ocorreu em 2009, quando Lula resolveu emprestar dinheiro ao
FMI, algo sem precedentes para um país como o nosso. Na época, eu era diretor-
executivo pelo Brasil e outros países no fundo. Desde 2006, o Brasil acumulava
reservas internacionais em ritmo acelerado e estava em posição forte. Graças a
isso, o País conseguiu atravessar com relativa tranquilidade a aguda crise que
irrompeu em 2008 nos sistemas financeiros dos EUA e da Europa. Os países
desenvolvidos, apavorados com a instabilidade financeira, queriam reforçar
rapidamente o poder de fogo do FMI, criando substanciais linhas de crédito para a
instituição. Pediram aos países emergentes mais fortes, inclusive o Brasil, que
ajudassem na mobilização de recursos. 

O problema é que aportar recursos dessa forma não daria poder de voto adicional
ao Brasil no FMI. A reforma da instituição caminhava devagar. Havia sido aprovada
a reforma de quotas e governança de 2008, que melhorara um pouco a posição
relativa do Brasil e de outros países em desenvolvimento em termos de poder de
voto. Mas a segunda etapa da reforma, que prometia avanços mais expressivos,
estava ainda em negociação. 
Manifestei ao governo brasileiro a minha avaliação de que seria melhor obter
avanços em termos de reforma da governança do FMI antes de fazer qualquer
empréstimo. O presidente Lula não aceitou as minhas ponderações e autorizou a
abertura de uma linha de crédito de 10 bilhões de dólares ao fundo. 

Não demorou muito para que ficasse claro para mim que ele estava certo e eu
errado. O tino político do presidente valeu mais do que os cálculos do economista.
O impacto da decisão foi enorme, tanto fora quanto especialmente dentro do País.
O Brasil, devedor contumaz, e às vezes relapso, estava agora na condição de
credor da mais importante instituição financeira multilateral. Foi um verdadeiro tiro
de canhão no nosso proverbial complexo de vira-lata. 
Além disso, a operação se revestia de características especiais. O FMI é um risco
de crédito sólido, a remuneração não era muito inferior à rentabilidade média das
nossas reservas internacionais e qualquer desembolso feito ao abrigo da linha de
crédito tinha liquidez total assegurada pelo FMI e poderia, portanto, continuar a ser
contabilizado como parte das reservas brasileiras. Mudava a composição, não o
nível das reservas. 

O ex-presidente desempenhou o papel central na transformação do


G-20 no principal foro para a cooperação econômica internacional

Esse episódio com o FMI insere-se em um movimento mais amplo de fortalecimento


da posição internacional do Brasil, iniciado por Lula no seu primeiro mandato.
Desde o início, ele revelou um talento especial para a articulação internacional. Em
poucos anos, ele se tornou conhecido e respeitado no mundo inteiro por governos
das mais variadas tendências. 
Para a surpresa geral, estabeleceu por exemplo uma relação cordial com o
presidente dos EUA, George W. Bush. Isso permitiu que Lula desempenhasse um
papel-chave na transformação do G-20 – que inclui os principais países emergentes
– no principal foro para cooperação econômica internacional em substituição ao G-
7, composto exclusivamente pelos principais países desenvolvidos. Desde a
primeira reunião de líderes do G-20, em Washington, no fim de 2008, Lula foi uma
presença marcante, verdadeiro orgulho para os brasileiros que, como eu,
acompanhavam de perto a sua atuação. 
Quando me lembro dessa época, leitor, fico com a sensação de estar tratando de
outro país, não deste em que hoje vivemos. Com Lula, o Brasil andava sempre de
cabeça erguida. Sem arrogância, sem bravatas, mas sem a subserviência que
caracteriza o comportamento de grande parte da elite brasileira. 

Outro traço notável de Lula: o poder nunca lhe subiu à cabeça e nunca o afastou
das suas raízes. Passei os últimos dez anos no exterior, primeiro em Washington e
depois em Xangai, mas sempre que vinha ao Brasil procurava fazer uma visita a
ele. Numa dessas visitas, aconteceu algo curioso. 
Ao final do nosso encontro, ele me perguntou se eu não gostaria de participar da
próxima reunião na sua agenda, que era com as lideranças de catadores de lixo.
Aceitei e acabei presenciando um diálogo muito interessante. Vieram lideranças do
Brasil inteiro, homens e mulheres, pessoas articuladas e inteligentes,
representantes de um movimento social organizado. Lula conhecia todo mundo e
mostrou impressionante domínio dos detalhes do trabalho dos catadores, da história
do movimento e das suas reivindicações. 
O que mais me ficou na lembrança foi, porém, a natureza da relação entre Lula e as
lideranças de um movimento popular. A relação era de respeito, mas não de
veneração e muito menos adulação. As lideranças questionavam, sem
constrangimento, algumas das afirmações de Lula, que aceitava as contestações
com toda naturalidade. Era o diálogo franco e substantivo de um líder político
natural, autenticamente democrático, com integrantes da sua base social. 
Saí dali energizado, confiante de que o Brasil estava entrando em nova etapa da
sua história. • 

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 CRÉDITOS DA PÁGINA: Charles Dharapak/AP


Exército de ocupação
Com a militarização da segurança, igual aos tempos da Ditadura, o povo brasileiro
torna-se o inimigo das nossas Forças Armadas

Por Leneide Duarte-Plon, de Paris

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Na intervenção francesa em Argel, a casbah sofreu o mesmo cerco que agora agride as favelas no
Rio
 

Depois da ocupação do Rio de Janeiro pelo Exército, li, estarrecida, declarações do


ministro da Justiça. Ele usava todo o arsenal linguístico dos militares da ditadura.
Impregnados pelos ensinamentos da “escola francesa” ou “doutrina francesa” para
reprimir e erradicar a “subversão” no Brasil, como chamavam qualquer resistência,
armada ou não, à ditadura, os militares brasileiros matavam outros brasileiros. 
Pouco mais um mês após a morte de Carlos Marighella, assassinado por Sérgio
Fleury e seus capangas, em novembro de 1969, exilados brasileiros em Paris e
franceses solidários na oposição à ditadura organizaram uma manifestação em
Paris. Falando a milhares de pessoas, ao lado de Miguel Arraes e diante de uma
enorme foto do grande teórico e militante destemido da luta urbana, Jean-Paul
Sartre perguntou: “Contra quem treinam os soldados brasileiros no Panamá ou nos
Estados Unidos? Contra os soviéticos? Contra os chineses? Ninguém pode pensar
numa invasão do Brasil por soviéticos ou chineses. Na verdade, os brasileiros estão
entregando seus soldados aos americanos, para que estes lhes ensinem a atirar no
povo brasileiro. O Exército serve cada vez menos para preparar a defesa contra um
eventual agressor externo. Ele se prepara para reforçar a repressão interna”. 

Dizia Sartre em 1970: não há como imaginar um ataque chinês ou


soviético ao Brasil. Os EUA ensinam os soldados do Brasil a atirar
no seu próprio povo

O que mudou desde aqueles dias? Hoje não há mais a União Soviética, mas o
Exército está sendo treinado para defender interesses que não são os do povo
brasileiro. Em plena Guerra Fria, em 1963, a convite do presidente John Kennedy,
que conhecia a experiência dos franceses em duas guerras coloniais (na Indochina
e na Argélia), oficiais franceses foram enviados aos Estados Unidos para ministrar
aos americanos as lições da Batalha de Argel. Entre os oficiais estava o então
coronel Paul Aussaresses, que escreveu dois livros sobre suas experiências
naquelas guerras e a quem entrevistei longamente para meu livro A Tortura como
Arma de Guerra, da Argélia ao Brasil. 
As técnicas dos interrogatórios sob tortura eram o cerne da doutrina francesa, para
combater a “guerra revolucionária” teorizada por Mao Tsé-tung. Confrontados aos
vietcongues na então Indochina francesa e, posteriormente, aos independentistas
na Argélia, então departamento da França, os franceses desenvolveram a chamada
“guerra moderna” teorizada no livro homônimo do coronel Roger Trinquier. 
A Indochina foi um verdadeiro laboratório para os franceses. Nessa primeira guerra
de libertação nacional que enfrentavam, os militares franceses se depararam, como
ensinariam depois, com “um inimigo sem uniforme, extremamente móvel,
disseminado na população civil, combatendo através de táticas de guerrilha”. 

As

Aussaresses, mestre em tortura também no Brasil

palavras do ministro da Justiça me transportaram aos ensinamentos dos franceses.


Ele falou claramente de “guerra moderna”, dificuldade para identificar o inimigo que
se esconde no meio das populações civis, o fato de o inimigo não usar uniforme, o
fato de nessa guerra não haver um campo de batalha definido. Sem dizer, ele citava
Trinquier, com as mesmas palavras. 
Assustador reencontrar o mesmo vocabulário e conceitos disseminados pela escola
francesa, cujos expoentes foram treinar os militares norte-americanos para
enfrentar o antigo inimigo dos franceses, os vietcongues, dirigidos pelo general
Giap. Nos fortes Bragg e Benning, Aussaresses deu aulas sobre a Batalha de Argel
a americanos e sul-americanos. Era a teoria francesa da “guerra
contrarrevolucionária”. Era a “guerra moderna”, evocada pelo ministro para falar do
exército de ocupação em solo brasileiro. 
Fica claro que o Rio de Janeiro também está sendo usado como laboratório de
ações, que o ministro considera uma guerra, contra as populações vistas como
ameaçadoras, um “inimigo interno”. Não mais os “subversivos”, mas os habitantes
das periferias pobres e favelas, potenciais aliados dos narcotraficantes. Ora, os
pobres do apartheid brasileiro são afrodescendentes na grande maioria. Isso
equivale a uma declaração de guerra aos negros, mulatos e pardos transformados
em suspeitos? 

Como na Guerra da Argélia, quando o Parlamento francês votou, em 1957,


“poderes especiais” ao Exército, enviado da metrópole desde 1954 para reprimir a
insurreição independentista, o Exército brasileiro também foi investido da função de
polícia. 
Durante a Batalha de Argel, que durou o primeiro semestre de 1957, obedecendo
aos princípios da “guerra moderna”, os soldados franceses mapearam a casbah,
que correspondia em densidade demográfica às nossas favelas. Suas ruas
estreitas, com as casas muito próximas, e sua alta demografia eram o esconderijo
ideal para resistentes, que os franceses chamavam de “terroristas”. 
Não é o que os militares brasileiros estão fazendo ao fotografar e identificar cada
habitante das favelas? E quando o ministro diz “não há guerra que não seja letal”,
não está admitindo claramente que o Brasil começou uma guerra e que ela vai
gerar muitos mortos? Quem é o inimigo do Exército brasileiro? Como na ditadura, é
o próprio povo brasileiro. 
Na Indochina e na Argélia, um exército de ocupação, o francês, lutava contra povos
que defendiam sua independência e soberania. O Exército brasileiro, mais uma vez,
está a serviço dos interesses geopolíticos norte-americanos, de suas multinacionais
e de seus aliados brasileiros, pronto a reprimir toda e qualquer manifestação do
povo oprimido. • 

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 CRÉDITOS DA PÁGINA: AFP e Ellan Lustosa/AFP


Capital pelo esgoto
ECONOMIA Não só os consumidores, também as empresas perdem com a má gestão
dos recursos hídricos

Por Dal Marcondes

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O Brasil é incapaz de enfrentar essa situação

Ter água em abundância e de boa qualidade é um dos principais vetores da


competitividade internacional do Brasil. Esse capital tem, no entanto, sido corroído
principalmente por descaso e má gestão. Um levantamento realizado pela
organização SOS Mata Atlântica em 230 cursos d’água, divulgado no início de
2018, mostrou que apenas 4,1% das amostras avaliadas tem água de boa
qualidade, enquanto 75,5% foram considerados em situação apenas regular em
termos de contaminação. Além disso, 20,4% dos pontos de coleta estão com a
qualidade da água ruim ou péssima. 
A pesquisa foi feita em 102 municípios de 17 estados e no Distrito Federal, onde
prevalece o bioma Mata Atlântica. Mas a situação se repete nas outras regiões do
País, principalmente por contaminações causadas por esgotos não tratados e
agrotóxicos. 

O médico Eugênio Scanavino, um dos fundadores da ONG Saúde & Alegria, que
atua no oeste do Pará, conta ter se mudado para a região para trabalhar em postos
de saúde. Nos últimos anos, transformou-se, porém, em especialista em projetos de
saneamento básico. “Quando chegava no trabalho pela manhã ia fazendo a
separação na fila, a maior parte dos casos era de diarreia, doença causada pelo
consumo de água contaminada.” Segundo ele, crianças que sofrem de forma
recorrente com diarreias podem ter sua capacidade intelectual comprometida. “O
cérebro é o órgão que mais demanda água nas crianças.” Desde então, a ONG sob
sua direção tem se especializado em implantar sistemas de tratamento de água em
comunidades ribeirinhas na região do Rio Tapajós. 

