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10.

Escoamentos Exteriores

10.1. Introdução
No estudo de escoamentos, como em tantas outras situações, é útil tipificar os
fenómenos e os comportamentos e nisso a Mecânica dos Fluidos não é excepção. Em
inúmeras situações reais é frequente a existência de um escoamento em torno de uma
superfície ou de um objecto, constituindo estes casos exemplos de escoamentos exteriores.
Bons exemplos são o escoamento em torno de um automóvel ou de um avião em
movimento, a interacção entre o ar e uma bola de futebol ou de golf em movimento ou
ainda o escoamento em torno do casco de um navio que se desloca. Há inúmeros outros
exemplos que nos surgirão ao longo deste capítulo e que poderemos imaginar ao
inspecionar as tabelas do final do capítulo (Tabelas 10.1 ou 10.2). Nestes escoamentos
ditos exteriores e o fluido rodeia o objecto total ou parcialmente.
Por oposição, existem os escoamentos ditos interiores que serão objecto de estudo
posterior neste curso. Agora, é o fluido que está rodeado por uma superfície sólida ou livre,
as quais afectam as características do escoamento na região em análise. Num escoamento
interior os efeitos das condições de fronteira impostas pelas paredes e/ ou superfície livre
sobre as características do escoamento são mais intensos do que num escoamento exterior.
Os escoamentos exteriores quando envolvem ar são frequentemente designados por
escoamentos aerodinâmicos, sobretudo quando estes são corpos fuselados. Por outro lado,
quando o fluido é água é frequente a designação de escoamento hidrodinâmico.
Os escoamento exteriores também incluem situações em que o objecto não está
totalmente rodeado por fluido, mas as características do escoamento na zona de contacto
são em tudo semelhantes às que existiriam se a submersão fosse completa.
À semelhança de outras áreas da Mecânica dos Fluidos, estes escoamentos também são
estudados pelas vias teórica e experimental, sendo no entanto esta última a que mais
avanços tem permitido, embora nos anos mais recentes a aproximação teórico-numérica
tenha tido grandes avanços mercê dos desenvolvimentos nas tecnologias de cálculo
numérico e de computação.
No âmbito desta disciplina o estudo de escoamentos exteriores é necessariamente mais
restrito dadas as limitações de tempo e o objectivo da disciplina, por isso a ênfase será
calculada nalguns conceitos mais importantes e na resolução de inúmeros problemas
práticos. Naturalmente, este estudo limitar-se-á a situações mais simples, mas o leitor mais

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interessado poderá estender os seus conhecimentos por consulta das obras de referência
listadas no final do capítulo.

10.2. Características Gerais de Escoamentos Exteriores

10.2.1. Algumas Definições


Num escoamento exterior podemos ter um escoamento em torno de um objecto imóvel,
por exemplo o vento em torno de um edifício ou de uma chaminé, ou então o objecto que
estará em movimento no seio de um fluido, como acontece com um automóvel em
movimento. A presença de um corpo em movimento vai induzir movimento do fluido na
sua vizinhança, que terá de se afastar para deixar passar o objecto. Obviamente, qualquer
situação combinada das anteriores também é considerada como escoamento exterior como
acontece, por exemplo quando temos o movimento de um veículo num dia de vento.
Na Mecânica dos Fluidos as equações de conservação são invariantes à sobreposição de
uma velocidade constante, ie, são invariantes Galileanas, o que permite a transformação de
um caso de movimento de um objecto num fluido em repouso numa situação de
escoamento em torno do objecto em repouso por adição de uma mesma velocidade
constante às duas entidades. Designa-se esta transformação de variáveis por transformação
Galileana.
As interacções associadas ao escoamento em torno de um corpo dão origem ao
aparecimento de forças e momentos, as mais importantes das quais iremos analisar em
breve. Antes de o fazermos iremos no entanto indicar as limitações a impor no estudo
destes escoamentos exteriores.
Em primeiro lugar limitaremos o estudo a escoamentos em regime permanente,
entendendo-se por isto que o regime permanente só se aplica ao escoamento a montante do
objecto. É possível, e acontece com frequência, que da interação entre um escoamento em
regime permanente a montante de um objecto e o próprio objecto surga, a jusante deste,
um escoamento em regime transitório. É o caso de escoamentos a baixa velocidade em
torno de objectos e cilíndricos que dão origem à formação a jusante de um escoamento
periódico conhecido por Estrada de von Kármán.
A Figura 10.1 mostra objectos características diferentes. Em primeiro lugar, os corpos
podem apresentar simetria relativamente à direcção do escoamento e por isso permitem
simplificar a nossa análise. O escoamento pode ser basicamente bidimensional

