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Depoimento

Paulo Sérgio Pinheiro*

Eric Hobsbawm: um espelho


do mundo em mutação
Eric Hobsbawm, o mais emi-
nente historiador de língua inglesa,
está em São Paulo. Participou do
Congresso sobre Cidadãos e Escravos
no Mundo Moderno, na UNICAMP,
em Campinas, onde fez conferências
na tarde do dia 6 e na manhã do dia 7.
Se houvesse um Prêmio Nobel para a
História, há muito tempo o antigo pro-
fessor da Universidade de Londres já
teria sido premiado. Hobsbawm, 71
anos — "sou de 1917, como a revolu-
ção soviética..." sublinhou na conver-
sa —, é o grande renovador da História
Social.
Seus numerosos livros e ensaios,
largamente traduzidos, influenciam
gerações de historiadores, do Japão,
passando pelos Estados Unidos (onde
nos últimos cinco anos esteve em pe-
ríodos regulares na New School for
Social Research, em Nova York) até o
Brasil. Um de seus muitos méritos foi
conceber a história do trabalho indus-
trial como a história de toda a socie-
dade. Sem excluir categorias pouco
estudadas, como em seus livros Band
ram as pesquisas sobre a violência e o protesto. Sua trilogia sobre a história
contemporânea, que atingiu o grande público, tornando-se best seller em toda a
parte, A Era das Revoluções, A Era do Capital e A Era dos Impérios (que, co-
mo os dois anteriores, já aqui traduzidos, será publicado em agosto pela editora
Paz e Terra), alia uma formidável erudição com o prazer do texto. A última
coleção de seus ensaios publicada em português, Mundos do Trabalho, abrange
a iconografia do movimento socialista na Europa até um alentado estudo sobre
os sapateiros, bastiões das revoluções do século XIX, incorporando informa-
ções da Bulgária até o Paraná. Essa capacidade de Hobsbawm, graças a sua in-
cansável curiosidade sobre as transformações na sociedade "desde a Idade da
Pedra até o laser", de fazer associações complexas entre épocas e países dife-
renciados, abrange a América Latina. Sucessivas viagens à Colômbia, Chile e
Peru têm suscitado provocantes ensaios sobre a conjuntura política desses paí-
ses, publicados geralmente na influente The New York Review of Books, da
qual Hobsbawm é um colaborador freqüente.

* Entrevista transcrita do jornal O Estado de S. Paulo, de 12 de junho de 1988. Cader-


no 2.
Como se não bastasse toda essa variedade de interesses, é ainda um res-
peitado especialista do jazz, tendo publicado livro e ensaios sob o pseudônimo
de Francis Newton. Para conversar sobre a perestroika, a crise dos partidos so-
cialistas, as revoluções estudantis de 1968 e, inevitavelmente, sobre a transição
brasileira, Hobsbawm recebeu durante uma manhã o Caderno 2, para uma en-
trevista exclusiva para O Estado de S. Paulo cujos principais trechos aqui pu-
blicamos:

Caderno 2: Aqui no Brasil es- forma sem uma democratização. Uma


tamos sempre procurando fazer uma democratização não necessariamente
avaliação mais elaborada sobre a no sentido em que nós, do Ocidente,
chamada perestroika e o processo de entendemos: com eleições com esco-
abertura na União Soviética. Como o lha entre partidos diferentes, por
senhor avaliaria os últimos desenvol- exemplo. Acho que essas são as ca-
vimentos desse processo? racterísticas principais.