O Brasil tem um enorme déficit em tratamento de esgotos, em grande parte


lançados sem qualquer cuidado em cursos d’água ou no mar. Há uma grande
necessidade de obras físicas para a solução desse problema, segundo
levantamento realizado pelo Departamento da Indústria da Construção da
Federação das Indústrias de São Paulo. Há no País, aponta o estudo, quase 13
milhões de residências sem acesso às redes de água tratada e 35 milhões sem
coleta de esgotos, pouco mais da metade das moradias nacionais. Os dados
utilizados são de 2015, mas não há nenhum indício de que o cenário tenha
melhorado desde então. Informações da organização Contas Abertas, que cruzam
dados dos ministérios da Saúde, da Integração Nacional, do Desenvolvimento
Social e Agrário e das Cidades, revelam que o investimento em saneamento no
âmbito federal caiu 32% entre 2016 e 2017, e deverá recuar mais 16,6% neste
ano.  

No mundo, há 2 bilhões de seres humanos sem acesso à água


potável

Para zerar o déficit de saneamento até 2032, o Brasil precisaria de 317 bilhões de
reais em investimentos, ou cerca de 16 bilhões por ano, além de melhorar o
planejamento e a gestão nessa área, segundo a organização Trata Brasil, que
compila e analisa informações sobre água e saneamento. Há ainda questões como
o modelo de gestão, baseado principalmente em grandes obras de captação e
transposição de águas, mas pouco vinculados aos ciclos na natureza. 
O coordenador do Programa Mundial de Avaliação dos Recursos Hídricos da
Unesco, Stefan Uhlenbrook, que esteve no Fórum Mundial da Água, em Brasília,
alertou para a necessidade de maior aprendizado com a natureza, como a
preservação de nascentes e outras providências de controle da poluição e
degradação de mananciais. 
“É preciso observar como a natureza amplia a produção de água de qualidade”,
disse Uhlenbrook, e alertou que a maior oferta de produtos agrícolas nos próximos
anos vai depender de uma gestão não apenas como um elemento isolado, mas
como parte integrante de um processo natural complexo que envolve evaporação,
precipitação e absorção pelo solo. 
O Brasil não é um ponto fora da curva, quando se trata de falta de saneamento e
poluição das águas. A ONU alerta que a situação tem piorado em 20 países e que a
universalização dos serviços de coleta e tratamento de esgotos está muito lenta em
outros 89. Em apenas 14 nações a cobertura de saneamento avança para a
universalização em até 12 anos. 
Os números podem ser entendidos de maneira mais clara. São 2 bilhões de seres
humanos sem acesso à água potável no mundo e quase 1 bilhão sem instalações
sanitárias. Os dados constam do rascunho do relatório de monitoramento global da
ONU para o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável, que prevê garantir a
disponibilidade e a gestão sustentável da água e do saneamento para todo o
planeta até 2030. • 

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 CRÉDITOS DA PÁGINA: Adriano Vizoni/Folhapress / CAPA: Istockphoto


“A água tratada tem um
preço”
ENTREVISTA Benedito Braga, presidente do Conselho Mundial da Água, defende as
tarifas. “Melhor que impostos”

A Reinaldo Canto

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O Conselho Mundial da Água não é um órgão das Nações Unidas, como alguns
podem imaginar, mas uma organização com forte lastro na sociedade civil e
apoiada por governos e empresas com visões integradas. De sua sede na
mediterrânea cidade francesa de Marselha, um brasileiro coordena a realização do
Fórum Mundial nas mais diversas partes do mundo. 
O Banco Mundial estima que, para o mundo ter acesso ao abastecimento de água e
saneamento até 2030, seriam necessários investimentos em torno de 50 bilhões de
dólares anuais (165 bilhões de reais, aproximadamente). 
Benedito Braga, presidente do conselho desde 2012, integra um seleto time de
brasileiros que participam da grande política global, entre eles Roberto Azevedo,
diretor-geral da Organização Mundial do Comércio, e José Graziano, diretor-geral
da FAO, órgão das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação. 
Braga é autoridade no assunto. Foi diretor da Agência Nacional de Águas e
presidente do Conselho Brasileiro do Programa Hidrológico Internacional da
Unesco. É também secretário de Saneamento e Recursos Hídricos do Estado de
São Paulo e professor da USP. 

CartaCapital: O que o Fórum deixa como legado depois de uma semana de


debates e eventos? 
Benedito Braga: Atingimos o nosso objetivo de ampliar a participação dos cidadãos
e governos nos processos de decisão sobre a água. Muita gente que não é
especialista passou pelo Fórum. Considero fundamental que a água esteja na
agenda dos cidadãos. Importante foi também a troca de experiências envolvendo a
classe política juntamente com os profissionais que atuam na gestão da água em
diversos níveis. Foi uma oportunidade para a motivação daqueles que tomam
decisões em torno do tema da água. Nosso objetivo principal foi a construção de
pontes entre gestores e especialistas, para garantir a segurança hídrica, tema que
nunca esteve tão em pauta, principalmente no Brasil de hoje. Sua abrangência e
sua ampla participação reforçam o seu caráter aberto e democrático, com a
presença de empresas, governos e ONGs. 

“A questão do financiamento dos serviços é muito séria,


principalmente na América Latina”

CC: O tema “Compartilhando a Água” tem caráter de coletividade... 


BB: Os temas dos fóruns são sempre uma sequência de discussões, mantendo um
diálogo constante e evolutivo. A escolha do tema “Compartilhando Água” foi por
contarmos, ao menos, com 261 países que dividem bacias hidrográficas. Como o
recurso tem se tornado cada vez mais escasso, é fundamental criar políticas
conjuntas que permitam o seu uso racional. O Brasil compartilha os rios da Bacia
Amazônica e a do Paraná/Prata com os nossos vizinhos. Além disso, em nível local,
a crise hídrica tem demonstrado a necessidade de mais colaboração entre os
usuários, para garantir o consumo compartilhado da água. 

CC: O que significa quando dizem que a água é um direito? 


BB: Quando a água está na natureza, temos de tratá-la para ela, depois, ser servida
à população. Isso tem um custo em obras e serviços. A água tratada tem um preço
e tem de ser paga. Se não for por meio de tarifas, terá de ser por meio dos
impostos. Entre as duas, melhor que seja por tarifas, pois dessa forma pagará
apenas quem utilizar essa água de boa qualidade. 
CC: O que muda na gestão da água quando diversas regiões do Brasil e do mundo
começam a sofrer com a escassez? 
BB: Essa crise não é apenas uma ameaça em si, mas um risco amplo, envolvendo
saúde, produção de alimentos e geração de energia, que se reflete na estabilidade
política e social. A segurança hídrica, para ser alcançada, exige proteger a
sociedade de enchentes e secas e ao mesmo tempo garantir níveis aceitáveis de
quantidade e qualidade de água para a saúde dos cidadãos e para a produção. A
garantia do acesso à água está ligada diretamente a investimentos de longo prazo
em infraestrutura, fortalecendo o planejamento, a governança e o uso eficiente dos
recursos. 

Braga: “A participação popular é essencial”

CC: O Brasil tem algo a compartilhar com o mundo quando o assunto é água?
BB: O País tem um aparato legal institucional muito sofisticado, com a participação
da sociedade civil nos comitês de bacia para a tomada de decisão. Foi importante
compartilhar essas experiências com o resto do mundo. Temos aqui uma das
maiores reservas de água doce do planeta, mas em cenários muito distintos. Hoje,
além da escassez em grandes centros urbanos como São Paulo e Brasília, os
gestores têm de lidar com excessos de chuvas e locais onde a seca é histórica.
Esses fatores têm ajudado a avançar na governança, na engenharia e a estimular a
pesquisa. 

CC: O saneamento básico é um dos assuntos mais relevantes quando a questão é


água. 
BB: Tivemos várias discussões sobre o assunto, não só sobre saneamento, mas
também como financiá-lo. Abordamos a participação e o envolvimento tanto de
agentes públicos quanto de privados. A questão do financiamento dos serviços de
água e saneamento é muito séria, principalmente nos países da África, Ásia e
América Latina. Os modelos ainda são um grande desafio e será preciso garantir
escala nos investimentos nos próximos anos. 

CC: As mudanças climáticas incorporam ainda mais incertezas em relação à


segurança hídrica. 
BB: Esse é um tema central no debate sobre as mudanças climáticas e estamos
trabalhando para que ele esteja presente nas discussões das COPs climáticas.
Entre as medidas de combate às emissões de gases de efeito estufa é preciso ter a
clareza de que o fortalecimento da capacidade de resiliência dos sistemas hídricos
é central. A água é o principal insumo da humanidade, tanto para a vida quanto
para a economia. • 

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 CRÉDITOS DA PÁGINA: Wilson Dias/ABr e Marcelo Camargo/ABr


Crise anunciada
PREVISÕES As iniciativas de preservação ainda são insuficientes para os riscos à
frente

Por Reinaldo Canto

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Em pleno século XXI, a humanidade patina em relação à garantia de um direito


fundamental, a segurança em relação ao abastecimento de água potável e ao
acesso ao saneamento básico. Não faltam bons exemplos, mas a escala ainda é
insuficiente para que se tenha uma perspectiva otimista em relação ao futuro
próximo. Os números do Fórum Mundial da Água foram impressionantes. Em seis
dias aconteceram 300 mesas de discussões e debates, enquanto o número de
participantes e envolvidos aproximou-se dos 100 mil. O próximo evento acontece no
Senegal, em 2021. 
De Israel vêm tecnologias que apostam no reúso de esgotos tratados na agricultura.
Em Minas Gerais surge a inovação de uma fundação criada para administrar a crise
provocada pelo rompimento da Barragem de Fundão, com a transparência e a
governança da Fundação Renova. Mesmo com apostas de grandes empresas na
redução de suas necessidades de água nos processos produtivos, a situação ao
redor do mundo é bastante crítica. 

Assinado por mais de cem países, o documento final do encontro, Chamamento


Urgente para Uma Ação Decisiva sobre a Água, faz um apelo de urgência para que
as nações tomem medidas mais concretas de enfrentamento de questões como o
do fornecimento de água e da universalização do saneamento básico. 
Como destaque está a busca por políticas e planos nacionais de gestão dos
recursos hídricos mais eficazes, a restauração dos ecossistemas que contribuem
para o fornecimento de água e uma participação mais efetiva das empresas
privadas em direção à sustentabilidade hídrica. Os países comprometeram-se a
compartilhar tecnologias e a criar mecanismos de financiamento, capacitação
profissional e investimento em educação. 

“O consumo por indivíduos aumentará 30% em três décadas. O de


empresas, quase 80%”

Em Brasília, a ONU divulgou o documento Relatório sobre a Situação dos Recursos


Hídricos no Planeta, que afirma que a crescente demanda mundial por água, seja
por aumento populacional, seja pelo desenvolvimento econômico ou mudanças no
padrão de consumo, exige ações urgentes, principalmente em relação à
recuperação e preservação dos ecossistemas. Muitos países enfrentam situações
críticas de escassez hídrica e o problema tende a intensificar-se. Atualmente, a
demanda mundial está em torno de 4,6 mil quilômetros cúbicos por ano e a ONU
calcula que esse consumo vai aumentar de 20% a 30%, atingindo um volume entre
5,5 mil e 6 mil quilômetros cúbicos até 2050. 
Nas produções agrícola e energética (alimentos e eletricidade majoritariamente), o
crescimento deverá ser ainda maior, entre 60% e 80%, respectivamente, até 2025.
Nos próximos três longos anos até o fórum no Senegal, a sociedade global terá de
se debruçar sobre as conclusões de Brasília e redobrar seus esforços para que o
problema não se torne ainda mais alarmante e perigoso para ser debatido no
próximo encontro. •  

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 CRÉDITOS DA PÁGINA: Raul Spinassé/Ag. A Tarde


O Fórum em partes
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Técnico em Barcarena, Pará

contaminação da Hydro
Ao menos nove rios e igarapés do estado do Pará estão com níveis de metais
tóxicos acima do limite legal, após o vazamento de um depósito de rejeitos da
mineradora Hydro, em Barcarena. A informação consta no segundo relatório técnico
do Instituto Evandro Chagas sobre denúncias de impactos ambientais e riscos à
saúde humana nas atividades de processamento de bauxita dessa empresa de
mineração, divulgado no início de abril. 
De acordo com o relatório, há níveis consideráveis de arsênio, chumbo, manganês,
zinco, mercúrio, prata, cádmio, cromo, níquel, cobalto, urânio, alumínio, ferro e
cobre. O médico e pesquisador do Instituo Evandro Chagas, Marcos Mota, destacou
que ainda é preciso investigar mais os danos provocados à saúde dos moradores
das comunidades atingidas.

