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Bioética nº 11 de 27-11-2003 12/1/03 9:23 AM Page 101

ARTIGOS

A relação médico-paciente e seus aspectos


psicodinâmicos
Pierre Góis do Nascimento Júnior
Teresinha Maria de Macêdo Guimarães

Na medicina atual, um ponto amplamente discutido e evidenciado é o resgate da relação médi-


co-paciente, como um meio essencial e complementar aos recursos tecnológicos. Para se
entender melhor essa relação, é importante recorrer à história da medicina, a qual evidencia em
seus primórdios a relação médico-paciente como um alicerce que, junto com o exame físico,
permitia a extração das informações que norteavam o diagnóstico e a terapêutica da época. Em
seguida (século XIX), destaca-se o médico cienticifista, que refletia a medicina como uma ciên-
cia exata e biológica, desprezando o seu caráter humanista, e ultimamente tem-se evidenciado
que apesar do desenvolvimento tecnológico dar à medicina parâmetros valiosos, isso não
garante a satisfação do paciente. Outro ponto fundamental para o desenvolvimento desta rela-
ção é discernir os fatores que participam deste relacionamento, principalmente os psicodinâ-
micos, os quais descrevem as inúmeras atitudes e reações possíveis de ocorrer entre o médico
e o paciente.

Unitermos: relação médico-paciente, psicologia médica,


história da medicina, relações humanas

INTRODUÇÃO

Comunicação, de acordo com o discriminado por


Aurélio Buarque de Holanda (1), é “a capacidade de
Pierre G. do Nascimento Júnior trocar ou discutir idéias, de dialogar, de conversar, com
Médico residente em Clínica Médica
do SMHN - HRAN vista ao bom entendimento entre pessoas”. É evidente
que essa regra se aplica para qualquer tipo de comuni-
Bioética 2003 - vol. 11 - nº 1

cação e o seu sucesso está diretamente ligado às rea-


ções e expectativas dos comunicantes. Apesar desse
assunto estar sendo amplamente divulgado e discutido
em todos os setores e áreas de trabalho, inúmeras são
as rejeições encontradas em todas as áreas, inclusive
na área da saúde. Este fato é bem evidenciado quando
se discute a relação médico-paciente dentro da prática
Teresinha Maria de M. Guimarães
Professora doutora da disciplina
Fisiologia na UFRN 101 114
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médica. Estudos referentes a essa relação visão holística que entendia o homem como
vêm sendo bastante difundidos, no entanto um ser dotado de corpo e espírito. Nesse sen-
ainda são poucos os profissionais relaciona- tido, para os médicos dessa época, as doenças
dos com a área da saúde dotados de conheci- não eram consideradas isoladamente como um
mentos suficientes que os tornem capacita- problema especial, mas sim como uma conse-
dos para usufruir todas as benevolências ou, qüência da interação entre o homem, vítima
simplesmente, evitar conseqüências danosas da enfermidade, e a natureza que o rodeava, as
para seus pacientes provenientes dessa rela- leis universais que o regiam e sua qualidade
ção. individual. Tomando como base esse conjunto
de fatos, o médico acharia a verdadeira causa
O conhecimento da importância e do papel da da doença, assim como sua cura. Estas infor-
relação médico-paciente na prática médica, mações demonstram que, na época, o médico
assim como de todos os fenômenos que se pro- deveria ser mais do que um grande pesquisador
cessam na sua dinâmica, são os pré-requisitos ou estudioso, necessitava ser fundamental-
primordiais para promover uma melhor com- mente um humanista, um homem sábio que
preensão do assunto. Entretanto, para se na elaboração do seu diagnóstico levava em
entender esta interação é importante conhecer consideração não somente dados biológicos,
e compreender a própria história dessa relação mas também dados ambientais, socioculturais,
na evolução da medicina, assim como discernir familiares, psicológicos e até mesmo espiri-
todos os fatores que participam deste relacio- tuais, uma vez que para a civilização daquele
namento, principalmente os fenômenos psico- momento os deuses eram sujeitos ativos na
dinâmicos, os quais descrevem as inúmeras história e na vida das pessoas (2).
atitudes e reações possíveis de ocorrer entre as
partes diretamente envolvidas. Portanto, o Os dados acima citados foram os parâmetros
objetivo da presente revisão é discriminar uma que fundamentaram o modelo do médico
seqüência de fatos e elementos que possam hipocrático, isto é, um médico que dispunha
proporcionar melhor compreensão e exercício de dois alicerces básicos para o exercício da
da relação médico-paciente. medicina: o exame físico e, em especial, a rela-
ção médico-paciente. Relação essa que favore-
cia a extração de todas as informações que
A importância da relação médico-paciente iriam nortear a formulação do seu diagnóstico
na evolução da medicina e da sua terapêutica. Dessa forma, torna-se
claro que esse médico era um homem que alia-
Em sua origem, a medicina ocidental era uma va conhecimentos científicos e humanísticos
ciência essencialmente humanística, cujas raí- na prática médica. Era profundo conhecedor
zes se assentavam no solo da filosofia, da natu- da alma humana e, para tanto, invariavelmen-
reza, e o seu sistema teórico partia de uma te, estava muito próximo do seu paciente,