As dificuldades são enormes e
Eric Hobsbawm: Não sou es- de dois tipos: em parte, há a participa-
pecialista em assuntos soviéticos e, ção dos interesses constituídos da bu-
portanto, o que tenho a dizer não é rocracia, incluindo a burocracia do
particularmente qualificado. Partido Comunista e, em parte, a difi-
Gostaria de lembrar, primeiro, culdade em proporcionar incentivos
que por aproximadamente trinta anos econômicos efetivos e melhorias para
houve toda uma escola de ciência po- a população trabalhadora. A União
lítica, nos Estados Unidos e no Oci- Soviética operou durante muito tempo
dente, que afirmava ser inteiramente uma economia ineficiente, mas relati-
impossível algo como Gorbachev vamente estável e poderia continuar
acontecer na URSS. Entretanto, o assim se não fosse a competição inter-
surgimento de Gorbachev, da glasnost nacional. Mas, essencialmente, a
e da perestroika refuta toda a teoria URSS é uma economia que oferece
do totalitarismo. Aparentemente as di- aos trabalhadores comuns uma grande
versas teorias definiram os países co- insegurança e liberdade num nível
mo totalitários precisamente pela sua econômico muito baixo. Isso vai ser
incapacidade de caminharem na dire- trocado pela esperança de uma consi-
ção em que a. União Soviética, evi- derável melhoria no padrão de vida e
dentemente, está indo. Em segundo na possibilidade de escolha. Mas, no
lugar, parece-me que o próprio Gor- momento, não há muita escolha e
bachev declarou claramente qual é melhorias no padrão de vida soviético
a justificativa tanto para a glasnost e, conseqüentemente os trabalhadores
como para a perestroika. Essencial- — que devem ser essencialmente a ba-
mente, é a crise da economia da União se do sucesso da perestroika — estão
Soviética; a estagnação crescente des- esperando para ver o que vai aconte-
sa economia; o crescente atraso da cer a eles.
União Soviética em relação a outros
países, e, portanto, a necessidade bá-
sica de modificar o sistema de admi-
nistração burocrática e o planejamento
central. A novidade, creio, sobre Gor-
bachev e a perestroika, é que ele liga
este processo a uma necessidade de
democratização política. Em outras
palavras, não é uma mera mudança
tecnocrática, destinada a promover
elementos mais ou menos democráti-
"O surgimento de cos. Para mim, essas parecem ser as
Gorbachev, da glasnot características de mudanças análogas,
e da perestroika refuta na China. Mas no que diz respeito a
toda a teoria do Gorbachev, ele aparentemente acre-
totalitarismo" dita ser impossível realizar essa re-
Caderno 2: Poderíamos dizer anos de Brezhnev foram, inicialmente,
que o processo ocorreu porque as uma espécie de ar puro, depois das
condições estavam maduras. Mas... tragédias de Stalin, pós-Stalin é Krus-
por que somente agora? Como o se- chev. Por bastante tempo, este ar puro
nhor explicaria a emergência deste foi bem aceito por todos e houve, na
processo? Que foi a faísca? verdade, uma melhoria modesta — mas
muito específica — nas condições ma-
Hobsbawm: Creio que não pos- teriais. Eventualmente, os custos da
so responder a essa pergunta em de- estagnação de Brezhnev foram tais —
talhe e acho que ninguém pode. A e isso inclui, por exemplo, o cresci-
questão principal é como um homem, mento espetacular da corrupção no
com as opiniões de Gorbachev, con- sistema - que eles se tornaram intole-
seguiu chegar à mais alta posição da ráveis dentro do Partido; talvez, mais
União Soviética. Isto sugere que den- ainda, dentro dos setores militares e
tro do próprio Partido Comunista deve da polícia. Andropov foi o primeiro
ter havido um apoio considerável para dos grandes reformadores. Ele era o
esse tipo de movimento reformista. chefe da KGB.
Todavia, acho que podemos generali-
zar deste modo: primeiro, no curso de
transformar a União Soviética num
Estado moderno, numa sociedade mo-
derna, numa economia moderna, ge-
rou-se o que no Ocidente chamamos
de classe média: um grande setor culto
e tecnicamente competente em alto
grau. E foi certamente entre eles, des-
contentes com uma administração tra-
dicional, militarista e em geral muito
ignorante, que isso se tornou intenso.