Marco regulatório
A criação de um marco regulatório brasileiro para a água, a envolver governos,
setor privado e sociedade civil, é a principal recomendação do relatório final do
Water Business Day, que condensa as discussões do evento realizado durante as
atividades do Fórum Mundial da Água, em Brasília. 
Os esforços da Rede Brasil do Pacto Global, da Confederação Nacional da Indústria
e do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável,
responsáveis pelo diálogo entre as empresas, pretendem fazer com que o Objetivo
do Desenvolvimento Sustentável 6 (água potável e saneamento) seja parte de uma
linguagem comum compartilhada entre as companhias e sua rede de
colaboradores. As discussões passaram por três eixos temáticos: Negócios
circulares, Riscos e Monitoramento e Gestão. 

O glossário da ONU
O

Lombardo, da Unesco

Sistema ONU no Brasil lançou o glossário de termos do Objetivo de


Desenvolvimento Sustentável 6. O documento carrega as definições e referências
organizadas em conceitos. “Esse trabalho representa a continuidade da parceria
entre o Sistema ONU no Brasil e o governo federal para a implementação da
Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, disse o oficial de meio
ambiente da Unesco, Massimiliano Lombardo. Desde a entrada em vigor da Agenda
2030, em 2015, o grupo assessor da ONU no Brasil lançou outros dois glossários:
ODS 5 (Igualdade de Gênero) e ODS 13 (Ação Contra a Mudança Global do
Clima). 
Participação popular
Lançado pela organização Trata Brasil, o estudo Acesso à Água nas Regiões Norte
e Nordeste do Brasil: Desafios e Perspectivas foi coordenado pelo pesquisador
Alceu de Castro Galvão Júnior. Durante oito meses, buscaram-se informações nos
planos estaduais, relatórios governamentais, em trabalhos acadêmicos e de
organizações não governamentais. Segundo Galvão Jr., entre os principais
objetivos do projeto está o de retirar da invisibilidade as comunidades em zonas
rurais e “colocar uma lupa” em modelos de gestão autossustentáveis. 
Quando a comunidade se apropria do serviço de saneamento, avalia o pesquisador,
o sucesso é quase garantido. “Isso gera um empoderamento, um sentimento de
pertencimento. Com isso, os índices de inadimplência são muito baixos e o
resultado é a sustentabilidade de longo prazo.” Quando os projetos ficam na esfera
do governo, sem a participação direta da sociedade local, de maneira geral, em
pouco tempo eles são sucateados. 

Notícias falsas
A
principal notícia falsa sobre a água que tem circulado nas redes sociais destaca
uma suposta privatização ou venda do Aquífero Guarani, reserva subterrânea de
água que tem 1,2 milhão de quilômetros de extensão. Ao todo, 70% do aquífero
está em solo brasileiro e corta oito estados. O aquífero está protegido por acordos
internacionais. Os quatro países abastecidos (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai)
assinaram documento que estabelece um projeto conjunto. O boato começou em
janeiro do ano passado e baseia-se em um encontro de Michel Temer com
executivos da Nestlé em Nova York. Retornou depois na versão de que um
conglomerado formado pela Coca-Cola, AmBev, PesiCo e Nestlé estariam
tramando para comprar a reserva. Mais falso do que nota de 3 reais. 

Nobel

Kabat, Prêmio Nobel

Água para o futuro é o desafio mais urgente que o mundo deve enfrentar. O alerta
foi feito pelo especialista holandês Pavel Kabat, CEO do Instituto Internacional de
Análises de Sistemas Aplicados. Kabat é um dos ganhadores do Prêmio Nobel da
Paz, em 2007, pelo trabalho de suporte para o relatório do IPCC sobre mudanças
climáticas. “Quando meus colegas cientistas argumentam que precisam pesquisar
mais e buscar mais dados, respondo que isso é uma desculpa, pois temos
condições de traçar modelos direcionados a países ou regiões para oferecer
soluções que garantam a segurança hídrica necessária ao desenvolvimento e à paz
mundiais.” 
Kabat afirma ter feito um alerta em 2012, na Rio+20, a respeito da crise de energia
e em menos de um mês foram arrecadados 500 bilhões de dólares para promover o
acesso universal. Porém, ele faz um alerta: “Talvez a água não tenha o mesmo
apelo para a solidariedade global”. •

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 CRÉDITOS DA PÁGINA: Thiago Gomes/Ag Pará, Marcelo Camargo/ABr E Matthias Silveri/Iiasa


Leva que é de graça
ABERTURA DA ECONOMIA O Brasil é o único caso de país grande e populoso a
entregar incondicionalmente seu mercado ao capital internacional

Por Carlos Drummond

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Requisitos. Vargas fez a CSN com capital dos EUA, mas estabeleceu condições e só assumiu a
FNM porque o empresariado local não se interessou
 

Caso se concretize a intenção do Ministério da Fazenda anunciada na quarta-feira 4


de reduzir a alíquota das importações de bens de capital de 14% para 4% e a de
produtos de informática e de telecomunicações de entre 6% e 16% para a média
internacional, conseguirá a indústria nacional sobreviver à avalanche inevitável de
produtos acabados produzidos no exterior? Há risco de um baque fatal, alertam
economistas e empresários. “Não fomos chamados para discutir essa proposta.
Não há estudos sobre o impacto da medida”, reclamou aos jornais José Velloso,
presidente da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos
(Abimaq). “A ideia é absurda. Com tarifas rebaixadas o País terá pouco ou nada a
barganhar com os países desenvolvidos em futuras negociações”, protestou
Humberto Barbato, presidente da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e
Eletrônica (Abinee). 

As contestações provavelmente não surtirão efeito, dada a adesão absoluta do


governo à abertura econômica um dia preconizada pelo próprio empresariado e
aplicada de modo incondicional por várias administrações, sem exigência de
contrapartidas dos investidores estrangeiros à concessão do acesso ao mercado
nacional. Brasília deixa claro, nesta e em inúmeras outras decisões do gênero, ter
abdicado por completo do papel de coordenação dos agentes econômicos com
vista aos interesses do País, limitando-se à função de escritório local executor de
objetivos dos investidores estrangeiros. A categoria empresarial nativa, cabe
ressaltar, mostra-se também muito aquém da visão de país de um Roberto
Simonsen, o primeiro presidente da Confederação Nacional da Indústria, na
demarcação de limites entre empresas brasileiras e firmas estrangeiras. 
EUA, China, Índia e Rússia usaram seus mercados como ativos
para negociar

Nessa toada tende a se concretizar a previsão do empresário Mario Milani de que o


País demorará de 30 a 40 anos para ser uma grande potência industrial, meta que
exige a redução dos juros e a desvalorização do real, entre outros requisitos.
Quando a globalização se intensificou, revelou Milani, presidente da Sogefi Filtration
do Brasil em depoimento ao Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial,
as empresas brasileiras de autopeças, sem contar com um mercado de capitais
desenvolvido e diante de juros bancários altos, não tinham a menor condição de se
tornar playersglobais e 95% do parque de autopeças foi vendido. 

A abertura incondicional dos anos 1990 limitou o escopo da indústria automobilística


e do País, descreve Milani: “O governo abriu o mercado, deu terrenos e reduziu
impostos para montadoras se instalarem aqui, mas deveria também ter imposto
regras. A primeira delas, pela qual sempre lutamos no Sindipeças, é a elaboração
da engenharia de pelo menos uma das plataformas no Brasil. O uso da engenharia
local é indispensável para adaptar os modelos estrangeiros às condições brasileiras
de estradas ruins e de muita chuva em algumas regiões, por exemplo. A criação de
uma plataforma local constituiria um mercado. Sem isso, os nossos filhos que estão
na faculdade de engenharia não terão onde trabalhar. Era necessário impor, exigir,
vender caro o acesso ao nosso mercado, mas o entregaram de graça.” 

Banidas. Kasinski e Mindlin deram padrão mundial à Cofap e à Metal Leve, mas tiveram de
vendê-las quando FHC valorizou artificialmente o real
industrial sofreu as consequências do aprofundamento do abismo entre as
condições de operação das empresas brasileiras em comparação às das suas
concorrentes nos países avançados. Fundou a Filtros Fram em 1964 e comandou-a
até 1991, quando vendeu o controle ao grupo britânico Sogefi Filtration. “Não
tínhamos a mínima condição de continuar. Onde obter recursos para crescer, fazer
fábricas para o mundo? Os nossos ícones eram a Cofap e a Metal Leve, todo
mundo queria ser como eles. Mas nem eles aguentaram.” A Metal Leve, fundada
por José Mindlin, foi vendida à alemã Mahle em 1996 e, no ano seguinte, a Cofap,
criada por Abraham Kasinski, teve o controle adquirido pela italiana Magneti
Marelli. 

Anote-se que o problema denunciado por Milani se generalizou na economia. Dos


grandes países com mercados de tamanho significativo, o Brasil é o único com
vinculação ao capital estrangeiro sem exigência de contrapartida, chama atenção o
economista Pedro Cezar Dutra Fonseca, professor titular do Departamento de
Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. “Os Estados Unidos, a Rússia, a China, a Índia sempre usaram o seu mercado
como um ativo para negociar. O Brasil foi o que mais se abriu para o capital
estrangeiro. Nem sempre isso aconteceu. Getúlio Vargas não excluía o capital
estrangeiro, por exemplo na Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda,
feita com tecnologia e capital americanos, mas dentro de determinadas linhas
estipuladas pelo governo brasileiro. A partir de Juscelino Kubitschek, presidente
entre 1956 e 1961, é que se consagra no Brasil esse tipo de industrialização que
mais nenhuma nação grande e populosa fez.” 

Por que, questiona Fonseca, a burguesia brasileira, que tinha vencido heroicamente
as etapas iniciais da industrialização, quando chega nos anos 1950 resolve aceitar
a internacionalização? Por que o Brasil não tem uma indústria automobilística
nacional, se mesmo países com mercados menores como a Itália, a Suécia e o
Japão, entre outros, implantaram o setor? Ele mesmo responde: “Vargas tentou
fazer a Fábrica Nacional de Motores e o País tinha todas as condições para
desenvolver o setor. Automóvel não era mais uma tecnologia impossível de
dominar, mas os empresários locais não foram adiante nisso. Repare, o Estado teve
de bancar a própria FNM porque eles ou não tinham interesse, ou não tinham
fôlego, ou achavam mais fácil se associar ao capital estrangeiro.” Kubitschek,
prossegue Dutra, queria, entretanto, acelerar, avançar 50 anos em 5 (era seu lema),
e aí tinha de ser com o capital estrangeiro, que já vem com a tecnologia pronta. Ao
passo que, se fosse investir em tecnologia, fazer pesquisa, levaria mais tempo.
Outras nações optaram por esse caminho mais demorado, de desenvolver sua
própria tecnologia. 

Ao
Imediatismo. Os 50 anos em 5 de JK só seriam viáveis com capital e tecnologia estrangeiras, mas
ao acelerar, o País abriu mão de influenciar seu futuro

menos parte da capitulação do País expressa na aceitação da entrada de capital


estrangeiro sem obrigatoriedade de contrapartidas deve-se ao fator ideológico. A
avalanche de privatizações, muitas vezes com desnacionalizações concomitantes
desde os anos 1990 foi acompanhada do discurso da supremacia incontestável da
empresa estrangeira sobre a nacional. A economista Roberta Sperandio Traspadini,
professora do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal da
Integração Latino-Americana e da Universidade Federal de Santa Catarina, estudou
a formulação daquela visão por Fernando Henrique Cardoso. Para FHC, diz, o
desenvolvimento dependente e associado e a interdependência são preceitos
necessários aos países latino-americanos e à sua inserção na economia capitalista
mundial. Essa alternativa, prossegue a professora, vem acompanhada do risco de
esgotar qualquer possibilidade autônoma para o continente, já que no modelo por
ele defendido as economias latino-americanas têm de estar alinhadas à lógica e às
determinações do capitalismo central em situação de reprodução da subordinação
política e dependência econômica. “Não há como pensar o desenvolvimento nos
moldes dos países centrais. Ao contrário, o desenvolvimento dependente e
associado seria a única alternativa viável para a economia brasileira conseguir
romper com seu atraso. É desse modo que ele defende a inserção internacional
subordinada”, sublinha Traspadini. 

