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TEXTOS Dez mandamentos para uma psicanalise tragica Alttedo Natfah Neto Elaborando a sombra de Nietzsche a articulagao entre psicanilise ¢ filosofia tragica, este artigo sugere dez principios tedrico-praticos que, conformemente ao dionis 5 mandamentos abaixo transcritos s40 uma tentativa de exprimir — sob a forma de pres- crigdes — as diretrizes basicas para uma psi- candlise tragica, tal qual a tenho concebido € praticado, nos tltimos anos. Entretanto, a muitos pode parecer estranha- se no aleat6ria ou mesmo arbitriria ~ esta tentativa de juntar psicandlise e tragédia, especialmente quando escolho ‘como interpretacio privilegiada do trigico, a filosofia de Friedrich Nietzsche, Pode-se perguntar qual é 0 sen- tido de buscar ressonancias entre uma tradicao eminen- temente clinica, como a psicandlise — cujas ferramentas te6ricas vém sendo avaliadas e transformadas pelos impasses oriundos da pritica, ao longo de um século ~ € uma filosofia polémica, do final do século XIX. Ou mesmo ponderar se essa escolha ja nao implica, de cara, despotencializar esse cuidacioso trabalho de dupla ver- tente entre clinica e teoria, nutrido ao longo dos anos, pela intromissaio de uma filosofia e — 0 que € ainda pior = de uma filosofia estranha 2 psicandlise. Entretanto, conforme ja disse em outra ocasiao, essa suposta exterioridade entre o pensamento de Freud € 0 mo constitutivo do trigico, tomam a forma de “mandamentos”. de Nietzsche 6, no minimo, controversa. “Embora os escritos de Nietzsche e de Freud sejam rigorosamente consecutivos, no sentido cronolégico do termo, € os de Nietzsche {4 estejam bastante difundidos no fim do sé- culo XIX € comeco do XX, Paul-Laurent Assoun aceita a tese de que Freud nao tenha lido quase nada de Nietzsche, baseando-se em declaragdes do proprio cria- dor da psicanilise'. J Ronald Leher® afirma e: evidéncias hist6ricas de que Freud conhecia os escritos mais antigos de Nietzsche que, em 1908, teria discuti- do seccdes da Genealogia da Moral e de Ecce Homo com membros da Sociedade de Psicandlise de Viena Chega a perguntar-se, inclusive, se as leituras de Freud no teriam ido mais longe, dada a grande coincidéncia entre as idéias bisicas cle ambos os autores. De fato, uma divida te6rica de Freud para com Nietzsche € afir- mada por psicanalistas importantes como Ernest Jones ‘Alfredo Natfah Neto 6 pslcaalts, nese om Flosofa pela USP, outer em Pleologia eProtessorTular pela PUC-SP, autor do varios argos Ios sor {0 0 mals recone: Ouvr Wagner ~ Ecos Nozschianos (om eolaboragio com Yara 8. Cazndh), Sao Paulo, Musa, 2000. Pereurso n° 28 - 1/2002 TEXTOS € Didier Anzieu. Jones enfatizando a correspondéncia entre 0 super-ego Jfreudianoe a formagio da md-cons- ciéncia, descrita por Nietzsche; Anzieu dizendo que Nietzsche descrevera anteriormente arepressao sob o nome de inibic@o, o super- (ego os sentimentos de culpa sob a forma de ressentimento, md-cons- ciéncia e falsa moralidade, além de ter antecipado varios outros proces- € da insisténcia do principio do pra- zer em predominar indefinidamen- te. O seu Zaratustra diz: ‘A dor gri- ta: vail Mas 0 prazer quer eternida- de, pura, profundamente eternida- de, Uma outra vertente, paralela a sta, mas igualmente controversa é a relagao entre a psicandlise € arte tragica propriamente dita. A refe- réncia de Freud a Edipo-Rei de Niwa mais do que Nietzsche se apercebeu dos motivos duais da conduta humana, e da insisténcia do principio do prazer em predominar indefinidamente. O seu Zaratustra diz: 80s € conceitos"’, O psicanalista americano Daniel Chapelle vai ain- da mais longe, ao sugerir e desen- volver o argumento de que a nogao nietzschiana de eterno-retorno s6 encontra seu fundamento real na dinamica descrita por Freud como compulsao a repeticao, seja no sin- toma neurdtico, seja na transferén- cia’. Discutivel? Certamente, como tudo © que cerca essa suposta rela- ‘a0 entre os dois pensadores. Entretanto, nao se pode des- considerar que foi o préprio Freud quem afirmou, numa entrevista “Nietzsche foi um dos primeiros psi- canalistas. E surpreendente até que Ponto a sua intuigao prenuncia as novas descobertas. Ninguém se