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(escoamento em torno da esfera) ou axissimétrico (escoamento em torno de uma bala) não


havendo nestes casos qualquer variação das grandezas físicaas na direcção tangencial. No
entanto, como já foi assinalado, a simetria geométrica não é uma razão suficiente para que
o escoamento seja simétrico ou venha a ser bidimensional, pois podemos ter a jusante de
um objecto um escoamento dependente do tempo e assimétrico, apesar do o escoamento a
montante ser em regime permanente.

Figura 10.1- Escoamento em torno de corpos não fuselados e fuselados: a) cilindro; b)


corpo bidimensional; c) avião Cessna.

O avião representado à direita da Figura contém asas que são corpos de geometria
esbelta que lhe proporcionam sustentação. Além disso, o escoamento em torno dessas asas
geralmente não possuem separação, um conceito que será apresentado na secção 10.3. Este
tipo de corpos esbeltos, e outros corpos com aplicações aeronáuticas onde a dimensão
transversal é muito inferior à dimensão longitudinalsão designados por corpos fuselados
porque o seu escoamento é suave e não separa em condições normais de funcionamento.
Por outro lado, os escoamentos em torno dos dois objectos da esquerda acabam por separar
e estamos então na presença de corpos não-fuselados.

10.2.2. Conceito de Força de Arrasto e Força de Sustentação


O escoamento de um fluido em torno de um objecto origina uma interacção entre ambos
que se traduz em forças e momentos. Estas têm origem no campo de pressões em torno do
corpo e nas tensões de atrito viscosa à sua superfície. Para analisar etes efeitos analise-se
mais de perto o que acontece em torno de um objecto bidimensional, no caso vertente um
perfil alar.

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Figura 10.2- Forças aerodinâmicas sobre um perfil alar: a) Força de pressão; b) força
viscosa; c) Força resultante [de Munson et al, 1998].

A Figura 10.2-a) mostra a distribuição de pressões que se desenvolve sobre o perfil alar
devido ao escoamento. O perfil é simétrico e encontra-se numa posição aproximadamente
horizontal. Relativamente à linha de corda, que é a linha que une os bordos de ataque e de
fuga de uma asa (ver Figura 10.12 para uma definição mais completa) vemos que a
deformação da superfície superior da asa (o extradorso) é superior à deformação da
superfície inferior (o intradorso). Esta maior deformação da superfície superior provoca
um maior desvio na trajectória das partículas de fluido que passam por cima da asa, e que
por isso se deslocam a velocidades superiores às partículas que passam por baixo da asa.
Como iremos ver mais adiante neste curso, após a aprendizagem do teorema de Bernoulli,
um aumento da velocidade provoca uma diminuição da pressão por transferência de
energia da pressão para a energia cinética. Assim, as maiores velocidades do fluido sobre o
extradorso provocam aí uma menor pressão do que no intradorso. A distribuição de
pressão em torno da superfície alar será assim do tipo da que é mostrada na Figura 10.2-a)
e dará origem a uma resultante com componentes vertical e horizontal. Note-se que a
distribuição mostrada na figura é em termos da pressão relativa à pressão do escoamento
no infinito, i.e., longe a montante da asa.
Dado que um fluido real tem viscosidade, e como sobre a superfície da asa a velocidade
tem de ser nula, e longe desta a velocidade é igual à do escoamento não perturbado, têm de

