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Ministério da Educação

Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica


Instituto Federal do Rio de Janeiro - IFRJ

CURSO DE LICENCIATURA EM MATEMÁTICA

A ANÁLISE REAL DO ENSINO BÁSICO: NÚMEROS REAIS

ALEXANDRE LUIZ TULLER TELLES

Volta Redonda
Julho/2016
A ANÁLISE REAL DO ENSINO BÁSICO: NÚMEROS REAIS
ALEXANDRE LUIZ TULLER TELLES

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


ao corpo docente de Matemática, como re-
quisito parcial à obtenção do grau de Licen-
ciado em Matemática pelo Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Ja-
neiro.

Orientador: Tiago Soares dos Reis

Volta Redonda
Julho/2016
Telles, Alexandre L. T.
T269a A Análise Real do Ensino Básico: Números Reais / Alexandre
Luiz Tuller Telles. - -
Volta Redonda, 2016.
69 f.

Orientador: Tiago Soares dos Reis.

Trabalho de Conclusão de Curso (licenciatura) − Instituto


Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro,
câmpus Volta Redonda, 2016.

1. Análise Real. 2. Ensino Básico 3. Número Reais I. Reis,


Tiago Soares dos, orient. II. Tı́tulo.
A ANÁLISE REAL DO ENSINO BÁSICO: NÚMEROS REAIS
ALEXANDRE LUIZ TULLER TELLES

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


ao corpo docente de Matemática, como re-
quisito parcial à obtenção do grau de Licen-
ciado em Matemática pelo Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Ja-
neiro.

Aprovada em 20 de julho de 2016

Orientador, Tiago Sores dos Reis, Dr., IFRJ

Andrey Dione Ferreira, MSc., IFRJ

Magno Luiz Ferreira, MSc., IFRJ

Renata Arruda Barros, Dr., IFRJ


Dedico este trabalho à minha mãe Maria Terezinha
Tuller, a quem devo total gratidão por todo esforço
dedicado à minha formação.
Agradeço a Deus por ter me dado saúde e força para desenvolver este trabalho; à minha
esposa Lı́cia pelo carinho, amor e dedicação durante minha formação; aos meus familiares e
aos familiares da minha esposa que sempre me apoiaram; ao meu amigo Wallace Reis pelo
apoio para realização deste trabalho; aos meus amigos que me incentivaram; ao meu
orientador Tiago Reis pela inspiração e pela paciência.
RESUMO

TELLES, Alexandre L. T. A Análise Real do Ensino Básico: Números Reais. Volta Redonda,
2016. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Matemática) - Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, câmpus Volta Redonda, 2016.

O conjunto dos números reais é um conteúdo difı́cil de ser abordado no Ensino Básico, principal-
mente no que diz respeito aos números irracionais. Neste texto, fazemos uma breve discussão
histórica do surgimento dos conjuntos numéricos. Apresentamos uma construção analı́tica
dos números reais através das sequências de Cauchy, com as demonstrações necessárias para
esse desenvolvimento. Demonstramos algumas propriedades importantes deste conjunto, que
são frequentemente trabalhadas no Ensino Básico. Fazemos um levantamento histórico dos
números irracionais π e e e demonstramos suas irracionalidades. Por fim, propomos atividades
que objetivam facilitar a abordagem dos números reais no Ensino Básico.

PALAVRAS-CHAVE: Análise Real; Ensino Básico; Números Reais; Números Irracionais; Sequência
de Cauchy; Irracionalidade; Conjuntos Numéricos.
ABSTRACT

TELLES, Alexandre L. T. A Análise Real do Ensino Básico: Números Reais. Volta Redonda,
2016. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Matemática) - Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, câmpus Volta Redonda, 2016.

The set of the real numbers is a hard subject to be taught in the Basic Education, mainly due to
the irrational numbers. In this text, we make a brief historical discussion on the development
of numerical sets. We present an analytical construction of the real numbers via Cauchy
sequences with the proofs required for this development. We prove some important properties
of this set which are worked in the Basic Education frequently. We make a historical overview
on the numbers π and e and prove that they are irrationals. Finally, we propose activities that
aim to facilitate the approach of the real numbers in Basic Education.

KEY-WORDS: Real Analysis; Basic Education; Real Numbers; Irrational Numbers; Cauchy
Sequence; Irrationality; Numerical sets.
Sumário

Introdução 10

1 Números reais no Ensino Básico 16

2 Construção dos números reais 21

3 Propriedades de números reais 35

4 O número π 40
4.1 Breve histórico do número π . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40
4.2 A irracionalidade do π . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44

5 O número e 51
5.1 Breve histórico do número e . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
5.2 A irracionalidade do e . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55

6 Algumas sugestões de abordagem dos números reais no Ensino Básico 61


6.1 Definição de números reais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
6.2 O número π . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63
6.3 O número e . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65

Considerações finais 68

Referências 70
Introdução

A dificuldade em definir os números reais no Ensino Básico é bem conhecida na comuni-


dade acadêmica matemática. Essa dificuldade, como pude perceber em minhas experiências
durante o curso, está relacionada aos números irracionais. Diferente dos demais (naturais,
inteiros e racionais) os números irracionais não são tão intuitivos, e normalmente não são bem
trabalhados, causando dificuldade no entendimento do estudante.
Ao longo do tempo, foram tomadas medidas que servem de referência aos professores
e autores de livros didáticos buscando melhorias e padronização do Ensino Básico em todo
paı́s. Tais como a implementação da nova Lei de Diretrizes e Base (LDB), a elaboração
dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e as propostas curriculares de cada estado.
Mas, apesar dessas referências, ainda encontramos problemas na apresentação dos números
reais. Em geral, a abordagem dos números irracionais nos livros didáticos é muito vaga.
Normalmente, apresenta-se os números reais como a união dos números racionais com os
irracionais, e diz-se que os irracionais são os reais que não são racionais. Outra maneira
muito utilizada é dizer que os números irracionais são números que não podem ser escritos
como quociente entre números inteiros ou dizer que os irracionais são decimais infinitos e
não periódicos. Todas estas afirmativas são verdadeiras, no entanto não definem um número
irracional. Para o estudante que só conhece os números racionais, dizer que um número
irracional é aquele que não pode ser escrito como quociente entre inteiros é dizer que um
número irracional é nada, é um não-número, é um não-ser. Talvez, por isso o estudante se
sinta espantado ao se deparar com esses números. Um exemplo em que essa dificuldade pode
ser vista, é nas diversas vezes em que o estudante, ao resolver uma equação polinomial do
segundo grau, encontra uma raiz não exata, isto é, uma raiz cujo resultado não é um número

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inteiro. Normalmente, o estudante ou tenta aproximar o resultado por um número racional ou


diz que “a resolução deu errado”. Nesse ponto, o professor se vê obrigado a aplicar exercı́cios
que só resultem em raı́zes exatas.
Quando se diz que alguns números racionais, quando escritos na forma decimal, são dı́zimas
periódicas, isto é, possuem infinitas casas decimais, alguns estudantes já criam uma resistência.
Apesar disto, quando o professor mostra que as dı́zimas periódicas podem ser escrita na forma
de fração entre inteiros, os estudantes aceitam este tipo de número de forma melhor. Por outro
lado, existe uma resistência ainda maior quando lhes são apresentados decimais infinitos e não

periódicos. Os primeiros exemplos de irracionais mais comuns são 2, π, e e. E normalmente
são apresentados com pouca, ou quase nenhuma, explanação. Além disso, estes sı́mbolos
não são decimais infinitos não periódicos. O estudante que aprendeu que números irracionais

são os decimais infinitos não periódicos tendem a não aceitar que 2, π, e e são números
irracionais. Mais do que isso, em nenhum momento fica claro aos alunos por que eles existem
ou como foram descobertos.

Dentre estes três números, apesar da dificuldade, o 2 é o menos complicado aos estu-
dantes. Isto se dá por ele ser obtido pela operação de radiciação, que já é conhecida, com o

número 2, que também já é conhecido. Isto é, embora dizer que 2 não é o resultado de uma

divisão entre números inteiros torna o 2 um objeto completamente novo, fora do universo