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desenvolvendo com ele uma relação extrema- relação médico-paciente e ainda poderiam pro-
mente benéfica e essencial para a boa condu- mover certo afastamento do profissional da
ção do caso. Além de tudo, era um homem pessoa que por ele estava sendo atendida.
respeitado, pois se percebia claramente que o Dessa forma, a necessidade antes primordial
ato de “curar”, exercido por ele, não era ape- de desenvolver uma estreita relação com o
nas uma operação meramente técnica, mas paciente para tecer um diagnóstico correto e
fundamentalmente uma operação humano- uma terapêutica adequada foi sendo gradativa-
científica, bem elaborada, complexa e dispen- mente substituída pela solicitação e execução
diosa. Esse modelo foi adotado pelos médicos de exames mais acurados e utilização de medi-
do Ocidente e perpetuou-se historicamente camentos mais eficazes. Estava então criado o
com a evolução da medicina, apesar das conceito do médico cientificista, ou seja, aque-
mudanças e rupturas ocorridas no decorrer da le profissional que não mais utilizava os prin-
história. cípios hipocráticos para a condução do caso,
mas sim baseava-se apenas em evidências clíni-
A partir da segunda metade do século XIX, cas e tecnológicas que propiciassem um fecha-
importantes descobertas causaram uma verda- mento do diagnóstico. Esse modelo seria,
deira revolução na prática médica. O desenvol- então, uma nova forma de atuação na medici-
vimento de conhecimentos nos campos da na, uma diferente visão instituída e também
patologia, das análises laboratoriais e de medi- com novas prerrogativas, que se identificava
camentos mais eficazes possibilitou à ciência através da supervalorização da parte científico-
médica um controle maior das doenças e uma tecnológica no diagnóstico, em detrimento de
maior probabilidade de cura (3). Além disso, todos os valores humanísticos antes tão rele-
outros avanços aconteceram em outras áreas e vantes. Tal fato comprometeu diretamente o
esse extraordinário progresso, associado ao grau de relacionamento que os profissionais
crescente desenvolvimento tecnológico, gerou desenvolviam com seus pacientes, uma vez que
mudanças na forma de atuação dos médicos e nesse momento não mais se apregoava uma
na sua formação acadêmica. Conseqüen- visão holística mas sim o crescimento da seg-
temente, essa conquista de espaço levou a mentação. Os pacientes, antes vistos como
medicina a ser vista como uma ciência exata e indivíduos únicos com patologias próprias,
biológica, perdendo pouco a pouco o seu cará- passaram a ser vistos como máquinas que
ter humanístico. O médico que até então dis- apresentavam defeitos. E como tal, através de
punha tão-somente de sua proximidade com o um exame acurado, identificava-se a peça
seu paciente, aliado a seu exame físico para defeituosa e posteriormente seria realizado o
conduzir o diagnóstico e a terapêutica correta, conserto adequado (4). Essa degradação do
passou a possuir uma gama de recursos tecno- relacionamento médico-paciente, além de ter
lógicos e condutas. Estes parâmetros, por sua sido influenciada por esse modelo cientificista,
vez, não dependiam diretamente de uma boa foi também estimulada pelo interesse materia-

