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HOMILIA DOMINICAL

31 Jul 2014 - 27:17

Milagre, não partilha


O episódio da multiplicação dos pães não é uma partilha, mas o milagre que prefigura a
instituição da Eucaristia. A multidão que se acercava de Jesus buscava primeiro o Reino
de Deus e, por isso, o pão material foi-lhe dado por acréscimo.

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo Mateus (Mt 14, 13-21)
Narra o Evangelho que Jesus, após receber a notícia da morte de São João Batista, se
retira “para um lugar deserto e afastado”. São Jerônimo, investigando o porquê dessa
atitude de Nosso Senhor, ensina:
“Não se retirou a um lugar deserto por temor de que lhe tirassem a vida, como
julgam alguns, mas: ou para poupar os seus inimigos, a fim de que não
acrescentassem homicídio sobre homicídio; ou para adiar a sua morte até o dia
da Páscoa, no qual o cordeiro era imolado como figura e as portas dos fiéis
eram aspergidas com sangue; ou para dar o exemplo de que não nos devemos
expor temerariamente à perseguição, porque nem todos os que se oferecem a
ela perseveram com a mesma constância. Por isso Ele diz, em outra parte:
“Quando vos perseguirem numa cidade, fugi para outra” (Mt 10, 23). De onde o
evangelista, com propriedade, não diz que Ele fugiu a um lugar deserto, senão
que se retirou, mais por evitar que por temer os perseguidores. Também se
pode ter retirado, depois de saber da morte de João, a fim de pôr em prova a fé
dos fiéis.” [1]

De acordo com São Jerônimo, Jesus teria se retirado também para que o povo pudesse
demonstrar o seu amor a Ele. O Papa Bento XVI, ao comparar o episódio da multiplicação
dos pães com a primeira tentação de Jesus no deserto, em que Ele se nega a transformar
as pedras em pão [2], se pergunta: “Mas por que agora é feito o que antes tinha sido
repelido como tentação? Os homens tinham vindo para escutar a palavra de Deus e
tinham por isso abandonado todo o resto. E assim, como homens que tinham aberto o
seu coração para Deus e para os outros, aqueles podem receber o pão como
merecimento” [3]. A multidão viu os pães serem multiplicados porque foram propter Iesum
et non propter esum.
Repete-se, com este milagre, a grande lição de Cristo no Sermão da Montanha: “Buscai
em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão dadas
por acréscimo” [4]. Grandes eram a fé e o amor daquele povo, mas também notável era o
desapego dos Apóstolos que, sendo doze, tinham consigo apenas “cinco pães e dois
peixes”. “Vemos por estas palavras – comenta São João Crisóstomo – a filosofia dos
Apóstolos, que os faz desprezar a comida, porque, sendo eles doze, tinham cinco pães e
dois peixes. Olhavam efetivamente com desprezo para as coisas materiais e estavam
possuídos pelas espirituais” [5].
Também é notável que o povo tenha esperado por Nosso Senhor até o entardecer. Nessa
mesma hora, Ele, reunido com os Seus discípulos, instituiu a Santíssima Eucaristia. No
Evangelho deste Domingo, de fato, é seguido o mesmo caminho feito na Liturgia:
primeiro, as multidões saem de suas cidades para escutar a Palavra e só depois são
alimentadas com o pão eucarístico. A vida do cristão também deve ser assim: antes de
comungar, é preciso ir ao deserto e converter-se. Assim como não existe multiplicação
dos pães sem a acolhida da Palavra, não há comunhão sem verdadeira conformação à
vontade de Deus.
Agora, um comentário à ideia segundo a qual “a multiplicação dos pães não foi um
milagre, mas apenas um gesto de partilha”.
Em primeiro lugar, é muita falta de fé pensar que Jesus não seria capaz de fazer alguns
pães para alimentar uma multidão. Quem nega isso provavelmente tem dificuldades para
crer na divindade de Cristo.
Em segundo lugar, muitas pessoas interpretam o ensinamento da Igreja justamente sob
uma perspectiva de “partilha”, adotando o método Paulo Freire para as coisas da fé: ao
invés de aprender de Nosso Senhor a verdade, as pessoas ouvem o Evangelho para
partilhar entre si o que pensam. Ora, quando compartilhamos a nossa miséria, o resultado
final é tão somente uma miséria partilhada, “cegos guiando cegos” [6].
Com esse milagre, Jesus quer deixar bem claro que não podemos prover alimentação a
nós mesmos. Para que a nossa miséria – vista na escassez dos “cinco pães e dois
peixes” – possa alimentar as pessoas, é preciso que passe para as mãos de Jesus. Por
isso, precisamos, antes de qualquer coisa, estar com Nosso Senhor, ouvir a Sua Palavra,
meditá-la e transformar o nosso coração. Só então podemos ensinar. A evangelização não
é uma partilha, mas um ensinamento. Trata-se de transmitir uma mensagem que não nos
pertence. Um padre que diz, por exemplo, que Cristo não fez milagre algum, está
desrespeitando a mensagem do Evangelho, pois se preocupa mais em transmitir as suas
ideias céticas e empiristas a anunciar a boa nova de Jesus.
A Palavra de Deus não é para ser partilhada, como se fosse objeto de “livre exame”; ela
foi feita pela Igreja e para a Igreja e é “com o mesmo espírito com que foi escrita” [7] que
deve ser interpretada. Sem o espírito católico de que estavam imbuídos os autores
sagrados, não pode haver leitura correta das Escrituras.

Referências
1. Santo Tomás de Aquino, Catena Aurea In Matthæum, 14, 3
2. Cf. Mt 4, 3
3. Jesus de Nazaré: primeira parte: do batismo no Jordão à transfiguração. São
Paulo, Planeta, 2007. p. 44
4. Mt 6, 33
5. Homiliae in Matthaeum, 49, 1. Apud Santo Tomás de Aquino, Catena Aurea In
Matthæum, 14, 4
6. Mt 15, 14
7. Dei Verbum, 12

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