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existir gradientes de velocidade. Como sabemos pela lei de Newton da viscosidade a


existência de gradientes de velocidade dá origem ao aparecimento de tensões viscosas e em
particular sobre a superfície alar teremos uma distribuição de tensão que pode ser
exemplificada pelo que se mostra na Figura 10.2-b). Genericamente, a resultante da acção
desta força viscosa também terá componentes horizontal e vertical, embora seja óbvio da
figura que a primeira tenha tendência a ser muito superior à segunda.
Para um corpo qualquer, a resultante da força na direcção do escoamento (direcção x na
figura) é designada por força de arrasto (D ou FD ). Tratando-se de uma asa, ou superfície
alar, cujo objectivo é a criação de sustentação (L ou FL ), a resultante das forças ne
direcção perpendicular à direcção do escoamento é exactamente designada por força de
sustentação pretendendo-se que esta seja positiva. A Figura 10.2-c) mostra estas duas
resultantes que se podem obter a partir das distribuições de pressão (p) e tensão viscosa
(τ w ) usando as equações:

D = Fx = ∫ dFx = ∫ [( pdA) cosθ + (τ w dA) senθ ] (10.1)


A

L = Fy = ∫ dFy = ∫ −[( pdA) senθ + (τ w dA) cosθ ] (10.2)


A

O ângulo θ é o ângulo da normal ao elemento da superfície relativamente à direcção do


escoamento, como se mostra na Figura 10.3 que ilustra as forças actuando sobre uma área
elementar dA.

y
τw dA
p

x
Figura 10.3- Força de pressão e viscosa num elemento de superfície do objecto.

Para se efectuarem os cálculos das equações 10.1 e 10.2 é necessário conhecer a forma
da superfície do objecto e as leis de distribuição da pressão e tensão de corte viscosa o que

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nem sempre é tarefa fácil. É bastante mais fácil obter a força resultante nas suas
componentes.

Força de sustentação

Binário
direcional Força de arrasto

Objecto
Binário de
rotação

Binário de
inclinação

Força lateral
Velocidade do
escoamento livre

Figura 10.4- Forças e momentos actuantes sobre um corpo imerso num escoamento.

Para além destas duas componentes de força existe ainda um momento na direcção
perpendicular ao plano da figura e se o corpo fôr tridimensional ou o escoamento estiver
inclinado relativamente ao plano da Figura surgirão também outras componentes da força e
momento resultantes. Esse conjunto de esforços e a sua designação está representado
esquemáticamente na Figura 10.4.
É frequente em Mecânica dos Fluidos a apresentação de resultados sob forma
adimensional, como visto no ultimo capítulo. As forças de arrasto (D) e sustentação (L) são
adimensionalizadas nos respectivos coeficientes de arrasto ( CD ) e sustentação ( CL ) da
seguinte forma:
D
CD = 1 (10.3)
ρV 2A
2
L
CL = 1 (10.4)
ρV 2A
2

Nestas expressões a área A tem diferentes significados consoante o tipo de objecto


submerso. Assim, destacamos os seguintes três casos:

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i) corpos fuselados tais como asas, perfis alares, placas planas: A representa a área
planificada do objecto. No caso de uma asa esta área sera o produto da
envergadura pela corda do perfil (ver também Figuras 10.12);
ii) superfícies de navios e barcos: A representa a área molhada do objecto
submerso, como por exemplo a área molhada do casco;
iii) corpos não fuselados: para os restantes objectos A representa a área frontal, a
área vista pelo escoamento, ie a área projectada num plano normal ao
escoamento.
Para a outra componente da força a sua adimensionalização é idêntica e para normalizar
um qualquer momento M usa-se a equação (10.5) onde L representa uma escala de
comprimento.
M
CM = 1 (10.5)
ρV 2AL
2