Parece-me que não é por acaso que os
centros acadêmicos, como o de Novo-
sibirsk, foram e permanecem, o cére-
bro da perestroika. Em segundo lugar,
mais especificamente, acho que um
grande numero de controladores da
economia — equivalente aos industriais
daqui - os grandes diretores de fábri-
cas, usinas, e assim por diante, devem
perceber, cada vez mais, a ineficiência
e a natureza caótica da economia que
eles deveriam controlar. Devem ter Hobsbawm: Aqui, novamente,
entendido que perderam muito tempo não tenho nenhuma informação em
não aumentando realmente a produção particular mas, como você sabe, rea-
e, sim, cumprindo um planejamento bilitar figuras do passado ou persona-
que significava por exemplo estocar gens da história da Revolução Russa é
pilhas de matéria-prima ou fazer ne- uma questão altamente política na
gócios privados com outras compa- URSS; poderíamos dizer que é uma
nhias. Isso é uma forma extremamente questão ideológica, que não pode ser
ineficiente de gerir a economia. En- julgada nos padrões da história aca-
tão, acho que houve um apoio enorme dêmica. De certa forma, a reabilitação
por parte desses setores cultos, que de Trotsky seria algo como reabilitar
representam agora um grande setor da Martinho Lutero, na Igreja Católica.
população soviética, se comparado Por um lado, é mais fácil porque
com qualquer época passada. A opo- Trotsky nunca encontrou uma Igreja
sição principal vem da burocracia e, vazia como Lutero mas, por outro, é "parece-me que
passivamente, da massa de trabalhado- muito difícil porque durante duas ou figuras do passado não
res. Por que somente agora? Parece- três gerações de comunistas e, parti- são, necessariamente,
me que, de alguma forma, os vinte cularmente, os soviéticos, definiram boas para o futuro"
sua ortodoxia como não sendo a de comunismo, mas, na verdade, o fenô-
Trotsky. É particularmente claro, para meno mais interessante é o socialismo
você e para mim, que esses velhos europeu: o renascimento dos partidos
conflitos atualmente têm apenas im- socialistas desde os anos 60, numa ba-
portância histórica. Todavia, o pro- se nova, freqüentemente numa base
blema não é acharmos que se deva muito mais moderna politicamente. Is-
reabilitar Trotsky, mas, sim, uma so é obvio na França, onde os partidos
Igreja reabilitar seus grandes hereges. socialistas foram virtualmente destruí-
E acho que isso demora muito mais. dos e o Partido Socialista, de Mitter-
rand, teve uma construção nova, ba-
Caderno 2: Se tentarmos enten- seada no que sobrou. E, na Espanha —
der o que está acontecendo na Euro- onde o Partido Socialista virtualmente
pa, o que o senhor diria sobre a ale- deixou de existir durante e depois da
gada crise dos partidos comunistas Guerra Civil —, o novo partido de
dos países europeus? Gonzalez simplesmente reclamou o
título, mas não num esquema de con-
Hobsbawm: Não há uma liga- tinuidade. Também na Itália, em Por-
ção lógica entre a perestroika e a cri- tugal, na Grécia e assim por diante.
se. Diria que é uma crise da esquerda Todavia, acho que há partidos socia-
e não uma crise dos partidos comu- listas tradicionais que, por serem par-
nistas, porque é uma crise que afeta tidos democráticos reformistas há
todos os movimentos trabalhistas e muito tempo se adaptam mais facil-
socialistas. Acredito que o desenvol- mente. Este é claramente o caso da
vimento da União Soviética tem sido Alemanha, da Suécia e de outros paí-
uma fonte de inspiração para as pes- ses como a Áustria. E há lugares em
soas de esquerda, não apenas comu- que eles não foram capazes de se
nistas, simplesmente porque todo so- adaptar, como na Grã-Bretanha, onde
cialista tem que carregar o pesado far- mergulharam numa crise da qual só
do de tentar explicar a União Soviéti- agora estão emergindo. Mas essa é
ca, mesmo que ele não seja favorável uma crise à parte. Acho que, essen-
ao stalinismo soviético. As pessoas cialmente, é uma conseqüência das
não dizem que um sistema stalinista é mudanças na estrutura da economia
a conseqüência lógica do socialismo? mundial e das sociedades, desde 1950.