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lista cada vez maior dos médicos e também Um outro ponto que contribuiu para o repen-
pelas pressões exercidas nos profissionais por sar do médico cientificista foi o fato de os pró-
empresas de saúde, cujo objetivo principal é prios médicos começarem a perceber que a
maximizar seus lucros através da prática da assistência médica era a única prestadora de
medicina, desnorteando o vínculo de confian- serviços em que o usuário - o paciente - é par-
ça entre o paciente e o médico (5). tícipe e muitas vezes o principal responsável
pelo êxito do tratamento (9). Além disso, em
Apesar das vantagens promovidas por todos os 1998, Gauderer (10) propagou que os médi-
recursos tecnológicos e o arsenal terapêutico cos atuavam de forma semelhante a um pro-
utilizados na medicina cientificista, pesquisas, fessor, ou seja, do mesmo modo que este últi-
observações e levantamentos estatísticos mo cria uma parceria com seus alunos ao
começaram a colocar em dúvida as vantagens transmitir seus conhecimentos, o médico tam-
a ela atribuídas. Em 1979, Panasco (6) criti- bém o faz com seu paciente quando atuam
cava as práticas médicas relacionando-as com conjuntamente com o mesmo objetivo, empe-
os conceitos da Organização Mundial da nhados em desenvolver e efetivar um plano
Saúde (OMS) referentes ao bem-estar físico, terapêutico. No entanto, assim como o profes-
mental e social, chamando a atenção para o sor não costuma permitir ao aluno uma voz
fato de que os médicos se preocupavam muito mais ativa no seu currículo escolar, o médico
com o primeiro aspecto, pouco com o segun- também não escuta suficientemente os anseios
do e nada com o terceiro – quando na realida- de seus pacientes. Assim, tanto os professores
de as relações sociais e psicossociais compro- como os médicos queixam-se freqüentemente
vadamente podem ser o fiel da balança entre a da falta de motivação ou da desobediência do
falta de vontade de viver e o desejo de sobrevi- aluno ou paciente.
ver. Uma pesquisa realizada pela Associação
Americana de Escolas Médicas expressou cla- A partir daí, passou-se a pensar no que estaria
ramente que a população queixava-se de que a faltar ou no que se teria perdido dentro da
os médicos estavam sem compaixão e mais prática médica que pudesse explicar todas essas
interessados pelos testes e métodos, do que insatisfações. Foi assim que a relação médico-
pelos seres humanos (7). Também o National paciente, até então um tanto quanto desvalo-
Center for Health Statistics dos Estados rizada e desprezada, passou a ser resgatada,
Unidos apontou que as causas comportamen- recebendo gradativamente uma valorização
tais identificadas nos pacientes eram respon- crescente como sendo um meio essencial e
sáveis por mais da metade dos gastos com o complementar aos recursos tecnológicos.
atendimento à saúde, causas essas jamais Dessa forma, iniciou-se um processo de re-
detectadas com os avançados recursos tecno- humanização da medicina, postulando-se que
lógicos, nem tampouco controladas com a os dois modelos (cientificista e hipocrático)
terapêutica de última linha (8). não eram suficientes por si só, mas sim com-