de conhecimento do estudante, o 2 é obtido por elementos já conhecidos: a operação de
radiciação e o número 2. Já os números π e e não são resultados de operações e números já
conhecidos. Com o tempo, os exercı́cios vão aparecendo e os estudantes vão aceitando que
estes números são irracionais, porque o professor e o livro disseram. Na sequência, π, que é
irracional, se torna igual a 3, 14, que é racional, com a justificativa de facilitar os cálculos,
sem muita ênfase na questão de que o que está sendo feito é uma aproximação. Não é raro
estudantes de Ensino Básico afirmarem que π é igual a 3, 14. O número e passa a não ser
mais lembrado, foi apenas um exemplo momentâneo e voltará (se voltar) a ser visto nova-
mente apenas no estudo dos logaritmos. As raı́zes inexatas são os exemplos mais utilizados
para lembrar da existência dos números irracionais. A matemática volta a “normalidade” tão
rapidamente que o estudante se conforma em não entender o que são os números irracionais.
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Infelizmente, é comum egressos do Ensino Médio que sequer conhecem o número e, outros,
não sabem dizer o que é um número irracional, embora tenham ouvido falar. O número π, por
outro lado, é mais conhecido, a maioria sabe que é um irracional, mas não sabe explicar de
onde ele surgiu. O número π é definido pela divisão do comprimento, C, de uma circunferência
C
pelo seu diâmetro, d, ou seja, π = . Para muitos estudantes, isso não faz sentido, afinal,
d
se número irracional não pode ser escrito como uma fração e π é um número irracional, como
C
π é igual à fração ? Eis aqui uma dificuldade que o estudante traz desde o aprendizado
d
dos números racionais. Falta, ao estudante, saber que os números racionais são frações
especificamente entre números inteiros. O que não ocorre na definição de π uma vez que
pelo menos um dos números, C ou d, é irracional.
O número e é mais difı́cil de ser trabalhado no Ensino Básico. Sua definição geométrica
depende, além de conceitos estudados no Ensino Básico, de conceitos de Integral, que só
serão vistos no Ensino Superior. Por outro lado, suas definições analı́ticas usam o conceito de
Limite, que por sua vez, também são vistas no Ensino Superior. Contudo, a origem do número
e está relacionada à criação dos logaritmos, e seus estudos, no Ensino Básico, começam muito
depois da apresentação dos números reais. Talvez, por isso os livros apenas comentam sua
existência.
Pommer (2012), em seu trabalho, pesquisa como são abordados os números irracionais nos
livros didáticos. Ele observa lacunas existentes principalmente quanto a definição do número
e quando diz que, referindo-se às coleções de livros didáticos que pesquisou, “o discurso das
coleções pouco ilustra o significado do número de Euler, não havendo possibilidade de haver
ampliação conceitual”. O professor pode, se houver interesse de sua parte, buscar outras
informações para complementar o que está sendo dado pelo livro. Mas, infelizmente, a falta
de conhecimento, muitas vezes por falhas em sua formação, inibe o professor a trabalhar mais
conceitos sobre números irracionais. A dificuldade de entender estes números não está relaci-
onada somente à resolução de exercı́cios, uma vez que os estudantes aprendem a reproduzir
algoritmos e se acostumam a trabalhar com eles. O problema está no fato de os estudantes
não entenderem o que são tais números, qual a natureza deles, qual o significado, qual a
necessidade de suas existências.
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É claro, concordamos com os PCN (BRASIL, 1998), quando dizem que “ancorar o estudo
do conjunto dos racionais e irracionais no âmbito do formalismo matemático não é certamente
indicado nessa etapa [...] julga-se inadequado um tratamento formal do conceito de número
irracional no quarto ciclo.”e, portanto, as construções rigorosas dos reais, das definições de π e
e e demonstrações da irracionalidade destes dois, de fato, não são adequadas ao Ensino Básico.
Entretanto, estas construções, definições e demonstrações são parte do conteúdo estudado
em Análise Real nas licenciaturas em Matemática, embora, estas construções, definições e
demonstrações, em si, normalmente não são estudadas nos cursos de Análise Real. O que
queremos dizer é que: os conteúdos de sequências, séries, limites, derivadas e integrais são
estudados nas disciplinas de Análise Real nas licenciaturas em Matemática; que estes conteúdos
são utilizados nas construções dos números reais, nas definições de π e e e nas demonstrações
de irracionalidade dos dois; mas as disciplinas de Análise Real não abordam estas construções,
definições e demonstrações em si. Curioso é um dos resultados na pesquisa de Moreira, Cury
e Vianna (2005) que mostra que apenas um, dentre trinta e um professores universitários que
responderam o questionário sobre quais conteúdos deveriam ser trabalhados na disciplina de
Análise Real para licenciaturas em Matemática, disse que a irracionalidade de e e π deveria
ser trabalhado. E apenas dois professores citaram a construção dos reais como conteúdo
importante.
A disciplina de Análise Real trabalha conteúdos inicialmente difı́ceis, o que exige uma
atenção redobrada do licenciando e uma capacidade de abstrair os conteúdos das disciplinas de
Cálculo e transformá-los em casos generalizados. Isso gera uma dificuldade para o licenciando
que muitas vezes não teve contato suficiente com demonstrações durante boa parte da sua
formação. A dificuldade dos licenciandos em entender os conceitos de Análise Real tem sido
discutida. Um exemplo é o trabalho de Moreira, Cury e Vianna (2005), citado acima, onde
alguns professores universitários consideram que seria importante que não se trabalhasse com
muito rigor os conteúdos dados às licenciaturas, limitando-os a questões que se relacionam
com assuntos do Ensino Básico.
O presente trabalho é direcionado ao licenciando em Matemática que cursa a disciplina
Análise Real. Não como substituto do livro texto da disciplina, mas como um material adicional
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ao seu estudo. O leitor perceberá que este trabalho não traz, no corpo do texto, o conteúdo
tradicionalmente apresentado nos livros, como as definições de limite, derivada e integral e
os tradicionais teoremas acerca destes conceitos. O que esta monografia faz é aplicar estes
conceitos e resultados a conteúdos estudados no Ensino Básico. Mais especificamente, este
trabalho usa os conteúdos normalmente estudados nos cursos de Análise Real para definir
objetos e demonstrar resultados relativos aos números reais conhecidos no Ensino Básico, que
não podem ser definidos ou demonstrados apenas com as ferramentas estudadas no próprio
Ensino Básico. Mais a frente, comentaremos as definições e resultados dos quais estamos
falando. O objetivo de se tratar este tema é mostrar ao licenciando em Matemática que
existe, e qual é, a relação entre o que é estudado por ele nas disciplinas de Análise Real
e o conteúdo que ele trabalhará junto a seus estudantes. Não é raro vermos licenciandos
em Matemática questionando o porquê de se estudar Análise Real. O licenciando não vê
ligação entre esta disciplina e sua prática profissional. Ainda, o presente trabalho pode ser útil
ao professor em atuação que, porventura, sinta a necessidade de entender algumas questões
acerca dos números reais.
É preciso enfatizar, que não é o objetivo deste texto ser um manual ou livro texto para
as aulas de matemática no Ensino Básico. É claro, as definições rigorosas e demonstrações
da Análise Real não são adequadas para este nı́vel de ensino. Tanto é, que no capı́tulo
6 fazemos breves sugestões de como apresentar os números reais ao estudante do Ensino
Básico. Na verdade, este trabalho pretende proporcionar ao professor de matemática um
sólido entendimento dos números reais e suas propriedades (o que passa pelos conteúdos
de Análise), entretanto, fazendo sugestões de como abordar este tema no Ensino Básico.
Mesmo que o professor não vá fazer construções rigorosas dos números reais, dar as definições
analı́ticas de π e e e demonstrar a irracionalidade destes dois no Ensino Básico, é importante
que ele conheça os fundamentos por detrás destas questões. Conhecendo estes fundamentos,
o professor não fica desprotegido e, assim, pode elaborar suas próprias explicações e linhas de
raciocı́nio que apresentará a seus estudantes.
Este trabalho é dividido em três partes. A primeira, composta apenas pelo primeiro
capı́tulo, fala sobre a dificuldade em ensinar números reais no Ensino Básico. Para isso,
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fazemos uma breve apresentação da existência dos conjuntos numéricos durante a história da
matemática até se chegar aos números reais, passando pela descoberta dos incomensuráveis
até chegar na construção dos reais por Dedekind1 . Na segunda parte, fazemos uma cons-
trução rigorosa do conjunto dos reais através das sequências de Cauchy2 , no segundo capı́tulo,
e demonstramos algumas propriedades importantes dos números reais, no terceiro capı́tulo.
Em seguida, apresentamos um breve histórico dos números π e e, além de demonstrar suas
irracionalidades, nos capı́tulos quatro e cinco respectivamente. Por fim, na terceira parte,
fazemos algumas breves sugestões de como apresentar os números reais no Ensino Básico, no
sexto capı́tulo.

1
Julius Wilhelm Richard Dedekind. ? Braunschweig, 6 de outubro de 1831, † Braunschweing, 12 de fevereiro
de 1916)
2
Augustin-Louis Cauchy. ? Paris, 21 de agosto de 1789, † Paris, 23 de maio de 1857
Capı́tulo 1

Números reais no Ensino Básico

Definir o conjunto dos números reais, R, no Ensino Básico é uma tarefa difı́cil. A origem
deste conjunto parte da existência do conjunto dos números racionais Q (que contém os
números inteiros Z que, por sua vez, contém os números naturais N) e do surgimento do
conjunto dos números irracionais I. Entretanto, a dificuldade não se encontra na quantidade
de conjuntos a serem construı́dos e ensinados, mas especificamente nos números irracionais.
Quando os números reais são apresentados pela primeira vez a um estudante, a grande
novidade para ele são os números irracionais. Normalmente, eles são apresentados como um
complemento necessário para a existência dos reais. Isto é, o conjunto dos números reais
consiste na união Q ∪ I. Apesar de essa informação ser verdadeira, reside aı́ um problema
grave: o novo conjunto, I, é apresentado ao estudante sem qualquer motivação. Os livros
costumam afirmar que os números irracionais são números reais que não são racionais. E que
os reais são a união dos racionais com os irracionais. E esse é um pensamento cı́clico.
A dificuldade em ensinar os números reais não é um tema inédito no meio acadêmico.
Há alguns trabalhos que lidam com essa questão. Como, por exemplo: (FERREIRA; MO-
REIRA; SOARES, 1999), que propõe uma nova abordagem sobre os conjuntos numéricos
fazendo um paralelo com a concepção dos licenciandos e a formação matemática na licenci-
atura; (POMMER, 2012) e (MOZER, 2013), que falam, principalmente, sobre a dificuldade
de aprendizagem e ensino dos números irracionais; e (GARCIA; SOARES; FRONZA, 2005),
que propõe uma aboragem dos números irracionais no nı́vel fundamental. Em geral, os livros
didáticos e os professores não se aprofundam no conceito de número irracional, apenas enun-

