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Escoamentos Exteriores
10.1. Introdução
No estudo de escoamentos, como em tantas outras situações, é útil tipificar os
fenómenos e os comportamentos e nisso a Mecânica dos Fluidos não é excepção. Em
inúmeras situações reais é frequente a existência de um escoamento em torno de uma
superfície ou de um objecto, constituindo estes casos exemplos de escoamentos exteriores.
Bons exemplos são o escoamento em torno de um automóvel ou de um avião em
movimento, a interacção entre o ar e uma bola de futebol ou de golf em movimento ou
ainda o escoamento em torno do casco de um navio que se desloca. Há inúmeros outros
exemplos que nos surgirão ao longo deste capítulo e que poderemos imaginar ao
inspecionar as tabelas do final do capítulo (Tabelas 10.1 ou 10.2). Nestes escoamentos
ditos exteriores e o fluido rodeia o objecto total ou parcialmente.
Por oposição, existem os escoamentos ditos interiores que serão objecto de estudo
posterior neste curso. Agora, é o fluido que está rodeado por uma superfície sólida ou livre,
as quais afectam as características do escoamento na região em análise. Num escoamento
interior os efeitos das condições de fronteira impostas pelas paredes e/ ou superfície livre
sobre as características do escoamento são mais intensos do que num escoamento exterior.
Os escoamentos exteriores quando envolvem ar são frequentemente designados por
escoamentos aerodinâmicos, sobretudo quando estes são corpos fuselados. Por outro lado,
quando o fluido é água é frequente a designação de escoamento hidrodinâmico.
Os escoamento exteriores também incluem situações em que o objecto não está
totalmente rodeado por fluido, mas as características do escoamento na zona de contacto
são em tudo semelhantes às que existiriam se a submersão fosse completa.
À semelhança de outras áreas da Mecânica dos Fluidos, estes escoamentos também são
estudados pelas vias teórica e experimental, sendo no entanto esta última a que mais
avanços tem permitido, embora nos anos mais recentes a aproximação teórico-numérica
tenha tido grandes avanços mercê dos desenvolvimentos nas tecnologias de cálculo
numérico e de computação.
No âmbito desta disciplina o estudo de escoamentos exteriores é necessariamente mais
restrito dadas as limitações de tempo e o objectivo da disciplina, por isso a ênfase será
calculada nalguns conceitos mais importantes e na resolução de inúmeros problemas
práticos. Naturalmente, este estudo limitar-se-á a situações mais simples, mas o leitor mais
interessado poderá estender os seus conhecimentos por consulta das obras de referência
listadas no final do capítulo.
O avião representado à direita da Figura contém asas que são corpos de geometria
esbelta que lhe proporcionam sustentação. Além disso, o escoamento em torno dessas asas
geralmente não possuem separação, um conceito que será apresentado na secção 10.3. Este
tipo de corpos esbeltos, e outros corpos com aplicações aeronáuticas onde a dimensão
transversal é muito inferior à dimensão longitudinalsão designados por corpos fuselados
porque o seu escoamento é suave e não separa em condições normais de funcionamento.
Por outro lado, os escoamentos em torno dos dois objectos da esquerda acabam por separar
e estamos então na presença de corpos não-fuselados.
Figura 10.2- Forças aerodinâmicas sobre um perfil alar: a) Força de pressão; b) força
viscosa; c) Força resultante [de Munson et al, 1998].
A Figura 10.2-a) mostra a distribuição de pressões que se desenvolve sobre o perfil alar
devido ao escoamento. O perfil é simétrico e encontra-se numa posição aproximadamente
horizontal. Relativamente à linha de corda, que é a linha que une os bordos de ataque e de
fuga de uma asa (ver Figura 10.12 para uma definição mais completa) vemos que a
deformação da superfície superior da asa (o extradorso) é superior à deformação da
superfície inferior (o intradorso). Esta maior deformação da superfície superior provoca
um maior desvio na trajectória das partículas de fluido que passam por cima da asa, e que
por isso se deslocam a velocidades superiores às partículas que passam por baixo da asa.