É importante manter os centros de decisão das empresas no País


Em Empresário Industrial e Desen-volvimento Econômico no Brasil, de 1972, FHC
afirma mais de uma vez que é nas organizações estrangeiras que as “qualidades
empresariais estão objetivadas nas normas da produção e administração
científicas”. 
Mas se assim é, como explicar que a indústria brasileira alcançou o topo mundial do
setor em 1973, quando o peso do valor adicionado pela manufatura ao PIB
superava os da França e dos Estados Unidos? Se só resta ao País se submeter a
um desenvolvimento subordinado, de que modo se compreende a existência da
Petrobras, pioneira mundial na sofisticadíssima tecnologia para exploração de óleo
e gás em águas ultraprofundas, e da Embraer, terceira maior fabricante de aviões
do planeta, superada só pela estadunidense Boeing, que hoje tenta anexá-la, e pela
europeia Airbus? De que maneira se encaixam na fatalidade da inserção
internacional subordinada a produção pela Marinha do Brasil do ciclo completo do
combustível nuclear e o início da fabricação do primeiro submarino movido a
energia atômica, ambos com a participação de cerca de 200 competentes fábricas
fornecedoras locais e ainda sob a pressão constante dos Estados Unidos? E a
excelência científica da Embrapa, fundamental à ascensão do agronegócio verde-
amarelo ao seleto grupo dos mais produtivos do mundo, como se explica? 

Fica

Alicerces. Com um povo pobre o Brasil jamais sairá do atraso, alertou Simonsen. A Hyundai de
Chung é exemplo de sucesso com importante papel do Estado

difícil acomodar também na condição de desenvolvimento subordinado


incontornável a história exemplar do aço brasileiro, que não era competitivo
segundo sentenciou décadas atrás a consultoria dos Estados Unidos Booz-Allen
(atual Booz Allen Hamilton), que desaconselhava o empreendimento autônomo
nacional. Os projetos siderúrgicos da Usiminas, da Cosipa e da Ferro e Aço de
Vitória estavam em plena implantação em meados da década de 1960, requeriam
elevados aportes de valores, mas os grupos acionários privados que os
conceberam originalmente não tiveram meios suficientes para atender às
necessidades e o então BNDE, outra criação de Vargas, era obrigado a honrar as
garantias prestadas anteriormente a financiamentos externos. O banco público
aportava também recursos para assegurar a continuidade dos empreendimentos
com adiantamentos que a seguir eram convertidos em participação societária, pois
as empresas privadas não conseguiam pagar as antecipações de caixa. “Assim o
BNDE tornou-se o ‘Banco do Aço’ (três quartos do seu orçamento eram gastos na
siderurgia) e as empresas viraram empresas estatais”, revelou Sebastião José
Martins Soares, ex-superintendente do banco em entrevista à professora Maria da
Conceição Tavares no livro Memórias do Desenvolvimento. Na época dessa
‘escolha de vencedores’, Roberto Campos era ministro do Planejamento. 

Em nenhum país desenvolvido os princípios liberais são aplicados

Não adianta esperar reflexão neoliberal sobre os feitos nacionais enumerados


acima, pois eles só foram possíveis com a ação firme do protagonista empresário-
Estado, o inimigo número 1 dos adeptos daquela escola. Por outro lado, não se
trata também de defender uma estatização só concretizável sob o stalinismo nem o
fechamento da economia, de resto impossível e altamente indesejável. A solução,
ensina Celso Furtado, é de natureza política e de economia política: manter no País
o centro de decisão da empresa. Só assim é possível atuar em benefício do
interesse nacional dentro da própria relação de desenvolvimento dependente e
associado, o que se fez com grande êxito nos casos descritos. Roberto Simonsen,
prócer do empresariado nativo, era um crítico da aplicação pura dos princípios
liberais e argumentava que em nenhum país desenvolvido a premissa era praticada
e que o processo de industrialização das nações avançadas contou com apoio
decisivo do Estado. Uma afirmação, cabe ressaltar, rigorosamente verdadeira à luz
da história, mas seu autor nunca contou com a devida atenção entre os seus pares,
embora tenha merecido 11 citações por parte de Celso Furtado na sua obra
principal, Formação Econômica do Brasil. 

Simonsen alertava também que, enquanto o País tivesse um povo pobre, mal
remunerado, jamais conseguiria sair do atraso. Costumava repisar os objetivos da
Conferência de Teresópolis, das classes produtoras, realizada em 1945, por ordem
de importância: combate à pobreza, aumento da renda nacional, desenvolvimento
das forças econômicas, implantação da democracia econômica e obtenção da
justiça social. 
Os empresários de hoje, salvo raras exceções, querem distância dessas reflexões.
Em suas pesquisas para a biografia Roberto Simonsen Prelúdio à Indústria, Luiz
Cesar Faro e Mônica Sinelli constataram o quanto é profunda a ojeriza das
chamadas classes produtoras de hoje ressalvadas as exceções aos ensinamentos
do primeiro presidente da CNI. Os autores vasculharam entidades de classe,
entrevistaram partidários da industrialização, buscaram obter registros, comentários
e opiniões sobre o biografado, mas o resultado foi frustrante: “Não tivemos êxito. O
silêncio do empresariado sobre Roberto Simonsen é ensurdecedor. Ele ressoa o
abandono do ideário de entrega e luta em prol do desenvolvimento nacional. É o
depoimento mais expressivo: o que não figura na obra”. • 

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 CRÉDITOS DA PÁGINA: Luiz Caversan/Folhapress


O mau humor do Brasil

Nem o exercício da democracia direta está imune aos interesses de


grupos que sabem manejá-la em seu benefício

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No sistema político regulado por uma Constituição que estabelece um Estado


Democrático de Direito, a liberdade de iniciativa é o valor máximo. Ele tem, ainda,
uma enorme virtude. A substituição do poder incumbente faz-se sem traumas
através de eleições livres, competitivas e com o sufrágio mais universal possível. O
Brasil satisfaz essas condições: todo brasileiro adulto, não importa sua renda, sua
cor, religião ou ideologia é obrigado a votar para escolher desde o presidente da
República até o mais humilde vereador, que o representarão pelos próximos quatro
anos no Poder Legislativo e no Poder Executivo. O controle desses poderes é feito
por um Supremo Tribunal Federal não eleito, mas escolhido por eles para
harmonizá-los e estabelecer, afinal, o equilíbrio do sistema como poder moderador.

Como determina o parágrafo único do artigo 1º da Constituição de 1988, “todo


poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta Constituição”. O Poder Legislativo (os
representantes eleitos) pode, obedecidas as condições impostas pela própria
Constituição, modificá-la. Só não podem ser alteradas as cláusulas pétreas que
garantem os princípios e os direitos fundamentais instituídos pelo constituinte
originário.
Mas por que, então, a sociedade não se sente representada por quem ela mesma
elegeu? Por uma simples e boa razão: o poder econômico apropriou-se do poder
político, que lhe deveria ser antagônico, para dar a paridade indispensável de poder
entre o capital e o trabalho que caracteriza a sociedade civilizada. Mas isso só foi
possível porque uma maioria dos cidadãos não entendeu a importância do seu voto
e está disposta a vendê-lo. Note que nem mesmo o exercício da democracia direta
está imune aos interesses de grupos que sabem manejá-la em seu benefício. A
solução final é transmitir forte e permanentemente a cada cidadão o valor infinito do
seu voto.

Isso

ajuda a explicar a dramática queda de humor dos últimos seis anos. Creio que ela
se deve à frustração dos resultados sociais e econômicos das últimas duas
décadas. A tabela mostra o torturado caminho da economia brasileira a partir do
magnífico Plano Real, que nunca terminou... FHC fez um bom governo para o
“andar de cima”, que vê melhor o longo prazo. Pôs fim à inflação, mas o aumento
da disponibilidade de bens e serviços foi medíocre. Deixou uma relação dívida
bruta/PIB de 78,8%. A “sociedade” avaliou-o, na saída do governo, com uma
sinalização de ótimo/bom de 26% no Datafolha. Lula, beneficiado por uma
conjuntura externa, foi direto ao “andar de baixo”: o PIB per capita cresceu 3,6
vezes mais do que seu antecessor. Terminou fiscalmente bem com uma redução da
dívida/PIB para 63,0%. Saiu consagrado. O Datafolha deu-lhe 83% de aprovação
ótimo/bom. Graças a isso elegeu Dilma, que, infelizmente, dissipou, anualmente,
0,5% do PIB per capita. Transformou os superávits primários em déficits e deixou
uma dívida/PIB de 78,3%. Uma tragédia que lhe deu, no final, uma apreciação
ótimo/bom de apenas 13% no Datafolha.
Para entender o mau humor atual basta olhar o gráfico, onde se registra um índice
de bem-estar social (o PIB per capita que dá a disponibilidade de bens e serviços)
multiplicado pelo complemento do Índice de Gini (que sugere como ela se distribui).
A partir de 2014, ele praticamente despencou e voltou ao nível de 2008. Se você é
do povo, tem razão de estar de mau humor. •

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 CRÉDITOS DA PÁGINA: Ilustração: Baptistão


Entre a tragédia e o
ridículo
SÍRIA Os interesses das potências e os apuros internos de Trump tornam impossível
distinguir mistificação e realidade

Por Antonio Luiz M. C. Costa

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Mistério. Por que Assad teria usado armas químicas e causado uma crise quando rebeldes e suas
famílias já pegavam os ônibus para Idlib?
 

Não é a primeira vez que um ataque com gás venenoso, cujos efeitos foram
aparentemente registrados em vídeo e testemunhados por médicos e socorristas
ligados à oposição síria e ao Jaysh al-Islam, ouvidos pela Organização Mundial da
Saúde, é posto em dúvida, não só pelos governos sírio e russo, como também por
muita gente séria no Ocidente. Escaldou a todos o episódio das “armas de
destruição em massa” de Saddam Hussein, construído em torno de mentiras
conscientes de George W. Bush, Tony Blair e respectivas equipes de governo,
como hoje ninguém duvida. 
A maior das razões para o ceticismo é a falta de lógica do suposto ataque do
sábado 7. A batalha por Ghouta Oriental estava praticamente decidida. Douma é
apenas um pequeno e insustentável resíduo do antigo enclave rebelde, quase todo
retomado pelas forças de Damasco desde fevereiro. A grande maioria dos
militantes das organizações islâmicas que ali haviam resistido desde 2012 aceitara
o acordo para sua evacuação e tomava os ônibus para o reduto rebelde de Idlib
com suas famílias. Por que Assad arriscaria sua vitória em Ghouta e talvez o
próprio regime usando desnecessariamente uma arma que serviria de pretexto a
uma intervenção internacional? A mesma dúvida pairava em agosto de 2013,
quando outro suposto ataque químico em Ghouta, nos povoados de Ein Tharma e
Zamalka (hoje controlados pelo governo) serviu de justificativa a Barack Obama e
Hillary Clinton para articular uma intervenção na Síria, afinal frustrada pela oposição
de Moscou e substituída por um acordo para a destruição do arsenal químico sírio
(ou de sua parte mais perigosa) até junho de 2014. 
O andamento da guerra nesses mais de sete anos não confirma a tese de que
Assad ou seus generais pressionados a liquidar rapidamente a fatura sejam tão
estúpidos. O grupo sitiado em Douma, o Jaysh al-Islam, dispõe de armas químicas
e em 2016 admitiu seu uso contra curdos em Alepo. Entretanto, Estados Unidos e
Rússia torpedearam as propostas uns da outra no Conselho de Segurança da ONU
para investigar a questão por divergências sobre a formação da comissão e seus
poderes para responsabilizar culpados. 
Entre outras coisas, a crise serve de pretexto a Donald Trump para distrair a
atenção da política interna. Na segunda-feira 9, o FBI fez buscas na casa e
escritório do seu advogado Michael Cohen em Nova York, nas quais apreendeu
documentos sobre vários assuntos, inclusive pagamentos à atriz pornô Stormy
Daniels e à modelo Karen McDougal por relações sexuais e seu encobrimento. Isso
sinaliza a convicção de juízes federais e investigadores de alto nível sobre a
probabilidade de encontrar evidências de crimes sérios. Cabe a analogia com o
ataque gratuito de Bill Clinton a uma suposta fábrica de armas químicas no Sudão
(que mais tarde se comprovou ser apenas uma indústria farmacêutica) em agosto
de 1998, às vésperas de uma eleição legislativa e da fracassada tentativa
de impeachment por falso testemunho quanto ao caso extraconjugal do presidente
com a estagiária Monica Lewinsky. 