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ciam a sua existência e, então, passam a trabalhar com eles, fazendo com que o estudante se

acostume a utilizar este tipo de número sem entendê-lo de fato. Números tais como 2, π e e
vão surgindo nos exercı́cios; os estudantes executam operações com eles, porém não conhecem
sua verdadeira natureza. Isso não acontece pela falta de atenção dos autores ou pela incom-
petência dos professores, mas pela dificuldade em transformar um conteúdo tão profundo e
complexo em uma aula ilustrativa, criativa e realizável. Afinal, como ensinar cálculo de limites,
derivada e integral para estudantes do Ensino Básico?
Antes de tratarmos dos números irracionais, comentaremos rapidamente a ideia de o que
são e de como são apresentados no Ensino Básico os conjuntos N, Z e Q. Para saber mais
sobre a construção desses conjuntos, procure sobre a Teoria dos Conjuntos em (LIMA, 1976).
O entendimento do conjunto N baseia-se no princı́pio da contagem. Em diversos livros
didáticos, podemos observar a utilização da história das civilizações para mostrar ao estudante
o que levou a criação deste conjunto. A ideia de contagem é intuitiva e, na maioria das vezes,
bem recebida pelo estudante por este também utilizar, com frequência, os números naturais
fora do ambiente escolar.
Alguns autores utilizam o mesmo princı́pio, o da contagem, para desenvolverem o conjunto
dos números inteiros, Z. Contudo, é interessante que o professor fale em sala de aula sobre o
fato de o conjunto N ser fechado1 para as operações de adição e multiplicação, mas não para
a operação de subtração. Por exemplo, a operação 1 − 2 não está definida em N. Daı́ surge
a necessidade de ampliação deste conjunto para conjunto dos números inteiros. O universo
numérico começa a ser expandido e novamente, através da experiência própria, observa-se que
o estudante não tem dificuldade em aceitar a existência de números negativos quando são
dados exemplos de fora do ambiente escolar, como temperatura negativa e saldo de conta
bancária negativa, possibilitando a continuidade da aplicação do conteúdo.
A definição do conjunto Q é, usualmente, dada pela divisão entre inteiros, apresentada
a
em modo de fração ( com a, b ∈ Z e b 6= 0) e na forma decimal. Nesse momento, alguns
b
estudantes sentem um pouco de dificuldade. No entanto, os números racionais são trabalhados
com elementos numéricos que podemos chamar de “palpáveis”, por terem sido obtidos a partir
1
Dizer que o conjunto A é fechado em relação a uma operação significa dizer que, ao tomar dois elementos,
x1 ,x2 ∈ A, e aplicar a operação com estes dois elementos, resultará em um elemento x3 ∈ A.
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dos conjuntos anteriormente citados. Um exemplo muito utilizado na apresentação de Q é


a partição de uma barra de chocolate num exercı́cio como o seguinte: Seja uma barra de
chocolate que tenha marcações de divisão em oito pedaços iguais, como na figura abaixo.
Queremos dividir esta barra igualmente para quatro pessoas. Quanto de chocolate cada
pessoa irá receber? Solução: Repartindo o chocolate em 8 partes e dando 1 parte para
cada pessoa, ainda restarão 4 partes. Das partes restantes será possı́vel dar mais uma parte
2
para cada pessoa. Sendo assim, cada pessoa recebeu 2 partes de 8, ou seja da barra de
8
chocolate. Esses exemplos com materiais concretos são facilmente trabalhados por se tratarem
de números inteiros.

Figura 1.1: Barra de chocolate

As formas mais conhecidas de construção dos números Reais a partir dos números racionais
são via cortes de Dedekind e via sequências de Cauchy. No Capı́tulo 2, concentraremos nossa
atenção na construção dos reais via sequências de Cauchy, pois esta envolve o conteúdo
de Sequências, que é trabalhado diretamente em um curso de Análise Real. Entretanto,
cronologicamente, a proposta de Dedekind foi a primeira e, além disso, é mais intuitiva. Por
isso, apesar de não detalhá-la, a abordaremos brevemente.
Ao olharmos para a história da matemática, observamos diversas situações em que es-
tudiosos encontravam algo que contrariava o que acreditavam. A existência de segmentos
incomensuráveis é uma delas. Os pitagóricos2 , acreditavam que tudo pudesse ser explicado
pelos números inteiros e suas razões (racionais). Além disso, acreditavam que, dados dois seg-
mentos de reta, estes eram comensuráveis, ou seja, existia um terceiro segmento que pudesse
medir os dois iniciais. Isso significa que os dois segmentos iniciais eram múltiplos inteiros do
terceiro. Segue o exemplo abaixo:
De certa forma, a intuição os levou ao erro, pois com novas experimentações descobriram
2
Como se chamavam os seguidores da filosofia de Pitágoras. ? Samos ≈ 569 a.C. , † Metaponto, ≈ 475
a.C.
19

A B C D E F

A B C D

Figura 1.2: Segmentos comensuráveis

tamanhos de objetos que não eram possı́veis de serem medidos com a unidade criada e, mesmo
que fossem criadas novas medidas para a unidade através da divisão da unidade inicialmente
criada, por menor que fosse o resultado, não seria possı́vel a medição. Um exemplo disso é
a diagonal do quadrado, que consideraremos mais à frente na proposta que será feita para a
apresentação dos números irracionais. Essas medidas que não se pode medir são chamadas
incomensuráveis.
A incomensurabilidade de alguns segmentos mostrou aos que nem tudo podia ser explicado
pelo que hoje conhecemos como racionais. Os racionais seriam, então, insuficientes para medir
comprimentos. Para que possamos medir qualquer tamanho, precisamos completar o conjunto
dos racionais e, se assim for feito, teremos como resultado um novo conjunto, o dos números
reais R.
Até o século V a.C., a matemática tratava apenas de problemas concretos. Para resolvê-
los, utilizava-se o raciocı́nio intuitivo. Entretanto, a descoberta dos incomensuráveis trouxe
questões de maior complexidade, o que obrigou os matemáticos a substituı́rem essa forma de
pensar por uma mais abstrata e objetiva; as demonstrações tornaram-se necessárias. Apesar
da nova conjuntura, foi a intuição que auxiliou na construção do conceito de continuidade.
Não é difı́cil admitir intuitivamente que uma reta (ou segmento) seja contı́nua. Se olhar-
mos para um pedaço de linha, por exemplo, não veremos nenhuma interrupção entre os dois
extremos. E era essa a forma com que se lidava com a ideia de continuidade. A situação em
relação aos números é análoga: bastava conhecer sua existência, mas seu conceito carecia de
definição.
O matemático alemão Richard Dedekind, consciente dessa lacuna, foi o primeiro a caracte-
rizar a continuidade da reta. Ao escolher um número racional qualquer, como exemplo escolhe-
mos o número 1, este número divide os racionais em duas partes. Identificamos que todos os
20

números à esquerda (ou, menores) de 1 continuarão à esquerda de todos os números à direita


(ou, maiores) que 1. Isto é, todo número racional divide os racionais em duas partes de forma
que todo número de uma parte esta à esquerda de todos os números da outra parte e todo
número da outra parte esta à direita de todos os números da primeira parte. No entanto, nos
racionais, a recı́proca não é verdadeira. Por exemplo, sejam A = {x ∈ Q; x < 0 ou x2 < 2}
e B = {x ∈ Q; x > 0 e x2 > 2}. Note que A ∪ B = Q e a < b para todos a ∈ A e b ∈ B,
mas não existe c ∈ Q tal que a ≤ c ≤ b para todos a ∈ A e b ∈ B. Este tipo de divisão de
um conjunto é chamada de corte. Esta é a propriedade da reta que falta aos racionais: todo
corte na reta passa por um ponto. Isto significa o fato de a reta ser contı́nua. Dedekind usou
sua noção de corte para obter uma construção dos números irracionais a partir dos números
racionais. Assim, os irracionais foram elevados à condição de números concretos, prescindindo
da intuição para afirmação de sua existência.
Como dissemos, a seguir nos concentraremos na construção via sequências de Cauchy.
Capı́tulo 2

Construção dos números reais

Quando trabalhamos com os números reais, costumamos utilizar aproximações racionais


para representar os números irracionais. Um exemplo é o número π, cujos valores mais utiliza-
dos são π ≈ 3,14 ou π ≈ 3. Essas aproximações são úteis para o contexto do Ensino Básico,
apesar de estarem distantes de seu valor verdadeiro.
Já são conhecidos mais de dois quatrilhões de dı́gitos decimais de π e, por ser irracional,
o número π possui infinitos dı́gitos decimais não periódicos. Portanto, se desejarmos ter
uma aproximação melhor para π, devemos considerar um número maior de casas decimais.
Podemos utilizar π ≈ 3,14159265 com 8 casas decimais, por exemplo, ou ainda um valor
maior. À vista disso, é possı́vel formar uma sequência de números racionais que se aproximam
de π. Em Kemp(2014), encontramos alguns exemplos de tais sequências. O primeiro é: 3;
3,14; 3,14159265 . . .. Outra sequência pode ser formada por frações que aproximam π:

22 333 355 52163 104348 1043835 245850922


3; ; ; ; ; ; ; ....
7 106 113 16604 33215 332263 78256779

Uma terceira pode ser apresentada da seguinte forma:

1; 0,35; 3,14; 90; 3,1416; 3,14159; 3,1415926; 3,141592653589 . . . .

