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Texto para fins didáticos.

ANÁLISE EXISTENCIAL - DASEINSANALYSE


COMO A DASEINSANALYSE ENTROU NA PSIQUIATRIA
BOSS, M. e CONDRAU, G. “Análise Existencial – Daseinsanalyse.” Revista
da Associação Brasileira de Daseinsanalyse, nos. 1,2 e 4.
O termo "Daseinsanalyse" foi num primeiro momento traduzido por "Analyse
existentielle" em francês e "existencial analysis" em inglês, como o
testemunham manuais e dicionários. Mas esta denominação não tardou a
abranger as mais divergentes concepções da existência humana e a reagrupar
toda uma gama de métodos terapêuticos que, freqüentemente, se encontram
em flagrante oposição. Esses conceitos adquiriram assim uma tal extensão que
acabaram por perder quase todo significado. Tentando recuperá-lo, tornou se
hábito manter o termo alemão Daseinsanalyse, mesmo em língua estrangeira.
Esta medida de precaução não trouxe, entretanto, a clareza necessária. Um
grande número de conceitos psicológicos e psiquiátricos assim como inúmeros
métodos terapêuticos continuam se qualificando como daseinsanalíticos apesar
de terem muito poucos pontos em comum com a designação original e de,
algumas vezes, não se basearem absolutamente na compreensão do homem
que, originalmente, deu seu nome à daseinsanalyse. Para eliminar qualquer
possibilidade de erro, é preferível fazer aqui um rápido retrospecto histórico. As
designações de "análise do Da-seín" e Daseinsanalyses apareceram pela
primeira vez numa obra que marcou época – SER E TEMPO, publicada em
1927 pelo filósofo alemão Martin Heidegger. Esses dois termos tinham como
único objetivo denominar a explicitação filosófica das "existenciálias”, isto é, das
características ontológicas constituintes do existir humano. Heidegger
descreveu como "existenciálias" a abertura original ao mundo da "natureza
humana", a temporalidade do homem, sua especialidade original, sua afinação
ou seu temperamento, seu estar com o outro, sua corporeidade, seu caráter
mortal. Heidegger reuniu a análise de cada uma dessas "existenciálias" sob a
denominação de Daseinsanalytik. Esta foi e permanece sendo uma tentativa
puramente filosófica, isto é, destinada a determinar a natureza fundamental do
ser aí humano (do Dasein) de um modo estritamente concernente a essa última.
Além disso, o verdadeiro intuito de Heidegger não foi nunca o de esclarecer
simplesmente a essência do homem. Visou na realidade, desde o início,
esclarecer o sentido do Ser enquanto tal. As explicitações do existir humano que
aparecem em Ser e Tempo devem ser simplesmente consideradas como uma
primeira etapa no caminho de seu pensamento. Ser e Tempo nunca teve a
pretensão de oferecer de imediato uma antropologia completa. Mas
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negligenciando este fato, Ludwig Binswanger não tardou a descobrir - e nisso


ele foi o primeiro - o quanto a concepção heideggeriana da essência do existir
humano era capital para a psiquiatria à qual serviria de nova base, e como as
características de ser do homem expostas em "Ser e Tempo" se revestiam da
maior importância para a medicina em seu conjunto e para a psiquiatria em
particular. A conselho do psiquiatra suíço Jakob Wirsch, Ludwig Binswanger
utilizou em seguida o conceito de daseinsanalyse que era originalmente de
ordem puramente filosófica e ontológica, num sentido completamente diferente,
ôntico. Em 1941, Binswanger considerou que a denominação "daseinsanalyse
psiquiátrica" trazia um novo método de investigação que deveria permitir-lhe
compreender e descrever, sob um ângulo fenomenológico, os sintomas e as
síndromes concretos, distintos e diretamente perceptíveis surgidos da
psicopatologia. Desviava-se assim, expressamente, do método de pensamento
científico que prevalecia, até então, no domínio da psiquiatria e da psicanálise.
Essas duas disciplinas estabeleceram de fato - como Freud comprazia-se em
dizer, de modo um tanto chocante em nome de todos os cientistas - como
princípio absoluto, o interesse menor pelos fenômenos diretamente perceptíveis,
do que pelas forças e tendências supostas e "escondidas" atrás desses
fenômenos. Seguindo o pensamento de Heidegger, Binswanger dedicou-se
então, a um caminho fenomenológico: julgando não haver nada a procurar atrás
dos fenômenos, esforçou-se em esclarecer, de modo cada vez mais
diferenciado, os significados e as relações que se mostravam imediatamente a
partir deles mesmos. Certamente, bem antes de tomar conhecimento do
pensamento "daseinsanalitíco" de Heidegger, Binswanger tinha percebido os
limites do procedimento que consistia em aplicar à psiquiatria, o método de
pensamento próprio das ciências naturais. Em particular os trabalhos do
psiquiatra parisiense Eugene Minkowski, influenciado por Bergson, tinham
despertado sua atenção. Entretanto, foi necessário para Binswanger a forte
impulsão do pensamento heideggeriano para demonstrar, com uma precisão
espantosa, até que ponto a psiquiatria que prevalecia até então, estava carente
de bases sólidas. Ele a recriminava por ter tomado emprestado, inconsiderada e
arbitrariamente, a totalidade de seus conceitos fundamentais das disciplinas
científicas mais diversas entre as quais, a neuropsicologia, a biologia,
antropologia ou simplesmente da linguagem falada cotidianamente.
Demonstrou, passo a passo, esse mecanismo indicando a que nível e como
desenrolar do pensamento das ciências naturais era insuficiente para estudar o
comportamento humano e passava precisamente ao lado do caráter específico
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da existência humana. Apoiava-se assim essencialmente na "destruição",