Stormy Daniels pode ser o fator decisivo na decisão sobre a Síria

Com o pretexto de acompanhar ações na Síria, mas possivelmente pensando em


Manhattan, Trump cancelou a viagem para participar da Cúpula das Américas em
Lima, Peru, esvaziando ainda mais a cúpula supostamente destinada a discutir a
“corrupção”, cujo anfitrião, Pedro Pablo Kuczynski, foi deposto exatamente por essa
acusação. Desapontou o novo presidente, Martín Vizcarra, que insiste em manter o
evento para o qual não há mais clima nem propósito, e também o presidente
Mauricio Macri, que contava com o encontro para convencer Trump a isentar a
Argentina das novas tarifas estadunidenses para o aço e o alumínio. 
No mesmo dia renunciou o assessor da Casa Branca para Contraterrorismo, Tom
Bossert, por exigência do novo assessor de Segurança Nacional, John Bolton, que
nesse dia assumiu o posto antes ocupado pelo general H. R. McMaster. Bolton foi
subsecretário de Estado para Controle de Armas e Segurança Internacional em
2001-2005, época da invasão do Iraque, e teve papel importante na construção da
farsa, ao obter os documentos forjados pela inteligência britânica sobre uma
suposta tentativa de Saddam Hussein de importar urânio do Níger, além de tentar
afastar o pouco cooperativo embaixador brasileiro José Bustani da chefia da
Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ). Segundo Bustani, em
2002 Bolton lhe fez ameaças explícitas em Haia: “Você tem 24 horas para deixar a
organização e, se não cumprir essa decisão de Washington, temos maneiras de
retaliar. Sabemos onde seus filhos moram. Você tem dois filhos em Nova York”.
Bustani resistiu, porém, e terminou o mandato. 

Os estoques de armas químicas dos EUA: que tal começar o desarmamento?

Bolton, que também foi embaixador na ONU em 2005-2006, apoiou em todas as


ocasiões as propostas de intervenção na Líbia, Síria e Irã e a revogação do acordo
nuclear com este último. Para ele, é a oportunidade de pôr em prática o que sempre
pregou. É menos claro se é isso que Trump deseja. Há uma semana, em 4 de abril,
dizia que uma vez derrotado o Estado Islâmico, as tropas dos EUA deveriam sair da
Síria – para o desespero dos curdos e também de Benjamin Netanyahu, que teve
com ele uma tensa conversa por telefone. 
Ainda na segunda-feira 9, um ataque com mísseis atingiu a base aérea síria de
Tiyas, entre Homs e Palmira, também usada por iranianos que ajudam Assad contra
os rebeldes, quatro dos quais foram mortos. A Rússia denunciou Israel: o ataque de
oito mísseis, cinco dos quais abatidos pelas defesas sírias, partiu de dois caças
seus sobre espaço aéreo do Líbano. Netanyahu aparentemente quis aproveitar a
controvérsia de Douma para incitar a intervenção dos EUA ou pelo menos dissuadi-
los de vez de retirar suas forças, mas pagou o preço de uma ruptura com Moscou,
enfurecida por não ter sido consultada e da ameaça de retaliação do Irã. 
Embora Theresa May e Emmanuel Macron disputem lugares como figurantes, a
questão transformou-se em confronto direto entre Washington e Moscou. Na terça-
feira, Trump anunciou que tomaria uma decisão em “24 a 48 horas” e Vladimir Putin
advertiu contra “provocações”. No dia seguinte, às 7 da manhã, Trump tuitou ao seu
estilo peculiar, entre resmungos sobre comércio exterior e política interna: “A Rússia
promete abater todo e qualquer míssil disparado contra a Síria. Prepare-se, Rússia,
porque eles chegarão, bonitos, novos e ‘inteligentes’! Você não deveria ser parceiro
de um animal que mata seu povo a gás!” 

Nos
dois

O ataque de abril de 2017: muito barulho, pouca consequência

tuítes seguintes, pareceu pedir desculpas: “Nosso relacionamento com a Rússia


está pior do que nunca. Não há razão para isso. Vamos parar a corrida
armamentista? Muito do mal-estar com a Rússia é causado pela falsa e corrupta
‘investigação da Rússia’, liderada por democratas e pessoas que trabalharam para
Obama. Mueller é o mais hostil, exceto Rosenstein” (os procuradores que
investigam relação da campanha de Trump com a Rússia). “Boa ideia. Vamos
começar por destruir as armas químicas. As dos EUA”, respondeu a porta-voz da
chancelaria russa sobre a aparente proposta de terminar a corrida armamentista. 
Nenhum ataque aconteceu ao longo do dia e porta-vozes da Casa Branca e do
Pentágono avisaram que nenhuma decisão fora tomada. Curiosamente, Trump
repetiu tudo que criticava em Barack Obama durante a crise de 2013: ameaçar a
Síria – “devia estar se concentrando em NOSSO PAÍS, empregos, saúde e todos os
nossos problemas” – não pedir autorização do Congresso – “grande erro se não o
fizer” – e falar disso em público – “eu não iria à Síria, mas se o fizesse seria de
surpresa e não deixaria vazar tudo para a mídia como um idiota”. 

Bolton ameaçou Bustani em 2002 para que não atrapalhasse a


invasão do Iraque
Naturalmente, enquanto fazia alarde, sírios e russos fizeram preparativos. Assad
evacuou helicópteros, aviões e soldados de suas bases, Putin pôs em movimento
sua frota na base síria de Tartus e ambos puseram em alerta seus sistemas
antiaéreos. Apesar de Guardian e Washington Post pedirem um ataque devastador
capaz de destruir de vez a força aérea síria (e talvez matar mais que as supostas 70
vítimas do ataque em Douma), parecia estar se montando o cenário para um ataque
quase simbólico como aquele de 7 de abril de 2017 contra a base síria de Shayrat
em retaliação a outro uso de armas químicas, três dias antes, em Khan Shaykhun,
perto de Idlib. Na ocasião, 59 mísseis foram lançados de um destróier dos EUA no
Mediterrâneo, que causaram estragos, destruíram alguns aviões fora de ação e,
segundo o governo sírio, mataram nove soldados e sete civis, mas não impediram
que, horas depois, a mesma base voltasse a ser usada para novos ataques aos
rebeldes. No fechamento desta edição, mesmo isso parecia duvidoso, a julgar pelo
tuíte de Trump na manhã da quinta-feira 12. “Nunca disse quando um ataque à Síria
aconteceria. Pode ser em breve ou não tão cedo! De qualquer forma, os EUA, sob
minha administração, fizeram um ótimo trabalho ao livrar a região do Estado
Islâmico. Onde está o nosso ‘Obrigado, EUA?’” 
O certo é que Trump não tem um plano e apenas reage às pressões e incidentes do
momento. Netanyahu e Bolton têm um projeto de destruição do Irã, mas lhes falta
apoio do Pentágono ou mesmo das forças armadas israelenses para iniciar uma
operação tão perigosa. Os generais, embora desde a posse de Trump tenham carta
branca nas operações militares de rotina, não querem se envolver em uma guerra
de grandes proporções sem um consenso firme dos políticos civis para sustentá-la.
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ÍNDICE

 CRÉDITOS DA PÁGINA: Zein Al Rifai/AFP, Halil El-Abdullah/Anadolu Agency/AFP e Mass Communication


Specialist 3Rd Class Robert S. Price/Released
O reverso do mecanismo
CINEMA O Processo rememora o impeachment kafkiano de Dilma Rousseff e reflete
a prisão de Lula, na contramão das leituras oficiais sobre o golpe

Por Pedro Alexandre Sanches

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No teatro de guerra brasiliense, Dilma recebe flores de mulheres anônimas, em abril de 2016; em
maio de 2017, Temer devolve as flores aos manifestantes em forma de bombas
 

O aniversário de dois anos do afastamento de Dilma Rousseff da Presidência da


República será marcado, em maio próximo, pela estreia comercial do filme O
Processo, de Maria Augusta Ramos. O documentário acompanhou os bastidores
do impeachment de Dilma desde a aceitação do processo pela Câmara dos
Deputados, em 17 de abril de 2016, até a consumação da queda da presidenta no
Senado, em 31 de agosto do mesmo ano. Quase dois anos depois do início do
processo kafkiano contra Dilma, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva está na
prisão. 
O Processo foi apresentado em première (e premiado pelo público em terceiro lugar
na categoria documentário) no Festival de Berlim, em fevereiro passado. Terá uma
primeira sessão pública nacional dentro da programação da 23a edição do festival
de documentários É Tudo Verdade, em São Paulo, no domingo 15 de abril, às 17
horas, no Instituto Moreira Salles, na mesma Avenida Paulista que acolheu, dois
anos atrás, as manifestações que culminaram na deposição de Dilma. Em 20 de
março, tornou-se público o fato de que o governo federal, neste ano, recolheu os
tradicionais patrocínios da Petrobras e do BNDES ao É Tudo Verdade.

Maria Augusta teve acesso aos mecanismos do impeachment (ou do golpe de


Estado, conforme o lado do espelho em que se vê a história) por intermédio de
atores dilmistas do teatro de guerra, como o advogado de defesa José Eduardo
Martins Cardozo e os senadores petistas Gleisi Hoffmann e Lindbergh Farias. Sem
acesso equivalente aos então oposicionistas, a diretora mostra apenas de relance,
e mudas, algumas das peças centrais da deposição do governo petista, como os
senadores Aécio Neves, José Serra e Marta Suplicy. Dessa maneira, O
Processo estabelece um inusitado jogo de espelhos com a interpretação ficcional
formulada de fora para dentro pela Netflix, na série O Mecanismo, do diretor
brasileiro, mas atualmente hollywoodiano José Padilha. Pelo posicionamento das
peças no jogo de xadrez, a ficção O Mecanismo representa quem está hoje no
poder, enquanto o documentário O Processo começa a tomar o papel de fazer a
contranarrativa dramatúrgica, com foco principal do lado derrotado pelo processo de
golpe/impeachment.

Após o golpe legislativo, são os atores judiciários que assumiram a


frente da exceção

Os jogos de espelhos são muitos, e todos perturbadores. Seja por ideologia ou pela
contingência dar voz privilegiada ao lado dilmista (ou por ambos os motivos), O
Processo faz-se palco de inúmeras denúncias contra o cerceamento de defesa de
Dilma numa engrenagem artificial, de encenação e de exceção. Cada uma das
denúncias pode se espelhar com assustadora simetria aos cerceamentos que hoje
cercam o processo contra o ex-presidente Lula e com a prisão dele em 7 de abril.
Na derrubada de Dilma estavam em primeiro plano os atores legislativos, como hoje
os atores judiciários são protagonistas da tentativa de retirar Lula da disputa
presidencial de 2018. A mídia hegemônica, ativista dos dois momentos (e de todo o
processo), está quase totalmente ausente do filme de Maria Augusta. O Processo
foi bancado pela produtora da cineasta, NoFoco Filmes, com coprodução do Canal
Brasil, um canal de tevê por assinatura resultante da associação da Globosat com o
Grupo Consórcio Brasil, formado por Luiz Carlos Barreto e outros produtores e
cineastas nacionais. O pingue-pongue entre o passado recente da queda de Dilma
e o presente da prisão de Lula se torna evidente quando o ex-presidente aparece
pela primeira vez em O Processo, ao lado de Chico Buarque, para acompanhar o
depoimento de Dilma aos carcereiros legislativos do Senado. Lula entra mudo e sai
calado de O Processo.

Outro espelhamento possível é o que completa a representação cinematográfica de


um arco de ascensão e queda dos governos petistas. Em 2004, no segundo ano do
primeiro governo Lula, estreou a dupla de documentários Peões, de Eduardo
Coutinho, e Entreatos, de João Moreira Salles (também presidente do Instituto
Moreira Salles, instituição parceira do 23o É Tudo Verdade ao lado de Itaú Cultural,
Sesc, Spcine e Secretaria de Cultura do Estado de São
Paulo). Entreatos documentava os bastidores da primeira eleição de Lula, enquanto
Peões focava os ex-companheiros do novo presidente no sindicalismo dos
trabalhadores do ABC Paulista. Na despedida do poder, Dilma deu acesso aos
bastidores a pelo menos quatro mulheres cineastas – além de Maria Augusta, as
diretoras Anna Muylaert, Lô Politi e Petra Costa captaram imagens por enquanto
inéditas do processo.
Polarização. Entre as deputadas mulheres e os homens, houve um
embate marginal

A polarização masculino-feminina é tema marginal de O Processo, mas permeia as


cenas do início ao fim, seja nos discursos pró-Dilma das deputadas mulheres
Jandira Feghali e Maria do Rosário e do deputado homossexual Jean Wyllys na
votação da Câmara (em contraponto com a brutalidade hipermasculina dos votos
pró-deposição), seja na polarização entre Gleisi Hoffmann e a advogada de defesa
do impeachment, Janaina Paschoal, seja nas comoventes cenas em que Dilma se
faz acompanhar por mulheres aliadas e vai receber flores de mulheres anônimas na
entrada do Palácio do Planalto, em 19 de abril de 2016. No lado do ataque ao
governo petista, perfilam-se atores que hoje fazem sentido em conjunto, em cenas
de confabulação entre Aécio e Romero Jucá, nas ausências gritantes do já então
apequenado STF (exceto uma aparição de Ricardo Lewandowski), dos juízes da
Lava Jato e do homem que rumava passo a passo para a Presidência da República,
Michel Temer. 