Como Kemp observa, o que acontece no inı́cio da sequência não interfere na aproximação do
número π, mas sim o que acontece em sua cauda. Além disso, nossa intuição nos faz julgar

21
22

que existem diversas sequências que levam para o mesmo valor. E, de fato, devemos tomar
cuidado ao construir os números reais através de sequência de números racionais. Para tanto,
definiremos cada número real como um determinado tipo de classe de sequências de números
racionais, todas com o mesmo comportamento de cauda.
Uma sequência de números racionais é uma função x : N → Q para a qual denotamos o
valor de x em n por xn . Usaremos com frequência a notação (xn )n∈N para representar uma
sequência, e diremos que xn é o termo de ordem n.

Definição 2.1. Uma sequência (xn )n∈N é dita de Cauchy se para todo ε > 0, existe N ∈ N
tal que n, m ≥ N implica que |xn − xm | < ε.

Definição 2.2. Seja R o conjunto de todas as sequências de Cauchy de números racionais.


Dados (xn )n∈N , (yn )n∈N ∈ R, dizemos que (xn )n∈N ∼ (yn )n∈N , isto é, que (xn )n∈N é equiva-
lente a (yn )n∈N pela relação ∼ se, e só se, lim |xn − yn | = 0.
n→∞

Segue a proposição que prova que a relação definida acima é uma relação de equivalência.

Proposição 2.3. A relação ∼ é uma relação de equivalência em R.

Demonstração. Para ser relação de equivalência, ∼ deve satisfazer as propriedades: (i) refle-
xiva, (ii) simétrica e (iii) transitiva. Sejam (xn )n∈N , (yn )n∈N , (zn )n∈N ∈ R. De fato:

(i) (xn )n∈N ∼ (xn )n∈N , pois lim |xn − xn | = 0.


n→∞

(ii) (xn )n∈N ∼ (yn )n∈N ⇔ lim |xn − yn | = 0 ⇔ lim |yn − xn | = 0 ⇔ (yn )n∈N ∼ (xn )n∈N .
n→∞ n→∞

(iii) (xn )n∈N ∼ (yn )n∈N ⇒ lim |xn − yn | = 0 e (yn )n∈N ∼ (zn )n∈N ⇒ lim |yn − zn | = 0.
n→∞ n→∞

Mas, 0 ≤ |xn − zn | = |xn − yn + yn − zn | ≤ |xn − yn | + |yn − zn |.

Como lim |xn − yn | = 0 e lim |yn − zn | = 0, pelo Teorema do Sanduı́che (LIMA,


n→∞ n→∞
1
2006, Teorema 2, p. 61) , lim |xn − zn | = 0 donde (xn )n∈N ∼ (zn )n∈N .
n→∞

1
Sejam f, g, h : X → R, a ∈ X 0 e lim f (x) = lim g(x) = L. Se f (x) ≤ h(x) ≤ g(x) para todo
x→a x→a
x ∈ X − {a} então lim h(x) = L.
x→a
23

Para cada (xn )n∈N ∈ R, denotaremos a classe de equivalência de (xn )n∈N por [xn ], isto é,

[xn ] := (yn )n∈N ∈ R; (yn )n∈N ∼ (xn )n∈N . O que significa que [xn ] é o conjunto de todas
as sequências que são equivalentes a (xn )n∈N . O conjunto quociente de R com respeito a ∼

será denotado por R/∼, isto é, R/∼:= [xn ]; (xn )n∈N ∈ R . Em outras palavras, R/∼ é o
conjunto de todas as classes de equivalência de elementos de R.
Agora, definimos em R/ ∼ operações que estenderão as operações aritméticas entre
números racionais. O leitor pode verificar que se (xn )n∈N e (yn )n∈N são sequências de Cauchy,
então também o são (xn + yn )n∈N e (xn yn )n∈N .
Definimos aqui, as operações de adição e multiplicação.

Definição 2.4. Dados [xn ], [yn ] ∈ R/∼ quaisquer, definimos:

a) (Adição) [xn ] ⊕ [yn ] := [xn + yn ] e

b) (Multiplicação) [xn ] ⊗ [yn ] := [xn yn ].

Aqui, provamos que as operações estão bem definidas.

Proposição 2.5. As operações ⊕ e ⊗ estão bem definidas. Isto é, [xn ] ⊕ [yn ] e [xn ] ⊗ [yn ]
independem da escolha dos representantes das classes [xn ] e [yn ].

Demonstração. Sejam [xn ], [yn ] ∈ R/∼ e (zn )n∈N ∈ [xn ], (wn )n∈N ∈ [yn ].
Como (xn )n∈N ∼ (zn )n∈N e (yn )n∈N ∼ (wn )n∈N , temos que lim |xn − zn | = 0 e lim |yn −
n→∞ n→∞

wn | = 0. Ainda,

0 ≤ |(xn + yn ) − (zn + wn )| = |xn − zn + yn − wn | ≤ |xn − zn | + |yn − wn |.

Pelo Teorema do Sanduı́che, lim |(xn +yn )−(zn +wn )| = 0. E daı́ (xn +yn )n∈N ∼ (zn +wn )n∈N
n→∞

donde [xn + yn ] = [zn + wn ]. Por isso, a operação ⊕ está bem definida.


Além disso, temos que

|xn yn − zn wn | = |xn yn − xn wn + xn wn − zn wn |
= |xn (yn − wn ) + wn (xn − zn )|
≤ |xn ||yn − wn | + |wn ||xn − zn |.
24

Como (xn )n∈N e (wn )n∈N são sequências de Cauchy de números racionais, sabemos que
são limitadas (LIMA, 1976, Lema 1, p. 126)2 e, assim, existem c, d ∈ Q com c > 0 e d > 0
tais que |xn | ≤ c, |wn | ≤ d para todo n ∈ N. Daı́,

|xn yn − zn wn | ≤ |xn ||yn − wn | + |wn ||xn − zn | ≤ c|yn − wn | + d|xn − zn |.

Como lim |xn − zn | = 0 e lim |yn − wn | = 0, pelo Teorema do Sanduı́che, lim |xn yn −
n→∞ n→∞ n→∞

zn wn | = 0. E daı́ (xn yn )n∈N ∼ (zn wn )n∈N donde [xn yn ] = [zn wn ].


Portanto a operação ⊗ está bem definida.

Definimos, agora, uma relação de ordem em R/∼.


Aqui, definimos a relação de ordem em R/∼.

Definição 2.6. Sejam [xn ], [yn ] ∈ R/∼ arbitrários. Dizemos que [xn ] ≺ [yn ] se, e somente
se, existe d ∈ Q, d > 0, e n0 ∈ N tais que yn − xn > d para todo n ≥ n0 . Dizemos que
[xn ]  [yn ] se, e somente se, [xn ] ≺ [yn ] ou [xn ] = [yn ].

Proposição 2.7. A relação  está bem definida.

Demonstração. Sejam [xn ], [yn ] ∈ R/ ∼ e (zn )n∈N ∈ [xn ], (wn )n∈N ∈ [yn ] e suponha que
[xn ]  [yn ]. Queremos mostrar que [zn ]  [wn ]. De fato, por hipótese, ou [xn ] = [yn ] ou
[xn ] ≺ [yn ].

i) Se [xn ] = [yn ], então [zn ] = [xn ] = [yn ] = [wn ] donde [zn ]  [wn ].

ii) Se [xn ] ≺ [yn ], então existem d ∈ Q, d > 0, e n1 ∈ N tais que tais que d < yn − xn para
todo n ≥ n1 . Como (xn )n∈N ∼ (zn )n∈N e (yn )n∈N ∼ (wn )n∈N , temos que lim |xn −
n→∞
d d
zn | = 0 e lim |yn − wn | = 0. Daı́, existem n2 , n3 ∈ N tais que − < zn − xn < para
n→∞ 4 4
d d
todo n ≥ n2 e − < yn − wn < para todo n ≥ n3 . Tomando n0 = max{n1 , n2 , n3 },
4 4
d d d d d d
temos que − − < zn −xn +wn −yn < + donde − < (yn −xn )−(wn −zn ) <
4 4 4 4 2 2
d d d
para todo n ≥ n0 . Logo, d < yn − xn < wn − zn + donde = d − < wn − zn
2 2 2
para todo n ≥ n0 . Portanto, [zn ] ≺ [wn ] donde [zn ]  [wn ].
2
Toda sequência de Cauchy é limitada.
25

Proposição 2.8. A relação  é uma relação de ordem sobre R/∼.