10.2.3. Arrasto de forma e Arrasto de Fricção


Na secção anterior vimos que as forças de interacção fluido-objecto têm origem nos
campos de pressão e tensão de corte viscosa à superfície do corpo. Surge por isso a
questão de se saber qual é a contribuição mais importante.
Se considerarmos o escoamento em torno de uma placa plana paralela ao escoamento,
como a que se representa na Figura 10.5, é óbvio que dada a direcção de actuação da
pressão a força de arrasto tem origem exclusivamente na tensão de corte viscose. Estamos
na presença de uma situação em que o arrasto de fricção é dominante, de facto aqui ela é a
única contribuição para a força de arrasto total, sendo nulo o arrasto de forma.
Já no escoamento em torno de um cilindro, os resultados experimentais mostram que a
maior contribuição para a força de arrasto total provém do campo de pressões , sendo que o
atrito de origem viscosa tem uma pequena contribuição, da ordem de 3% do total. Esta
diferença de comportamento está intimamente associada ao diferente comportamento do
escoamento em torno do cilindro quando comparado com o escoamento sobre uma placa
plana. No caso do cilindro verifica-se que o escoamento separa do objecto, ie, as linhas de
corrente do escoamento não contornam o objecto em toda a sua superfície, mas a dada
altura o fluido segue em frente separando-se da superfície e criando uma zona de
escoamento recirculante. Estas características estão representadas na Figura 10.6 que
mostra a zona de separação do escoamento e a variação da pressão ao longo da superfície

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do cilindro para escoamento a baixo e a elevado número de Reynolds. Além disso, a Figura
10.6-c) inclui também a variação da pressão para o caso ideal de um fluido sem
viscosidade que por isso não ocorre separação do escoamento.

U Distribuição
de pressão
p

τw

Distribuição de
tensão de corte
Figura 10.5- Distribuição de pressão e tensão de corte num escoamento em torno de uma
placa plana.

Figura 10.6- Escoamento em torno de um cilindro e respectiva variação de pressão. [de


White, 1999]

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Na secção 10.3 analisamos com mais detalhe a separação do escoamento mas importa
desde já constatar que perante este fenómeno a contribuição do arrasto de pressão é
significativa porque a jusante do cilindro a pressão não consegue recuperar para o valor
que tinha a montante(ver Figura 10.6-c). A resultante deste campo de pressões é designada
por força de arrasto de forma.
Para termos uma medida da importância relativa das contribuições de fricção e de forma
para o arrasto total em função da geometria do objecto reproduzimos na Figura 10.7 uma
ilustração de White (1999) onde se mostra a variação destas contribuições em função da
razão t c . A forma geométrica do objecto está representada na Figura 10.7-b), podendo ir
desde uma placa plana (espessura t nula) a um cilindro de secção circular (espessura t
identical à c). O conjunto de geometrias analisadas representa de facto uma série de perfis
alares simétricos cujas geometrias limite são as duas mencionadas.

Figura 10.7- Força de arrasto num corpo fuselado bidimensional para Re=106. (a) Efeito
da espessura do objecto na contribuição de fricção. (b) Efeito da espessura sobre o
coeficiente de arrasto. Notar que são utilizadas duas definições de área diferentes [de
White, 1999].

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A Figura 10.7 mostra que a contribuição de fricção diminui rapidamente com a redução
da esbelteza do perfil uma vez que isso dá origem a uma separação do escoamento. Para
além disso, também verificamos que à medida que o corpo se alarga a força de arrasto total
aumenta, ie, a diminuição da importância relativa da força de fricção tem mais a ver com o
aumento da contribuição de forma do que de uma eventual diminuição da força viscosa.