apercebeu mais profundamente dos motivos duais da conduta humana, “a dor grita: vail” S6focles € conhecida por todos, bem ‘como toda a controvérsia que veio cercar a nogao de complexo de Edipo, mais recentemente, e a torn- la uma nogdo muito pouco tragica, principalmente pelo nivel de reducionismo interpretative a que veio se prestar, muito pouco con- soante com 0 espirito tragico, cuja caracteristica maior & a fensdo e ambigitidade de sentido. Mas, para além desta referéncia direta, ha de se considerar que o descentramento do sujeito moderno operado pela nog psicanalitica de inconsciente veio, de alguma forma, recriar algo comparivel a fragilidade do berci- tragico, eternamente dividido entre éthose daim6n, 0 cariter e a potén- ia divina’. Ou seja, tal qual o he- rOictgico que aparece, ora como 16 agente — causa e fonte dos seus atos, = ora como alguém que € movido de fora, por uma forga que 0 ultra- passa € 0 arrasta, também o homem. p6s-freudiano aprendeu a se reco- nhecer numa eterna tensio entre consciénciae inconsciente, Esta ten- so © ambigitidade — que fazem o sujeito oscilar entre uma idlenticta- de inconstante e a alteridade mais radical — haviam sido dissimuladas pela filosofia plat6nica e assim per- manecido ao longo de toda a mo- demidade. Foi Freud — seguindo as pistas de Schopenhauer e Nietzsche = quem as veio trazer A tona nova- ‘mente. Essas razdes jé bastariam para justificar a decisio de buscar resso- ncias entre psicandlise e tragédia € de assumir, como intérprete privi- legiado do trigico, a filosofia de Nietzsche. Entretanto, se elas me motivaram a essa tarefa, num primeiro momento, 6, sem dtivi- da, a fecundidade da proposta no Ambito da pritica clinica que me tem feito prosseguir nessa direcao. Percebo, cada vez mais, 0 quan- to ela potencializa e afia mentas psicanaliticas, possibilitan- do um acesso mais facil a5 muilti- plas facetas, contradigoes e lutas intemnas que definem a subjetivida- de contemporinea. Proposta metodolégica basi Respeitar os respectivos cam- pos de produgao € de estudo (Psi- candlise ¢ Arte trdgica), sem que- rer reduzir um ao outro; buscar as ressonancias miituas entre os dois campos e, somente a partir delas, construir um terceiro que articule ¢ dé forma a esses cruzamentos de sentidos. Utilizar Freud e Nietzsche como intérpretes privilegiados dos dois campos originarios inclu- indo, entretanto, outros autores que possam enriquecé-los com sua producao te6rica (Ferenczi, Klein, Bion, Winnicott, Ogden, Vernant, Vidal-Naquet, Detienne, entre outros). Dessa postura biisica decor- re a construcio da psicandlise trigi- cae dos seus mandamentos, abai- x0 descritos. 1° mandamento Excutar com o corpo inteiro. Se a psicanilise define-se, primordial- ‘mente, como arte da escuta, a filo- sofia trigica, por sua vez, ensina- ‘nos a escutar dionisiacamente, atra- vés da intensificagio de todos os sentidos corporais. E preciso, poi escutar 0 discurso do analisando nao 86 com os ouvidos, mas com o cor- po inteiro, tal qual se escuta uma mtisica, “Quando ougo uma miisi- a, (.., 8€ me abandono aos seus encantos, sou literalmente tomado € possuido pelos seus sons e todo © turbilhao de afetos e de imagens que pululam no mesmo movimen- to. G..) Naquele momento — que pode durar uma eternidade — sou aquela miisica corporificada: ela ha- bita meu corpo, flui no meu san- gue, pulsa nas minhas veias...”. Isso nao quer dizer, entretanto, que a escuta analitica nao envolva distan- ciamento; ela consiste justamente no paradoxo de um envolvimento dis- tanciado, comportando inclusive clivagens funcionais na personali- dade do analista: uma parte dispo- nivel para acolher e dar forma as identificagdes projetivas e desloca- ‘mentos transferenciais do analisan- do, outra distanciada e livre para que 0 enredamento necessario nao impeca o pensamento € que se pos- sa processar uma anilise. Um fragmento clinico, que usei fecentemente num outro escrito, pode ilustrar 0 que quero dizer com expressio: escutar com 0 corpo inteiro. “Maria é uma paciente que est em andlise comigo ha cerca de dois anos e meio. Na sessio em questo, ela me conta um sonho: esti numa praia e, de repente, o mar invade a areia € a