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ENSAIO

O farmacêutico e
a automedicação
responsável
Arnaldo Zubioli,
Secretário geral do Conselho Federal de Farmácia, membro do Conselho Consultivo do Instituto
Argentino de Atenção Farmacêutica, membro titular da Academia Nacional de Farmácia, mestre em
Farmacologia e Terapêutica pela Universidade de São Paulo, e aperfeiçoamento em Farmácia
Clínica e Farmacoepidemiologia, na Universidade Nacional do Chile

Q uero estabelecer um contraponto: a relação do


farmacêutico com a automedicação responsá-
vel. Embora o farmacêutico seja citado nessa
relação, habitualmente, a maneira de saber fazer a
automedicação não é enfatizada. Evoco, aqui, uma
propaganda de um medicamento de automedicação,
que extraí da revista Farmácia Portuguesa, publica-
do pela Associação Nacional das Farmácias de Por-
tugal, onde está escrito: “Para cuidar da saúde dos
seus utentes (usuários), o farmacêutico tem sempre
uma palavra a dizer”. Por que? A resposta é inques-
tionável: a automedicação é responsabilidade do far-
macêutico.
Mas o que é notável é a inclusão do farma-
cêutico no processo de automedicação responsável.
Normalmente, o modelo que conduz à automedica-
ção inicia-se com a percepção do problema de saúde
pelo usuário, onde se apresentam duas opções: a)
não tratar; b) tratar com remédio caseiro ou autome-
dicação com medicamentos.
Na maioria das vezes, o usuário procura uma
farmácia. Ela é uma instituição de saúde, de acesso
fácil e gratuito, onde o usuário, muitas vezes, procu- farmacêutico deverá possuir os conhecimentos, em
ra, em primeiro lugar, o conselho amigo, desinteres- áreas de sua competência, que permitam indicar, de-
sado, mas seguro, do farmacêutico. Torna-se im- saconselhar, ou informar, em situações de automedi-
prescindível para o farmacêutico ter a noção exata cação ou sintomatologia simples. No Brasil, para aten-
de sua competência e dos limites de sua intervenção der a esta demanda, existem 58.000 farmácias e dro-
no processo saúde-doença, para que assuma a atitu- garias, sendo que 4.000 são farmácias de manipula-
de correta, no momento oportuno, avaliando a situa- ção e 1.200, de homeopatia. As demais dispensam
ção do doente, conduzindo-o, se necessário, a uma produtos industrializados.
consulta médica ou ao hospital, em caso de urgência. Pelas razões expostas, o farmacêutico é um
Para que possa desempenhar esta função, o parceiro privilegiado do sistema de saúde, da indús-
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tria farmacêuticas e do consumidor. Aliás, o farma- um produto para a automedicação responsável. É evi-
cêutico é o único profissional formado pela socieda- dente que nem todas as situações são passíveis de
de, que conhece todos os aspectos do medicamento aconselhamento na automedicação responsável. Nas
e, portanto, ele pode dar uma informação privilegia- seguintes situações, é recomendável que o farma-
da às pessoas que o procuram, na farmácia. cêutico sugira ao paciente que faça uma consulta
Os estabelecimentos farmacêuticos anterior- médica: os sintomas são tão intensos que o paciente
mente nominados são canais por onde circulam os não os suporta, sem diagnóstico definido e nem tra-
medicamentos. Em geral, quando se dirige à farmá- tamento; os sintomas são leves, mas persistentes e a
cia, o usuário solicita ajuda e ini- “A farmácia é uma instituição causa não é identificável com fa-
cia a conversação com distintas de saúde, de acesso fácil e cilidade; os sintomas reaparecem
perguntas: 1) Que tem para diar- gratuito, onde o usuário, com bastante freqüência e não se
réia? (Sintoma em uma pergunta). muitas vezes, procura, em reconhece nenhuma causa; o far-
2) Qual é o melhor antiácido? (Pro- primeiro lugar, o conselho macêutico tem dúvidas sobre o es-
duto de uma classe específica de amigo, desinteressado, mas tado do paciente; o mal uso do
medicamento). 3) Tem Baralgin? seguro, do farmacêutico. medicamento poderá ser prejudi-
(Deseja um produto em particu- cial ao paciente; o paciente tem
Torna-se imprescindível para
lar). usado corretamente (administra-
o farmacêutico ter a noção
Diante do exposto, é neces- ção, duração) medicamentos não
exata de sua competência e
sário avaliar a situação patológica prescritos e não obtém resultados
dos limites de sua
individual, entrevistando o pacien- positivos.