Demonstração. Para ser relação de ordem,  deve satisfazer as propriedades: (i) reflexiva,
(ii) anti-simétrica e (iii) transitiva. De fato, sejam [xn ], [yn ], [zn ] ∈ R/ ∼. Claramente (i)
[xn ]  [xn ] e (ii) se [xn ]  [yn ] e [yn ]  [xn ], então [xn ] = [yn ]. Agora vejamos que 
satisfaz (iii). Suponha que [xn ]  [yn ] e [yn ]  [zn ]. Se [xn ] = [yn ] ou [yn ] = [zn ], então o
resultado é imediato. Caso contrário, como [xn ] ≺ [yn ], existem d1 ∈ Q, d1 > 0, e n1 ∈ N
tais que yn − xn > d1 para todo n ≥ n1 . E, como [yn ] ≺ [zn ], existem d2 ∈ Q, d2 > 0, e
n2 ∈ N tais que zn − yn > d2 para todo n ≥ n2 . Tomando n0 = max{n1 , n2 }, temos que
yn − xn + zn − yn > d1 + d2 donde zn − xn > d1 + d2 para todo n ≥ n0 . Como d1 + d2 ∈ Q
e d1 + d2 > 0, temos que [xn ] ≺ [zn ].

Lema 2.9. Se (xn )n∈N ∈ R e não converge para zero, e ainda, xn 6= 0 para todo n ∈ N,
 
1
então ∈ R.
xn n∈N

Os dois lemas seguintes são utilizados na demonstração da Proposição 2.11.

Demonstração. Seja ε ∈ Q, ε > 0. Primeiro observamos que


1 1 xn − xm |xn − xm |
xm − xn = xm xn = |xm ||xn |

para todos n, m ∈ N. Como xn 6= 0 para todo n ∈ N e (xn )n∈N não converge a zero, temos
1 1
que existe k ∈ Q, k > 0, tal que |xn | > donde < k para todo n ∈ N. Por outro
k |xn |
ε
lado, existe n0 ∈ N de modo que |xn − xm | < 2 para todos n, m ≥ n0 . Assim, para todos
k
n, m ≥ n0 temos que

1 1 |xn − xm | ε 2

xm xn = |xm ||xn | < k 2 k = ε.

 
1
Portanto é uma sequência de Cauchy de números racionais.
xn n∈N

Lema 2.10. Se (xn )n∈N ∈ R e não converge a zero, então (xn )n∈N é equivalente a uma
sequência de Cauchy (yn )n∈N de termos todos diferentes de zero.
26

Demonstração. Como (xn )n∈N não converge a zero, existe ε ∈ Q, ε > 0, tal que, para todo
l ∈ N, existe nl ≥ l tal que |xnl | ≥ ε. Denotando, para cada l ∈ N, yl := xnl , temos que
(yn )n∈N é uma subsequência de (xn )n∈N tal que yn 6= 0 para todo n ∈ N. Como (yn )n∈N
é uma subsequência de (xn )n∈N , temos que (yn )n∈N é de Cauchy. Além disso, dado ε ∈ Q,
ε > 0, como (xn )n∈N é de Cauchy, existe n0 ∈ N tal que |yl − xl | = |xnl − xl | < ε para todo
l ≥ n0 . Logo lim |yn − xn | = 0 donde (yn )n∈N é equivalente a (xn )n∈N .
n→∞

Proposição 2.11. O espaço quociente R/∼ é um corpo ordenado. Isto é, denote por [0] a
classe da sequência constante igual a 0 e por [1] a classe da sequência constante igual a 1. Se
x, y, z ∈ R/∼, então segue que:

a) (Comutatividade da adição) x ⊕ y = y ⊕ x.

b) (Associatividade da adição) (x ⊕ y) ⊕ z = x ⊕ (y ⊕ z).

c) (Elemento neutro da adição) x ⊕ [0] = x.

d) (Elemento oposto da adição) Existe x ∈ R/∼ tal que x ⊕ ( x) = [0].

e) (Comutatividade da multiplicação) x ⊗ y = y ⊗ x.

f) (Associatividade da multiplicação) (x ⊗ y) ⊗ z = x ⊗ (y ⊗ z).

g) (Elemento neutro da multiplicação) x ⊗ [1] = x.

h) (Elemento inverso da multiplicação) Se x 6= [0], então existe x


-1
∈ R/∼ tal que x ⊗ x
-1
=
[1].

i) (Distributividade) x ⊗ (y ⊕ z) = (x ⊗ y) ⊕ (x ⊗ z).

j) (Monotonicidade da adição) Se x  y, então x ⊕ z  y ⊕ z.

k) (Monotonicidade da multiplicação) Se x  y e [0]  z, então x ⊗ z  y ⊗ z.

Demonstração. Sejam x, y, z ∈ R/∼ quaisquer. Digamos x = [xn ], y = [yn ] e z = [zn ].

a) x ⊕ y = [xn ] ⊕ [yn ] = [xn + yn ] = [yn + xn ] = [yn ] ⊕ [xn ] = y ⊕ x.


27

b) (x ⊕ y) ⊕ z = ([xn ] ⊕ [yn ]) ⊕ [zn ] = [xn + yn ] ⊕ [zn ] = [(xn + yn ) + zn ] = [xn + (yn + zn )] =


[xn ] ⊕ [yn + zn ] = [xn ] ⊕ ([yn ] ⊕ [zn ]) = x ⊕ (y ⊕ z).

c) x ⊕ [0] = [xn ] ⊕ [0] = [xn + 0] = [xn ] = x.

d) Note que (−xn )n∈N é uma sequência de Cauchy e defina x := [−xn ]. Daı́, temos que
x ∈ R/∼. Além disso, x ⊕ ( x) = [xn ] ⊕ [−xn ] = [xn + (−xn )] = [0].

e) x ⊗ y = [xn ] ⊗ [yn ] = [xn yn ] = [yn xn ] = [yn ] ⊗ [xn ] = y ⊗ x.

f) (x⊗y)⊗z = ([xn ]⊗[yn ])⊗[zn ] = [xn yn ]⊗[zn ] = [(xn yn )zn ] = [xn (yn zn )] = [xn ]⊗[yn zn ] =
[xn ] ⊗ ([yn ] ⊗ [zn ]) = x ⊗ (y ⊗ z).

g) x ⊗ [1] = [xn ] ⊗ [1] = [xn × 1] = [xn ] = x.

h) De acordo com Lema 2.10 temos a garantia de que a sequência (xn )n∈N representativa de
[xn ] pode ser tomada de modo que todos os seus termos sejam diferentes de zero. Pelo
   
1
-1 1
Lema 2.9, é também uma sequência de Cauchy. Definindo x := temos
xn n∈N     x n

-1 -1 1 1
que x ∈ R/∼ e x ⊗ x = [xn ] ⊗ = xn × = [1].
xn xn

i) x ⊗ (y ⊕ z) = [xn ] ⊗ ([yn ] ⊕ [zn ]) = [xn ] ⊗ [yn + zn ] = [xn (yn + zn )] = [(xn yn ) + (xn zn )] =


[xn yn ] ⊕ [xn zn ] = ([xn ] ⊗ [yn ]) ⊕ ([xn ] ⊗ [zn ]) = (x ⊗ y) ⊕ (x ⊗ z).

j) Suponha que x  y, isto é, [xn ]  [yn ]. Temos que ou [xn ] = [yn ] ou [xn ] ≺ [yn ].
Se [xn ] = [yn ], então [xn ] ⊕ [zn ] = [yn ] ⊕ [zn ] donde [xn ] ⊕ [zn ]  [yn ] ⊕ [zn ], isto é,
x ⊕ z  y ⊕ z. Se [xn ] ≺ [yn ] então existem d ∈ Q, d > 0, e n1 ∈ N tais que yn − xn > d
para todo n ≥ n1 . Como

yn − xn > d ⇒ yn − xn + zn − zn > d ⇒ (yn + zn ) − (xn + zn ) > d,

temos que (yn + zn ) − (xn + zn ) > d para todo n ≥ n1 donde [xn + zn ] ≺ [yn + zn ]. E,
como [xn + zn ] = [xn ] ⊕ [zn ] e [yn + zn ] = [yn ] ⊕ [zn ], segue que [xn ] ⊕ [zn ] ≺ [yn ] ⊕ [zn ]
donde [xn ] ⊕ [zn ]  [yn ] ⊕ [zn ], isto é, x ⊕ z  y ⊕ z.
28

k) Suponha que x  y e 0  z, isto é, [xn ]  [yn ] e 0  [zn ]. Temos que ou [xn ] = [yn ] ou
[xn ] ≺ [yn ]. Se [xn ] = [yn ], então [xn ] ⊗ [zn ] = [yn ] ⊗ [zn ] donde [xn ] ⊗ [zn ]  [yn ] ⊗ [zn ],
isto é, x ⊗ z  y ⊗ z. Se [xn ] ≺ [yn ] então existem d1 ∈ Q, d1 > 0, e n1 ∈ N, tais
que yn − xn > d para todo n ≥ n1 . Temos também que 0  [zn ] donde ou 0 = [zn ] ou
0 ≺ [zn ]. Se 0 = [zn ], então [xn ] ⊗ [zn ] = [0] = [yn ] ⊗ [zn ] donde [xn ] ⊗ [zn ]  [yn ] ⊗ [zn ],
isto é, x ⊗ z  y ⊗ z. Se 0 ≺ [zn ], então existem d2 ∈ Q, d2 > 0, e n2 ∈ N tais que
zn > d2 para todo n ≥ n2 . Seja n0 = max{n1 , n2 }. Temos que yn zn − xn zn > d1 zn e
d1 zn > d1 d2 para todo n ≥ n0 . Das equações acima, temos que yn zn −xn zn > d1 zn > d1 d2
donde yn zn − xn zn > d2 d1 para todo n ≥ n0 . Como d2 d1 ∈ Q e d2 d1 > 0, segue que
[xn zn ] ≺ [yn zn ]. E, como [xn zn ] = [xn ] ⊗ [zn ] e [yn + zn ] = [yn ] ⊗ [zn ], segue que
[xn ] ⊗ [zn ] ≺ [yn ] ⊗ [zn ] donde [xn ] ⊗ [zn ]  [yn ] ⊗ [zn ], isto é, x ⊗ z  y ⊗ z.