arrasta. So on- das enormes, de 4gua batrenta, que ela associa mais com rio do que com mar mas, apesar disso, trata-se de mar. O mais surpreendente, ela diz, € que, ao ser envolvida por aquelas Aguas bravias, sente-se imobilizada, fica com medo de se afogar mas nao se afoga. © sonho termina ai e as associagdes de Maria nao actescen- tam muito: sobre mar, ela diz ape- ‘nas que gosta de mar e que, nas férias, costuma procurar cidades de praia; sobre rio, conta que quando crianca, havia um rio de fguas bar- rentas na cidade do interior de Sa0 Paulo, onde morava. E as associa- oes param af, © clima afetivo do telato é calmo, tranqiiilo, compas- sado, em contraste com a tematica do sonho. Bu a escuto, de olhos fe- chados, enquanto manuseio uma laranja de borracha que fica sobre a ‘mesa ao lado. De inicio, costumava manusear essa laranja, durante al- gumas sessdes, como forma de fa- zer exercicios com a mio; posteri- ormente, comecei usar esse ma- de. Mergulho nas sensagdes € vem um 6dio imenso, um impeto agres- sivo: vontade de espremer a laran- ja, de langé-la na parede, com toda a forca. E sei, com toda a convicgio que esses afetos no so meus, ou melhor, eles ocorrem em mim, mas num corpo emprestado a deposi- taco transferencial. Ent&o resolvo interpretar, dizendo a Maria que é possivel que 0 seu sonho fale de momentos em que se vé invadida por muito ddio e agressividade e tenta reprimi-los, imobilizé-los. Ela me ouve e lembra-se de outro so- nho, esquecido, no qual era ataca- da por um bicho enorme, do tama- nho de um leo, uma espécie de monstro, de dentes muito agucados. E, no momento em que era mordi- da, ela mesma tornava-se o bicho. A partir daf, vem a baila uma agres- sividade reprimida, que Maria vive sob a forma de dores muscula- res, caimbras”, Pa poder realizar esse tipo de escuta, é preciso impregnd-la com 0 espirito da mtisica, Como Nietzsche dizia: “nao ter diividas quanto as silabas ritmicamente decisivas!” nuseio como forma de expressar corporalmente, para mim mesmo, © clima afetivo emergente. Ao lon- go do relato de Maria, 0 que acon- tece é que sou tomado por sensa- ‘ges estranhas: uma vontade incon- trolével de jogar a laranja na pare- v7 Para poder realizar esse tipo de escuta, & preciso impregni-la com © espirito da misica. Como Nietzsche dizia: “..ndo ter diividas quanto as silabas ritmicamente de- cisivas, (..) prestar ouvidos sutis € pacientes a todo staccato, todo TEXTOS rubato, atinar com 0 sentido da se- qéncia de vogais e ditongos, e o modo rico € delicadlo como se pode colorit e variar de cor em suces- 0..." Ou seja, € preciso aprender aescutar com o terceiro ouvido, que é, eminentemente, um ouvido mu- sical, deixando-se atravessar por aquilo que poderiamos descrever como a estrutura ritmico-melédica do discurso, seu fiundo afetivo. 2° mandamento Debrucar-se sobre 0 invistvel/ indizivel da experiéncia bumana. E preciso tomar como exemplo Edipo e suas transmutagoes, através das duas tragédias sofocleanas: Edipo-Ret e Edipo em Colono.Cego as forgas invisivets do destino di rante toda a primeira etapa de sua vida (a de principe de Corinto € a de rei tebano), foi preciso que fu- rasse os olhos para que, da escu dao, aprendesse a considerd-las, saindo das meras evidéncias, para se tomar um vidente. Edipo ofusca- do pelo visivel, Edipo onipotente- mente clarividente, Edipo cego pela luz.e~num segundo tempo - Edipo ‘mergulhado na sombra, Edipo hu- mildemente guiado por Antigona, Edipo aprendendo a ler o invisivel/ indizivel da vida e tornando-se um sibio”, Trajetéria que tem tudo a ver com o processo psicanalitico, a comegar pelo uso do diva, que suspende a visto ordinaria € seus teferenciais, criando um vazio potencializador: E fato que o diva, como instru- ‘mento psicanalitico, vem sendo pouco valorizado nos tiltimos tem- Pos, como se 0 seu uso fosse sini nimo de rigidez técnica, desneces- siria © inoportuna. Por essa razio, convém lembrarmos que o ato de suspender a visdo intersubjetiva no processo de andilise tem um senti- lo muito preciso: o de por fora do Circuito da relacao analista-analisan- do aquele que € 0 érgio sensorial dominante no mundo ocidental, com todos os cédigos de etiqueta € de