Como iremos ver mais adiante neste curso, após a aprendizagem do teorema de Bernoulli,
um aumento da velocidade provoca uma diminuição da pressão por transferência de
energia da pressão para a energia cinética. Assim, as maiores velocidades do fluido sobre o
extradorso provocam aí uma menor pressão do que no intradorso. A distribuição de
pressão em torno da superfície alar será assim do tipo da que é mostrada na Figura 10.2-a)
e dará origem a uma resultante com componentes vertical e horizontal. Note-se que a
distribuição mostrada na figura é em termos da pressão relativa à pressão do escoamento
no infinito, i.e., longe a montante da asa.
Dado que um fluido real tem viscosidade, e como sobre a superfície da asa a velocidade
tem de ser nula, e longe desta a velocidade é igual à do escoamento não perturbado, têm de
y
τw dA
p
x
Figura 10.3- Força de pressão e viscosa num elemento de superfície do objecto.
Para se efectuarem os cálculos das equações 10.1 e 10.2 é necessário conhecer a forma
da superfície do objecto e as leis de distribuição da pressão e tensão de corte viscosa o que
nem sempre é tarefa fácil. É bastante mais fácil obter a força resultante nas suas
componentes.
Força de sustentação
Binário
direcional Força de arrasto
Objecto
Binário de
rotação
Binário de
inclinação
Força lateral
Velocidade do
escoamento livre
Figura 10.4- Forças e momentos actuantes sobre um corpo imerso num escoamento.
Para além destas duas componentes de força existe ainda um momento na direcção
perpendicular ao plano da figura e se o corpo fôr tridimensional ou o escoamento estiver
inclinado relativamente ao plano da Figura surgirão também outras componentes da força e
momento resultantes. Esse conjunto de esforços e a sua designação está representado
esquemáticamente na Figura 10.4.
É frequente em Mecânica dos Fluidos a apresentação de resultados sob forma
adimensional, como visto no ultimo capítulo. As forças de arrasto (D) e sustentação (L) são
adimensionalizadas nos respectivos coeficientes de arrasto ( CD ) e sustentação ( CL ) da
seguinte forma:
D
CD = 1 (10.3)
ρV 2A
2
L
CL = 1 (10.4)
ρV 2A
2
i) corpos fuselados tais como asas, perfis alares, placas planas: A representa a área
planificada do objecto. No caso de uma asa esta área sera o produto da
envergadura pela corda do perfil (ver também Figuras 10.12);
ii) superfícies de navios e barcos: A representa a área molhada do objecto
submerso, como por exemplo a área molhada do casco;
iii) corpos não fuselados: para os restantes objectos A representa a área frontal, a
área vista pelo escoamento, ie a área projectada num plano normal ao
escoamento.
Para a outra componente da força a sua adimensionalização é idêntica e para normalizar
um qualquer momento M usa-se a equação (10.5) onde L representa uma escala de
comprimento.
M
CM = 1 (10.5)
ρV 2AL
2
do cilindro para escoamento a baixo e a elevado número de Reynolds. Além disso, a Figura
10.6-c) inclui também a variação da pressão para o caso ideal de um fluido sem
viscosidade que por isso não ocorre separação do escoamento.
U Distribuição
de pressão
p
τw
Distribuição de
tensão de corte
Figura 10.5- Distribuição de pressão e tensão de corte num escoamento em torno de uma
placa plana.
Na secção 10.3 analisamos com mais detalhe a separação do escoamento mas importa
desde já constatar que perante este fenómeno a contribuição do arrasto de pressão é
significativa porque a jusante do cilindro a pressão não consegue recuperar para o valor
que tinha a montante(ver Figura 10.6-c). A resultante deste campo de pressões é designada
por força de arrasto de forma.
Para termos uma medida da importância relativa das contribuições de fricção e de forma
para o arrasto total em função da geometria do objecto reproduzimos na Figura 10.7 uma
ilustração de White (1999) onde se mostra a variação destas contribuições em função da
razão t c . A forma geométrica do objecto está representada na Figura 10.7-b), podendo ir
desde uma placa plana (espessura t nula) a um cilindro de secção circular (espessura t
identical à c). O conjunto de geometrias analisadas representa de facto uma série de perfis
alares simétricos cujas geometrias limite são as duas mencionadas.