A observação abaixo mostra que, num certo sentido, Q ⊂ R/∼.


Observação 2.12. Denote Q := [xn ] ∈ R/ ∼; (xn )n∈N é convergente em Q} e defina

f : Q → Q, onde f [xn ] = lim xn . Note que f está bem definida, pois se [xn ] ∈ Q e
n→∞

(zn )n∈N ∈ [xn ], então (zn )n∈N é convergente e lim zn = lim xn . Além disso, f é injetiva,
n→∞ n→∞

pois se [xn ], [yn ] ∈ Q e lim xn = lim yn , então (xn )n∈N ∼ (yn )n∈N donde [xn ] = [yn ].
n→∞ n→∞

Ainda, f é sobrejetiva, pois se x ∈ Q, denotando por [x] a classe da sequência constante igual
x, temos que [x] ∈ Q e f ([x]) = x. Note, também, que, pelas definições 2.4 e 2.6, temos que
f ([xn ]) ≤ f ([yn ]) se, e só se, [xn ]  [yn ] e, além disso, f ([xn ] ⊕ [yn ]) = f ([xn ]) + f ([yn ])
e f ([xn ] ⊗ [yn ]) = f ([xn ]) × f ([yn ]) (LIMA, 1976, Teorema 7, p. 200)3 . Portanto, f é um
isomorfismo de corpos ordenados. Assim, Q é uma “cópia” de Q em R/∼. Neste sentido,
podemos dizer que Q ⊂ R/∼ e substituiremos os sı́mbolos ⊕, ⊗, ,
-1
≺ e  respectivamente
−1
por, +, ×, −, , < e ≤.
3
Sejam X ⊂ R, a ∈ X 0 e f, g : X → R. Se lim f (x) = L e lim g(x) = M , então lim [f (x) ± g(x)] =
x→a  x→a
 x→a
f (x) L
L ± M e lim [f (x) · g(x) = L · M . Se M 6= 0 então lim = . Se lim f (x) = 0 e existe uma
x→a x→a g(x) M x→a
constante A tal que |g(x)| ≤ A para todo x ∈ X − a então lim [f (x) · g(x)] = 0, mesmo que não exista
x→a
lim g(x).
x→a
29

Todos os lemas a seguir são necessários para provar o Teorema 2.20, isto é, para provar
que R/∼ possui a propriedade do supremo, tornando-o (um corpo ordenado) completo.

Lema 2.13. Sejam (xn )n∈N ∈ R e c ∈ Q. Se existe n0 ∈ N tal que xn < c para todo n ≥ n0 ,
então [xn ] ≤ c. Mais precisamente, se existe n0 ∈ N tal que xn < c para todo n ≥ n0 , então
[xn ] ≤ [cn ], onde (cn )n∈N ∈ R e cn = c para todo n ∈ N.

Demonstração. Sejam (xn )n∈N ∈ R, c ∈ Q e n0 ∈ N tais que xn < c para todo n ≥ n0 .


Se (xn )n∈N converge para c, então [xn ] = c. Se (xn )n∈N não converge para c, então existem
d
d ∈ Q, d > 0, e n1 ∈ N, n1 ≥ n0 , tais que |xn − c| ≥ d > para todo n ≥ n1 . Daı́, sendo
2
d
(cn )n∈N ∈ R tal que cn = c para todo n ∈ N, temos que cn − xn > para todo n ≥ n1
2
donde, pela Definição 2.6, [xn ] < [cn ]. Isto é, [xn ] < c.

Lema 2.14. Toda sequência (xn )n∈N ∈ R converge em R/∼ para [xn ]. Mais precisamente,
seja (xn )n∈N ∈ R e denote x := [xn ] ∈ R/∼. Como (xn )n∈N ⊂ Q, pela Observação 2.12,
(xn )n∈N ⊂ R/∼. Segue que lim xn = x em R/∼.
n→∞

Demonstração. Sejam (xn )n∈N ∈ R e x := [xn ]. Seja ε ∈ Q, ε > 0. Consideremos ainda


r > 0 um número racional tal que r < ε. Como (xn )n∈N ∈ R existe n0 ∈ N tal que, para
quaisquer m, n ∈ N com m, n ≥ n0 tem-se |xn − xm | < r donde −r + xn < xm < r + xn .
Assim, para cada m ≥ n0 , pelo Lema 2.13, [−r + xn ] ≤ xm ≤ [r + xn ] donde [−r] + [xn ] ≤
xm ≤ [r] + [xn ]. Logo −r + x ≤ xm ≤ r + x donde |xm − x| ≤ r para todo m ≥ n0 . Assim,
|xm − x| < ε e, portanto (xn )n∈N converge em R/∼ para [xn ].

O momento chave nesta jornada de demonstrar que R/ ∼ é completo é o Lema 2.14.


A princı́pio, a prova deste lema pode causar estranheza, pois (xn )n∈N é uma sequência de
elementos de Q e, ao mesmo tempo, converge para um elemento de R/∼, que são conjuntos
de naturezas diferentes. No entanto, vimos na Observação 2.12 que R/∼ contém uma cópia
de Q. Portanto, podemos dizer que (xn )n∈N converge para um elemento de R/∼.

Lema 2.15. Qualquer que seja x ∈ R/∼, existe um número natural n tal que x < n.
30

Demonstração. Seja x ∈ R/ ∼, digamos x = [xn ]. Como toda sequência de Cauchy é


limitada, temos que (xn )n∈N é limitada. Daı́ existe k ∈ Q com k > 0 tal que |xn | ≤ k donde
−k ≤ xn ≤ k para todo n ∈ N. Seja (yn )n∈N a sequência de Cauchy de termos todos iguais a
k. Então, para todo n ∈ N, temos 0 ≤ yn −xn . donde 0 ≤ lim yn −xn (LIMA, 1976, Teorema
n→∞
4
4, p. 111) . Além disso, pela Observação 2.12, podemos olhar para (xn )n∈N e (yn )n∈N como
sequências em R/∼, isto é, (xn )n∈N , (yn )n∈N ⊂ R/∼. Por isso e pelo Lema 2.14, temos que
lim xn = x e lim yn = k. Daı́, 0 ≤ lim yn − xn = lim yn − lim xn = k − x. Assim,
n→∞ n→∞ n→∞ n→∞ n→∞

x ≤ k. Como k é um número racional, existe um número natural n tal que k ≤ n donde


x ≤ n.

Lema 2.16 (Propriedade arquimediana). Dados x, y ∈ R/∼, sendo x > 0, existe um número
natural p tal que y < px.

Demonstração. Sejam x, y ∈ R/∼, sendo x > 0. Suponha que px ≤ y para todo p ∈ N.


Então, pela compatibilidade da multiplicação com a relação de ordem,

px ≤ y ⇒ pxx−1 ≤ yx−1 ⇒ p ≤ yx−1

para todo p ∈ N. Mas isso contradiz o Lema 2.15. Portanto, existe um número natural p tal
que y < px.

Lema 2.17 (Densidade). Sejam x, y ∈ R/∼ tais que x < y. Existe um número racional r tal
que x < r < y.

Demonstração. Sejam x, y ∈ R/ ∼ tais que x < y, digamos x = [xn ] e y = [yn ]. Se


x < 0 < y, então basta tomarmos r = 0. Vejamos o caso 0 ≤ x < y, o caso x < y ≤ 0 é
   
y−x y n − xn y−x y n − xn
análogo. Temos que = . Como x < y, 6= 0 donde
2 2 2 2 n∈N
não converge para zero. Daı́, existem subsequências (xnk )k∈N ⊂ (xn )n∈N e (ynk )k∈N ⊂ (yn )n∈N
yn − xnk y−x
tais k > h para algum h ∈ Q, h > 0. Logo ≥ h. Além disso, como h > 0,
2 2
pelo Lema 2.16, existe t ∈ N tal que y < th. Disso e de x < y, obtemos x < th. Seja
A := {k ∈ N; x < kh}. Note que A 6= ∅, pois t ∈ A. Pelo Princı́pio da Boa Ordem (LIMA,
4
Toda sequência monótona limitada é convergente
31

1976, Teorema 1, p. 39)5 , A possui mı́nimo. Denotemos p = min A e r := ph. Se p = 1,


então x < h = r e

1
r = h = 0 + h ≤ x + (y − x) < x + (y − x) = y
2

donde x < r < y. Se p > 1, então p − 1 ∈ N e, portanto,

1
r = (p − 1)h + h ≤ x + (y − x) < x + (y − x) = y,
2

donde x < r < y.