controle social que ele encarna. Olhar e ser olhado, no contexto analitico, significa — grande parte das vezes — vigiar com as olbos, velar para que nada de diferente aconte~ ae possa ameagar a “seguranga” reinante, ou seja, uma forma de se defender da angiistia frente ao des- conhecido através da tentativa de controli-lo. Esta é a razao pela qual analisandos que se sentem muito perseguidos geralmente nao conse- guem deitar no diva. Sao, geralmen- te, subjetividades esquizdides, fronteiricas, ou mesmo psicoticas, que necessitam do olhar do analis- ta como fonte de referéncia, para nao se sentirem soltas, perdidas, ameagadas. Porém — salvaguarcadlos esses casos especificos em que 0 uso do diva possa nao ser recomen- dado ~ a sua utilidade é incontesti- vel. Além de possibilitar um maior conforto para a dupla analista-ana- lisando, pela suspensio do contro- le social miituo, cria melhores con- Mas, além de criar acesso para © invisivel, o contexto psicanalitico necesita, também, abrir caminho para o indizivel que o discurso ver bal comporta, Isso se processa pela forma de escuta, que procura cap- tar os inter-ditos do discurso, aqui- Jo que se diz nos poros expressivos da fala, nos vazios silenciosos que a sustentam ¢ articulam enquan- to tal. Pois é esse ato de acessar 0 invisiveVindizivel da experiéncia humana que dé acesso a0 grande estrangeiro, 1 alteridade maior que hos atravessa € constitui. Nao im- porta se, como Nietzsche, a chama- mos de Dioniso ou se, a partir de Freud, a denominamos inconscien- te (pois, ainda que estes conceitos nao sejam equivalentes, eles ocu- pam lugares hom6logos nas respec- tivas teorias). O importante, é que se trata da abertura aquele conjun- to de marcas invisiveiv/indiziveis, talhadas no nosso corpo € no nos- 50 espitito pelas vicissitudes de nos- sa hist6ria — nossas marcas distintt- Re € 0 ato de acessar 0 invisivel/indizivel da experiéncia humana que da acesso ao grande estrangeiro, a alteridade maior que nos atravessa e constitui. digdes para que ambos possam mer- gulhar no desconbecido que os atra- vessa, nessa dimensio da realidade subjetiva ¢ intersubjetiva que com- preende 0 invisivel. Favorece, por essa via, tanto a atengao equi-flu- tuante quanto a associagao livre. 18 vas que sio, para o registro das re- presentacdes conscientes, sempre estrangeiras, intraduziveis — e des- dobracias e ecoadas através dle muil- tiplas construcdes semidticas em constante transformacao (através da condensacdo do deslocamento) oe ee Usina metamorfoseante que — no seu continuo tornar-se — di origem a nossa subjetividade. Esse acesso desdobra a experiéncia humana do Ambito do mundo visivel/dizi vel, diretamente acessivel ao sen- 0 comum € A consciéncia, para o das dindmicas invisiveivindiziveis do inconsciente, 3° mandamento Acotber a dor ¢ 0 sofrimento como partes integrantes da vida, tanto quanto 0 prazer e a alegria. “O que a cultura tragica nos ensina de mais precioso & a aceitagdo da vida, em todos os seus aspectos: do ‘mais claro ao mais sombrio, do mai prazeroso ao mais eivado de dor. O her6i trigico aprende, a duras pe- nas, a aceitacao do destino como a ‘inica forma de poder transcendé- lo". O psicanalista, por sua vez forma-se a0 desenvolver a sua ca pacidade de acolbimento. E preci- 50, pois, aprender a acolher a dor © sofrimento do analisando (tanto quanto o seu prazer e a sua alegria), sem querer disfargé-los ou minim los. A psicanilise tragica exige cer- ta dose de crueldade, uma cruelda- de sadia, avessa a piedade. E preci- so aprender com Wotan, o herdi tsi- gico wagneriano (e suas transmuta- Ges, através dos quatro dramas- musicais que compéem o Anel dos Nibelungos) a afirmar a dor como forma de afirmar a vida em toda a sua plenitude", Toda vez que um analisando tenta se furtar & dor, por nao suporti-la, acaba produzindo disfarces as questoes fundamentais que © acossam, seja deslocando-a para questOes menos importantes, seja tentando seduzir o analista 3 piedade e 2 complacéncia. Ou, na vertente oposta, anestesiando-se representando © papel do inatacé- vel, inquebrantivel, invencivel. Nao cabe ai tentar forcar uma passagem prematura da dor pela couraga de- fensiva: a paciéncia é