empreendida por Heidegger, da idéia fundamental do matemático e filosófico
Descartes que no séc. XVII tinha tão desastradamente dividido "o mundo do
homem" em duas partes: a res-cogitans e ares-extensa. Binswanger descobriu
que essa divisão do mundo em objeto e sujeito estabelecida pôs Descartes
provocava danos no domínio da psiquiatria, tendo mesmo chegado a qualificá-la
de verdadeiro câncer da ciência. Aquele que nela acreditava não era, na
realidade, somente incapaz de imaginar que um espírito humano assim
concebido isto é, compreendendo uma res-cogítans existindo primordialmente
em si pudesse se dar conta de que ao seu lado existia uma coisa tal como o
mundo exterior e, ainda menos, que um tal espírito pudesse sair dele mesmo
para descobrir a existência de tudo o que compõe esse mundo exterior e atingi-
lo. Também Binswanger desejava suprimir essa divisão sujeito-objeto do
domínio do pensamento psiquiátrico. Empenhou- se nisto, fazendo uma
descrição daseinsanalítica de numerosos casos de esquizofrenia. Mas enganou-
se na interpretação de um ponto capital do pensamento heideggeriano.
Enganou-se ao sentir-se obrigado a acrescentar ao conceito heideggeriano de
"zelar" (2), o de "amor". Essa preocupação indica, por si só, que o termo "zelar",
empregado por Heidegger num sentido estritamente ontológico, ou seja, para
designar a constituição fundamental do homem, foi tomado em seu significado
puramente ôntico. Não compreendendo o sentido ontológico que Heidegger deu
a esse conceito, Binswanger não compreendeu que não se tratava
absolutamente de um comportamento muito preciso, ôntico, concreto ou, dito de
outra forma, de uma relação "zelosa", preocupada com este ou aquele dado do
mundo. Em Ser e Tempo de Heidegger, como em todas suas obras posteriores,
a palavra "zelar" é apenas uma primeira referência ao caráter constituinte
fundamental (ontológico) do existir humano. Isto simplesmente designa que este
existir é um "já-no-mundo-ser" que se encontra sempre, numa relação de
entendimento com o que vem ao seu encontro. É por isso que o termo "zelar",
no sentido que o entende Heidegger, não somente não exclui as diversas
formas de relações afetivas, como as inclui de imediato. Do mesmo modo, todas
as possibilidades de comportamento concreto, ôntico do homem repousam, de
fato, sobre essa característica fundamental que é o modo de ser sempre e
primordialmente em relação a alguma coisa. Finalmente Binswanger descobriu
o erro capital que havia cometido em sua interpretação do pensamento
heideggeriano e teve coragem de reconhecê-lo publicamente. Coerente consigo
mesmo, parou logo de qualificar suas pesquisas de "daseinsanalíticas". Voltou,
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então, à posição adotada por Husserl, o mestre de Heidegger, que não tinha
ainda chegado ao ponto de ultrapassar a noção de consciência subjetiva
existente primordialmente em si, e penetrado no sentido do fenômeno do
"mundo" heideggeriano, Binswanger deu mesmo um outro nome à nova
orientação de sua pesquisa, intitulando-a de "fenomenologia antropológica".
Estimulado pelos trabalhos de Binswanger e descontente também, com a
obscuridade dos fundamentos sobre os quais se apoiava a psiquiatria
tradicional, o psiquiatra e o psicoterapeuta Medard Boss voltou-se também para
o pensamento de Martin Heidegger. Certamente, existia, desde o início, uma
diferença importante entre suas motivações. Enquanto Binswanger foi antes de
tudo, levado a penetrar no pensamento desse filósofo por um "impulso
puramente científico" e não, como Freud, por um interesse de ordem terapêutica
foram, sobretudo preocupações terapêuticas que determinaram a escolha de
Boss. Esperava em primeiro lugar, que as recentes considerações filosóficas de
Heidegger lhe fossem úteis no domínio da terapêutica.

A CONSTITUIÇÃO FUNDAMENTAL DO HOMEM


À LUZ DA DASEINSANALYSE
Graças ao ensinamento pessoal de Heidegger que Boss e seus alunos
receberam, a partir de 1947, numa série de cursos organizados várias vezes por
ano, - os "seminários de Zollikon", - a psicopatologia se enriqueceu com um
pensamento fundamental novo que não só se esforçava em procurar uma
solução para a distinção cartesiana sujeito-objeto, como nem mesmo permitia,
que tal questão se colocasse. Esse pensamento serviu como base, para a
elaboração de novos caminhos para uma nova aproximação da medicina e da
psicologia. É por isso, que a "Daseinsanalyse" não deve ser considerada como
mais uma "escola" que simplesmente se agrupa a todas que já existem. É, antes
de tudo e primordialmente, uma nova abordagem do conjunto dos fenômenos
chamados normais e patológicos do existir humano. Mas esta abordagem não é
mais que um caminho, um meio de acesso. Não leva a um tesouro de
conclusões científicas. O caminho ou a abordagem daseinsanalítica é de ordem
fenomenológica. Em outros termos, tem essencialmente como intuito ver sem
deformações aquilo que se mostra a nós de si mesmo. Isto parece tratar-se da
coisa mais simples mas para nós é hoje a mais difícil uma vez que perdemos,
há muito tempo, a possibilidade de ver a essência das coisas sob as exigências
das inúmeras explicações científicas que nos foram dadas. Entretanto,
tenhamos agora a audácia de aprendermos essa nova forma de ver. Observa-se
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primeiramente que o homem não se apresenta no mundo como um corpo