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plementares, tendo em vista que o método tec- Nesse sentido, é importante que o médico
nológico deveria complementar os dados for- conheça com detalhes os referidos processos,
necidos pela anamnese e pelo exame físico do para que assim possa selecionar o caminho a
paciente. Concordante a toda essa realidade, ser tomado de acordo com cada situação e pro-
características do médico hipocrático passaram porcionar uma melhor forma de se relacionar
a ser consideradas como sendo princípios fun- com o seu paciente.
damentais e peculiares à prática médica, pois
de acordo com Fraga (7), “a audição que reco- Diante dessa necessidade, existe uma gama de
lhe as queixas, a mão que toca, o gesto que fenômenos que mediante a situação e os ele-
afaga, o olhar que mantém a esperança, o sor- mentos envolvidos fazem parte do contexto da
riso que consola, a palavra que tranqüiliza, a relação médico-paciente. Estes fenômenos
mente que elabora” são elementos que não poderão ter diferentes graus de intensidade ou
podem ser criados por nenhum recurso tecno- profundidade, em função de vários fatores que
lógico até o presente momento, uma vez que participam desse relacionamento, dentre os
são propriedades exclusivas dos seres humanos. quais destacam-se: a maior ou menor impor-
E é diante dessa realidade de complementari- tância da referida relação e as suas interfaces;
dade que a medicina atual tenta avançar na a primeira ligada diretamente ao tipo de aten-
satisfação tanto do seu paciente como dos pro- dimento que o paciente recebe, ou seja, o valor
fissionais da área de saúde. que lhe é atribuído; a segunda, relacionada à
patologia de base analisada. Dessa forma,
doenças de início precoce, de diminuta gravi-
Aspectos psicodinâmicos da relação médi- dade e que causam mínimo impacto emocional
co-paciente no paciente, geralmente produzem uma rela-
ção médico-paciente de curta duração, fre-
Uma relação médico-paciente satisfatória só se qüentemente superficial, não apresentando
torna possível quando se está disponível para influência demasiada no comportamento do
efetuá-la. Por outro lado, a disponibilidade por profissional. Já as doenças de início recente,
si só não é suficiente para desenvolvê-la de porém de gravidade relevante, exacerbam os
forma adequada, uma vez que nela é funda- mecanismos afetivos, dando como conseqüên-
mental que se leve em consideração os proces- cia direta uma influência importante sobre o
sos mentais e emocionais subjacentes ao com- trabalho do médico. Por outro lado, os fenô-
portamento do homem e de sua motivação, em menos psicológicos assumem especial impor-
especial quando se manifestam em resposta tância nas doenças de longa duração que
inconsciente às influências ambientais, às necessitam de cuidados médicos crônicos, pois
estruturas psicológicas, às alterações conse- ao lado dos recursos terapêuticos (dieta, medi-
qüentes de determinadas patologias, sentimen- camentos, fisioterapia, cirurgia e outros) a
tos despertados e/ou condições de tratamentos. ação psicológica do médico passa a ter um

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papel fundamental. Fenômenos semelhantes Gehsattel) e o grau de contato pessoal (formu-


também são observados nas doenças de cura lado por Tatossian).
incerta ou improvável, onde o aspecto psicoló-
gico passa a ter, na grande maioria das vezes, O modelo que enfoca o grau de atividade-pas-
igual ou superior significado que os medica- sividade distingue três tipos básicos de relação
mentos ou outras formas terapêuticas. Em médico-paciente:
especial, nas situações com pacientes termi-
nais, o componente emocional assume enorme Atividade-passividade – interação na qual o
valor, pois tanto para o paciente, que se apre- paciente abandona-se por completo e aceita
senta com a morte iminente, como também passivamente os cuidados médicos, sem
para o médico, que vive a impossibilidade de mostrar necessidade ou vontade de com-
adiá-la, essa realidade passa a ser um potente preendê-los. É a situação característica da
estímulo para mudanças de comportamento, medicina de urgência, onde quanto mais
podendo assumir matizes que vão desde a ativo e seguro se mostrar o médico, mais
revolta até mesmo às frustrações. Nessas situa- tranqüilo e confiante ficará o paciente;
ções, a maturidade emocional e não mais
somente o preparo técnico torna-se o fator Direção-cooperação – nesse tipo, o médico
preponderante para a melhor condução do assume seu papel de maneira até certo ponto
caso, pois vários fenômenos inconscientes do autoritária, mas o paciente compreende e
médico e do paciente podem despertar e vir à aceita tal atitude, procurando colaborar;
tona, marcando de forma favorável ou negati-
va a conduta. Participação mútua e recíproca – relação em
que o médico permanece no seu papel de
Os conhecimentos adquiridos através das definir os caminhos e os procedimentos,
observações da estrutura psicológica do doente mas o paciente compreende e atua conjun-
e do médico, das modificações que as patolo- tamente. Nesse caso, as decisões são toma-
gias ocasionam na situação vital de quem delas das após troca de idéias e análise de alterna-
padecem, os sentimentos despertados pela tivas. O paciente assume a responsabilidade,
duração da doença e as condições do tratamen- havendo então uma interpenetração de
to (hospitalização, regime ambulatorial, con- papéis, ou seja, uma aliança entre ele e o
sultório particular) permitiram identificar dife- médico.
rentes possibilidades da relação médico-
paciente, as quais estão objetivadas através de Nenhum dos tipos de relações acima discrimi-
modelos (11) que ressaltam três ângulos dife- nadas é melhor que a outra. Elas simplesmen-
rentes do mesmo fenômeno: o grau de ativida- te correspondem a situações dadas e caracteri-
de-passividade (formulado por Hollender), a zam pacientes que se encontram em contextos
distância psicológica (formulada por Von psicológicos distintos (11).