intervenção no processo
te, com vista à identificação cor- Ante estas observações, fica evi-
saúde-doença...”
reta da sintomatologia, para o denciado que, para a obtenção dos
aconselhamento no uso dos medicamentos. Para isso, sintomas e das características do indivíduo, não é
é necessário saber perguntar, como e quando per- possível, muitas vezes, a elaboração de todas as per-
guntar. Em síntese, estabelecer um protocolo de ques- guntas desejáveis. Em algumas situações, é possível,
tões, de modo a obter as respostas que nos permi- e em outras, não. Por exemplo: quando uma pessoa
tem atuar, de maneira coerente. reporta uma dor de cabeça, ou uma gastrite, algumas
Na análise de sua intervenção no processo saú- perguntas têm que ser formuladas, porque a patolo-
de-doença, deve o farmacêutico obter as seguintes gia em análise pode ser autolimitada, ou ser uma pa-
informações em relação aos sintomas apresentados tologia grave. Nestas situações, é preciso saber acon-
pelo paciente: o começo do problema, a duração, a selhar e tomar a decisão correta. Para a escolha dos
severidade, a descrição, se é aguda ou crônica, se medicamentos de venda livre, o farmacêutico deve:
tem sintomas concomitantes, se tem fatores agra- 1) Selecionar os medicamentos em relação ao seu
vantes ou que aliviam, e perfil farmacológico; 2) selecionar, em função do
“O farmacêutico é um
a presença ou não de tra- perfil do paciente.
parceiro privilegiado do
tamentos anteriores. Seleção - O farmacêutico, ao planejar, for-
sistema de saúde, da
Em seguida, o far- mular, produzir, selecionar e dispensar um medica-
indústria farmacêuticas e do
macêutico deve reunir mento, tem, por objetivo, conseguir que a substân-
consumidor. Aliás, o
informações relativas ao cia de comprovada atividade farmacológica seja libe-
farmacêutico é o único
paciente para ter uma rada, no local de ação, na quantidade suficiente para
profissional formado pela
noção das característi- que se desencadeie, durante o tempo necessário para
sociedade, que conhece
cas do indivíduo. A o tratamento, sem provocar reações adversas. Se este
todos os aspectos do quem se faz o pedido? objetivo é conseguido, considera-se que o medica-
medicamento e, portanto, O paciente é um lacten- mento tem qualidade, e esta será a principal preocu-
pode dar uma informação te, criança, adulto ou da pação do farmacêutico, ao selecionar o medicamen-
privilegiada às pessoas que terceira idade? Qual o to de venda livre.
o procuram, na farmácia”. sexo, antecedentes me- Entre uma gama diversa de medicamentos,
dicamentosos, antecedentes alérgicos, antecedentes torna-se fundamental averiguar as vantagens ou des-
de reações adversas às drogas? vantagens de determinadas formulações, o custo do
É, a partir da análise dos sintomas e das ca- medicamento e, ainda, detectar eventuais defeitos de
racterísticas do indivíduo, que se poderá selecionar fabricação, julgando, nessa análise, a credibilidade
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do fabricante. Não podemos esque- Compete ao farmacêutico, quan-


cer, também, a noção de dose máxi- do solicitado a aconselhar um medi-
ma em todas as especialidades farma- camento a uma mulher que está ama-
cêuticas. mentando, esclarecer os riscos que
Uma seleção adequada deve o bebê corre, transmitindo normas de
observar estes parâmetros, pois é este conduta. Em pediatria, deve-se con-
conjunto de conhecimentos que deve siderar que a passagem de vida intra-
encabeçar o aconselhamento, que uterina à extra-uterina acarreta um
acompanha a dispensação, no balcão grande número de alterações fisioló-
de farmácia, dos medicamentos de gicas, muitas delas de natureza fun-
venda livre. Para obter os medicamen- cional.