uma das grat des armas da psicandlise. Mas nao cabe tampouco deixar-se seduzir pelo pedido de cleméncia ou pela indiferenca simulada. E preciso aguardar que a dor possa se fazer experiéncia viva. Nietzsche dizia, a esse respeito: "A disciplina do so- frer, do grande sofrer— nao sabem voces que até agora foi essa disci- plina que criou toda exceléncia hu- 2 ae pois, aprender a acolher a dor e o sofrimento do analisando (tanto quanto o seu prazer e a sua alegria), sem querer disfarc4-los ou minimiza-los. ‘mana? A tensio da alma na infelici- dade, que Ihe cultiva a forga, seu temor ao contemplar a grande rui- na, sua inventividade e valentia no suportar, persistir, interpretar, utili- zat a desventura, € 0 que 86 entio Ihe foi dado de mistério, profundi- dade, espirito, mascara, asticia, grandeza — nao Ihe foi dado em meio ao sofrimento, sob a discipli- nna do grande sofrimento?"”> ‘Mas, permiti-se viver e degus- tar os prazeres da vida € também uma experiéncia fundamental, que muitos analisandos necessitam de- » senvolver no proceso psicanaliti- co, aprendendo a lidar com a culpa geralmente associada a eles. Ape- sar de toda a liberacao sexual dos anos 70 e do afrouxamento das pulsdes agressivas que se seguiu — ‘ou qui¢d por causa deles ~ 0 senti- ‘mento de culpa ea md consciéncia permanecem muito pouco elabora- dos, escondidos e disfarcados numa dobra qualquer de nossas almas, aquela que normalmente guarda as marcas de nossa educacio. 40 mandamento Interpretar os movimentos de construgdo e de destruicao como artes do mesmo devir criador. 1850 significa considerar a morte co- ‘mo parte integrante da vida ou, em outros termos, que a vida é feita de ‘movimentos ce morte e renascimen- to continuos e concomitantes (par- tes nossas que morrem e outras que nascem, ao mesmo tempo): Dioniso despedacado ¢ eternamente renas- cido em cada um de nés, Nesse sentido, & preciso man- ter em constante critica a nossa ten- déncia cristi de sempre querer consertar a vida. Nunca sabemos se um casamento ou uma profissio em crise, cle um analisando, neces: sitam ser reparados, transformados ou meramente desfeitos, em pro! do seu crescimento psiquico. Tampou- co ele sabe, quando vem nos pro- curar. E preciso, pois, manter um distanciamento capaz de acolhet os acontecimentos, sem tomar partido por nenhum deles, permitindo que a vida seja absolutamente soberana nas suas escolhas, sejam elas de construgio ou de destruigio. » do que isso, € preciso mapear os movimentos de construgio conco- mitantes aos de destrui¢io e vice- versa, como as das faces necessd- riasdo mesmo devir. Entretanto, acolher os mo 10 no nifica, em hipétese alguma, uma aceitacao ilimitada ou uma neutra- TEXTOS lidade destituida de ética. A tem por fungio, justamente, guiar- nos na distingao entre o que € sau- davel e o que € doentio. As ativida- des de um torturador, por exemplo = embora meregam tanta andlise quanto qualquer outra — nao sao de- fensaveis, eticamente falando, sob qualquer perspectiva de valores. Quando a destrutividade tem que ser exercida sobre outrem ~ salvo ‘em situagdes de auto-defesa ~ isso € geralmente sinal de identifica- ‘sdes projetivas de cunho psicético: alguém € culpabilizado imolado para que © agressor se livre de al: guma parte de si proprio que nio pode tolerar. A dor, 0 sofrimento ou a culpa sao, entao, evitados pela cri- agio de um bode expiatério. Nesse sentido, convém lembrar que a neu- tralidade silenciosa de um psicana- lista dliante de atos que estejam des- truindo outras vidas sera tao crimi- osa quanto os atos em questo, em fungao da cumplicidade implicada. Nao confundir, portanto, alhos com bugalhos. 