inanimado. Um corpo inanimado está sempre presente num lugar determinado
no interior de outro dado inanimado. Também todo corpo inanimado ocupa uma
posição precisa de espaço, determinada por seu volume e sua superfície. Além
disso, esse tipo de corpo está separado dos outros corpos inanimados por uma
certa distância. Assim, por exemplo, roupas guardadas num armário não sabem
absolutamente que estão nesse lugar e o armário não tem a mínima idéia de
que contém roupas. Completamente diferente, é o ser no mundo do homem. O
existir não cessa nos limites da pele do homem e nela não está contido. Senão,
nunca uma pessoa olhando pela janela de seu quarto seria capaz de ver a casa
situada à sua frente como uma casa. O homem, aliás, nunca vê uma casa como
uma "simples" casa; ela não é para ele somente um objeto isolado, por assim
dizer, suspenso no vazio. Ao primeiro olhar, já lhe é dado ver a casa como uma
casa, que lhe fala por uma série de significados e de relações específicas. A
casa enquanto tal indica, por exemplo, diretamente para aquele que a olha, que
ela serve de habitação para os homens. E o leva, em seguida, ao solo que a
sustenta. Por intermédio de seu telhado, se revela como uma proteção tanto do
calor solar quanto das tempestades. Estas são algumas das inumeráveis
referências significativas que pertencem, de início, a cada casa. Tais referências
não são feitas posteriormente pelo homem mas, elas mesmas, pertencem
primordialmente à própria casa. Mas como essa possibilidade de ver, tanto no
sentido "óptico" como no sentido "figurado", seria possível se o que se encontra
entre a pessoa espectadora e a casa da frente não fosse aberto,
"transparente"? E além disso, seria impossível para essa pessoa ver uma casa
se ela mesma, enquanto espectadora, não fosse em sua essência aberta,
abertura que consiste em um poder compreender os diversos significados que
lhe chegam a partir dos lugares onde está o que vem ao seu encontro, na
abertura espacial e temporal de seu mundo. O homem pode perceber uma casa
enquanto a casa da frente, unicamente porque o existir humano subentende,
ocupa, ou melhor ainda, é de imediato, uma abertura transparente e estendida
para o que se encontra no mundo, do mais próximo ao mais longínquo, tanto no
sentido espacial quanto temporal. Podemos também comparar a essência da
existência humana a uma clareira que consiste em um poder ver o que vem ao
seu encontro. Assim, o existir humano é sempre conforme sua natureza mais
profunda, um "ek-stare" no sentido próprio do termo e pode enquanto abertura
iluminadora estar tanto aqui como ali e se encontrar numa livre relação com
aquilo que se oferece a ele na abertura iluminadora de seu mundo. Já que em
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sua essência o homem tem não somente a possibilidade de escolher ele mesmo
que tipo de relação quer estabelecer com os diferentes entes que se
apresentam a ele em meio a multiplicidade de dados do mundo, mas também
porque lhe é necessário a todo momento tomar pessoalmente tais decisões, o
ser humano e só ele deve ser qualificado de ser si mesmo. Esta possibilidade
de existir no modo de ser si mesmo, não somente não exclui, mas na realidade
inclui que todo homem se encontra primordialmente e sempre, co-existindo com
outras pessoas. Nunca o homem se encontrou primordialmente como um sujeito
individual, subsistindo apenas para si mesmo, sozinho, e que apenas mais tarde
teria sido levado a entrar em contato com outras pessoas. Os homens estão
primordialmente e sempre co-existindo perto das mesmas coisas de um mesmo
mundo; contribuem sempre primariamente em comum, embora cada um a seu
modo, para manter aberto este mundo "descoberto". É isto que constitui o
caráter fundamental de ser com o outro primordial e é sobre isto que se fundam
os modos mais diversos de desdobramento do ser com o outro e notadamente a
possibilidade de uma ciência como a sociologia. Assim, o existir humano
também se apresenta primordialmente e sempre como ser em relação seja com
alguma coisa que o toca de perto, seja com outra que o toca de longe e o deixa
indiferente. Esse modo de ser primordial e sempre situado numa relação de
proximidade ou de afastamento face a face com o que se apresenta no mundo,
caracteriza a natureza original do homem. E, ao mesmo tempo, o existir humano
vive o tempo que lhe é dado situando se de alguma maneira em relação ao que
aparece, e correspondendo-lhe seja no modo da percepção do pensamento ou
da ação. É assim que ele vive no tempo, ou dito de outra forma, que o existir
tem um fim e se completa ao término da vida terrena. Podemos dizer que o
homem tem uma boa morte quando ele soube aceitar o destino de seu ser
primordial e foi capaz de dispor, de modo adequado, de sua qualidade de
abertura iluminante na qual tudo o que "há para ser" pode aparecer. Por outro
lado, que tem uma morte má se não foi capaz de aceitar o destino de seu ser
primordial. É contudo precisamente quando o homem morre que fica
evidenciado algo também característico do ser humano. De repente, aquilo que
justamente constituía a corporeidade do homem vivo mudou de característica de
ser e tornou se um corpo inanimado, no espaço físico mensurável. Por muito
tempo, foi freqüente a medicina querer compreender a homem sadio ou doente
a partir da redução de seu existir a cadáver. Mas isto oferecia uma perspectiva
de pesquisa unicamente para o estudo de anatomia. Ora, enquanto um homem
ainda existe, sua corporeidade é de uma natureza completamente diferente e
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não pode ser comparada ao cadáver. Qualquer corpo vivo não pode portanto
ser compreendido, conforme sua natureza, a não ser que seja considerado
como a corporeidade da relação com aquilo que se desvela ao homem. Se, por
exemplo, um sapateiro coloca sola num sapato, sua mão direita não constitui
uma parte objetivada de seu corpo mas é primordialmente integrante do todo
relacional da tarefa em que ele está empenhado. Só se pode dizer de se corpo
que ele é, no existir humano, aquilo que pode ser percebido também pelos
sentidos e por isso mesmo medido e calculado até certo ponto como todo objeto
inanimado. Entretanto, a verdadeira essência da corporeidade escapa sempre e
imediatamente no momento exato em que se faz uso da possibilidade de vê-la
como qualquer objeto inanimado mensurável.

AS DESCOBERTAS DASEINSANAÚTICAS, BASE TEÓRICA DE UMA NOVA


PSIQUIATRIA
Estas são as grandes linhas que caracterizam a constituição fundamental de ser
aí humano, tal qual Heidegger nos ensinou a ver e que cada um de nós é capaz
de perceber, a cada momento, se assim o desejar. Essa concepção é de uma
importância capital para a medicina em geral e para a psiquiatria em particular.
De fato, qualquer modo do ser doente só pode ser compreendido a partir do
modo de ser sadio e da constituição fundamental do homem normal, não
perturbado, pois todo modo de ser doente representa um aspecto privativo de
determinado modo de ser são. Ora, a essência fundamental do homem sadio
caracteriza-se precisamente pelo seu poder-dispor livremente do conjunto das
possibilidades de relação que lhe foi dado manter com o que se lhe apresenta
na abertura livre de seu mundo. Primordialmente o modo de ser doente é
também holísta. Não pode existir a não ser que haja limitação desta liberdade
próprio ao homem. É por isso que a questão que do ponto de vista científico
convêm ser colocada em relação a cada doente, somente pode se apresentar a
princípio sob estes três aspectos: qual é a possibilidade de relação perturbada?
Qual é a esfera daquilo que vem ao nosso encontro que está visada nessa
relação? Enfim, como esta perturbação relacional se manifesta? Tomando esta
interrogação fundamental como ponto de partida, somos levados a elaborar uma
patologia geral mais de acordo. O modo de ser doente pode subdividir-se em:
1 . Ser doente caracterizado por uma perturbação evidente da corporeidade do
existir humano; 2 . Ser doente caracterizado por uma perturbação pronunciada
da espacialidade de seu ser no mundo; 3 .Modos do ser doente constituindo
privações importantes na realização da afinação própria à essência da pessoa;
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4 .Modos de ser doente constituindo privações importantes na realização do ser


aberto e da liberdade. É intencionalmente que nessa classificação falamos de
perturbação evidente, pronunciada ou importante impedindo a realização das
diferentes características de ser do existir humano. Enquanto traços
fundamentais do ser aí, formam todos juntos uma estrutura total e indivisível. Se
um entre eles é perturbado em sua realização, todos os outros não deixam de
sofrer, igualmente, as conseqüências. A primeira categoria citada reúne, por
exemplo, problemas que as classificações da patologia tradicional colocam
muito longe uns dos outros, como uma fratura da perna, uma paralisia histérica
e uma demência pós-traumática devida a uma lesão no cérebro causada por
uma pedra que caiu. Se se considera uma fratura e uma lesão cerebral
simplesmente como uma perturbação de um órgão isolado, chega-se apenas a
uma compreensão extremamente reduzida da doença. Certamente isto pode ser
suficiente num plano prático, por exemplo no tratamento de uma fratura, na
medida em que o acidentado esteja por outro lado sadio e não apresente
propensão para sofrer acidentes. Entretanto, qualquer modo da corporeidade
faz parte a tal ponto e tão diretamente do ser no mundo do homem, isto é de
sua existência, que qualquer redução toca sempre e imediatamente este ser no
mundo e por isso mesmo, todas possibilidades de relação com o mundo. Assim,
uma fratura da perna constitui primordialmente uma redução da possibilidade
existencial de se aproximar ou de se afastar daquilo que se oferece a nosso
encontro no mundo, independentemente aliás do fato dos sofrimentos
provocados por uma fratura reduzirem consideravelmente a abertura para o
mundo de um "da sein", não lhe deixando mais do que um pequeno número de
interesse. A queda de uma pedra que é, no outro exemplo citado, a origem de
uma demência traumática, não prejudicou somente um órgão isolado mas o que
se pode chamar "o cerebral" de uma existência. Tendo caído, esta pedra
intervém diretamente na realização da possibilidade de ser do homem no
espaço em relação ao que se oferecia, se oferece e se oferecerá a ele nesse
espaço. Para compreender uma paralisia histérica, a daseinsanalyse não
precisa mais recorrer à invenção de um "desejo inconsciente" - ou de um conflito
provocado por pulsões inconscientes - cuja energia, seguindo a teoria da
conversão psicanalítica, teria sido transferida aos músculos voluntários. Sem
que seja necessário recorrer a hipóteses metapsicológicas, qualquer paralisia
histérica pode ser diretamente compreendida como uma perturbação que afeta
a possibilidade de realizar na corporeidade uma certa relação com o que se
apresenta no mundo, isto é, como uma perturbação que consiste em interdições
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estranhas à pessoa. Hoje, mais numerosos que as diversas formas de histeria