No lado que então atacava (e hoje está na defensiva), somam-se expressões


graves e figuras de gestos abertamente histriônicos, como Janaina Paschoal e o
senador tucano Aloysio Nunes. Na retaguarda, perfilam-se semblantes serenos e a
palidez de Gleisi e da senadora comunista Vanessa Grazziotin (além da de Eduardo
Cunha). A câmera de Maria Augusta se demora no silêncio de figuras femininas e
do assessor negro de cabelo rastafári de Cardozo. Mais um espelhamento se
estabelece. De um lado, está o cinema televisivo masculino de José Padilha, diretor
dos dois filmes militaristas intitulados Tropa de Choque. Do outro, está o cinema
sisudo de O Processo, que fecha com Justiça (2004) e Juízo (2008) uma trilogia
feminina de Maria Augusta sobre justiça, e pró-justiça. Não deve ser à toa que a
diretora promove um derradeiro espelhamento dentro de O Processo, entre as
flores que Dilma recebe das apoiadoras em 2016 e as bombas de efeito moral que
o ausente Temer devolve para os manifestantes do gramado brasiliense em 2017,
quando da denúncia de Joesley Batista contra o ex-vice-presidente que usurpou
meio mandato de Dilma Josef K Rousseff. • 

A EQUAÇÃO MORAL DO GOLPE

Por Jotabê Medeiros

O
A acusadora Janaina: personagem patético derretendo em público por 45 dinheiros

Toddynho açucarado e sôfrego da Janaina. A maquiagem borrada da Gleisi após a


noite infernal. O ar levemente aristocrático e neorrealista da Vanessa Grazziotin. A
longa pausa e o olhar perscrutativo de Dilma antes de sentar-se à frente do patíbulo
do Senado.
O Processo é um filme de discursos. Mas é basicamente no discurso expressivo
que ele encontra sua definitiva equação moral. Embora adversária do panfletarismo,
Maria Augusta Ramos sabe que há muitas formas de colher depoimentos, e nem
todas vão coincidir com a qualidade desses depoimentos.

Sendo um processo que teve a incomunicabilidade como elemento-chave (nunca se


tratou de ouvir os argumentos contrários, mas de buscar formas de tornar sedutores
os próprios discursos), o que ajuda a diretora a materializar contornos éticos é a
dramaturgia dos gestos.
O ar sempre lívido e assustadiço de Antonio Anastasia. O cabelo brilhantinado e
pastoril de Ronaldo Caiado. O ar abestalhado de Raimundo Lira. O desconforto
aparvalhado de Lewandowski. O afobamento revanchista de Aécio Neves.

Há no filme uma construção formal que ressalta um aparente divórcio entre


mundos. Ao mesmo tempo que o embate tem ares de uma tela sanguinolenta de
Francis Bacon, reforça-se certo alheamento do entorno: um cachorro manco que
caminha sozinho na madrugada em um corredor do Congresso; os cinegrafistas
que descem do ônibus correndo com seus tripés para fixá-los em lugar privilegiado;
o suado funcionário negro terceirizado que fixa às pressas uma campainha mais
efetiva para pacificar a sessão.

E segue o baile. Aloysio Nunes e seus esgares parecem reabilitar Lombroso. A


fantasmagoria de Serra. A severidade sem convicção de Cássio Cunha Lima. Os
homens ali empenhados em executar Dilma vão demonstrar pavor em ter a palavra
“fraude” associada a si. Esquecem do principal: a tatuagem de fraude já ficou
colada em suas faces para sempre. 

ÍNDICE
 CRÉDITOS DA PÁGINA: Roberto Stuckert Filho/Pr, Andressa Anholete/AFP e Edilson Rodrigues/AG. Senado
FOTOGRAFIA  E o Brasil abraçou Lula
A história de uma foto que vai ficar para a história, tirada por um fotógrafo
autodidata de 18 anos

Por Jotabê Medeiros

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Ele
não

usou drone. A foto da década foi feita do segundo andar do prédio do Sindicato dos
Metalúrgicos de São Bernardo com uma câmera Canon 6D fixa e lente de 35 mm.
Fotógrafo autodidata de 18 anos, Francisco Proner foi o autor da imagem mais
disseminada do universo político brasileiro nos últimos anos, publicada no Le
Monde, El País, New York Times, Página 12 e, a contragosto, em alguns dos
principais jornais brasileiros. Um abraçaço gigantesco em torno do presidente Lula
no momento em que este saiu do sindicato, no último sábado, dia 7.

Francisco nasceu em Curitiba e vive no Rio. Integra um jovem coletivo de


midiativismo, o Coletivo Farpa, com sete integrantes do Rio e São Paulo. Está no
terceiro ano colegial e pensa em prestar vestibular para Ciências Sociais em algum
tempo.
O jovem relutou em falar sobre o feito. “Agora eu não quero ser o protagonista. Não
quero desviar o foco, o foco é o Lula. Se for daqui a três meses e quiserem falar
com um jovem fotógrafo, eu falo”, disse. Mas, no fim, deu uma colher de chá
a CartaCapital, concordando em relembrar aquela tarde: “Quando o Lula desceu, eu
desci para fotografar. Mas não peguei nada bom. Vi o mundaréu de gente e subi
numa cadeira. Nada. Aí voltei ao segundo andar, o lugar onde ficavam os
movimentos sociais, a mídia alternativa. Na hora que acabou o discurso, vi a
movimentação e fui de janela em janela procurando uma foto vertical”. 

CartaCapital: É a sua foto mais disseminada?


Francisco Proner: É uma das mais reproduzidas.
CC: Tá brincando que já teve outras?
FP: Sim. Teve uma que viralizou, uma foto da transposição do Rio São Francisco,
uma senhora na beira do rio. Também houve outra que fiz na manifestação contra a
reforma da Previdência, um pôr do sol com helicópteros. Mas essa é a que mais foi
reproduzida, a que me deu mais orgulho.

CC: Você sabe se Lula a viu?


FP: Espero que sim. Eu vi essa campanha que a militância está fazendo, dando o
endereço lá da PF para as pessoas enviarem cartas. Gostaria de enviar para ele a
foto.

CC: Você já teve acesso direto a Lula?


FP: Já fiz muita cobertura dele em atos públicos, então o acesso foi por meio de
reuniões políticas. Recebi algumas críticas por estar em lugar privilegiado, mas era
o lugar em que ficavam os personagens políticos, as mídias alternativas. Essa foto
se deve ao meu comprometimento com o midiativismo, eu tinha uma pulseirinha.
Fiz de uma janela onde outros fotógrafos poderiam estar, e havia outros. Divulguei
pela Mídia Ninja e pelos Jornalistas Livres. Foi curioso: a foto viralizou de acordo
com a vontade das pessoas. Elas se identificaram e perceberam que foi
representativa. E, a partir disso, ganhou o mundo.

CC: Por que você faz fotojornalismo? É um momento de crise, tenho muitos amigos
fotógrafos que reclamam da profissão, e você tem 18 anos. O que o levou a
escolher essa linguagem?
FP: Eu não sei como te responder isso. O que eu queria deixar explícito é que o
fotógrafo não pode ser mais importante do que a foto e o que ela representa. Essa
foto subverteu a lógica da Lava Jato e ajudou a mudar a forma como a Operação é
vista pela opinião pública nacional e internacional.

CC: Você fez curso de fotografia?


FP: Não. Participei de um workshop em Perpignan, na França, da Agência
Magnum, no ano passado. Havia palestras de fotógrafos do Washington Post, da
Magnum, diversos veículos. Era destinado a jovens europeus, 200 jovens de
universidades.

CC: Você vai continuar cobrindo Lula?


FP: Espero continuar. 

LIVRO  À beira do abismo


Um livro do filósofo Edson Teles interpreta o país entre a falsa
reconciliação e a exceção permanente
Por Pedro Alexandre Sanches
Edson Teles nasceu em 1968 e foi batizado Edson Luís, em homenagem ao
estudante secundarista paraense Edson Luís de Lima Souto (1950-1968),
assassinado naquele ano, aos 18 anos, por policiais militares no Rio de Janeiro, no
contexto da convulsão social que antecedeu a instituição do AI-5 pela ditadura civil-
militar de então. Em 1972, aos 4 anos, Edson esteve na prisão, em situações de
que ele não pode se lembrar, na companhia dos pais presos políticos, César e
Maria Amélia Lemos. Ele se lembra das marcas de tortura nos rostos da mãe e do
pai.

No ano em que completa 50 anos, o hoje filósofo Edson Teles testemunha os


descaminhos do Brasil de 2018 e reflete sobre eles no livro O Abismo na História –
Ensaios sobre o Brasil em Tempos de Comissão da Verdade, um documento vivo
que ajuda a decifrar os porquês de 1964 desaguar, nos dias correntes, em nova
suspensão do instrumento do habeas corpus no País, desta vez não via ato
institucional, mas pelo encarceramento do mais conhecido brasileiro vivo, Luiz
Inácio Lula da Silva.

O objeto central de reflexão de Teles é a Comissão Nacional da Verdade, instalada


no Brasil ainda dilmista para apurar, de modo acanhado, os crimes mantidos
impunes pelos edifícios institucionais que não implodiram com a suposta implosão
da ditadura nos anos 1980. O autor classifica tais comissões como “construções em
abismo”, que lançariam os processos de apuração da verdade no vazio. “Abismo
porque, quanto mais se lança em direção à chamada verdade, mais se confirma
que pouco será desvelado”, define. 
A argumentação de Teles diz tudo a respeito do momento em que a sociedade se
encontra hoje, diante da prisão de Lula. Para ele, “o argumento do ‘medo’,
fantasmagoria de um perigo invisível, forçaria o governo a adotar uma política do
possível”, sempre contemporizando com as “forças invisíveis”, os torturadores e
outros esqueletos vivos da ditadura, em prol de uma suposta “reconciliação
nacional”. A conclusão não explicitada pelo filósofo é de que, de tanto termos
acalentado o medo dos pequenos estados de exceção implantados silenciosamente
no coração da (suposta) democracia, eis-nos aqui de volta a um Estado que é
menos democrático do que de exceção. “O perigo da política em constante recuo é
que, em algum momento, de fato, a democracia se percebe frágil e entregue às
estratégias autoritárias”, escreve.

Se é possível uma nesga de luz na treva, Edson Luís (que em 2018 poderia se
chamar Marielle) Teles entrega-a a uma filósofa alemã morta em 1975, quando seu
pai ainda estava na prisão: “Neste abismo entre o passado e o futuro é sempre bom
lembrar de Hannah Arendt, para quem os ‘tempos sombrios’ podem ser uma
abertura para processos criativos”. 

ABISMO NA HISTÓRIA – ENSAIOS SOBRE O BRASIL EM TEMPOS DE COMISSÃO DA


VERDADE
De Edson Teles. Alameda.
145 págs., 42 reais.

SHOW  Um ano sem Belchior


Por Jotabê Medeiros
AMAR E MUDAR AS COISAS.
No Bourbon Street (Rua dos Chanés, 127, Moema).
Terça-feira 17, 21h30. 65 reais. 

Elis, Vanusa, Elba Ramalho: a música de Belchior sempre alcançou com grande
impacto as mulheres cantoras brasileiras, que a impulsionaram à frente para
diversos públicos. Agora, no mês em que se completa um ano da morte do cantor e
compositor cearense, as cantoras Ana Cañas (paulistana), Karina Buhr
(pernambucana) e Taciana Barros (paulistana, ex-Gang 90), de gerações
diferentes, fazem uma leitura muito especial do repertório do artista.

Por vezes explosivas, noutras minimalistas, elas apresentam o show Amar e Mudar


as Coisas, em homenagem a Belchior, no tradicional reduto jazzístico Bourbon
Street, em São Paulo. Seja Karina Buhr cantando Sujeito de Sorte, com uma levada
meio mangue bit, seja Ana Cañas, ativista Lula Livre de primeira hora, cantando Na
Hora do Almoço (primeiro hit de Belchior) de forma lancinante; e à pulsão meio
caipira urbana da versão de Taciana para Paralelas: o show envolve e projeta
adiante a música de Belchior. A produção, que estreou em agosto, já correu o
circuito Sesc paulista.

Num contraponto literário e cênico, a atriz Martha Nowill faz a “amarração” do show
lendo trechos de letras de canções e da biografia do compositor, Belchior: Apenas
um rapaz latino-americano (Editora Todavia), de 2017. Além das cantoras, também
participam os músicos Igor Brasil e Thiago Barromeo. 
TEATRO  Um Mundo De Utopias
Por Eduardo Nunomura

SIETE GRANDE HOTEL: A SOCIEDADE DAS PORTAS FECHADAS.


Do Grupo Redimunho. Rua Álvaro de Carvalho, 75, Centro de São Paulo. 
Até 30 de julho, domingo às 19 e segunda-feira, às 20 horas. Pague quanto quiser. 