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O modelo que enfoca a distância psicológica as emoções e sentimentos identificados como


também distingue três fases na relação que se afastamento emocional, capaz de limitar de
estabelece entre o profissional e o paciente: maneira relevante a dinâmica da relação médi-
co-paciente, dificultando o próprio exercício
A do apelo humano – onde o profissional da profissão.
responde inicialmente à demanda do enfer-
mo, satisfazendo suas necessidades. Não o Um terceiro modelo enfoca o grau de contato
frustra e, ao aproximar-se, ainda não o con- pessoal e aborda dois níveis de relação:
sidera como objeto de estudo;
Relação interpessoal – na qual observa-se
A do afastamento ou de objetivação – cor- entre o profissional e o seu paciente uma
respondendo a do exame chamado científi- interação direta que se realiza nos níveis
co. Nesta fase, o profissional já não consi- intelectuais, afetivos, conscientes e incons-
dera o enfermo como uma pessoa, mas sim cientes, além de utilizar um mundo imagi-
como um objeto de estudo. As relações afe- nário;
tivas passam para segundo plano;
Relação de prestação de serviços – nesse
A de personalização da relação – inicia-se nível, considera-se a tarefa assistencial
após o estabelecimento do diagnóstico e do como um serviço de reparação, ou seja, o
plano terapêutico. O profissional pode apro- cliente se dirige a um especialista para repa-
ximar-se de seu paciente e considerá-lo não rar um objeto. A relação do especialista com
só como um caso, mas como pessoa que o seu cliente é pautada pelo ritual social da
sofre com determinada enfermidade, haven- tomada de contato, com explicações sobre o
do assim a integração dos elementos das defeito do objeto e sobre a reparação neces-
fases anteriormente citadas, isto é, dos sária.
aspectos científicos e humanos.
No campo da saúde, é freqüente a utilização
O que difere este segundo modelo do anterior desses dois níveis referenciais, uma vez que o
é que a relação pode progredir de uma fase para especialista, por um lado, isola o objeto (o
outra. Em alguns casos, observa-se a parada corpo, a parte do corpo, o sintoma) e trata de
do profissional na fase de afastamento ou obje- repará-lo; por outro, interage com uma pes-
tivação, o que constitui particularidade que soa, que está indissoluvelmente ligada ao obje-
muitos pacientes identificam em determinados to (11).
profissionais, como frieza afetiva no trato que
lhes é dispensado. Além disso, essa parada Dentro de todos esses modelos de relação
pode refletir uma espécie de proteção profissio- médico-paciente citados, inserem-se os princi-
nal, ou seja, um mecanismo de defesa contra pais fenômenos psicodinâmicos, os quais são

