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Olavo de Carvalho
(1) A corrente dominante segue uma linha inaugurada pelo Doktor Faustus de Thomas
Mann, que busca as origens do nazismo no subsolo irracional e satanista da cultura alemã.
A noção de que a história social e cultural da Alemanha pudesse elucidar o totalitarismo
e o holocausto veio a se tornar um dogma do senso comum e a dominar, praticamente
sem contestações, toda essa imensa bibliografia. A aposta nessa tese é compartilhada, em
medidas diversas, pelos autores e obras mais díspares, desde produções acadêmicas
respeitáveis como os estudos de Otto Friedrich, Siegfried Kracauer, Lotte Eisner, Peter
Gay, Carl Schorske e as grandes biografias de Hitler por Joachim C. Fest, Ian Kershaw,
Alan Bullock, até obras de cunho polêmico como The Pink Swastika, de Scott Lively e
Kevin Abrams ou The Occult Hitler, de Lothar Machtan, e até mesmo especulações sobre
a contribuição ocultista à formação da ideologia nazi (Nigel Pennick, Hitler’s Secret
Sciences; Peter Levenda, Unholy Alliance: History of the Nazi Involvement with the
Occult; Dusty Sklar, The Nazis and the Occult; Wilhelm Wulff, Zodiac and Swastika,
Nicholas Goodrick-Clarke, The Occult Roots of Nazism: Secret Aryan Cults and Their
Influence on Nazi Ideology etc.). O sucesso dessa linha de investigações é facilmente
explicável: como o nazismo se definia a si próprio como um movimento essencialmente
nacionalista, nada mais natural do que buscar suas raízes na cultura nacional que o
produziu. Lendo esse material, os alemães se convenceram de que são um povo de
criminosos e até hoje se desgastam em perpétuos rituais de autopurificação, que
contrastam de maneira patética com a orgulhosa recusa comunista de se entregar a
idêntico exame de consciência.
(2) Ao lado dessa tradição, desenvolveu-se outra que, ao contrário, procura dissolver a
peculiaridade nacional do nazismo no rótulo geral de “fascismo” ou “nazifascismo”, uma
noção infinitamente elástica que abarca de Hitler a George W. Bush, passando pelos
líderes sionistas e pelo general Augusto Pinochet, sem esquecer o senador Joe McCarthy,
a Igreja Católica, as milícias patrióticas americanas, os militares brasileiros e, de modo
geral, todos os adeptos da economia de mercado (ouvi com os meus dois ouvidos um
professor da USP, José Luís Fiore, exclamar: “Liberalismo é fascismo!”). Explicando o
fenômeno nazista como imperialismo capitalista, esta segunda linha de investigações,
fortemente subsidiada pelos escritórios de propaganda do governo soviético, é
autocontraditória e desprovida do mínimo de substância intellectual que justifique um
debate sério, mas, graças à rede global de organizações militantes, espalhou-se como uma
peste nos meios universitários do Terceiro Mundo, daí saltando para conquistar até
mesmo algum espaço na Europa e nos Estados Unidos. No Brasil, tornou-se um dogma
estabelecido e um dado do senso comum. Raciocinar fora dela é considerado um sintoma
de doença mental ou uma prova cabal de inclinações nazifascistas. Tsk, tsk.
(3) Uma terceira linha, que subordina o conceito de nazismo à noção mais genérica das
ideologias de massa, sublinhando suas semelhanças com o comunismo soviético e chinês
e sondando suas origens nas fontes gerais do movimento revolucionário mundial, nunca
alcançou a popularidade das outras duas, mas teve boa aceitação em círculos de
estudiosos especializados graças às obras de Friedrich Hayek, Ludwig von Mises, Hannah
Arendt, Norman Cohn, Eric Voegelin, Ernest Topitsch e, mais recentemente, Richard
Overy.
O documentário de Edvin Snore, The Soviet Story, que já comentei aqui e que vocês
podem descarregar com legendas em português no site www.endireitar.org, traz uma
poderosa confirmação à tese número 3, reduz a número 2 ao engodo publicitário que ela
sempre foi e, se não impugna totalmente a número 1, debilita consideravelmente as suas
pretensões a ser “a” explicação dos crimes nazistas. Ao mostrar que toda a técnica dos
campos de concentração e do extermínio em massa foi inventada pelos comunistas e só
tardiamente copiada pelos nazistas mediante convênio com o governo soviético, Snore
faz picadinho de qualquer tentativa de atribuir a crueldade nazista a alguma causa
especificamente alemã. Os fatores culturais assinalados na tese número 1 explicam a
emergência de um movimento nacionalista de tipo místico e irracionalista, mas não a
extensão e a brutalidade quase inimaginável de seus crimes. Afinal, movimentos de
inspiração idêntica surgiram em muitas outras partes do mundo sem ter por isso recorrido
sistematicamente ao genocídio como técnica de governo. O próprio fascismo italiano,
com toda a rigidez fanática do seu autoritarismo, nada fez de comparável ao Holocausto,
e, segundo conhecedores habilitados como Hannah Arendt e Miguel Reale, não pode nem
mesmo ser enquadrado legitimamente na categoria do “totalitarismo”, de vez que o
governo de Mussolini jamais tentou sequer obter o controle total da sociedade italiana e,
bem ao contrário, tolerou a existência de dois poderes concorrentes: a Igreja e a
monarquia. O emprego sistemático do genocídio como instrumento de governo foi
invenção comunista. O que aconteceu na Alemanha foi a fusão deliberada de um
imaginário de tipo nacionalista-místico com a técnica comunista de governo. Essa foi a
originalidade de Hitler, até na opinião dele próprio. Ao declarar que toda a sua luta se
inspirava diretamente em Karl Marx, ele não se referia, naturalmente, à mitologia
patriótica do nazismo, mas à organização socialista da economia e sobretudo ao emprego
sistemático do terror genocida. Hitler fundiu Mussolini com Lênin, e a parte genocida da
mistura não veio do primeiro componente.