10.3 Separação de Escoamento e Conceito de Camada Limite


Vimos que a ocorrência de separação tem um efeito dramático na força de arrasto total e
na relação das suas contribuições. A separação é assim um fenómeno importante que
requer um pouco mais de atenção da nossa parte.
As características de um qualquer escoamento exterior dependem da geometria dos
objectos submersos, da orientação do escoamento e também do número de Reynolds que
quantifica a razão entre as forças de inércia de origem convectiva e as forças viscosas.
Outros números e efeitos físicos serão também importantes, dependendo das
circunstâncias, mas vamos limitar-nos a um caso mais simples para que ponto de vista
dinâmico só o número de Reynolds seja importante.
Comecemos por analisar o escoamento em torno de uma placa plana, observando a
Figura 10.8 onde um escoamento uniforme de velocidade U se aproxima de uma placa
plana. Ao passar junto à placa há um desvio do fluido uma vez que junto à superfície terá
de haver uma desaceleração para se cumprir a condição de não-deslizamento na placa.
Numa qualquer secção transversal a velocidade do fluido vai variar desde zero sobre a
placa até ao valor de U longe desta, que é a velocidade do escoamento a montante da placa
e longe da sua influência. A desaceleração e esta variação de velocidade dão-se por acção
da viscosidade que trava as camadas sucessivas de fluido, e por isso estamos numa região
de influência viscosa. Já muito longe da placa a velocidade do escoamento permanence
igual a U e aí já não há influência nem da placa nem das forças viscosas.
À medida que o número de Reynolds vai aumentando verifica-se que essa zona afectada
pela viscosidade, e em que a velocidade varia de 0 a U vai diminuindo em espessura, o que
por outro lado obriga a maiores gradientes de velocidade e por consequência a tensões de
corte cada vez mais elevadas junto à placa. Esta zona viscosa, quando adquire uma
pequena espessura, toma a forma de uma camada e é por isso designada por camada
limite.

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Por si, a constatação do efeito viscoso não introduz nada de novo. No entanto, no início
do século XX foi Ludwig Prandtl quem percebeu que a elevados números de Reynolds esta
zona de predominância de efeitos viscosos era muito fina e que em consequência diversos
termos das equações de conservação se tornavam pouco importantes pelo que este tipo de
escoamentos poderia ser mais fácilmente estudado se de facto se dividisse o domínio nas
duas zonas: a camada limite e a zona exterior à camada limite. É esta a essência da teoria
da camada limite de Prandtl. Uma camada limite sobre uma placa plana a elevado número
de Reynolds está representada na Figura 10.8-b) onde podemos agora constatar que o
desvio do escoamento exterior U provocado pela placa é muito pequeno.

U
δ≈L
Elevado desvio
por efeito da viscosidade

U
x
ReL = 10
L

zona viscosa

zona invíscida

a)

Efeito da viscosidade reduzido, U


mas concentrado junto à parede

δ<<L
U

ReL = 107 x

camada limite camada limite


laminar turbulenta
b)

Figura 10.8- Escoamento sobre uma placa plana a baixo e elevado número de Reynolds.

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Consideremos de seguida o escoamento em torno de um cilindro e a variação de


algumas das suas características com o número de Reynolds, como se mostra na Figura
10.9. Esta figura mostra linhas de corrente e a existência de uma zona de recirculação
regular e irregular em função do número de Reynolds, tendo sido retirado de Munson et al
(1998).

Figura 10.9- A influência do número de Reynolds sobre o escoamento em torno de um


cilindro: (a) baixo número de Reynolds; (b) número de Reynolds intermédio; (c) número
de Reynolds elevado [de Munson et al, 1998].

A baixos números de Reynolds (Re < 1), as forças viscosas predominam sobre as forças
convectivas em todo o domínio do escoamento e o fluido tende a contornar o objecto como
se mostra na Figura 10.9-a). A variação da pressão em torno do cilindro é muito
semelhante à que se observa no caso ideal do escoamento de um fluido sem viscosidade e
que está patente na Figura 10.6, ie, a pressão tem um perfil quase simétrico recuperando
praticamente na totalidade, ie, a pressão diminui ao passar pelo cilindro e depois volta a
aumentar. Ao contrario do caso invíscido, a pressão não recuperará para um valor