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na verdade elementos ao mesmo tempo racio- das vezes, pequenos, desamparados e à mercê
nais e irracionais, realísticos e irrealísticos, dos referidos profissionais (13). A transferên-
maduros e infantis, conscientes e inconscien- cia também pode ser negativa. Neste caso, a
tes, provenientes de uma dinâmica interação atitude do paciente pode revelar sentimentos
entre o paciente e o médico. Nessa relação os tais como desconfiança, inveja, desprezo, irri-
mecanismos mais identificados são: transfe- tação ou até mesmo ira ou raiva exposta.
rência, contra-transferência e resistência. E Alguns comportamentos do médico durante o
os conceitos de cada um deles provêm da ciên- exame clínico podem ser a causa dessa transfe-
cia psicanalítica e nela encontram sua maior rência negativa, por exemplo: má apresenta-
aplicação. No entanto, a prática médica coti- ção, pressa, indiferença, uso de palavras difí-
diana constitui-se de vasto domínio terapêuti- ceis, etc. Muitas vezes o paciente pode apre-
co independente de técnicas psicoterápicas sentar essa transferência negativa sob a forma
especiais e indissociáveis do trabalho de qual- de reserva geral, escassez de informações ou
quer médico (12). pouca disposição de cooperar durante o exame
e o tratamento, dificultando, assim, toda a
O mecanismo de transferência é o processo no resolução do caso (14, 15, 16).
qual são trazidos para o relacionamento médi-
co-paciente sentimentos e conflitos originários Os fenômenos de transferência não ocorrem
de relacionamentos anteriores. Ao entrar em somente do paciente para o médico, o inverso
contato com o médico, o paciente revive nas também é observado, ou seja, do médico para
profundezas de seu mundo emocional, em o paciente. Quando isso ocorre, é denominado
nível inconsciente, sentimentos nascidos e contra-transferência e corresponde à passagem
vivenciados nestas relações primárias, como se de aspectos afetivos do profissional para o
fossem situações novas. Fala-se de transferên- paciente, entrando em jogo mecanismos
cia positiva quando o paciente vivencia o rela- inconscientes nascidos em sentimentos já vivi-
cionamento de maneira agradável, confirman- dos pelo médico em relações anteriores – com
do a expectativa que tinha de encontrar no os pais, filhos, cônjuge ou outras pessoas.
médico uma pessoa disponível, atenciosa e Nenhum profissional consegue entrevistar um
com capacidade para lhe ajudar. Do ponto de paciente e evitar, pelo menos parcialmente,
vista psicodinâmico, o paciente estaria transfe- relacionar os fatos por ele relatados com episó-
rindo para o médico o afeto já sentido por dios de sua própria vida ou família. Os médi-
outra pessoa, quase sempre pai ou mãe (12). cos são seres humanos e não conseguem isolar
Na maioria desses pacientes as atitudes trans- suas emoções de seu trabalho, numa espécie de
ferenciais são positivas. Geralmente, têm a robotização espiritual. É fundamental que sai-
tendência de atribuírem a esse profissional de bam reconhecer seus próprios sentimentos,
saúde propriedades poderosas e onipotentes, fraquezas e problemas emocionais então des-
sentindo-se, por outro lado, na grande maioria pertados, mantendo-os sob controle (12). A

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contra-transferência pode ser positiva ou nega- ele compreender estes fenômenos psíquicos
tiva e depende de inúmeros fatores, advindos para manter-se, sempre, na condução do rela-
tanto do paciente – tais como idade, sexo, cionamento com o paciente.
situação social, apresentação e comportamen-
to – como do próprio profissional, onde se des- Do ponto de vista psicanalítico, admite-se que
taca cansaço, irritação, situação social, insatis- em toda relação humana há ambivalência,
fação no trabalho e até mesmo conjugal (17). existindo na mente dos pacientes impulsos que
A contra-transferência positiva é útil e impor- trabalham a favor e impulsos que se colocam
tante, principalmente para o tratamento dos contra esta relação. Estes aspectos contraditó-
pacientes com doenças crônicas e incuráveis. rios devem ser conhecidos, compreendidos e
Quando negativa, geralmente é relatada pelo detectados pelo médico nos momentos em que
médico como sendo aquele paciente “chato”, se transformarem em dificuldade para o
“irritante”, “enjoado”. Nesse caso, cabe exclu- paciente. Sendo aconselhável, inclusive, que o
sivamente ao médico elaborar seus conflitos médico analise-os juntamente com o paciente
emocionais, não deixando que interfiram com o objetivo de elaborá-los e superá-los, pro-
negativamente na relação com o seu pacien- porcionando uma evolução consciente e
te (12). inconsciente para todos os envolvidos.