são os modos de ser doente que se caracterizam por uma redução na
realização das existenciálias, que são a afinação ("Gestimmtheit") e o ser
aberto. O quadro clássico da loucura maníaco depressiva entra naturalmente
nesta categoria. O caminho daseinsanalítico permite, como nenhum outro o
havia feito até o presente, compreender igualmente a constituição fundamental
das pessoas atingidas por essa doença. Esta constituição fundamental foi objeto
de uma descrição detalhada por M.Boss em seu livro FUNDAMENTOS DA
MEDICINA E DA PSICOLOGIA. Mas atualmente na prática cotidiana, muito
mais numerosos do que esses casos de loucura circular, são as perturbações
da afinação que se pode considerar a forma de neurose mais representativa de
nossa época. Se na época de Charcot e de Freud e até a Primeira Guerra
Mundial inclusive os grandes fenômenos histéricos predominavam entre as
neuroses, foram em seguida as neuroses orgânicas que predominaram. Hoje
encontra se, cada vez mais, pessoas sofrendo de uma opressão vaga, do
absurdo e do tédio de sua vida. Como essas pessoas não apresentam nem
sintomas psíquicos nem distúrbios psicossomáticos evidentes, freqüentemente
nem elas nem seus médicos sabem o que fazer. Na verdade, não se trata de
uma doença no sentido comum do termo. Mesmo os padres e os pastores estão
desamparados diante desse mal. Freqüentemente esses doentes tentam
durante muito tempo mascarar seu desespero se entorpecendo, seja pelo
trabalho, pelas distrações ou pelas drogas. Mas definitivamente, esta contínua
tapeação não atinge sua finalidade e se mostra então, de modo evidente, como
nessas distimias depressivas tão freqüentes em nossos dias se revelam o tédio
e o absurdo da própria vida. Eles revelam brutalmente qual distúrbio da abertura
para o mundo do ser aí é em verdade o tédio. Certamente o homem pode
sempre estar aberto para o que vem a seu encontro enquanto um ente mas
somente de um modo tal que tudo, coisas a seres, só podem mostrar-se a ele
como igualmente desprovidos de mensagem.As pessoas que sofrem do tédio
permanecem fundamentalmente indiferentes a tudo. O que se oferece para elas
retira-se imediatamente e, se não desaparece totalmente, pelo menos se afasta
a ponto de não mais lhes tocar. Seu tédio não se limita a certas coisas. De fato,
se entendiam permanentemente; sentem o tempo comprido 1. Isto quer dizer que
no tédio é principalmente a temporalidade que é afetada. Não existe mais nem
verdadeiro futuro, nem passado rico em experiência, nem presente cheio de

1
Etimologicamente a palavra alemã Langweile, tédio, se descompõe
em Lang: comprido e Weile: o tempo, a duração.
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sentido para aqueles que se entendiam. Essas três dimensões ou momentos


temporais "ek-staticos" tornam-se relações que não lhe dizem mais nada. Todos
os modos de ser doente exposto até agora, apresentam uma perturbação da
realização do caráter fundamental do ser humano que é seu ser livremente
aberto para o mundo que, ao mesmo tempo lhe revela o mundo. Mas são os
esquizofrênicos que sofrem mais direta e fortemente essa perturbação. Pode se
dizer que a esquizofrenia é o modo de ser doente mais humano e ao mesmo
tempo mais desumano. É por isso que diz respeito não somente ao psiquiatra
mas também ao conjunto de médicos e mais geralmente ainda a todos os
homens. Justamente porque aqui se manifesta abertamente uma grave
perturbação no caráter fundamental do ser humano, isto é, em seu ser aberto,
esta doença mais do que qualquer outra coisa lança uma luz sobre a natureza
mais profunda de nosso existir e por isso mesmo sobre sua fragilidade. A
esquizofrenia pode ser considerada como uma perturbação específica do "poder
existir o ser aberto" conforme a essência do ser aí.A particularidade dessa
perturbação reside numa dupla incapacidade. De um lado, os esquizofrênicos
não estão mais aptos a se engajar totalmente no que se mostra na abertura do
seu existir, ao contrário de seus semelhantes que estão sadios e em vigília.
Conseqüentemente não podem também responder por um engajamento total
com o que se apresenta, isto é, em conformidade com os significados presentes
para os outros. Por outro lado, não podem preservar intacto um ser si mesmo
capaz de manter uma relação livre com o que aparece e deixar as coisas e os
seres percebidos no lugar que lhes é devido num dado momento, no mundo
comum a todos. O esquizofrênico perde sua liberdade existencial no momento
em que como ser aí, enquanto possibilidade de responder aos numerosos
significados e às diversas solicitações do que aparece em seu mundo, se
sobrecarrega a tal ponto que ele não é mais capaz de responder ao que
aparece como o fazem todas as pessoas ao seu redor. Ele não é mais capaz de
resistir à dissolução de seu ser na esfera de seu mundo tornado vasto demais.
Compreende-se portanto facilmente, porque a esquizofrenia é desconhecida
nos animais e tão rara nas crianças, mas que em compensação aparece muito
freqüentemente no momento da puberdade e também nas mulheres depois da
primeira ou da segunda maternidade. Nessas duas épocas importantes da vida,
o existir humanas enquanto possibilidade de ver abre-se de fato para novas
exigências muito fortes em relação ao outro: para um deixar-se aproximar, como
no amor entre adultos do sexo oposto, ou ainda para um devotamento total
como no amor materno. A isto se acrescentam ainda muitas outras solicitações
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da parte dos seres e das coisas às quais a existência do homem começa a se