Em 1º de setembro de 2016, quando o golpe já havia fixado mais um prego no


caixão da democracia com o impeachment de Dilma Rousseff, a Polícia Militar
perseguia cidadãos em São Paulo. Na Rua Álvaro de Carvalho, os manifestantes
que fugiam do gás lacrimogêneo encontravam portas lacradas até que uma delas
se abriu. Era a do Espaço Redimunho, grupo teatral que naquela noite iniciava as
primeiras leituras para a peça Siete Grande Hotel. O tempo passou e foram
compostas sete histórias fragmentadas, porém, costuradas sob uma forte
simbologia. “A sociedade das portas fechadas”, subtítulo para o texto que rendeu a
Rudifran Pompeu o prêmio de melhor dramaturgia da Associação Paulista de
Críticos de Arte 2017, é o retrato do Brasil mesquinho de hoje. 
Peça itinerante que começa no Espaço Redimunho e termina no contíguo Hotel
Cambridge (cenário do premiado longa de Eliane Caffé), simbolicamente uma
ocupação artística e outra de moradia, Siete Grande Hotel leva o público a conhecer
insólitas histórias de hóspedes em sete quartos , universos particulares a viver em
um mundo de utopias. São personagens como o ladrão de santos, o açougueiro
sociopata, a “louca” dos sapatos, os soldados agonizantes, o tecedor de bandeiras.
Alguns deles estão semidescalços, o que serve de metáfora para um país que
quase chegou lá. A cenografia, de grande potência estética, traduz um texto que é
mesmo perturbador, enquanto reflexão de um país que exclui seu próprio povo
marginalizado. 
O Grupo Redimunho mescla o humor com a crítica, a beleza e a feiura cênicas, o
jocoso com o abjeto, o político e o nonsense, em um jogo de palavras que pode ser
interpretado de diferentes formas pelos distintos públicos. 

LIVROS Marx para crianças e para


jovens
Edições ilustradas dedicadas aos pequenos e uma história em quadrinhos
procuram ampliar o público do autor de O Capital
Por Pedro Alexandre Sanches

O DEUS DINHEIRO
De Karl Marx, com ilustrações de Maguma. 
Boitatá/Boitempo. 64 págs. 69 reais.

O dinheiro é um deus onívoro com cara de porco (ou PIG), à moda dos capitalistas
como eram representados pelos Panteras Negras norte-americanos dos anos 1960.
O autor do livro infantil O Deus Dinheiro é um tal Karl Marx (1818-1883). “A minha
força é tão grande quanto a força do meu dinheiro”, proclama o filósofo em poucas
palavras, aqui destinadas mais a servirem de moldura para as ilustrações do
espanhol Maguma. A editora Ivana Jinkings busca atingir com esse título e com O
Capital para Criançasum público livre do movimento Escola sem Partido, porque
ainda nem chegou à escola.

CartaCapital: Qual a ideia por trás de lançar O Deus Dinheiro pelo selo infantil da
Boitempo? 
Ivana Jinkings: O lançamento deste título, assim como o de O Capital para
Crianças, é parte da programação da Boitempo no bicentenário de Karl Marx. O
Deus Dinheiro é baseado em extratos do célebre texto de Marx sobre o dinheiro
nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844. Já O Capital para Crianças segue
os moldes desses livros de “pequenos filósofos”, em que uma ideia de um grande
pensador é apresentada de forma simplificada às crianças, sem qualquer tipo de
julgamento ou “doutrinação”. 

“O CAPITAL” PARA CRIANÇAS


De Karl Marx, com adaptação de Joan R. Riera 
e ilustrações de Liliana Fortuny. 
Boitatá/Boitempo. 32 págs. 37 reais.

CC: Como foram selecionados os trechos do jovem Marx que iriam compor a
narrativa? 
IJ: Tudo começou quando Maguma, Marcos Guardiola, o ilustrador do livro, foi
aceito para participar de uma residência artística de dois meses para ilustradores da
Tara Books. O desabafo raivoso do jovem Marx sobre o consumismo desenfreado e
o poder do dinheiro sobre a sociedade pareceu-lhes um ótimo ponto de encontro.
Na residência artística na Índia, Maguma teve a chance de visitar cinemas,
conhecer a arte de rua e expressões populares, e justamente por isso as ilustrações
mesclam tão bem referências europeias (há algo de Bosch no caos representado)
com elementos visuais indianos, como as referências explícitas a divindades
hindus. 

CC: Trata-se de um conto de terror para crianças? De um conto de fadas com final
infeliz para adultos? 
IJ: Não! Com base no relato bíblico da Queda, Maguma cria um mundo surreal, no
qual existe a mesma desigualdade entre ricos e pobres, no qual o dinheiro, o
pecado original, se conecta com o mundo globalizado. É indicado para crianças dos
12 aos 102 anos de idade. 

CC: Deus existe? 


IJ: Se existe, parece que anda muito mal assessorado… A resposta aqui me parece
menos importante do que a pergunta. Ela suscita respostas que estão ligadas à fé
de cada um. Deveria ter mais importância na esfera privada do que na pública. É
estranho que nós precisemos acreditar ou não em Deus e que isso ainda nos
divida. Agora, se eu estivesse num debate eleitoral na Globo, responderia
simplesmente: “Claro!”  

Por Eduardo Nunomuro

MARX – UMA BIOGRAFIA EM QUADRINHOS 


De Corinne Maier e Anne Simon. 
Barricada/Boitempo. 64 págs. 45 reais. 

Marx – Uma biografia em quadrinhos é outra publicação que chega para simplificar
o que parece complicado, e muitos fazem questão de nem entender. O livro, no
formato de história em quadrinhos, apresenta a vida do filósofo alemão e como suas
ideias foram sendo concebidas. Com linguagem simples, a HQ mostra a visão de
Marx sobre a luta de classes e como ela era a forma possível para resistir ao
avanço do capitalismo. Episódios relevantes, como a escrita do Manifesto
Comunista ou de O Capital, estão presentes. “Sou um capitalista ruim, mas espero
ser um bom revolucionário”, reflete o pensador, referindo-se ao fato de seu livro ter
demandado tantas horas de trabalho, mas tão poucos se interessarem por ele. 
A autora suíça Corinne Maier, psicanalista e economista, parece ter encontrado a
fórmula do sucesso dentro do capitalismo do século XXI. Também com a ilustradora
francesa Anne Simon, já publicou no mesmo formato os livros Einstein (inédito no
Brasil) e Freud (Companhia das Letras). Em 2004, Corinne lançou Bom Dia,
Preguiça (Campus Elsevier), um best seller mundial, no qual ela tece críticas à vida
corporativa.

LULAS
Para as Marias
“Diretor musical” da missa inter-religiosa para Marisa Letícia que antecedeu sua
prisão, Lula selecionou para início de conversa Maria, Maria (1978), uma
homenagem de Milton Nascimento às Marias do Brasil, imortalizada por Elis
Regina.

De pai para filho


O elenco de jovens músicos reunidos em São Bernardo do Campo passou pelo hino
migratório Asa Branca (1947), do pai conterrâneo pernambucano Luiz Gonzaga, e
pela canção de otimismo pós-anistia O Que É, o Que É?(1982), do filho
Gonzaguinha.

Não sou eu quem me navega


A alegria sem rumo de Deixa a Vida Me Levar (2002), de Zeca Pagodinho, eclodiu
da euforia da eleição de Lula à tristeza do 7 de abril, no desfecho entre missa
católica e samba.

Está nascendo um novo líder


A gravadora Philips rejeitou Zé do Caroço quando a sambista Leci Brandão a
compôs, em 1980; a fábula sobre o advento de um líder favelado veio à tona já na
redemocratização.

Amanhã há de ser
A despedida foi com Apesar de Você (1971), de Chico Buarque, lançada por Clara
Nunes e por Benito Di Paula, “cafona” cujo LP de estreia foi apreendido pela
ditadura, devido aos versos antimilitares apesar de você/ amanhã há de ser/ outro
dia.

ÍNDICE

 CRÉDITOS DA PÁGINA: Francisco Van Steen Proner Ramos e Foto de Ale/Facebook


É só o começo,
continuemos o combate
Maio de 1968, meio século depois: uma ilusão ingênua ou a ousadia de dizer basta?

Por Nirlando Beirão

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No Quartier Latin sublevado, os flics só tinham know-how para bater em operário

Nem mesmo os franceses sabem como definir aquela explosão que sacudiu o país
no primeiro semestre de 1968. Até hoje se referem, com a cautela do eufemismo,
aos événements de mai – “os acontecimentos de Maio”. Não falam em levante, ou
rebelião, ou revolução em sentido pleno, como gostariam de intitular os enragés.
Tampouco chienlit, a orgia desenfreada, como a definiu desdenhosamente o
general Charles de Gaulle, que havia deixado seu desterro de Colombey-les-Deux-
Églises para se reeleger presidente com o propósito de “salvar a República” e de
restaurar a “ordem pública”. 
A terminologia ambígua – événements – dilui um momento dramático em que os
sublevados, de pedras na mão e slogans nos muros, viveram um sonho e
o establishment burguês e reacionário pressentiu um pesadelo. A França tremeu e
ondas concêntricas de turbulência propagaram-se mundo afora, com especial
ênfase nos Estados Unidos, onde a luta já em marcha pelos direitos civis de negros
e mulheres foi engrossada pelo protesto dos estudantes contra o recrutamento
obrigatório para a carnificina inglória do Vietnã (a “ofensiva do Tet”, empreendida
pelos vietcongues, atestava para os agressores que aquela era uma guerra
perdida). Na outra mão, a Primavera de Praga, em desafio ao ranço stalinista,
também faz parte do contexto. 

O panorama descomedido dos anos 60 – o rock, as drogas, a pílula, o sexo livre, a


moda, a minissaia – fertilizou a angst política da garotada, se bem que daquela
França dos estudos acadêmicos, do raciocínio cartesiano, das conversas
discursivas às mesas dos cafés intelectualizados – a síndrome da
infindável question qui se pose – é que menos se poderia esperar uma tal erupção
de irracionalidade criativa. 
É bem verdade que se teve de recorrer ao combustível rebelde de dois significativos
forasteiros, o alemão Daniel Cohn-Bendit, dito Danny le Rouge, líder dos
insubordinados da Universidade de Nanterre e a mais midiática figura de Maio, e
o Livro Vermelho do presidente chinês Mao Tsé-tung, bíblia de uma robusta
confraria do movimento. O sociólogo brasileiro Fernando Henrique Cardoso
lecionava em Nanterre nessa ocasião, mas, por mais que pretenda entrar na foto
dos ativistas, o que ele fez foi ficar, como sempre, apreciando a paisagem. Voltou
rapidinho para o Brasil, em julho daquele 1968. 

Nas ruas e nos muros, a palavra ganhava força revolucionária

mundo todo andava inquieto, é verdade, mas foi em Paris, muito adequadamente,
que prorrompeu um estilo de revolta – ou uma revolta com estilo. A espontaneidade
vertiginosa das ações violentas contrabalançou-se, nos muros do Quartier Latin,
com uma súbita poética do graffiti, coisas do tipo “é proibido proibir”, “a imaginação
no poder”, ou “o dever de todo revolucionário é fazer a revolução”. A polícia,
perplexa, não sabia o que fazer. Os flics tinham a expertise da repressão contra
operários, mas não contra aqueles filhinhos de papai. 
“Não somos nem idealistas nem utopistas, nós vivemos as ideias”, proclamava
um affiche no bairro de Saint-Germain. Na geleia geral de uma sublevação não
programada, onde se aglomeravam maoístas, trotskistas e anarquistas, a doutrina
importava menos do que a ação. O voluntarismo, a energia da praxis, é que açulava
o orgasmo coletivo das ruas. A juventude tomava a palavra, ainda que não
soubesse bem o que dizer além do refrão “É só o começo, continuemos o
combate”. 