Conseqüentemente, é um enorme alí- Essas mudanças liquidaram as bases
vio para a esquerda descobrir que este sociais tradicionais dos movimentos
é um sistema capaz e disposto a re- trabalhistas e, incidentemente, desde o
formar-se. Talvez seja melhor dizer começo dos anos 70 também dizima-
que a crise da esquerda é mais sutil ram a política reformista tradicional
nos partidos comunistas do que entre do Estado; política essa que a maioria
os partidos democráticos; porque os dos governos democratas do Ocidente
partidos socialistas se ajustaram há (sociais-democratas ou não) tem ado-
muito tempo, de modo a ser partidos tado durante gerações.
de governo em potencial e, portanto,
partidos de economia mista, reformis-
tas; ao passo que os partidos comu-
nistas, pela própria origem, sempre
estiveram limitados a uma atitude de
oposição, ou de transformação ime-
diata ou, pelo menos, à esperança de
transformação imediata. O exemplo da
tal crise é, logicamente, o Partido
Comunista Francês que, virtualmente,
desmoronou em dez anos. De modo
geral, até mesmo o Partido Comunista
Italiano está, no momento, recuado e,
de certa forma, com medo de perder
terreno para o Partido Socialista. As
pessoas costumam falar sobre o euro-
que esses partidos, praticamente em
todos os lugares da Europa, com ex-
ceção da Turquia e da Manda, cons-
tituem os governos, ou a maioria dos
governos alternativos. Assim, não es-
tamos falando de partidos ou movi-
mentos que desapareceram de cena.
Alguns de fato desapareceram, como
o Partido Comunista Francês; mas os
partidos socialistas, na forma socia-
lista ou comunista, constituem fatores
principais para os governos. Portanto,
a questão não é se esses partidos têm
futuro, mas que tipo de futuro.

Caderno 2: O senhor aplica es-


um estudo sobre a classe trabalhado- se mesmo tipo de reflexão ao marxis-
ra, chamado A Marcha da Classe mo? Nos anos 70, discutimos muito a
Trabalhadora Parou? Por que essa crise do marxismo no Brasil e na
interrogação no final? O senhor tem América Latina. Qual é a situação,
alguma dúvida sobre isso? O que quis agora?
dizer com essa interrogação?
Hobsbawm: Existe, indubita-
Hobsbawm: A interrogação não velmente, uma crise do marxismo que
é minha. Essa interrogação pretendia reflete a crise da esquerda, em geral.
significar que o estudo representava Há muitas razões para essa crise que,
uma discussão sobre a esquerda. Há essencialmente, estamos vivendo des-
dez anos dei uma conferência na In- de o início dos anos 70, e talvez an-
glaterra, na qual tentei avaliar a situa- tes, num período de crise global da
ção da classe trabalhadora no país, economia, seja a capitalista, seja,
cem anos depois de Karl Marx. Che- também, a socialista. Como já men-
guei à conclusão de que o desenvol- cionei, antes a esquerda teve, no pas-
vimento da classe trabalhadora, assim sado, duas alternativas ou possibilida-
como uma boa parte do povo inglês — des de programas complementares pa-
que é composto principalmente de tra- ra essa situação, elaborados durante a
balhadores — havia parado no começo última crise geral, nos anos 30. Uma
dos anos 50 e, desde então, notamos era o planejamento central, e a outra
um declínio gradual. O clima no mo- era uma administração da economia.