abrir a partir da puberdade, solicitações que requerem, por exemplo, uma
atitude voltada para o futuro, assumindo a responsabilidade e exigindo o sentido
do planejamento e do progresso. Isto explica porque ninguém pode ser
considerado esquizofrênico de modo geral e porque a esquizofrenia não pode
ser considerada como uma doença em si mesma. Isolada em si, ela somente
pode ser como abstração dos cientistas. É, portanto mais conveniente em cada
caso a seguinte pergunta: Esquizofrênico diante de qual situação relacional
acima de suas forças? Por exemplo, uma mulher que enquanto esposa e mãe
de três crianças apresenta cada vez mais distúrbios de comportamento
esquizofrênico pode ter todos os sintomas específicos da esquizofrenia,
inclusive um autismo pronunciado, eliminados rapidamente e para sempre no
momento em que ela for liberada desta situação existencial que exige demais
dela, tendo apenas que responder às exigências que a vida coloca para uma
mulher solteira exercendo a sua profissão. Mesmo nos doentes internados muito
atingidos, sofrendo alucinações corporais e idéias delirantes, toda manifestação
esquizofrênica pode cessar de um dia para outro se o psicoterapeuta conseguir
obter de seu doente que a criancinha abandonada que ele no fundo
permaneceu se entregue em total confiança e se ponha aos seus cuidados
numa espécie de relação criança pais à qual ele ainda é capaz de responder
enquanto ser si mesmo inteiro. Essas constatações permitem definir o modo de
ser doente esquizofrênico como privação extrema que consiste em não poder
ser si mesmo de modo livre e autônomo, isto é, não mais possuir senão numa
forma reduzida esse traço distintivo do existir humano. Mas isto quer dizer ao
mesmo tempo em que a esquizofrenia só pode ser definida negativamente. Não
existe nos esquizofrênicos um único modo de comportamento em relação ao
que aparece em seu mundo que não se encontra igualmente nas pessoas
sadias. O caráter patológico desses doentes reside no fato de lhes faltar uma
possibilidade de existir em relação aos seres sãos. Falta-lhes acentuadamente a
capacidade de assumir as possibilidades constitutivas de seu ser aí para tornar
se um ser si mesmo livre e autônomo cuja abertura para o mundo possa se
manter firme face a tudo que a eles se oferece. São na realidade de modos
diversos, presas de seus semelhantes assim como das coisas inanimadas que
os rodeiam. Seu ser aí é de algum modo aspirado pelos outros entes nos quais
submerge.Assim, pode-se dizer que existem em grande parte fora deles
mesmos. São tão pouco capazes de assumir as suas possibilidades num ser si
mesmo autônomo que somente podem sentir o que se mostra a eles como algo
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estranho e imposto de fora. É por isso que tão freqüentemente têm a impressão
de que o que a eles se oferece é ditado por vozes exteriores e que tudo o que
fazem e pensam é feito e pensado por outra pessoa. Ainda mais do que nos
esquizofrênicos, parece haver uma perturbação da liberdade existencial nos
neuróticos obsessivos. De fato, o que existe de mais oposto à liberdade do que
a obsessão? Na realidade entretanto, a obsessão nunca é o contrário da
liberdade, ainda que muito deficiente. Também só podemos falar de obsessão
em relação aos seres que são, por natureza, dotados de liberdade. Uma pedra
por exemplo, que é uma coisa desprovida de liberdade e de abertura, não
poderá nunca apresentar um comportamento obsessivo mesmo que, conforme
as leis da natureza, caia sempre igualmente de cima para baixo. As
manifestações patológicas da neurose obsessiva e o caráter obsessivo fazem
parte de um comportamento de defesa semelhante à atitude de afastamento, já
mencionada a propósito dos esquizóides e dos autistas. Nos neuróticos
obsessivos igualmente, a liberdade e a abertura do existir são atingidos: essas
pessoas de fato só podem ocupar-se com as coisas em relações distante que
consistem em reflexões controladas e objetivas sobre aquilo que percebem.
Essa distância controlada é sobretudo marcante em relação às coisas que lhes
aparecem como sujas, em decomposição ou patogênicas. Os neuróticos
obsessivos são forçados a se manter rigorosamente à distância dessas coisas e
delas se proteger porque seu próprio ser si mesmo está ameaçado soçobrar
naquilo que eles julgam indigno do homem. Entretanto, nos neuróticos
obsessivos, a realização do ser aberto e do ser livre nunca é atingida da mesma
maneira que nos esquizofrênicos. Os neuróticos obsessivos jamais são
completamente absorvidos pelo percebido e não se perdem, enquanto ser
humano, quase que totalmente nele.

O ALCANCE TERAPÊUTICO DA DASEINSANALYSE


A abordagem daseinsanalítica da constituição fundamental do ser humano não
se limita a permitir uma compreensão dos diferentes modos de ser doente
completamente nova e mais própria do homem. É igualmente importante na
prática terapêutica. Permite notavelmente a aplicação da terapêutica de uma
nova compreensão dos sonhos assim como uma concepção completamente
diferente daquilo que se chamou ate agora nas escolas freudianas e junguianas
de transferência entre o paciente e o terapeuta. Menos palpáveis mas não
menos essenciais na prática terapêutica são as modificações que se
interpuseram no clima da análise. Estes fundamentam se sobre tudo no respeito
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incondicional ao caráter próprio dos fenômenos do existir humano que se


mostram, no aceitar e tomar a sério aquilo que são enquanto tais. Essa nova
atitude do terapeuta contrasta radicalmente com a violação feita aos fenômenos
pelo preconceito da psicanálise, segundo o qual a realidade verdadeira dos
comportamentos consistirá em pulsões. É evidente que uma compreensão
daseinsanalítica da constituição fundamental do existir humano não tem como
única aplicação o tratamento de indivíduos doentes, mas abre igualmente o
caminho para uma medicina preventiva e para uma higiene mental significativas
para toda a sociedade. De fato, faz ressaltar nitidamente as limitações
patogênicas impostas à humanidade inteira pelo espírito tecnológico que reina
hoje, isto é a apreciação matemática e o aumento crescente da produção. Não é
que a daseinsanalyse considere que se deva eliminar a técnica e as ciências
naturais que estão na base. Isto levaria apenas a condenar um número
incalculável de pessoas a morrer de fome. Mas é urgente dar aos homens de
hoje a noção de uma relação consideravelmente mais livre com a técnica,
pondo fim a sua supremacia.