tos, estamos certos de que, também, O recém nascido possui uma
o diálogo farmácia/fabricante deve ser grande imaturidade dos seus órgãos
alargado e melhorado. Um aspecto não (é um insuficiente renal, um insufici-
menos importante na seleção de me- ente hepático, apresentando uma
dicamentos não prescritos envolve o grande imaturidade enzimática), o que
“perfil do doente”. conduz a uma modificação dos parâmetros farma-
O farmacêutico deve dedicar uma atenção cocinéticos. Por exemplo, o uso de antidiarréicos,
muito especial às várias situações que, em geral, nos em certas situações em que é fundamental, em que é
permite dividir os doentes em grupos particularmen- bom fazer uma boa hidratação, nas situações febris,
te sensíveis ao consumo de medicamentos. Então, em que o uso de antipiréticos poderá mascarar sinto-
neste caso, o aconselhamento em situações de gravi- mas que auxiliem o médico no diagnóstico. Por esta
dez, aleitamento, pediatria e idosos. razão, o manual de automedicação dos farmacêuti-
Na gravidez, devido aos efeitos indiretos de cos americanos afirma que, até dois anos, não se
medicamentos administrados à gestante. Como é do deve, em nenhuma hipótese, fazer a automedicação.
conhecimento geral, no útero gravídico, o feto flu- Tal como a criança não é um projeto de adulto
tua no líquido amniótico e é envolvido por uma mem- jovem, o idoso não é o seu rabisco disforme. Na
brana, a placenta, que já deixou de ser considerada indicação de medicamentos à pessoa idosa, há que
uma “barreira” que defende o feto da agressão de se ter presente um declínio de todas as suas funções
substâncias exógenas à excepção “Podemos afirmar, com (diminuição do fluxo sangüíneo, re-
de substâncias de alto peso mole- segurança, que todos os dução do peso corporal, função renal
cular ou muito ionizada, e que não fármacos atingem o feto, e hepáticas diminuídas etc.). A alte-
a atravessam. correndo-se sempre ração dos parâmetros farmacocinéti-
Podemos afirmar, com se- cos, a peculiar sensibilidade a certos
alguns riscos de efeitos
gurança, que todos os fármacos medicamentos, a presença de patolo-
colaterais. Temos que
atingem o feto, correndo-se sem- gias (diabetes, hipertensão, problemas
considerar sempre o
pre alguns riscos de efeitos cola- cardiovasculares e renais etc.) e o uso
sistema mãe-placenta-
terais. Temos que considerar sem- simultâneo de vários medicamentos
feto. Dado que o leite é
pre o “sistema mãe-placenta-feto”. fazem com que os idosos, como gru-
uma via de eliminação
Dado que o leite é uma via de eli- po, apresentem uma alta incidência de
normal, a quase totalidade
minação normal, a quase totalida- reações adversas.
dos medicamentos
de dos medicamentos administra- O aconselhamento na seleção e
administrados à mãe
dos à mãe passam para o leite. uso de medicamento pelo farmacêu-
passam para o leite”.
Os medicamentos podem tico é de fundamental importância.
modificar, direta ou indiretamente, a morfologia, o Apesar dos cuidados que devem cercar a automedi-
desenvolvimento e a secreção da glândula mamária, cação responsável, ela apresenta os seguintes aspec-
passar para o leite e atingir o lactente. Este recebe os tos positivos: 1) a automedicação é mais cômoda para
medicamentos, via oral, o que faz com que alguns o doente que a receita médica; 2) a automedicação é
sejam destruídos no tubo digestivo, outros não atra- mais barata para o indivíduo e para os sistema públi-
vessam a mucosa, outros destroem a flora intestinal co de saúde; 3) a automedicação permite desenvol-
saprófita. ver situações que, de outra forma, provocaria uma
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incapacidade do indivíduo ou, pelo menos, um grau dos farmacêuticos, para que possam desempenhar,
muito maior de doenças; 4) se não existisse a auto- com proficiência, e auxiliar os consumidores na au-
medicação, o sistema sanitário estatal (SUS) ver-se- tomedicação responsável.
ia completamente bloqueado, em pouco tempo; 5) a Encorajar pessoas a participar da educação
automedicação estimula as pessoas a aceitarem a sua acadêmica e profissional, nas escolas de Farmácia.