vimento trabalhista britânico era tal, Agora, nos anos 70 e 80, ambos se
que minha palestra provocou uma dis- mostram suscetíveis de críticas. O
cussão violenta: especificamente por planejamento central stalinista e a saí-
parte de alguns setores do movimento da pela economia — que também foi
sindical que se ressentiram com minha criticado — sucumbiram temporaria-
crítica à tática nos anos 70 (dividir a mente com o fim do longo boom de
classe trabalhadora, em vez de criar trinta anos, o que, na verdade, os en-
uma união). E o estudo a que você se corajou. E, conseqüentemente, a es-
referiu — publicado no começo dos querda não encontrou uma resposta
anos 80 — foi essencialmente um re- para a crise. Por outro lado, podemos
latório dessa discussão. Mas, é claro, dizer que ninguém mais tem essa res-
o declínio — relativo ou absoluto — do posta. Por exemplo, aqui no Brasil,
apoio à classe trabalhadora não é mais tentaram muitas formas de lidar com
a questão. A questão, agora, é como a crise e nenhuma delas adiantou.
pode haver uma recuperação. Do meu Ainda assim, para os marxistas ou pa-
ponto de vista, acho que não devemos ra os socialistas, essa falha, na análise
ser muito pessimistas sobre as possi- da superação, é intelectualmente mais
bilidades dos partidos e movimentos séria do que para os capitalistas. En-
socialistas na Europa porque o fato é tão, há um outro aspecto de crise do
marxismo—e acho que ele é um refle- dida que estes movimentos estão em
xo da situação de 1968, no sentido em crise, o marxismo também está em cri-
que o renascimento do marxismo foi se. Em alguns países, parece-me, essa
uma conseqüência da radicalização crise é muito mais aguda por razões
do final dos anos 60, um fenômeno políticas — ou por razões de moda,
mundial indiferente às condições po- como na França — mas ela existe cla-
líticas. Baseado no movimento estu- ramente em muitos países, e não po-
dantil lembramos que os anos 50 e 60 demos negar que está também ligada à
representaram um aumento sem prece- crise dos partidos comunistas.
dência e esmagador no número de
pessoas que faziam cursos superiores;
assim, os estudantes eram, demografi-
camente, uma parte significativa da
população, o que não acontecia antes.
Em 1848, nos movimentos estudantis
do século XIX, os estudantes eram 5
mil pessoas nas cidades grandes. En-
quanto, por volta de 1968, estamos
falando em termos de centenas de
milhares. Agora, acho que essa radi-
calização levou um grande número
de pessoas para o marxismo. Ao mes-
mo tempo, a realidade na qual as pes-
soas viviam nos anos 60 e 70 estava
tão distante da realidade que Marx
descreveu em 1867 — ou Lênin nos
anos 20 — que, na verdade, o marxis-
mo clássico era menos atraente e, con- Caderno 2: Apesar de toda essa
seqüentemente, encontramos todos os crise, a história das classes trabalha-
tipos de novos marxismos. O marxis- doras experimentou enorme desenvol-
mo foi, em grande escala, parece-me, vimento nos últimos dez anos. Mesmo
uma forma de infundir um caráter po- no Brasil, paradoxalmente, apesar da
lítico radical, ou mesmo revolucioná- ditadura e do regime autoritário,
rio, no que quer que fosse a ideologia muitas pesquisas e novos livros apa-
da moda. Encontramos, então, um receram; e o senhor sabe também que
grande número de marxismos refina- seus livros são muito lidos aqui. Co-
dos: o marxismo estruturalista, o mar- mo o senhor explica esse sucesso e
xismo psicoanalítico, o marxismo riqueza das pesquisas em termos de
econômico neoclássico, e assim por orientação e descobertas sobre a
diante. Acho que, para muitas dessas história da classe trabalhadora — da
pessoas, o marxismo indicava que história social em geral?