O movimento só prosperaria com a esquerda unida. Mas os


comunistas preferiram recuar

Assim, as manifs multiplicavam-se e os pavés voavam (a primeira providência pós-


Maio, por parte da prefeitura, foi mandar asfaltar as românticas ruas de
paralelepípedos do Quartier Latin). As faculdades estavam ocupadas, a começar
pela secular Sorbonne. Professores aderiram, mas a insubmissão logo ganhou
outros cenários. 
A demissão de Henri Langlois, o mítico fundador e diretor da Cinémathèque
Française, por ordem do ministro da Cultura, André Malraux, ampliou o mal-estar
para amplas fatias da intelectualidade e repercutiu até no Festival de Cinema de
Cannes. Ao final da sessão inicial, com a versão restaurada de ... E o Vento Levou,
Jean-Luc Godard, François Truffaut e Claude Lelouch subiram ao palco e
defenderam o cancelamento do festival. O que, depois de muita discussão, acabou
de fato acontecendo. Truffaut abre Baisés Volés(Beijos Proibidos), de 1968, com
um take da Cinemateca fechada e dedica o filme a Henri Langlois. 
O cinema continua refletindo sobre o episódio. Graças a um filme do italiano
Bernardo Bertolucci, The Dreamers, de 2003 (que em francês ganhou o título bem
menos indulgente de Innocents), uma brisa refrescante de reconciliação histórica
pode agora soprar sobre aquele território emocional ressecado pela utopia
frustrada. Alguns dos radicais mais descabelados deram, aliás, um rodopio tão
vertiginoso que, a exemplo de Bernard Henry-Lévy, André Glucksmann e outros
baluartes da nouvelle cuisine, perdão, nouvelle philosophie, foram aninhar-se na
escola do maître à penser George W. Bush. 
O governo quis expulsar Cohn-Bendit, a massa reagiu: “Somos todos judeu-alemães”

Com sua plataforma vaga e linda, os estudantes parisienses não chegaram lá e,


olhando a distância, não dava mesmo para esperar uma transformação radical da
parte de uma juventude, cujo signo de rebeldia era até então andar de Mobilette e
discutir Pascal. O fôlego durou pouco. Maio foi para o museu das belas intenções.
Apesar de todo o significado mítico que o movimento adquiriu, a direita virou o jogo
e continuou no poder por duas décadas. “Tomemos a revolução a sério”, convocava
um graffiti. “Mas não nos levemos a sério.” Para a direita, esteja ela onde estiver, o
poder nunca foi objeto de brincadeira. 
Eric Hobsbawm, o mais lúcido dos historiadores do século XX, escrevendo apenas
um ano após os événéments, já compreendia que, em meio à turbulência que
acabou se alastrando para as fábricas, e que de fato amedrontou o governo De
Gaulle, quem tinha estrutura para ocupar o vazio do poder era, à frente de uma
União Popular, o Partido Comunista. Mas aí – diz o marxista Hobsbawm – foram os
comunistas que vacilaram. Afinal, o poder não é muito a praia deles. 
De vacilo em vacilo, o PCF iria minguar ao longo dos anos e, hoje, barrado pela
cláusula de barreira que exige 5% dos votos, nem representação parlamentar os
comunistas têm. •

ÍNDICE

 CRÉDITOS DA PÁGINA: AFP, Jacques Marie/AFP e Roland Witschel/DPA/Fotoarena


Cadê o médico que estava
aqui?
Por Rogério Tuma

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nova demografia médica feita pelo Conselho Federal de Medicina e pelos


Conselhos Regionais demonstra que, apesar de o número de médicos ter
aumentado vertiginosamente, sua distribuição continua desfavoravelmente
desequilibrada. 
Em 1920, existiam 14 mil médicos para atender uma população de 30 milhões de
brasileiros. Hoje são mais de 450 mil médicos atuantes no Brasil, um terço deles é
de generalistas, o resto conta com alguma área específica de atuação. Nos últimos
dez anos aumentaram 100 mil médicos para um crescimento para menos de 20
milhões de pessoas. O número de médicos cresce 15% ao ano e vai crescer muito
mais, pois o total de vagas nas escolas médicas subiu de 8,5 mil no ano 2000 para
mais de 29 mil em 2018. 

Apesar de o número de médicos atuando no país ter aumentado nas últimas cinco
décadas 666% e a população 120%, a má distribuição de profissionais continua a
mesma. Mais da metade dos médicos estão nas capitais, e os estados mais ricos
têm até cinco vezes mais médicos proporcionalmente do que os estados mais
pobres. O estado que menos médicos tem é Roraima, com 816, mas o mais
desprovido proporcionalmente é o Maranhão, que possui apenas 0,9 médico para
cada mil habitantes. Quem tem mais médicos proporcionalmente é o Distrito
Federal, à razão de 4,35/mil. 
O índice médio de médicos por mil habitantes no Brasil chegou a 2,18. Porém, a
variação entre cidades continua muito grande: nas 27 capitais, o índice chega a
5,07 médicos e nas cidades do interior a média é de apenas 1,28 médico por mil
habitantes. As regiões Norte e Nordeste, além de menos médicos, têm uma
concentração descomunal no confronto capital e interior, chegando a quase 30
vezes mais, como ocorre com Sergipe. 

A cidade de São Paulo tem 28% dos médicos que atuam no país.
Em toda Roraima há 816 médicos

Cidades pequenas são muito mal servidas: as mais de 1,1 mil cidades com menos
de 100 mil habitantes acolhem 10% da população brasileira e muitas delas não têm
médico algum.Já a cidade de São Paulo, com mais ferramentas de trabalho para os
médicos e melhores salários, possui 28% de todos os médicos que atuam no Brasil.
São cinco por mil habitantes. 
As decisões de carreira mudaram, antigamente o médico ficava onde se formava e
tinha uma carga de trabalho acima de 60 horas semanais. Recém-formados
preferem a cidade onde nasceram para trabalhar em 44,5%; 20,4% escolhem o
local em que se formaram e 12,7 % preferem o lugar onde concluíram a residência
médica. A grande maioria, 80%, prefere trabalhar em hospitais. A expectativa de
renda mensal da maioria dos formandos é de 20 mil reais em uma jornada de
trabalho flexível, onde se pode equilibrar a dedicação ao trabalho e a vida pessoal. 

Sem atingir a verdadeira causa da falta de médicos, os programas do Ministério da


Saúde erraram feio. Hoje propagamos as vagas de cursos de qualidade duvidosa,
formando profissionais sem a necessária base de conhecimento e experiência para
atuar, o que dificulta ainda mais o acesso à saúde da população mais necessitada. 
Os responsáveis pela pesquisa chamam atenção: a competição empurrar os
malformados para as áreas de maior demanda, piorando a qualidade de assistência
médica nas regiões mais necessitadas. É transformar o ruim em péssimo. 
O estudo está sendo utilizado pelos conselhos médicos para reforçar a necessidade
de controle na criação de novas escolas médicas e de tornar obrigatória uma prova
de validação, como ocorre com o exame da Ordem dos Advogados. • 

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 CRÉDITOS DA PÁGINA: Istockphoto
Quando o futuro ditou
uma estética
STEAMLINE O estilo que cultivava a urgência acelerada e as linhas da
aerodinâmica chega ao museu

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velocidade foi um dos fetiches recorrentes do século XX. Rimava, desde os tempos
de Marinetti, Boccioni e Carrà, com modernidade. O futuro seria vertiginoso e o
mundo fabril haveria de se moldar aos ditames da estética da urgência acelerada.
Na verdade, o estilo steamline, ou steamform, acabou por contaminar os mais
diferentes itens do dia a dia, utensílios domésticos, artefatos de uso pessoal,
ferramentas de trabalho, equipamentos audiovisuais, brinquedos, peças gráficas,
bicicletas, como mostra a exposição Design Aerodinâmico – Metáfora do Futuro,
que o Museu da Casa Brasileira, de São Paulo (www.mcb.org.br), abre no próximo
dia 21 e dura até 3 de junho. 
Naquele momento do século XX nascia a profissão de designer
industrial

“O streamline firmou-se como um dos estilos mais populares do século XX e


também marca a implantação da profissão do designer industrial nos Estados
Unidos”, diz a cocuradora da exposição, Patrícia Fonseca. O elenco reunido pela
mostra confirma a afirmação. Há ali o toque de designers tais como Buckminster
Fuller, Gio Ponti, Raymond Loewy, Norman Bel Geddes, Walter DorwinTeague,
Henry Dreyfuss, Isamu Noguchi, John Vassos e Charles Bosworth, o californiano
que se estabeleceu em São Paulo em 1947 e viveu aqui até falecer, em 1999.  Os
mais de 250 objetos expostos provêm do Cooper Hewitt Design Museum, de Nova
York, do Centre Pompidou, de Paris, do Montréal Museum of Fine Arts, do Victoria
& Albert Museum, de Londres, e de coleções particulares. •
Decisões
A

final no Rio não teve muito futebol, mas os torcedores produziram


um espetáculo exemplar

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Consumada a prisão de Lula, satisfeita a tara de Curitiba, encerra-se o trabalho


encomendado. No meio do vazio que resta a uma perseguição insana, fica esse
“nheco-nheco” até que comece o que venha a acontecer como consequência disso
tudo. Não tendo mais o que fazer de relevante, a “panela” vai se dissolver no rumo
de Miami, que uma hora vai afundar, de tantos brasileiros e “gusanos” de vizinhos
hispano-americanos.
O ano eleitoral (?) fica de pano de fundo, enquanto a confusão cozinha borbulhas
para lá e para cá.

Do nosso lado, a luta continua, como sempre, a sina de quem precisa se libertar
das novas-antigas correntes que voltam a querer nos impingir, apertando mais o
laço com outro escravismo agora ajustado aos tempos modernos. Seguimos em
frente.
A propósito, “influência externa” foi o que mais sobressaiu no fim de semana de
decisões dos campeonatos estaduais por todo o Brasil, por conta da vitória do
Corinthians no campo do Palmeiras, em jogo de torcida única, lástima num jogo tão
disputado que deu ao Lula um momento de alegria.
No Rio de Janeiro, a disputa entre Vasco e Botafogo foi um espetáculo para servir
de referência a todos nós; o jogo que registrou o maior público deste ano, mais de
64 mil pessoas, não foi bom em termos técnicos, embora disputado com entrega
total pelos dois times.
Em domingo radiante de outono, período em que o clima mostra um equilíbrio que
exibe claramente o sentido de “Cidade Maravilhosa” atribuído a este pedaço
sufocante “da beleza e do caos”, os torcedores construíram o exemplo do que deve
ser um espetáculo de esporte*.

Nada mais pode justificar a impossibilidade de se promover espetáculos de massa


com garantia de tranquilidade, momentos de extroversão, fantasiadas ou não as
pessoas vêm nos estádios e nas ruas a ocasião de viver a integridade de suas
emoções, o que não tem absolutamente nada a ver com a violência que ali, nem em
seus contornos, tem lugar para se exibir.
Nada mais pode servir de desculpa para confundir os espetáculos esportivos que
devem ser tratados como qualquer outra expressão cultural (shows etc.). Nem a
expulsão** de um jogador do Vasco ainda no primeiro tempo serviu de estímulo ou
pretexto para qualquer coisa que pudesse roubar a sensação de plenitude em
vivenciar a comunhão humana daquela celebração.

Tenho acompanhado os jogos do Botafogo, estimulado pela confiança nestas


últimas diretorias do clube. Fui de barca, metrô e trem assistir à primeira partida
desta decisão, vencida pelo Vasco, clube que aprendi a respeitar e admirar em
minha passagem por São Januário.
Pouca coisa é tão bonita na vida do dia a dia como a movimentação dos torcedores
saindo de todos os cantos da cidade com as camisas de seu clube, num
entusiasmo crescente à medida que se aproxima o estádio e o momento do início
do jogo. Gente de todos os tipos de todas as idades, bela juventude exalando saúde
por todos os poros, experientes senhores, muitos casais e crianças até de colo. Isso
é o Esporte com E maiúsculo.

Muitos acontecimentos na semana decisiva do futebol pelo Brasil, parabéns a todos


os campeões, alguns com viradas extraordinárias, não só de placares como em sua
história, a exemplo do Náutico, no Recife. E mesmo na política, com o ingresso, por
parte do senador Romário, de ação junto à Procuradoria-Geral da República
pedindo a anulação da ultrairregular eleição na CBF – um escárnio aos esportistas.
A fase de quartas de final da Champions extrapolou todos os limites, com
resultados inacreditáveis, como no encontro de volta entre o Real Madrid e a
Juventus, mesmo após as sensacionais disputas entre Manchester City e Liverpool,
o que eliminou surpreendentemente o time de Manchester e seu badalado
treinador; ou o Barcelona e a Roma, esta que chega às semifinais depois de 34
longos anos, vibração à flor da pele, à italiana.

Até o futebol brasileiro saiu beneficiado pela atuação brilhante do Douglas Costa,
que, escalado em outra função, fez acender as saudades do Canhoteiro, meu ídolo
de infância, e do mano Edu do Santos, talvez o único entre tantos e tão bons
ponteiros-esquerdos a ele comparado. •

*Esse mesmo Rio de Janeiro está sofrendo uma ameaça criminosa por parte da
administração Crivella, que insiste em ocupar o tradicional campo de futebol do
Everest de Inhaúma, tombado como vários outros pela extraordinária ação do
deputado Otavio Leite, o qual vem defendendo causas intrincadas, como o
batalhado projeto que equacionou as dívidas dos clubes brasileiros (Profut).
Socorro.

**Um prazer enorme, mesmo porque tão raro, elogiar uma arbitragem do nosso
futebol, como a do Wagner Nascimento Magalhães na decisão carioca, uma chama
de esperança.

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 CRÉDITOS DA PÁGINA: Ilustração: Baptistão


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