5° mandamento Considerar a relagao psica- nalitica como uma “solidao a dois”, onde cada um aprofunda e expan. de a capacidade de babitar a si pré- prio. E fundamental que o didlogo analitico seja a oportunidade de o analisando e o analista escutarem a si proprio, ou seja, que essa pre- senca bumana, esse testemunbo, possa servir para cada qual mergu- Ihar na sua solidao e dela resgatar ‘uma poténcia singularizante, Segun- do Winnicott, € 0 respeito e acolbi- mento as singularidades proprias que podem tornar a relagao analit ca potente ~ na qualidade de gesto bumano ~ para abrir portas 4 re- ides ainda nio habitadas do nosso ser, trabalhando na (re)construcio do self(si proprio). Independente- ‘mente da posi¢ao que cada integran- te ocupa nessa relacao (que, eviden- temente, nao é simétrica), a funcio dela € sempre expandir essa capa- Cidade de habitar a si proprio, tor- nar-se aquilo que se é (na expres- sao de Nietzsche), 6° mandamento Pensar as geografias singula- res que compoem o fora e o dentro, exterior e 0 interior, 0 mundo ea subjetividade como construgées ope- radas por forcas-afetivas e suas po- téncias interpretantes. Nietzsche dizia: “Nao, justamente ndo ha fa- advém o sentido do fora: é um mun- do odioso € odiento (persecutério) que se abre diante de nés (delinea- do por nossas identificagoes pro- jetivas). Quando este afeto se trans- muta, € 0 sentido do mundo que também se transforma, “Forae den- tro participam, pois, da mesma subs- tancia, 0 dentro constituindo-se como uma envergadura do fora, o fora como uma multiplicidade de perfis projetados de dentro. (...) Fssa miitua constituigao € 0 que atesta (...) minha existéncia como devir mundano, a existéncia do Cas a relag&o psicanalitica como uma “solidao a dois”, onde cada um aprofunda e expande a capacidade de habitar a si proprio. tos, somente interpretacdes. NOs aio podemos constatar nenhum factum ‘em si’: talvez seja um con- tra-senso querer esse género de coisa. (...) Sao nossas necessidades que interpretam © mundo: nossos instintos, 0 seu pré e 0 seu con tra..."", Ou, em outro fragmento: “Nao € necessario perguntar: ‘quem, centio, interpreta’, a0 contritio, © interpretar, em si préprio, como for ma de vontade de poténcia existe (nao, entretanto, enquanto ‘ser, mas ‘enquanto processo, devir) como afe- to (afeigao)"", Freud e Klein, por sua vez, nos ensinaram algo do mes- mo género: que quando estamos atravessados por um afeto 0 édio, por exemplo ~ é desse afeto que 20 mundo como devir subjetivo: eu- moutro/outr’em-mim, sacos ca mes- ma farinha, paes do mesmo trigo™. Assumir essa interpretagio de mundo significa, por sua vez, admi- tir que a psicandlise nao se deve pretender, em hip6tese alguma, uma experiencia corretiva, destinada a reparar percepcoes distorcidas da realidade, pois ndo existe um su- posto “mundo objetivo” a ser per- cebido corretamente, mesmo no is0 dos psicdticos. A idéia de uma realidade tiltima remete sempre e invariavelmente @ idéia de um ab- soluto ~ Deus ou qualquer outro — que possa dar testemunho dela Isso ndo quer dizer, entretanto, que nao existam interpretagdes de mundo mais ricas, abarcando mats aspectos da realidade do que ou- tras. Nao hi af nenhum contra-sen- so: trata-se, isso sim, do nivel em que cada ser humano consegue dis- tinguir fantasia de realidade, passa- do de presente, meméria de per- cepedo. E bastante freqiiente, na di- namica neurética, um funcionamen- to constante e ininterrupto do pro- cesso primario (alucinagio do de- sejo), operando como um filtro na percepcio da realidade e s6 permi- tindo que cheguem a consciéncia aqueles aspectos da mesma compa- tiveis com 0 gozo alucinatério. Com © amadurecimento psiquico, na medida em que vai sendo possivel acolher aspectos da experiéncia pro- dutores de desprazer, dor, esse fun cionamento ininterupto do proces 0 primario vai se tornando cada vez mais desnecessario. Isso, sem dtivi- da, amplia 0 contato com a realida- de, abrindo para aspectos antes ina- cessiveis e tornando a experiénci cada vez mais rica e nuangada. (© proceso psicanalitico tem, pois, por tarefa, expandir a gama de experiéncias afetivas efetivamen- te experimentiveis e tolerdveis, de- salojando e transformando os afe- tos dominantes que monopolizam as interpretacdes de mundo e man- tém suas paisagens congeladas numa t6nica vivencial invaridvel, 7° mandamento ‘A terapéutica psicanalitica consiste fundamentalmente num processo de favorecer ao sujeito a criacao/ampliagdo de uma enver- gadura interior, capaz de acolber, digerir e transmutar os afetos/inter- pretacoes para os quais ele, normal- ‘mente, nao dispoe de enzimas psi- canaliticas"”. As vezes, no somos capazes de digerir certas experién- cias vitais, por nio dispormos de