Lema 2.18. Se (xn )n∈N é uma sequência monótona e limitada de números racionais, então
(xn )n∈N ∈ R.

Demonstração. Consideremos que (xn )n∈N seja monótona não-decrescente. Como (xn )n∈N é
limitada superiormente, então existe a ∈ Q tal que xn < a, para todo n ∈ N. Assim,

x1 ≤ x2 ≤ . . . ≤ xn ≤ . . . < a.

Suponhamos, por absurdo, que (xn )n∈N não pertença a R, isto significa que, existe ε ∈ Q,
ε > 0, tal que, qualquer que seja n0 ∈ N, existem dois ı́ndices r e s, podemos supor r < s
com r > n0 e s > n0 tais que xs − xr ≥ ε. Então, para tal ε, podemos determinar números
naturais, r1 e s1 , r2 e s2 , . . . ri e si , com ri < si , i ∈ N, tais que si ≤ ri+1 . Assim,

xs1 ≥ xr1 + ε,

xs2 ≥ xr2 + ε ≥ xs1 + ε ≥ xr1 + ε + ε = xr1 + 2ε,

..
.

xsl ≥ xr1 + lε

para todo l ∈ N. Tendo em vista a propriedade arquimediana, Lema 2.16, podemos tomar
5
Todo subconjunto não-vazio A ⊂ N possui um elemento mı́nimo.
32

k ∈ N de modo que, kε > a − xr1 . Então,

xsk ≥ xr1 + kε > xr1 + a − xr1 = a.

Deste modo existe pelo menos um elemento de (xn )n∈N que é maior que a, isto contradiz o
fato de que xn < a para todo n ∈ N. Portanto (xn )n∈N ∈ R.
As demonstrações para os outros casos possı́veis de sequências monótonas são análogas.

Lema 2.19. Sejam (xn )n∈N ,(yn )n∈N ∈ R. Se para cada ε ∈ Q, ε > 0, existe n0 ∈ N tal que
|xn − yn | < ε para todo n ≥ n0 , então lim xn = lim yn .
n→∞ n→∞

Demonstração. Sejam (xn )n∈N ,(yn )n∈N ∈ R e ε ∈ Q, ε > 0, arbitrário. Por hipótese, existe
ε
n0 ∈ N tal que |xn − yn | < para todo n ≥ n0 . Pelo Lema 2.14, (xn )n∈N e (yn )n∈N
3
convergem, respectivamente, para [xn ] e [yn ]. Denotando x := [xn ] e y := [yn ], temos que
ε
lim xn = x e lim yn = y. Logo, existem n1 ∈ N e n2 ∈ N tais que |xn − x| < para todo
n→∞ n→∞ 3
ε
n ≥ n1 e |yn − y| < para todo n ≥ n2 . Assim
3

ε ε ε
|x − y| = |x − xn + xn − yn + yn − y| ≤ |x − xn | + |xn − yn | + |yn − y| < + + =ε
3 3 3

para todo n ≥ max{n0 , n1 , n2 }. Isto é, |x − y| < ε para todo ε ∈ Q, ε > 0.


Se ocorresse x 6= y, terı́amos 0 < |x − y| donde, pelo Lema 2.17, existiria ε ∈ Q tal que
0 < ε < |x − y|. Daı́, |x − y| < ε < |x − y|. O que é um absurdo. Portanto, x = y.

Teorema 2.20. R/∼ é um corpo ordenado completo. Isto é, se A ⊂ R/∼ é não vazio e
limitado superiormente, então A possui supremo em R/∼.

Demonstração. Seja A ⊂ R/∼ não vazio e limitado superiormente e consideremos u uma


cota superior de A. Pelo Lema 2.15, existe x1 ∈ Q tal que u < x1 donde x1 é cota superior
de A. Seja v ∈ R/∼ tal que v não é cota superior de A. Pelo Lema 2.17, existe y1 ∈ Q tal
que y1 < v donde y1 não é cota superior de A. Observe que y1 < x1 , pois y1 < v < x1 .
x1 + y 1
Tomemos x2 ∈ R/∼ da seguinte forma: se é cota superior de A, então x2 :=
2
x1 + y 1 x1 + y 1
, mas se não é cota superior de A, então x2 := x1 . E tomemos y2 ∈ R/∼
2 2
33

x1 + y1 x1 + y 1
da seguinte forma: se x2 = então, y2 := y1 , mas se x2 = x1 então, y2 := .
2 2
x1 − y 1
Observe que x2 − y2 = . Generalizando, para cada n ∈ N, tomamos indutivamente
2
xn + y n xn + y n
xn+1 ∈ R/∼ da seguinte forma: se é cota superior de A, então xn+1 := ,
2 2
xn + y n
mas se não é cota superior de A, então xn+1 := xn . E, para cada n ∈ N, tomamos
2
xn + yn
yn+1 ∈ R/∼ da seguinte forma: se xn+1 = então, yn+1 := yn , mas se xn+1 = xn
2
xn + y n
então, yn+1 := .
2
Observe que construı́mos sequências (xn )n∈N , (yn )n∈N ⊂ Q monótonas e limitadas. Pelo
xn − yn
Lema 2.18, (xn )n∈N , (yn )n∈N ∈ R. Temos, ainda, que xn+1 −yn+1 = donde xn −yn =
2
x1 − y 1
para todo n ∈ N. Dado ε ∈ Q, ε > 0, pelo Lema 2.16, existe p ∈ N tal que
2n−1
x1 − y 1
x1 − y1 < pε. Tomando n0 ∈ N tal que 2n0 −2 > p, temos que n0 −2 < ε. Daı́,
2

x1 − y 1 x1 − y 1
xn − y n = n−1
< n0 −2 < ε
2 2

x1 − y1
para todo n ≥ n0 . Além disso, temos que xn − yn = > 0 donde yn < xn para todo
2n−1
n ∈ N. Assim, |xn − yn | = xn − yn < ε para todo n ≥ n0 . Portanto, estão satisfeitas as
hipóteses do Lema 2.19. Sendo assim, existe k ∈ R/∼ tal que lim xn = k = lim yn .
n→∞ n→∞

Afirmamos que k é o supremo de A. De fato, qualquer que seja x ∈ A, se tem x ≤ xn


para todo n ∈ N. E, então, x ≤ lim xn = k. Suponhamos que exista s ∈ R/∼ tal que s < k
n→∞

e s é cota superior de A. Assim, k − s > 0. Como lim yn = k, então existe n0 ∈ N, tal que
n→∞

para todo n ≥ n0 tem-se

|yn − k| < k − s ⇒ s − k < yn − k < k − s ⇒ s < yn < 2k − s.

Logo, para n ≥ n0 , segue que s < yn . Mas por construção, nenhum termo de yn é cota
superior de A , então s também não o é. Deste modo temos uma contradição pois supomos
que s é cota superior de A. Portanto k ∈ R/∼ e k é supremo de A.

Observação 2.21. Pelo Teorema 2.20, R/ ∼ é um corpo ordenado completo. Por isso,
chamaremos R/∼ de conjunto dos números reais e o denotaremos por R. Além disso, cada
elemento de R será chamado de número real.

Vimos, portanto, a construção dos números reais por meio de sequências de Cauchy.
34

Definimos o conjunto R de todas as sequências de Cauchy e ainda uma relação ∼ que provamos
ser de equivalência. Definimos o conjunto de todas as classes de equivalência como sendo
R/∼. Definimos a adição e multiplicação e provamos que as operações estão bem definidas.
Definimos e provamos a relação de ordem. Provamos que R/∼ é um corpo ordenado e por
fim que é completo, renomeando R/∼ de conjunto dos números reais.
À vista disso, cumprimos com o objetivo de construir os números reais de forma analı́tica.
No entanto, sabemos que esta não é a maneira adequada de ensiná-los no Ensino Básico.
Contudo, é essencial entender o método de construção para criar mecanismos que facilitem o
entendimento do estudante sem provocar desvio em sua estrutura.
Capı́tulo 3

Propriedades de números reais

Diversas propriedades dos números reais são conhecidas por estudantes do Ensino Básico e,
é claro, por seus professores. Como por exemplo, todo número real pode ser representado na
forma decimal, todo número racional possui representação decimal finita ou infinita periódica,
todo número irracional possui representação decimal infinita não periódica e toda raiz n-ésima
inexata é irracional. Neste capı́tulo fazemos as demonstrações destas propriedades.