O mecanismo da resistência é designado como


sendo qualquer fator ou mecanismo psicológi- Comentário final
co inconsciente que compromete ou atrapalha
a relação médico-paciente. Os fenômenos de De forma geral, os dados indicam que é atra-
resistência podem surgir no momento inicial vés dos seus conhecimentos que o médico pode
da primeira consulta e se reforçarem ao longo aperfeiçoar sua capacidade de relacionar-se
da convivência entre os envolvidos. Exemplos com o seu paciente, produzindo, assim, uma
simples de resistência são os esquecimentos de interação proveitosa e lucrativa para o exercí-
horários pelo paciente, o adiamento ou recusa cio de uma medicina integral que beneficiará
em fazer exames solicitados, o uso irregular ou ambas as partes. Por outro lado, os fatos rela-
abandono de tratamento, o não-seguimento de tados e outros encontrados na literatura (18,
regimes alimentares. Outras vezes, a resistên- 19) sugerem que para se desenvolver uma rela-
cia consiste em ocultar ou deturpar sintomas ção médico-paciente de forma satisfatória não
ou fatos relacionados à doença, como aconte- se faz necessário exigir do profissional grande
ce com os pacientes que negam o uso de bebi- esforço, muito pelo contrário, o básico da rela-
das alcoólicas, mesmo quando apresentam cla- ção não depende de recursos tecnológicos, de
ras evidências de intoxicação etílica. Esses drogas de última linha ou de conhecimentos
mecanismos podem ser interpretados como científicos elaborados, eles podem ser corrigi-
contestação à autoridade do médico, cabendo a dos independentemente de recursos financei-

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ros ou técnicas apuradas e está intimamente Agradecimentos


ligado a um contexto propiciador de diálogo e
cooperação entre as partes envolvidas. Enfim, Os autores agradecem a professora Maria de
considerando ser o médico o componente mais Fátima Arruda de Miranda e a srta. Tatiana
conscientizado na relação médico-paciente, Larissa Soares da Silva pelas sugestões, revi-
espera-se que parta dele o desejo de manifestar, são e transcrição do resumo para o inglês e
idealizar e desenvolver essa relação na sua espanhol, respectivamente.
forma mais ampla, considerada tão necessária
na atualidade (7, 19, 20, 21).

RESUMEN
La relacion médico-paciente y sus aspectos psicodinâmicos

En la medicina actual, un punto extensamente discutido y evidenciado es el rescate de


la relación médico-paciente, como medio esencial que complementa los recursos tecno-
lógicos. Para compreder mejor esa relación es importante recorrer a historia de la medici-
na. Esta se hace evidente en los comienzos de la relación médico-paciente como un pilar
que junto al examen físico permitía obtener la información que dirigía el diagnostico y el
tratamiento de esa época. Luego, se destaca el médico cientificista que entendía la medi-
cina como una ciencia biológica y exacta, despreciando su carácter humanístico y, ultima-
mente se ha llegado a la conclusión que apesar del desarrollo tecnológico de la medicina,
eso no le garantiza la satisfacción del paciente. Otro punto de esa relación es discernir los
factores que participan de este relacionamiento, principalmente los psicodinâmicos, los
cuales describen las diversa actitudes y reacciones posibles que pueden ocurrir entre el
médico y el paciente.
Unitérminos: relación médico-paciente, psicología médica, historia de la medicina, relaciones
humanas

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ABSTRACT
The doctor-patient relationship and its psichodynamic aspects

At nowadays medicine, regaining doctor-patient relationship as an essential and comple-


mentary tool to technological instruments is emphasized. In order to better understan-
ding this relationship, it is important to recall the history of medicine, once in primordial
medical activities, doctor-patient relationship was essential, and its association to physi-
cal examination was the basis for diagnosis and therapeutics to be applied. Around the
XIX century, the concept of scientificist doctor became emphasized, one that conceived
medicine as an exact and biological science, with no emphasis on its humanistic
approach. Recently, it has become clear that although technological development has
provided medicine with valuable diagnosis parameters, that does not guarantee the
patients’ satisfaction. Another fundamental aspect concerning the development of this
relationship is recognizing the factors that are part of it, especially the psychodynamic
ones, which express the various attitudes and reactions that might take place between
the doctor and the patient.
Uniterms: doctor-patient relationship, medical psychology, history of medicine, human relations

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ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA

Teresinha Maria de Macêdo Guimarães


Departamento de Fisiologia – Centro de
Biociências – Campus Universitário - UFRN
Caixa Postal nº 1511
CEP 59.078-970
Natal/RN – Brasil

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