enzimas psicanaliticas para elas. Esse conceito foi criado por mim, inspirado na metéfora da digestao utilizada por Nietzsche € retomada posteriormente por Bion no campo da psicandlise. Por enzimas psica- naliticas designo chaves afetivo- simbdlicas necessérias para que a experiéncia seja decodificada, digerida e decomposta, sendo assi- ‘milada na sua parte nutritiva a vida € expelida nos seus residuos t6xi- cos. O adjetivo psicanalitica apare- ce ai como referéncia simultinea ao ‘campo onde a enzima opera (cam- Po psiquico) e ao proceso de de- composigio (andlise) que designa a sua operacao basica, ‘A auséncia de enzimas psica- naliticas no sujeito provoca a para- lisagao das experiéncias (em ques- tio) num circuito energético, pro- duzindo enquistamento traumatico Grecalque da representacdo, segun- do designagao de Freud) e dinami- ca de ressentimento (dispepsia do sentimento/afeto, segundo designa- sao de Nietzsche). Em casos extre- ‘mos ~ no bebé em estigio de total imaturidade ~ a experiéncia indiges- ta, traumética, pode gerar uma enzimas analiticas para que a expe- ri€ncia em questao seja decodificada e digerida. Mas nés adultos também somos freqdentemente afetados por experiéncias que, seja pelo inespe- rado da situacao, seja pela violén- cia do impacto afetivo produzido em 16s, fazem-nos ecoar um “nao” em. ditegdo a elas. Essa negacio impe- de, entio, que essas experiéncias sejam digeridas e incorporadas pelo ito, podendo vir a ga- nhar alguma forma consciente. A gradativa expansio de nossa enver- gadura interior” significa, pois, um aumento da capacidade de dizer sim" a vida, em todas as suas ma- niflestagoes. Como dizia Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena, se a alma mio é pequena’, 8° mandamento Opsicanatista deve procurar criar um sem-miimero de vozes di- Jferentes para dar forma aos diferen- O processo psicanalitico tem por tarefa expandir a gama de experiéncias afetivas efetivamente experimentaveis ¢ toleraveis, desalojando e transformando os afetos dominantes que monopolizam as interpretagdes de mundo. faléncia da confiabilidade no mun- do, produzindo defesas psicoti- cas contra as agonias impensé- veis (Winnicott)! A crianga que € molestada se- xualmente pelo adulto constitui o exemplo clissico dessa falta de a tes sentidos (interpretagdes) que emergem via _transferéncia- contratransferéncia. O analista deve recriar 0 seu método frente d singu- laridade de cada analisando e de cada sessio, possuindo suficiente jogo de cintura para inventar dife- TEXTOS rentes formas de interpretaclo, In- terpretar pode, algumas vezes, im- plicar um siléncio, outras, um jogo de sentido bem humorado (capaz de produzir o riso), outras ainda, uma sintese de sentido verbalmen- te construida. Embora nao tendo que encarnar um personagem (como no teatro ou na Spera), 0 psicanalista tragico tem muito a aprender com cantoras do porte da Maria Callas. “O que define 0 estilo trdgico é uma postura singular do artista diante do mundo. Sempre que ele abrir 0 seu corpo (e, conse- qientemente, 0 seu espirito) para que forcas tempestuosas, consti- tutivas do mundo tomem forma; sempre que, por esse mesmo movi- mento, ele conseguir encarnar 0 ‘pélemos dessas forgas, em suas mtl- tiplas configuracées, podendo aco- Iher desde os deuses mais etéreos até as entidades mais sepulerais; por fim, sempre que ele conseguir dar a tudo isso uma forma estética, es- tard rectiando a arte trdgica. Callas tinha esse dom". O que define o seu genio é... “a capacidade de trans- ‘mutar-se em obra de arte, compon- dlo-a com seu sangue, sua carne, seu coracio, suas visceras. Por essa ra- zo, nenhuma outra foi chamada de Ia Divina. O psicanalista tragico tem, de forma aniloga, de desen- volver 0 seu trabalho a partir de suas visceras, oferecendo 0 seu corpo (e, a partir dele, a sua mente) 2 afeta- ao transferencial € necessitando destilar, ca contratransferéncia, os fluidos dessa afetagio, criando um sem-niimero de vozes para interpreté-los. Felizmente, isso nao pressupde que seja um génio, do porte de Maria Callas; apenas que se desenvolva suficientemente como ser humano. 