"somos lacanianos, estruturalistas,
mas somos também revolucionários" Hobsbawm: É claro que há uma
e, parece-me, isso foi uma base relati- crise do marxismo, mas isso não quer
vamente insatisfatória e instável sobre dizer que, no curso geral do desen-
a qual se reviveu o marxismo como volvimento do trabalho marxista e da
análise do mundo e, conseqüente- análise marxista, houve recessão. De
mente, facilmente esgotável. Em par- certa forma, o que desapareceu foi
te, devido a uma mudança política das uma enorme quantidade de literatura
gerações de estudantes, a maioria na sobre aquilo que se dizia marxista. E,
França, movendo-se bruscamente para assim, foi feito um considerável nú-
diferentes direções em poucos anos e, mero de modificações importantes —
"O problema não é também, de certa forma, por causa das por exemplo, algumas das séries eco-
acharmos que se deva ideologias às quais o marxismo esteve nômicas básicas de Marx — e parece-
reabilitar Trotsky, ligado em 1968. E finalmente, é claro, me que há importantes trabalhos pro-
mas sim, uma Igreja o marxismo sempre refletiu o estado gredindo. Como você mesmo observa,
reabilitar seus grandes da radicalização política dos movi- muitas obras marxistas continuam a
hereges" mentos para mudar o mundo e, à me- ser publicadas. Nos Estados Unidos,
por exemplo, havia um grande número como resultado do desenvolvimento
de estudantes radicais no final dos da União Soviética, mas não total-
anos 60 e, apesar do fato de muitos mente. Considerando que isto perma-
deles terem deixado de ser radicais, neceu na História, eu, como historia-
hoje há, provavelmente, um número dor, diria que a História se liga parti-
muito maior de historiadores marxistas cularmente bem à interpretação mar-
ou acadêmicos marxistas naquele país, xista, desde que, no meu ponto de
do que havia antes. Na verdade, não vista, o conceito materialista é o cen-
estamos falando sobre uma crise, mas tro e o âmago da análise marxista.
da crise comparada com a situação de
vinte ou cinqüenta anos atrás. Sobre a
questão específica que você mencio-
nou — a situação do marxismo na In-
glaterra—não creio que possa explicar
o que a energia intelectual do meu
país, voltada para a teoria marxista,
contribuiu para a História. Uma razão
talvez seja a ausência de uma forte
tradição de educação filosófica, assim
como existiu na Alemanha e, de uma
forma diferente, na França. Outra, tal-
vez seja o fato de que na Grã-Breta-
nha — pelo menos quando eu era estu-
dante — nas principais universidades,
Oxford, Cambridge, a História era
uma matéria importante; não uma ma-
téria para especialistas, mas um estudo Caderno 2: De cen
difundido na universidade: o mesmo sa influência foi tão grande que, de
que o Latim e o Grego haviam sido. fato, "construiu??" a História So-
Com o declínio do Latim e o cial, que é hegemônica na maioria
Grego, particularmente na Grã-Breta- das universidades. O senhor concor-
nha — onde a política e a Constituição da com esse ponto de vista, ou seja, a
eram fortemente enraizadas na Histó- disciplina não é mais vista como
ria —, esta tornou-se uma matéria im- História Marxista, mas como História
portante para a educação dos jovens Social, que é dominante na maioria
que, esperava-se, iriam ingressar na dos departamentos de História, mes-
vida pública; assim como estudo do mo nos Estados Unidos?
Direito o foi no Brasil e em muitos
países da América Latina. Então, Hobsbawm: Gostaria que você
muitas pessoas estudaram História. De estivesse certo e gostaria que toda a
qualquer modo, este é um fenômeno História Social fosse uma História
peculiar e estou muito próximo deste Marxista, mas sinto dizer que não é o
fenômeno para ser capaz de ver em caso. Acho que os marxistas tiveram
perspectiva — já que pertenço preci- um papel importante ao focalizar e
samente àquela geração na qual isto cristalizar a História Social. Entre-
foi particularmente marcante. Eu diria tanto, acho que as raízes da moderna
também que, naquela época, não era História Social não são particular-
só a História que atraía os marxistas e mente marxistas. "Qualquer história
o marxismo. Nos anos 30, havia tam- boa não é apenas uma
bém, paradoxalmente, a Ciência Natu- Caderno 2: Como toda essa tentati va de investigar
ral, e um grupo bastante representa- história sobre os odores, os perfumes, e analisar o passado,
tivo de cientistas britânicos tornou-se as mentalidades, de alguns livros mas analisar como o
marxista naquela época. Matemáti- franceses? mundo muda. O
cos, etc. problema básico é
descobrir como a
Hobsbawm: Parece-me que esse humanidade começou
Hoje o marxismo virtualmente é o tipo de História Social que não é na Idade da Pedra e
desapareceu do meio da Ciência Natu- necessariamente marxista. Acho que a chegou à Idade
ral, e isso desde os anos 40. Em parte, história marxista — na verdade qual- Nuclear"
quer história boa — não é apenas uma cial e política do Brasil depois do fim
tentativa de investigar, descrever e do regime militar?