Figura 10.7- Força de arrasto num corpo fuselado bidimensional para Re=106. (a) Efeito
da espessura do objecto na contribuição de fricção. (b) Efeito da espessura sobre o
coeficiente de arrasto. Notar que são utilizadas duas definições de área diferentes [de
White, 1999].
A Figura 10.7 mostra que a contribuição de fricção diminui rapidamente com a redução
da esbelteza do perfil uma vez que isso dá origem a uma separação do escoamento. Para
além disso, também verificamos que à medida que o corpo se alarga a força de arrasto total
aumenta, ie, a diminuição da importância relativa da força de fricção tem mais a ver com o
aumento da contribuição de forma do que de uma eventual diminuição da força viscosa.
Por si, a constatação do efeito viscoso não introduz nada de novo. No entanto, no início
do século XX foi Ludwig Prandtl quem percebeu que a elevados números de Reynolds esta
zona de predominância de efeitos viscosos era muito fina e que em consequência diversos
termos das equações de conservação se tornavam pouco importantes pelo que este tipo de
escoamentos poderia ser mais fácilmente estudado se de facto se dividisse o domínio nas
duas zonas: a camada limite e a zona exterior à camada limite. É esta a essência da teoria
da camada limite de Prandtl. Uma camada limite sobre uma placa plana a elevado número
de Reynolds está representada na Figura 10.8-b) onde podemos agora constatar que o
desvio do escoamento exterior U provocado pela placa é muito pequeno.
U
δ≈L
Elevado desvio
por efeito da viscosidade
U
x
ReL = 10
L
zona viscosa
zona invíscida
a)
δ<<L
U
ReL = 107 x
Figura 10.8- Escoamento sobre uma placa plana a baixo e elevado número de Reynolds.
A baixos números de Reynolds (Re < 1), as forças viscosas predominam sobre as forças
convectivas em todo o domínio do escoamento e o fluido tende a contornar o objecto como
se mostra na Figura 10.9-a). A variação da pressão em torno do cilindro é muito
semelhante à que se observa no caso ideal do escoamento de um fluido sem viscosidade e
que está patente na Figura 10.6, ie, a pressão tem um perfil quase simétrico recuperando
praticamente na totalidade, ie, a pressão diminui ao passar pelo cilindro e depois volta a
aumentar. Ao contrario do caso invíscido, a pressão não recuperará para um valor
exactamente igual à pressão de montante, mas para um valor de pressão inferior embora
próximo.
É importante salientar a este propósito que as partículas de fluido próximas da
superfície do cilindro, na sua metade de jusante, vêm-se na necessidade de negociar uma
trajectória em torno do cilindro contra um gradiente de pressão adverso, ie, em
contrapressão. Como vemos na Figura 10.9-a) apesar desta situação desvantajosa o
escoamento não separa.
Com o aumento do número de Reynolds do escoamento as forças de inércia ganham
importância e a zona de domínio das forças viscosas vai-se reduzir em dimensão, à
semelhança do que acontecia também no caso de escoamento sobre uma placa plana. A
par desta redução da dimensão da zona viscosa dá-se um aumento dos gradientes de
velocidade, quer porque as velocidades do escoamento poderão ser mais elevadas mas
sobretudo porque a dimensão transversal da zona viscosa diminui de espessura,
aumentando em consequência as tensões de corte viscosas junto ao cilindro. Este aumento
das tensões viscosas retira mais energia às partículas de fluido que se escoam junto à
superfície do cilindro do que no caso do escoamento a baixo número de Reynolds pelo que
as partículas ficam por isso menos capazes de resistir aos gradientes adversos de pressão
que ocorrem na metade posterior do cilindro. A dada altura, quando o número de Reynolds
excede um valor crítico dá-se a separação do escoamento na zona posterior do cilindro,
situação que está representada na Figura 10.9-b).
Aumentando ainda mais o número de Reynolds do escoamento, a região dominada
pelas forças viscosas diminui ainda mais de espessura tornando-se fina, ie aparece uma
camada limite, e a separação do escoamento continua a ocorrer. Eventualmente surgirão
também instabilidades na camada limite que farão com que o escoamento na esteira do
cilindro tenha características periódicas. Estamos perante o caso representado na Figura
10.9-c).