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exactamente igual à pressão de montante, mas para um valor de pressão inferior embora
próximo.
É importante salientar a este propósito que as partículas de fluido próximas da
superfície do cilindro, na sua metade de jusante, vêm-se na necessidade de negociar uma
trajectória em torno do cilindro contra um gradiente de pressão adverso, ie, em
contrapressão. Como vemos na Figura 10.9-a) apesar desta situação desvantajosa o
escoamento não separa.
Com o aumento do número de Reynolds do escoamento as forças de inércia ganham
importância e a zona de domínio das forças viscosas vai-se reduzir em dimensão, à
semelhança do que acontecia também no caso de escoamento sobre uma placa plana. A
par desta redução da dimensão da zona viscosa dá-se um aumento dos gradientes de
velocidade, quer porque as velocidades do escoamento poderão ser mais elevadas mas
sobretudo porque a dimensão transversal da zona viscosa diminui de espessura,
aumentando em consequência as tensões de corte viscosas junto ao cilindro. Este aumento
das tensões viscosas retira mais energia às partículas de fluido que se escoam junto à
superfície do cilindro do que no caso do escoamento a baixo número de Reynolds pelo que
as partículas ficam por isso menos capazes de resistir aos gradientes adversos de pressão
que ocorrem na metade posterior do cilindro. A dada altura, quando o número de Reynolds
excede um valor crítico dá-se a separação do escoamento na zona posterior do cilindro,
situação que está representada na Figura 10.9-b).
Aumentando ainda mais o número de Reynolds do escoamento, a região dominada
pelas forças viscosas diminui ainda mais de espessura tornando-se fina, ie aparece uma
camada limite, e a separação do escoamento continua a ocorrer. Eventualmente surgirão
também instabilidades na camada limite que farão com que o escoamento na esteira do
cilindro tenha características periódicas. Estamos perante o caso representado na Figura
10.9-c).
A partir do momento em que há separação do escoamento (como nas Figuras 10.9-b) e
–c) a pressão na metade posterior do cilindro já não vai recuperar totalmente e teremos um
perfil de pressão do tipo da que está representada na Figura 10.6. Aí a dada altura a pressão
na metade posterior do cilindro estabiliza num valor constante, fazendo com que a
integração do perfil de pressão em toda a superfície do objecto tenha um valor elevado e
positivo que é igual à força que o escoamento exerce sobre o objecto por efeito de forma, o
arrasto de forma.

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10.4. Conceito de Escoamento em Regime Laminar e em Regime Turbulento


Os escoamentos de fluidos podem ocorrer nos regimes laminar e turbulento, havendo
ainda um terceiro regime de comportamento dito de transição entre aqueles dois. Quando o
número de Reynolds é baixo e predominam os efeitos viscosos, as trajectorias das
partículas de fluido são bem organizadas, suaves e de comportamento determinístico. As
partículas de fluido escoam-se com regularidade, a menos que se imponham condições de
entrada ou de fronteira irregulares, e dizemos que o escoamento se desenrola no regime
laminar.
Quando o número de Reynolds excede um determinado valor aparecem irregularidades
quasi-aleatórias, mesmo quando as condições de fronteira e iniciais impostas para o
escoamento sejam constantes no espaço e no tempo. Esta situação configura o
comportamento dito turbulento, verificando-se que as irregularidades ocorrem para todas
as componentes de velocidade e para a pressão, mesmo que em termos médios o
escoamento seja unidimensional.
A diferença entre os comportamentos laminar e turbulento está bem ilustrada na
experiência conduzida no século XIX por Osborne Reynolds, em cuja honra foi baptizado
o número de Reynolds. Essa experiência está ilustrada na Figura 10.10 que reproduz uma
visualização, obtida de uma obra editada pela Sociedade Japonesa de Engenharia Mecânica
(JSME), o escoamento decorre da esquerda para a direita. A visualização foi efectuada
com tinta no escoamento desenvolvido em regime permanente entre duas placas planas
paralelas. Na primeira figura o escoamento é de baixo número de Reynolds e a tinta
injectada numa determinada posição transversal mantem a sua coerência a menos de um
pequeno alargamento devido à difusão molecular. O escoamento processa-se aqui no
regime laminar.
Pelo contrário, na última visualização a tinta dispersa muito rapidamente de forma
muito irregular embora se mantenham as condições de regime permanente do escoamento.
Esta rápida dispersão está associada a flutuações muito rápidas da velocidade do
escoamento em cada ponto do espaço e ao longo do tempo, comportamento típico da
turbulência.
Finalmente, na figura intermédia o escoamento processa-se no regime de transição, ie,
há momentos em que a tinta se dispersa muito rapidamente e há momentos em que ela

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mantem a sua coerência como acontece em regime laminar. A turbulência ocorre assim de
forma intermitente.