quota de responsabilidade sobre a sua própria saú- Se nós queremos ver reconhecida a automedicação
de. responsável, é bom iniciar, desde a universidade, os
Ante estas afirmações, é preciso salientar que alunos de graduação dos cursos da área de saúde,
a automedicação é um direito do consumidor e os especialmente do curso de Farmácia, para que eles
profissionais de saúde são prestadores de serviços sejam partícipes desta atividade, no dia em que esti-
de saúde, quando solicitados. Em relação à função verem no mercado de trabalho.
do farmacêutico, duas reflexões merecem ser acla- Por outro lado, a ampliação de produtos dis-
radas: a) Como vêem, os farmacêuticos têm o seu poníveis (mudança da venda com receita para a venda
papel na educação e na seleção e uso apropriado dos sem receita). Penso que a nossa realidade dos medi-
medicamentos de venda livre?; b) Em que medida camentos sem receita é muito tímida. É preciso
os conhecimentos do farmacêutico lhe permitem a ampliar a disponibilidade de medicamentos sem exi-
dispensação dos medicamentos sem receita e o acon- gência de receituário. Há medicamentos que, no ex-
selhamento nas situações de automedicação, em ge- terior, são vendidos sem receita e que, no Brasil,
ral? ostentam a tarja vermelha.
Por esta razão, é necessário o delineamento É uma constatação de que precisa ser aclara-
de estratégias para a automedicação responsável que da e melhorada. Outrossim, a troca de informações
contemple os seguintes aspectos: 1) o estabeleci- e experiências e o feitio de pesquisas operacionais
mento de uma seleção cuidadosa dos para a avaliação do intercâmbio de
medicamentos a serem vendidos “Se nós queremos ver práticas de automedicação são ati-
sem receita; 2) critérios de seleção, reconhecida a tudes a serem implementadas. O
baseados na eficácia, custo e ampla automedicação objetivo a ser atingido é a desmis-
margem de inocuidade; 3) legisla- responsável, é bom iniciar, tificação da automedicação.
ção sobre etiquetas e instruções pre- desde a universidade, os Para encerrar, trago-lhes esta fi-
cisas e fáceis de compreender com alunos de graduação dos guração. Quando começou este
informação sobre: indicações, doses cursos da área de saúde, século, nós olhávamos para o céu
recomendadas, advertências sobre especialmente do curso de e contemplávamos as nuvens e as
o uso indevido e advertência sobre Farmácia, para que eles estrelas e, hoje, nós voamos entre
as interações medicamentosas; 4) sejam partícipes desta elas. Quando começou este sécu-
educação sanitária. atividade, no dia em que lo, nós navegávamos em barcos e
O aprimoramento da autome- estiverem no mrcado de navios e, hoje, nós navegamos pela
dicação responsável requer alguns trabalho”. internet. Quando se estabeleceram
passos importantes, como a confec- as bases científicas da farmacolo-
ção de um manual de procedimentos e, também, de gia, a maior parte dos medicamentos era de receitu-
folhetos informativos que servem de orientação ao ário, através das prescrições magistrais feitas pelos
consumidor para as diversas patologias e os dife- médicos e manipuladas pelos farmacêuticos. Hoje,
rentes grupos de medicamentos, como analgésicos, tais atividades fazem parte do domínio público, pois
antiinflamatórios, antiácidos, laxantes, etc. vivemos o século da informação e do conhecimen-
A farmácia é o local ideal para a disponibili- to, devido aos consumidores estarem mais sensibili-
zação destes folhetos informativos e para a dissemi- zados para o fator saúde e interessados em conhe-
nação de materiais necessários à educação do con- cer as patologias e os esquemas terapêuticos pelo
sumidor. É preciso descentralizar os encontros, sim- que a informação aos consumidores é um direito
pósios a respeito da prática da automedicação, com que lhes assiste.
a realização de reuniões regionais. Os farmacêuticos Todas estas mudanças alteram, tanto a orien-
têm que ser encorajados a fazer a educação continu- tação pessoal, como a atividade profissional, e nós
ada a respeito do assunto, e cabe à indústria farma- teremos de estar sintonizados com estas transfor-
cêutica estimular e apoiar os projetos de atualização mações.
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