A partir do momento em que há separação do escoamento (como nas Figuras 10.9-b) e
–c) a pressão na metade posterior do cilindro já não vai recuperar totalmente e teremos um
perfil de pressão do tipo da que está representada na Figura 10.6. Aí a dada altura a pressão
na metade posterior do cilindro estabiliza num valor constante, fazendo com que a
integração do perfil de pressão em toda a superfície do objecto tenha um valor elevado e
positivo que é igual à força que o escoamento exerce sobre o objecto por efeito de forma, o
arrasto de forma.
mantem a sua coerência como acontece em regime laminar. A turbulência ocorre assim de
forma intermitente.
Desta descrição dos regimes de escoamento fica claro que o regime turbulento se
caracteriza por uma rápida dispersão de quantidades físicas: por exemplo, se o fluido em
escoamento estiver a uma determinada temperatura e se se injectar um pequeno jacto de
fluido a uma temperatura diferente, atingir-se-á a homegeneização térmica e a mistura
completa dos fluidos mais rapidamente no regime turbulento do que no regime laminar.
Vale a pena agora voltar a olhar para a Figura 10.6 onde se esboçam algumas
características do escoamento em torno do cilindro. Aí vemos que a separação de
escoamento em regime laminar se dá mais cedo do que em regime turbulento e interessa-
nos perceber o porquê desta diferença. Vimos que a separação estava associada a dois
acontecimentos: por um lado, um gradiente de pressão adverso que as partículas de fluido
terão de vencer, e por outro lado a incapacidade dessas mesmas partículas de conseguirem
vencer essa contrariedade junto à superfície do cilindro.
Ora, em regime turbulento há grandes oscilações das velocidades e pressões no seio do
escoamento, embora em termos médios essas grandezas possam manter os respectivos
valores constantes. Devido às flutuações de velocidade no regime turbulento as partículas
de fluido no exterior da camada limite, que possuem por isso maior velocidade e energia,
são trazidas para o interior da camada limite aumentando assim a energia do nesta zona
quando comparado com a situação em regime laminar. Esta energização das partículas de
fluido junto ao cilindro, que é feita pela turbulência, permite que elas aguentem durante
mais tempo o gradiente de pressão adverso e por isso a separação do escoamento dá-se
numa posição posterior áquela que corresponde à separação em regime laminar.
δ 5.0
= (10.6)
x Rex
Rex representa o número de Reynolds do escoamento na camada limite em que o
comprimento característico é a distância ao bordo de ataque, ie,
ρVx
Rex = (10.7)
η
Para o caso do regime turbulento a espessura vai crescer mais rapidamente, segundo a
lei
δ 0.16
= (10.8)
x Re1/7
x
Esta expressão requer também o uso das equações de Navier-Stokes modificadas para
os regimes turbulent e a adopção de um modelo de turbulência, materias que estão for a do
âmbito deste curso. As equações de Navier-Stokes são as equações de conservação de
quantidade de movimento escritas na forma diferencial.
Quanto às forças de corte, a solução das equações do movimento deram as seguintes
expressões finais: para o regime laminar o coeficiente de arrasto ( CD ) é dado pela
expressão (10.9) que é igual ao dobro do coeficiente de fricção ( C f ) calculado no extremo
da placa. O coeficiente de fricção na placa não é mais do que a tensão de corte local
adimensionalizada, enquanto que o coeficiente de arrasto é o valor adimensional da força
de arrasto total, que resulta da integração da tensão local a toda a parede.
1.328
CD = = 2C f ( L) (10.9)
ReL
Para o regime turbulento a expressão equivalente é a equação (10.10) onde se assume
no entanto que o regime turbulento prevalece desde o início da placa.
0.031 7
CD = = C ( L) (10.10)
1
Re 7 6 f
L
5×105 < Retr < 3×106 . Quando o número de Reynolds no final da placa é muito superior
ao valor de transição, na prática a região de regime laminar está confinada a uma porção de
placa muito pouco extensa e para efeitos de cálculo do CD pode-se admitir sem grande
erro que toda a placa está em regime turbulento. Contudo, se no final da placa o número de
Reynolds estiver próximo do valor de transição, para o cálculo do CD terá de se fazer a
Figura 10.11- Variação do coeficiente de arrasto com o número de Reynolds para corpos
quasi-bidimensionais [de White, 1999].