Figura 10.10- Experiência de Reynolds. [de JSME].

Desta descrição dos regimes de escoamento fica claro que o regime turbulento se
caracteriza por uma rápida dispersão de quantidades físicas: por exemplo, se o fluido em
escoamento estiver a uma determinada temperatura e se se injectar um pequeno jacto de
fluido a uma temperatura diferente, atingir-se-á a homegeneização térmica e a mistura
completa dos fluidos mais rapidamente no regime turbulento do que no regime laminar.
Vale a pena agora voltar a olhar para a Figura 10.6 onde se esboçam algumas
características do escoamento em torno do cilindro. Aí vemos que a separação de
escoamento em regime laminar se dá mais cedo do que em regime turbulento e interessa-
nos perceber o porquê desta diferença. Vimos que a separação estava associada a dois
acontecimentos: por um lado, um gradiente de pressão adverso que as partículas de fluido
terão de vencer, e por outro lado a incapacidade dessas mesmas partículas de conseguirem
vencer essa contrariedade junto à superfície do cilindro.
Ora, em regime turbulento há grandes oscilações das velocidades e pressões no seio do
escoamento, embora em termos médios essas grandezas possam manter os respectivos
valores constantes. Devido às flutuações de velocidade no regime turbulento as partículas
de fluido no exterior da camada limite, que possuem por isso maior velocidade e energia,
são trazidas para o interior da camada limite aumentando assim a energia do nesta zona
quando comparado com a situação em regime laminar. Esta energização das partículas de
fluido junto ao cilindro, que é feita pela turbulência, permite que elas aguentem durante
mais tempo o gradiente de pressão adverso e por isso a separação do escoamento dá-se
numa posição posterior áquela que corresponde à separação em regime laminar.

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Este mecanismo de energização do fluido na camada limite é muito usado na indústria


aeronáutica: em muitos modelos de aeronaves, quando se aumenta a área das asas para
providenciar maior sustentação na aterragem, o corpo principal da asa e os flaps estão
separados permitindo assim que fluido do intradorso, que tem mais energia, atravesse a asa
para o extradorso de forma a energizar a respectiva camada limite e reduzindo assim as
probabilidades de separação do escoamento sobre o extradorso da asa. Isto decorre do
facto de a asa com flaps ser mais curva do que a asa sem flaps e assim o respectivo
escoamento estar mais sujeito a separação por possuir um gradiente de pressão mais
adverso. Além disso, na aterragem o ângulo de ataque da asa também é superior ao de vôo
de cruzeiro, o que aumenta a possibilidade de separação. No entanto, note-se que esta é
uma situação indesejável que não deve ocorrer numa máquina bem projectada.

10.5. Algumas Características do Escoamento Sobre Uma Placa Plana


A Figura 10.8-b) mostra a camada limite que se forma quando há um escoamento sobre
uma placa plana. Antes da placa o escoamento é uniforme e constante no tempo (regime
permanente). A partir do bordo de ataque da placa surge uma primeira camada limite fina
em regime laminar que vai crescendo devido à acção difusiva da viscosidade à medida que
as partículas de fluido avançam longitudinalmente. Ao fim de algum tempo o escoamento
no interior dessa camada limite passa a turbulento e devido à sua maior capacidade de
mistura a camada limite passa a crescer mais rapidamente do que quando em regime
laminar.
No exterior da camada limite o escoamento permanece imutável, ie, ele não é
influenciado pela camada limite ou pelo escoamento no seu interior. Em qualquer dos
casos, a espessura da camada limite (δ ) tem uma dimensão muito inferior ao comprimento
da placa. Na camada limite a velocidade varia entre 0 (a velocidade da placa) e a
velocidade do escoamento no seu exterior (U) de forma muito rápida, mas em termos
matematicamente rigorosos a variação é assimptótica e por isso tem de haver um critério
que defina a espessura da camada limite. Convencionou-se que a espessura da camada
limite (δ ) numa determinada posição da placa (x) é o valor de y em que u( y) .é igual a 99%
de U.
A partir da teoria da camada limite de Prandtl foi então possível simplificar e resolver
as equações de Navier-Stokes quando a camada limite é laminar tendo-se chegado à
seguinte expressão para a variação longitudinal da espessura da camada limite