A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PESQUISA E DA TERAPÊUTICA


DASEINSANAÚTICA
O afastamento cada vez maior que separa a psicanálise ortodoxa,
fundamentada na metapsicologia filosófica de Freud, e a daseinsanalyse que
por sua vez se apóia com uma determinação crescente sobre as concepções
filosóficas da Daseinsanalytik, tornou inevitável uma institucionalização do
pensamento daseinsanalítico quer seja no plano de pesquisa ou dos métodos
terapêuticos. Primeiramente, no outono de 1971, houve a fundamentação da
Sociedade Suíça de Daseinsanalyse Em 1973, foi criada a Associação
Internacional de Daseinsanalyse. Essa já compreende certo número de
organizações mais ou menos rigorosamente institucionalizadas, estando
localizadas em: Boston (Estados Unidos), Tel-Aviv (Israel), Buenos Aires
(Argentina), Mendonça (Argentina) e São Paulo (Brasil). Em 1971 houve a
criação do Instituto Daseinsanalítico de Psicoterapia e Psicossomática,
Fundação Medard-Boss, cujo diretor atual é o professor Gion Condrau, doutor
em medicina e em filosofia. O nome desse instituto pode parecer paradoxal à
primeira vista. Reúne conceitos tão antigos como ambíguos de psique e
psíquico. Esses foram revistos na Daseinsanalityk, pelo esclarecimento dos
termos ser aí, existência, e ser no mundo . Entretanto, aquele nome foi
escolhido em consideração ao grande público cujas concepções sobre a
Texto para fins didáticos.

essência do homem não devem ser transformadas tão brutalmente. O Instituto


Daseinsanalítico dedica-se primeiramente à formação de futuros terapeutas
daseinsanalíticos. Esta compreende a análise didática até o seu mal, isto é, até
o momento em que é considerada bem sucedida. Além disso, essa formação é
completada por controles terapêuticos regulares e enfim, por conferências,
seminários e sessões organizadas pelo Instituto. O programa de estudos tem a
duração mínima de quatro anos. Além do ensino prática, é dada uma introdução
teórica à psicoterapia, a psicossomática, à sociologia e à filosofia.
Texto para fins didáticos.

A TAREFA DO ACONSELHAMENTO E
ORIENTAÇÃO A PARTIR DA DASEINSANALYSE
SPANOUDIS, Solon (1997) “A tarefa do aconselhamento e orientação a partir
da daseinsanalyse.” Revista da Associação Brasileira de Daseinsanalyse, nos.
1,2 e 4.
A Daseinsanalyse é um novo método de entendimento do existir humano,
desenvolvido por Medard Boss. Quando dizemos método queremos nos referir
ao significado original desta palavra, encontrado no antigo grego. Método vem
de META ODÓS. META quer dizer APÓS E ÒDÓS significa CAMINHO. A
expressão após o caminho não se refere a estar além, fora de nosso mundo. Ao
contrário, ela significa continuar um caminho que nos conduz a ver o nosso
existir simplesmente como ele se mostra. A Daseinsanalyse também não é uma
nova teoria, se entendemos TEORIA como um conjunto de hipóteses e
suposições para confirmar modelos pré estabelecidos e baseados numa
explicação causal e determinista. Este é o sentido, por exemplo, da teoria
freudiana. A Metapsicologia, proposta por Freud, é o equipamento teórico da
psicanálise, isto é, a base para as afirmações causais psicanalíticas. Foi o
próprio Freud, em seu trabalho "O Inconsciente", que disse ser o inconsciente
uma noção fictícia para servir para a construção causalista e determinista da
psicanálise independente dos fenômenos tais como se mostram. Estes
fenômenos que muito freqüentemente são distorcidos e sacrificados para
satisfazer a construção teórica causalista. Por outro lado, se considerarmos o
conceito original do grego antigo onde THEORIA quer dizer plenitude de
desvelamento, podemos então dizer que a Daseinsanalyse é uma teoria.
Partindo dessa noção do grego antigo de THEORIA, não podemos avaliar a
Daseinsanalyse comparando-a aos sistemas e conceitos científíco-tecnológícos
que partem de afirmações pré estabelecidas. Também será inútil querer
entender a Daseinsanalyse como uma nova teoria psicológica que serve para
completar as já existentes, a partir de um ecletismo que constrói um mosaico
Texto para fins didáticos.

conveniente de vários elementos teóricos. Tal ecletismo permanece também na


tentativa de encontrar uma explicação causal e determinista, somente que
através de uma somatória de todos os elementos teóricos com que se depara.
Assim, ele traz no fundo mais confusões e distorções que esclarecimentos, pois
continua nos afastando daquilo que vivemos, na maneira como vivemos. A
Daseinsanalyse, ao contrário, é um método para que nos aproximemos mais do
existir humano e possamos compreendê-lo. Esse sentido é uma fenomenologia
hermenêutica que nos possibilita ver os fenômenos como eles se mostram e
desvelar o sentido fundamental de tudo que encontramos. A partir desse
caminho tentaremos expor e esclarecer os fenômenos e as atividades
chamados de aconselhamento, orientação psicológica e orientação vocacional.
Começamos perguntando: o que significa aconselhamento? O que queremos
dizer quando falamos em orientação? Para responder a essas perguntas
recorremos inicialmente ao dicionário e encontramos: l. Aconselhamento: psic.
Forma de assistência psicológica destinada à solução de desajustamentos leves
de conduta e à solução de conflitos. a) diretivo: baseado em amplo e completo
diagnóstico de caso, no estudo de várias soluções ou caminhos apresentados
ao orientado; b) não diretivo: permite ao orientado expressar livremente seus
anseios, preocupações, tensões emocionais e seus planos positivos de escolha,
limitando-se o orientador educacional a fazer com que o aluno adote a solução
que melhor lhe pareça e o orientador psicológico a valorizar a personalidade do
paciente. 2. Orientação: Direção guia regra; ato ou arte de orientar-se (Educ.)
Processo intencional e metódico destinado a acompanhar, segundo técnicas
específicas, o desenvolvimento intelectual e a formação da personalidade
integral dos estudantes. (psic.) Orientação profissional conjunto de esforços
sistemáticos desenvolvidos mediante métodos e técnicas próprios no sentido de
ajudar pessoas. 3. Orientar: examinar cuidadosamente os diferentes aspectos
de uma questão. Dirigir, encaminhar. Na psicologia tanto o aconselhamento
diretivo como o não diretivo, apesar de serem opostos, partem de uma mesma
base, de uma mentalidade comum, assim como uma mesma rua que tem
direção nas duas mãos. A orientação também parte do mesmo ponto. Este
ponto, isto é a base comum que mencionamos, consiste em avaliar os aspectos
diferentes de uma questão e dos dados obtidos. E quando se trata de
conclusões interpretativas ou de resultados de avaliações explícitas ou
implícitas de dados, que atualmente são fornecidos de modo muito eficiente
pelos computadores, somente podemos contar com dados uniformes,
objetivados e genéricos, que são então aprovados ou desaprovados. Desse
Texto para fins didáticos.