analisar o passado, mas analisar como
o mundo muda. O problema básico da Hobsbawm: Você pode convi-
história marxista, ou de qualquer his- dar, mas não acho que possa respon-
tória, é descobrir como a humanidade der, simplesmente porque não tenho
começou na Idade da Pedra e chegou conhecimento suficiente sobre a situa-
à Idade da Tecnologia, à Idade Nu- ção do Brasil. Acho que o País, no
clear. E, conseqüentemente, o pro- momento, está vivendo um clima es-
blema principal da análise histórica, pecial. Visito o Brasil, ocasionalmen-
que até mesmo o historiador mais es- te, há muito tempo, e não me lembro
pecializado não pode esquecer, é co- de um clima semelhante, no qual o
mo explicar essa extraordinária trans- povo não tem certeza quanto ao futu-
formação. Entretanto, há outro as- ro, mostra-se pessimista, não sabe ou
pecto que me interessa muito que é — duvida se vão ser encontradas solu-
usando terminologia marxista clássica ções. Acho que isto é novo. Os brasi-
— o problema da relação entre a base e leiros, mesmo no passado, sempre fo-
estrutura, ou seja, como as várias ati- ram muito esperançosos quanto ao
tudes ou atividades da vida estão liga- futuro, de uma forma ou de outra. Mas
das, num período particular. Agora, o não acho que este seja um problema
tipo de História Social que analisa específico do Brasil. Eu diria que a
seja lá o que for, a história do cheiro, América Latina tem sido a principal
ou da menstruação ou alguma coisa vítima da crise atual. Tanto economi-
assim, não tem ligação direta, em si camente, como no sentido de uma
mesma, com os problemas principais certa desagregação política. Têm ha-
da transformação histórica. Por outro vido mudanças; porém mudanças que
lado, tem uma relação direta com o parecem não ser ainda soluções alter-
problema das superestruturas, exata- nativas. Então, se você olha não ape-
mente como, digamos, o conceito de nas para o Brasil, mas para toda a
sexualidade se relaciona com outros América Latina — para o México, para
aspectos da sociedade. São, freqüen- a Argentina, para o Peru, para a Co-
temente, muito inteligentes, intuitivas lômbia — você encontra uma situação
e perceptivas, mas não acho que sejam de drama, de crise e de incertezas so-
marxistas. bre o que acontecerá a todos esses
países. No Brasil, isto pode ser mais
dramático por causa do contraste com
um período recente de expansão auto-
confiante e esperança. Mas isso não é
um fenômeno especificamente brasi-
leiro. Acho que ele deve ser visto nu-
ma perspectiva global. Nessa situação
política, tudo o que posso dizer é que
a transição parece estar se prolongan-
do por um tempo muito longo e, tal-
vez, também possa dizer que não me
parece um bom sinal para a política do
País que pelo menos duas das figuras
no comando das próximas eleições
presidenciais tenham sido pessoas ou
fenômenos de quem eu ouvi falar há
26 anos, quando vim ao Brasil pela
Caderno 2: Posso convidá-lo a primeira vez. Parece-me que figuras
fazer algumas considerações sobre o do passado não são necessariamente
atual desenvolvimento da situação so- boas para o futuro.

Paulo Sérgio Pinheiro é professor de Ciência Política da Universidade de São Paulo.

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