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δ 5.0
= (10.6)
x Rex
Rex representa o número de Reynolds do escoamento na camada limite em que o
comprimento característico é a distância ao bordo de ataque, ie,
ρVx
Rex = (10.7)
η
Para o caso do regime turbulento a espessura vai crescer mais rapidamente, segundo a
lei
δ 0.16
= (10.8)
x Re1/7
x

Esta expressão requer também o uso das equações de Navier-Stokes modificadas para
os regimes turbulent e a adopção de um modelo de turbulência, materias que estão for a do
âmbito deste curso. As equações de Navier-Stokes são as equações de conservação de
quantidade de movimento escritas na forma diferencial.
Quanto às forças de corte, a solução das equações do movimento deram as seguintes
expressões finais: para o regime laminar o coeficiente de arrasto ( CD ) é dado pela
expressão (10.9) que é igual ao dobro do coeficiente de fricção ( C f ) calculado no extremo

da placa. O coeficiente de fricção na placa não é mais do que a tensão de corte local
adimensionalizada, enquanto que o coeficiente de arrasto é o valor adimensional da força
de arrasto total, que resulta da integração da tensão local a toda a parede.
1.328
CD = = 2C f ( L) (10.9)
ReL
Para o regime turbulento a expressão equivalente é a equação (10.10) onde se assume
no entanto que o regime turbulento prevalece desde o início da placa.
0.031 7
CD = = C ( L) (10.10)
1
Re 7 6 f
L

A transição de regime ocorre para números de Reynolds ( Retr ) no intervalo

5×105 < Retr < 3×106 . Quando o número de Reynolds no final da placa é muito superior
ao valor de transição, na prática a região de regime laminar está confinada a uma porção de
placa muito pouco extensa e para efeitos de cálculo do CD pode-se admitir sem grande
erro que toda a placa está em regime turbulento. Contudo, se no final da placa o número de
Reynolds estiver próximo do valor de transição, para o cálculo do CD terá de se fazer a

Mecânica dos Fluidos F. T. Pinho


18 Escoamentos exteriores

respectiva correcção incluindo as porções laminar e turbulenta onde de facto o escoamento


se processa nesses regimes.

10.6. Coeficientes de Arrasto em Torno de Outros Objectos


A definição de coeficiente de arrasto foi já apresentada, e para cada objecto depende do
número de Reynolds e também das dimensões ou relações geométricas. Se o objecto é
largo (não-fuselado) é muito provável, como vimos, que ocorra separação do escoamento e
que o arrasto de forma venha a ser preponderante na força de arrasto total. Como a posição
da separação do escoamento normalmente varia pouco com o número de Reynolds (tem
mais importância o regime de escoamento), há uma tendência geral para se atingirem
valores constantes do CD a partir de determinada altura. É por essa razão que em inúmeras
situações tabeladas só é apresentado um único valor de CD . Embora as tabelas se refiram a
um número de Reynolds específico os valores apresentados são válidos numa gama mais
vasta, excepto a valores de Reynolds muito baixos, onde o predomínio das forças viscosas,
que inclusivéacabam por eliminar a separação do escoamento, tornam o CD dependente do
número de Reynolds normalmente Segundo uma lei inversa ( CD = A Re , onde A é um
parâmetro).
As Figuras 10.11 e 10.12 e as Tabelas 10.1 e 10.2 apresentam valores do coeficiente de
arrasto para vários tipos de objecto bi- e tr-dimensionais.

Figura 10.11- Variação do coeficiente de arrasto com o número de Reynolds para corpos
quasi-bidimensionais [de White, 1999].

F. T. Pinho Mecânica dos Fluidos

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