modo, a avaliação de dados tem validade generalizada e independente da


pessoa que conta ou vive o problema. Esta tentativa ignora o que de fato
possibilita o aconselhamento e a orientação diretiva ou não diretiva, que é a
característica fundamental do homem de coexistir. Martin Heidegger na sua
Daseinsanalytik mostra que uma característica primordial do homem é o co
existir, o viver com os outros. É esse co existir fundamental que possibilita ao
ser humano se tornar autêntico mais ele próprio ou ficar disperso e engolido na
massificação, reduzido a um mero objeto, coisificado. Expressões como, por
exemplo: Eu me sinto sozinho, Fico marginalizado, Ninguém me compreende,
ou Criança abandonada, não teriam nenhum sentido e não poderiam ser ditas
se primordialmente já não co existíssemos com os outros. Mesmo a pequena
palavra com, incluindo a locução comigo, também não teriam sentido e nunca
poderiam ter surgido como palavra se primordialmente não se baseassem nesta
característica fundamental. Desse modo, o coexistir é a própria possibilidade de
realização de todas as psicoterapias. Psicoterapias interpretativas,
comportamentais, etc são modos de co existir. Mas nelas essa característica
fundamental do homem fica reduzida a uma relação sujeito objeto, apesar das
chamadas empatia, interpretação e experiência. Também o aconselhamento,
sem a característica fundamental do co existir não seria viável, nem nas
técnicas de manipulação e diretrizes baseadas na relação sujeito objeto.
Voltemos novamente às palavras para procurar seu significado próprio e para
entender seu sentido, antes de usá-las de maneira automática e rotineira. A
palavra ACONSELHAR aparece no dicionário como: dar conselho, persuadir,
induzir algo. Sua origem está no latim CONSULO que quer dizer: examinar,
deliberar, olhar por. Da mesma origem é CONSILIUM que significa: conselho,
julgamento: No grego antigo aconselhar é SYNVOULEVO que é a junção de
SYN (junto) e VOULEVO (considerar, determinar).VOULEVO forma-se do verbo
VOULI (resolução, resolver algo). Observamos que tanto no latim como no
grego antigo há o prefixo JUNTO, respectivamente CON (CUM) e SYN.
Encontramos também no dicionário alguns outros sentidos para a palavra
ORIENTAR: determinar a posição de um lugar em relação aos pontos cardeais;
encaminhar. Esse verbo vem do latim ORIOR que quer dizer: elevar-se, surgir,
nascer e cujo substantivo ORIGO significa: fonte de origem, nascimento. Da
mesma raiz forma-se ORIENTE que significa a parte onde nasce o sol.
Podemos ver assim, primeiramente que o significado fundamental de junto é tão
indispensável no aconselhamento, como na orientação é indispensável a origem
de onde algo surge, se torna visível. Além disso, encontramos que inicialmente
Texto para fins didáticos.

aconselhamento também quer dizer considerar algo, clarear e resolver algo


junto com o outro e que orientação significa deixar algo nascer, se mostrar, para
seguir seu caminho, e não executar planejamentos. Pois o junto não é
primordialmente a relação sujeito objeto para determinar e avaliar a realidade
mas o co existir fundamental de ser no mundo. Nos encontros para
aconselhamento e orientação tentamos juntos clarear a totalidade dos
significados e deixar compreensível como o outro se relaciona com tudo que
encontra, como se comunica com o próximo, como está afinado (disposto) em
relação a tudo que vivencia; enfim, procuramos juntos tornar clara a maneira
como ele vive e compreende o sentido de tudo que encontra. Em outras
palavras, a maneira como ele vive com os outros e compreende esse viver. Não
cabe aqui procedimento diretivo ou não diretivo, nem programação orientadora,
nem avaliação de dados fornecidos, mas a tentativa humilde de juntos
compreendermos os significados de como vivemos e clarearmos a maneira pela
qual nos relacionamos e atuamos. Apresentamos agora três exemplos para
mostrar de maneira prática como podemos entender o aconselhamento e a
orientação a partir da Daseinsanalyse. 1 - Procurou-nos um pai que estava
desesperado com a conduta de seu filho mais velho. Ele se queixava de que o
filho andava em más companhias, estava completamente desinteressado nos
estudos, tinha vícios e adorava a sua moto, quase não ficando em casa.
Recentemente, contava o pai, o rapaz tinha sofrido um acidente com sua moto
mas continuava a adorá-la. As dúvidas desse pai se referiam a como agir de
modo geral. Perguntava se deveria punir o filho tirando-lhe a moto, brigar com
ele, forçá-lo a tomar uma atitude ou deixar que ele continuasse com a moto mas
exigindo uma mudança no seu comportamento. Nos nossos encontros ficou
claro como antes de qualquer atitude seria importante tentar compreender o
mundo do filho e não ficar preso a critérios de certo e errado. Assim, proibir ou
permitir que o filho continuasse com a moto não resolveria nada. Quando
tentamos nos aproximar do mundo do filho ficou esclarecido que para ele a
moto era algo muito importante, que o fazia sentir-se importante e poderoso, e
que com ela tentava abafar a personalidade do pai, de fato preponderante e
dominadora. A partir disso, foi que o pai compreendeu que não deveria entrar
num relacionamento com o filho que o levasse a desafiar a autoridade paterna.
Ficou claro também para o pai como ele se sentia irritado com todos os jovens
que profissionalmente estavam em contato com ele, e de modo análogo com o
próprio filho, cada vez que sua onipotência era questionada. Assim ele
compreendeu que se a sua afinação disposição básica continuasse a ser
Texto para fins didáticos.

onipotência, o conflito continuaria. Felizmente o relacionamento entre os dois


melhorou muito na hora em que o pai começou seriamente a tentar
compreender o mundo do filho. A afinação ou disposição básica, como nos
mostrou Martin Heidegger, é uma das características fundamentais do existir
humano. Quando convivemos com o outro sempre nos relacionamos de uma
maneira específica, como por exemplo, uma maneira amigável, dominadora,
agressiva, afetuosa, provocante, ou outra qualquer. Essas maneiras diferentes
da afinação ou disposição básica e própria dão o colorido ao como me relaciono
com o outro. O que agora narraremos não é muito costumeiro em nossa
prática. Atendemos um casal na mesma hora por insistência dos dois. Eles
enfatizaram, desde o início de nosso contato, que eram pessoas cultas e que
poderiam na presença um do outro expor livremente seus problemas e fornecer
dado e fatos para que eles fossem avaliados e julgados psicologicamente. Ela
se dedica às letras e às artes, é sentimental, crê em Deus e está fazendo um
curso de pedagogia; não aceita nenhuma aproximação sexual do marido
enquanto ele continuar a criticá-la e a brigar com ela, discordando dela a
respeito de tudo. Ele é cientista pragmático, ateu, racional, acha que tudo tem
que ser planejado. Na sua opinião a tensão entre ambos poderia diminuir com
as relações sexuais e assim eles poderiam viver novamente bem. Atualmente
ele não se conforma com nada que ela pense ou faça. Esses em resumo foram
os dados fornecidos por eles, com a expectativa que déssemos alguns
conselhos diretivos, como por exemplo: férias, viagens ou reaproximação sexual
para consertar o relacionamento defeituoso deles. Inicialmente tentamos
mostrar que apesar da importância do relacionamento sexual, ele não é a única
maneira do relacionamento humano. Chamamos atenção, neste sentido, para o
que tinha sido exposto por eles, ou seja, que antigamente os dois viviam bem e
se entendiam, apesar das diferenças de caráter. O que tinha mudado era o
modo como basicamente se relacionavam. Ele mesmo nos esclareceu neste
momento que tinha ficado frustrado e decepcionado porque tinha perdido o
emprego. Ficava então em casa e não aceitava as atividades da mulher. Sem
emprego, sem atividades, sem planos, tinha o futuro fechado, ao contrário do
dela, pois ela estava em plena atividade e com vários planos. Frustrado e
decepcionado, ele era agressivo e cínico com tudo a que se referia e com quem
se relacionava, inclusive conosco. No momento, as coisas para ele tinham o
sentido da frustração e ele se referia a tudo criticamente com cinismo e
agressão. Dessa maneira ele também se referia às próprias agressões. Na
tentativa de orientá-los, procuramos deixar claro que era mais importante
Texto para fins didáticos.