9° mandamento Cabe ao analista manter a atencao equi-flutuante e ser capaz de perambular por diferentes luga- res ¢ metamorfosear-se em diferen- tes outros (acolhendo as identifica- .¢0es projetivas do analisando), sem medo de se perder de si proprio. Para poder atender as demandas da es- cuta analitica, € necessirio que o analista possa encarnar Dioniso-vi- ajante, perambulando pelos diferen- tes lugares onde o conduz o discur- so do analisando e metamorfo- seando-se nas intimeras mascaras do deus, sem medo de se perder de si proprio. Tornar-se devoto de Dioniso € condigio para ser psica- nalista e poder iniciar 0 analisando no mesmo “culto", que se define pela perda do medo da alteridade, pelo contato € enriquecimento com © estrangeiro que nos atravessa. Pois a formula de satide &: “Ser si- proprio sendo, ao mesmo tempo, intimeros outros’ 10° mandamento Manter sempre acesa a expe- riéncia de participagéo dionisiaca: cada um de nés é somente um pon- to imantado num vasto oceano de forgas~ que é 0 mundo Corganico e ‘inorgdnico) ~ e nos deslocamos, 0 tempo todo, sobre um abismo, um espaco sem fundo. Lembrar sempre que € dessa forma de pertinéncia (e da experimentacdo que dela de- corre) que advém a nossa forca, a nossa poténcia, Bion representava esse vazio sem forma, de onde to- das as formas advém , com o signo 0. E descrevia 0 tomar-se si pro prio como um abrir-se as transfor- ‘magdes em O, permitindo humilde- ‘mente que esse vazio possa se con- fundir conosco € nos constitu- ir como vir-a-ser. Quando nos es- quecemos disso ~ e aspiramos con- trolar a vida — caimos na onipotén- cia ou — 0 que é 0 mesmo - no seu avesso: a impoténcia. Notas 1. Assn, Po. Freud e Netzcbe — semelbancase ‘dsemalbancas, Sho Paulo, Brasnse, 1989, ema pate 2 2. cher R. Meche presence in Proud fe and tought, Aany, State Univery of New Yor Press 1995, pp. 23. 3. Nafah Net, A. *Nistaache @ 2 scan” in {Cadernas Nerche 2, S30 Pal, Depareeto ‘de Flonta da US. 2 4. Chapelle D, Setacht and Pychoanalas Albany, State Univer of NewYork Press, 1993, pane 5. eu, 70 valor da wid" Reva e815: 54 So Paulo, Sockxade rasa de acai, 1958, p57 6. Vermant LP & Vid Naguet,F“sogos de vor Tide ni ragéla greg in Ao Trg ma “Greta antiga, Sa Pao, Dos Cade, 1997. 7. alfa Neto Outre i Ono ie “Binal Cres, rrevtaas So Plo, Pens, 1998, p66 8. Nala Neto, A “0 tere analtco eo sm-n- ‘lo coor — un ensio acle Thomas Ogden’, ‘Pstanaee © Unoerdad n.9'€ 10, jie 1998-jan/jun. 1998, S80 Paulo, PUCSP, pps. 9. Nlcasche, Flim do Bom edo Mal, So Paulo, Compania dis Lats, 1992 sor 248, p58. 10, Essa trajetéria de Edipo nas duas tragédias Sofocleanas'e sua zelagio com 9 processo ‘pscinalico fot explrads por isn no ensalo. Fescaase e waged ~ um estado 3 prt do ap de Solace in Outro Eason pct pp. 3652 1. Raa Neto, A"Bo pica paca: 9 Sertido de ma tft", in Olden = rusia. op cp 3 12, Gr, neste sentido, "O sentido das mones € Iwansmutagoes n'O Amel das Nibetunges~ 8 Ills mascars de Wotan Caandl YB. 8 Nalfah, Neto, A, Ouvtr’ Wagner ~ Ecos "Netscbiane, Sto Paulo, Must, 200 13, Netzche, F Alem do Bem edo Mal, op cit, aos 225, 13 1M. Nach F.Prgmentopéstumo 760, Fragments "buns Autonme de 1885-castmne de 1537, Oeusres Philosopbiquer Complies, Pats Galion, 1978 15, Ado eagmento pum 2051 16, Nan Neto, A “treme min, ap tp. 7 17, alah Net, A "Pars sm ds Morte © amor", ‘uiremmin~ Brawls op chp 18, A toot dis pcos 20 pencamenio Se D. W. ‘Winnco const um ea bastante complex, especialmente por re encontrar banante ‘sparamado © ragmentido em si br. Fok nto da tex de doutorao de Elst Olvera Dus, ona por mim edefendidaem 1998 m0 Programa de Estudos Pér-Graduados em Prlelog Clin da PUCSP Ao lore, recomend letra da msm, erpecialen Aloegp. Vi otto da tse 6 ora dap fem D. W. Winnicote es eta disponivel a Bibliowea da PUCSP, também deve ssit brevemente em llr, pela Editors sci, So Paulo) O grande ménto de Winnie, neta ‘queso, a0 me ver fo rela ume pesgulst Drofinda dis plone epi une inicia {lors do penton Feusano qi lacanim tentou, sem pande suceso, remendar trav da hoya de forctason. 19. Nexpreni € de Nictaschee aparece no Preficio ‘de 1886, 20 primeio volume de umano Domattado Hamano (aa edigdo das, Obras ‘comple, Etors Avi 1978,

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