compreenderem a afinação básica de como viviam atualmente do que ficarem


presos a termos objetivados, genéricos e uniformes como os que tinham sido
usados por eles quando se definiram como pessoas do tipo racional e
sentimental. Tentamos também mostrar como seria importante para ele abrir o
próprio futuro, entrando novamente em atividade. Na orientação de um grupo de
mães, que enfrentam dificuldades com os filhos e outros problemas familiares,
sempre tentamos ver juntos a origem dos problemas não como a causa que
determina efeitos mas simplesmente como eles surgem. Ao mesmo tempo,
procuramos esclarecer os significados das palavras que falamos, não para fins
acadêmicos, mas para que entendamos melhor o que de fato queremos dizer
com elas. Esclarecemos também a maneira como as mães se relacionam entre
si no grupo, evitando de nossa parte a interferência do dirigente e a frieza do
observador. Num de nossos encontros abordamos a pergunta que tinha sido
colocada: Devemos ou não castigar nossos filhos? Começamos a discussão no
grupo tentando ver para que serve o castigo e o que significa castigo. Foi
esclarecido que a palavra castigo significa, em princípio, conduzir alguém para
algo correto e perfeito. Durante a discussão, da qual todas participavam sem a
nossa interferência interpretativa, as mães chegaram a que a finalidade do
castigo seria temer o errado, compensar o errado, como foi dito. Uma das mães
comentou: Temos que prestar atenção para não descarregar o nosso próprio
mau humor castigando os filhos. Uma outra disse: Não estamos aqui para
aprender regras e palpites, mas cada uma de nós tem que achar o caminho
melhor para dialogar com os próprios filhos. Durante a discussão se tornava
claro para o grupo que cada uma das participantes, de maneira própria, tinha
que achar a linguagem dos filhos para que eles pudessem compreender os
próprios erros. E que isto podia acontecer de várias maneiras, entre as quais o
diálogo, apelos, sinceridade, severidade e respeito mútuo. Antes de castigar
seria importante compreender em cada circunstância o que significa o errar do
filho, por exemplo, as mentiras. Na continuação da discussão, tendo as
participantes citado vários exemplos a respeito de mentira dos filhos, chegou-se
a conclusão de que quando os filhos mentem podem estar querendo esconder
algo para não criar confusão para os pais, podem estar com medo e tentam
evitar a raiva dos outros, podem estar provocando, testando e verificando os
pais para saberem até que ponto são amados, e também que o mentir pode ser
uma atitude de agressividade e vingança para ver o outro sofrer de raiva e
decepção. Nessa discussão sobre a mentira ficou clara a fluidez da
problemática abordada e que ela não pode ficar congelada em noções e
Texto para fins didáticos.

definições rígidas, dependendo mais da maneira como os pais e filhos se


relacionam e convivem. De maneira análoga, procedemos em outras sessões
com a problemática de roubo, de agressão, de dependência e outras,
permanecendo nas vivências e procurando clarear a maneira como as mães se
relacionam, ou seja, como sentem, pensam e atuam, evitando os sistemas
deterministas, diretivos ou não, onde os dados se tornam meros conceitos
genéricos, abstratos, gerais e uniformes. Quanto à orientação vocacional, ela é
comumente definida como o procedimento para determinar e indicar aptidões,
tendências e escolha de atividades profissionais. O procedimento determinista
se baseia no fornecimento de dados, obtidos por testes de Q.I. e de
personalidade, testes específicos de aptidão e completados pelos requisitos de
determinada profissão. A avaliação desses dados e o fornecimento do parecer
encerram o procedimento. Assim fala se de perfil de profissão e análise
profissiográfica. Em resumo, nos sistemas determinados a orientação
vocacional trata da coleta, elaboração e avaliação de dados objetivados como
não podia deixar de ser. Assim ela também fica reduzida à manipulação do
homem objeto. Essa maneira objetiva e uniforme de orientação é cada vez mais
requisitada em nossa época tecnológica. Mas o que significa VOCAÇÃO?
VOCAÇÃO quer dizer: ato de chamar, tendência, escolha. Essa palavra origina-
se do latim VOCO que significa CHAMO. Por outro lado, ESCOLHA também
vem do latim EXCOLLIGERE que quer dizer tirar fora a coleção e OPÇÃO, de
OPTARE que quer dizer escolher, desejar por reflexão, liberdade de escolher.
Como vimos, vocação significa ato de chamar. E quando chamamos ou estamos
sendo chamados, temos que estar abertos para poder ouvir e escutar o que nos
apela. Chamar e escutar baseia-se primordialmente no coexistir humano. A
maneira de escolher e a liberdade de optar, tem que ser clareadas no viver com
os outros, nos relacionamentos significativos, na compreensão do sentido. A
procura e a avaliação de dados através de baterias sistemas de testes e perfis
informativos são procedimentos secundários, gerais, formalizados, que
sacrificam a personalidade da pessoa. É importante que fique bem esclarecido
primeiramente o que é o chamado e que sentido faz para que o homem seja
capacitado a assumir algo que desdobra as suas próprias possibilidades e seus
próprios interesses, que estimula a criatividade e que proporciona a realização
de algo autêntico. Vemos que quem se distancia do próprio chamado fica à
mercê da massificação, de modismos e status que podem disfarçar o apelo da
escolha própria e tornar a vida um automatismo tedioso, porém eficiente. No
sentido prático, mais importante do que as baterias de testes e a análise
Texto para fins didáticos.

profissiográfica são as convivências e os contatos pessoais com os respectivos


profissionais. Isso é que poderá levar a pessoa a clarear e sentir como se
relaciona e atua o profissional, a trocar vivências e referências para que chegue
ao caminho da liberdade, optando para o que apela, isto é, para aquilo que
possa ser realizado de modo autêntico. Tentamos assim, apresentar um esboço
do aconselhamento e da orientação baseados na Daseinsanalyse e partindo de
nossa prática. Nosso ensejo é mostrar que a Daseinsanalyse é um método, um
caminho, primeiramente de compreensão e participação e nesse sentido livre de
explicações ou formulações teóricas.A Daseinsanalyse não é uma elaboração
intelectual ou um idealismo romântico, pois parte dos fenômenos que
reencontramos todos os dias em nossa vida cotidiana. A Daseinsanalyse
procura sempre compreender esses fenômenos de maneira simples, clara e
sem distorções que sacrificam a autenticidade para satisfazer a qualquer custo
a construção de uma teoria. Aproximarmos de tudo que se nos apresenta para
compreendê-lo e captar o seu sentido fundamental, é o caminho para o qual
Martin Heidegger na sua Ontologia Fundamental nos convida a seguir.

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