Teorema 3.1. Todo número real possui expansão decimal. Mais precisamente, para todo
número real x, existe um número inteiro c e uma sequência (cn )n∈N ⊂ {0, . . . , 9} tal que
c1 c2
x = c + 1 + 2 + ···.
10 10

Demonstração. Seja x um número real e suponhamos que x é positivo. O caso x negativo é


0 0
análogo e, com respeito ao zero, é claro que 0 = 0 + 1 + 2 + · · · .
10 10
Primeiro, tomamos c := bxc, onde btc := max{m ∈ Z; m ≤ t} para todo t ∈ R.
Notamos que c ≤ x < c + 1 donde 0 ≤ x − c < 1 e, assim, 0 ≤ 10(x − c) < 10.
Agora, tomamos c1 := b10(x − c)c e notamos que c1 ∈ {0, . . . , 9}. Notamos também que
c1 c1 1
c1 ≤ 10(x − c) < c1 + 1 donde c + ≤ x < c+ + . Em seguida, para cada k ∈ N,
10 10 10
c1 ck c1 ck 1
dados c1 , . . . , ck ∈ {0, . . . , 9} tais que c + +···+ k ≤ x < c+ + ··· + k + k,
10 10 10 10 10
j
k+1
 c1 ck k
tomamos ck+1 := 10 x−c− − · · · − k . Notamos que ck+1 ∈ {0, . . . , 9} e
10 10
c1 ck ck+1 c1 ck ck+1 1
c+ + · · · + k + k+1 ≤ x < c + + · · · + k + k+1 + k+1 .
10 10 10 10 10 10 10
Desta forma, obtemos um número inteiro c e, pelo Princı́pio de Indução (LIMA, 2006, Item

35
36

3, p. 1)1 , uma sequência (cn )n∈N ⊂ {0, . . . , 9} tais que

c1  cn  1
0≤x− c+ + ··· + n < n
10 10 10
 c1 cn  c1 c2
para todo n ∈ N. Logo, lim c+ + · · · + n = x, isto é, x = c+ 1 + 2 +· · · .
n→∞ 10 10 10 10

Teorema 3.2. Para todo número real x, segue que x é racional se, e somente se a expansão
decimal de x é finita ou periódica.

Demonstração. Seja x um número racional e vejamos que sua expansão decimal é finita ou
p
periódica. Suponhamos que x é positivo. O caso x negativo é análogo. Denotemos x =
q
c1 c2
onde p, q ∈ N, q 6= 0 e mdc(p, q) = 1 e seja x = bxc + 1 + 2 + · · · a sua representação
10 10
decimal. Agora, definamos x1 := x − bxc e

xn+1 := 10xn − b10xn c para todo n ∈ N. (3.1)

Note que 0 ≤ xn < 1 para todo n ∈ N e que qx1 = p − qbxc. Como p − qbxc é um número
inteiro, qx1 também é inteiro. Além disso, qxn+1 = 10qxn − qb10xn c para todo n ∈ N. Por
indução, segue que qxn é inteiro para todo n ∈ N. Note também que 0 ≤ qxn < q para todo
n ∈ N. Se xn = 0 para algum n ∈ N, então de (3.1), segue que xj = 0 para todo j ≥ n.
Assim
b10x1 c b10x2 c b10xn−1 c 0 0
x = bxc + + 2
+ ... + n−1
+ n + n+1 . . .
10 10 10 10 10

e, portanto, x possui representação decimal finita. Se xn 6= 0 para todo n ∈ N, temos que


0 < qxn < q para todo n ∈ N. Assim, para cada n ∈ N, qxn pertence ao conjunto finito
{1, . . . , q − 1}. Daı́, existe um número natural h, com h < q tal que qxq = qxh . Denotando
s = q − h, temos que qxh+s = qxh donde xh+s = xh . Assim, de (3.1), segue que xn+s = xn
para todo n > h e, portanto, cn = cn+s , para todo n ≥ h. Assim, a representação decimal de
x é infinita periódica.
Reciprocamente, iremos provar que, se a sequência de dı́gitos (cn )n∈N é periódica, então
c1 c2
o número x = bxc + + 2 + . . . é racional. Se existem números naturais s e h tai que
10 10
1
Se um conjunto X ⊂ N é tal que 1 ∈ X e 1 + n ∈ X sempre que n ∈ X, então X = N.
37

cn+s = cn quando n ≥ h, temos

c1 ch ch+1 ch ch+1
x = bxc + + . . . + h + h+1 + . . . + h+s + h+s+1 . . . .
10 10 10 10 10

Logo, fazendo bxc = d1 . . . dk temos

10s+h−1 x − 10h−1 x = d1 . . . dk c1 c2 . . . ch+s−1 − d1 . . . dk c1 c2 . . . ch−1

e, portanto,
d1 . . . dk c1 c2 . . . ch+s−1 − d1 . . . dk c1 c2 . . . ch−1
x=
10h−1 (10s − 1)

donde concluı́mos que x é um número racional.

Corolário 3.3. Todo número irracional possui representação decimal infinita não-periódica.

Demonstração. Já está demonstrado no teorema anterior. Uma vez que todo decimal finito
ou periódico é racional, os infinitos não periódicos só podem ser os irracionais.

Duas propriedades simples, porém muito importantes, podem ser facilmente mostradas no
Ensino Básico. Abaixo veremos como é possı́vel demonstrar que a multiplicação e a adição
entre um número irracional e um número racional resulta em um número irracional.

Teorema 3.4. O produto de um número irracional por um racional diferente de zero é um


número irracional.

a
Demonstração. Sejam α irracional e um racional diferente de zero, isto é, a, b ∈ Z \ {0}.
b
a c c a
Se x = α fosse racional, então terı́amos x = , onde c, d ∈ Z \ {0}. Daı́, = α donde
b d d b
cb
α= , o que é absurdo, pois α é irracional. Logo x só pode ser irracional.
da

Teorema 3.5. A soma de um número irracional por um racional é um número irracional.

a a
Demonstração. Sejam α irracional e um racional, isto é, a, b ∈ Z com b 6= 0. Se x = α +
b b
c c a
fosse racional, então terı́amos x = , onde c, d ∈ Z com d 6= 0. Daı́ = α + , portanto,
d d b
38

c a a a cb − ad
− = α + − donde α = , o que é absurdo, pois α é irracional. Logo x só
d b b b bd
pode ser irracional.


Nossa proposta para ensino dos números reais que será feita no Capı́tulo 6, usa 2 como
exemplo de existência de números irracionais e em boa parte dos livros didáticos usa-se esta
√ √
e outras raı́zes inexatas, como 3 e 5. De fato, todas as raı́zes inexatas são irracionais.
Abaixo veremos a prova disto.

Lema 3.6. Seja p o polinômio p(x) = a0 + a1 x + a2 x2 + . . . an xn com a0 , a1 , a2 , . . . , an ∈ Z


c
e an 6= 0. Se , onde c, d ∈ Z e d 6= 0 e mdc(c, d) = 1, é raiz de p, então d divide an .
d
c c
Demonstração. Se o racional é raı́z do polinômio p, teremos p = 0, ou seja, a0 +
c  c 2 dc n d
a1 + a2 + . . . + an = 0. Multiplicando ambos os membros por dn , temos
d d d

a0 dn + a1 cdn−1 + a2 c2 dn−2 + . . . + an−1 cn−1 d + an cn = 0.

Somando ambos os membros da igualdade por −an cn e pondo d em evidência no primeiro


membro, obtemos

d a0 dn−1 + a1 cdn−2 + . . . + an−1 cn−1 = −an cn .




Isso mostra que d ou divide an ou cn . Como d não divide c, pois são primos entre si, d também
não divide cn . Logo d divide an .


Teorema 3.7 (Toda raiz n-ésima inexata é irracional). Se r, n ∈ N, então ou n
r é um

número inteiro ou n r é um número irracional.

√ √
Demonstração. Observe que n r é raı́z do polinômio p(x) = xn − r. Se n r é irracional, não
√ √ c
há o que fazer. Se n r não é irracional, então n r = onde c, d ∈ Z e d 6= 0 e mdc(c, d) = 1.
d
√ c √
Pelo Lema 3.6, d divide 1, ou seja, d = 1 ou d = −1 donde n r = = ±c. Portanto, n r é
d
um número inteiro.
39

Vimos que todas as raı́zes não inteiras são números irracionais, mas não são os únicos.
Existem números que não são representados por raı́zes e são irracionais. Dois exemplos são os
números π, que já mencionamos no Capı́tulo 2, e o número de Euler, e. Estes são os números
irracionais mais conhecidos. Ambos são importantes em diversos segmentos da matemática e
de outras ciências e merecem ser destacados neste trabalho, principalmente por serem números
que são apresentados no Ensino Básico como números irracionais sem uma discussão sobre
isto, o que causa um obstáculo para o estudante no entendimento desses números.
Veremos que não é simples mostrar que estes números são irracionais, e por outro lado
apresentaremos propostas para que sejam aplicados no Ensino Básico.
Capı́tulo 4

O número π

O número π, amplamente utilizado tanto nas salas de aula como em diversas situações
que envolvem a matemática e as ciências, não teve seu valor e significado bem definidos desde
sua primeira observação. Ao contrário, percorrendo o tempo e o espaço geográfico, recebeu
variadas definições e interpretações, algumas mais próximas que outras da versão utilizada
atualmente. Apresentaremos, a seguir, algumas dessas notáveis concepções sobre este número
tão relevante.

4.1 Breve histórico do número π

4.1.1 Idade Antiga e Antiguidade Clássica

Por volta de 2000 a.C., o homem começou a estabelecer algumas relações importantes no
campo da Matemática. Uma delas é a que viria a se tornar o que conhecemos atualmente
como o π. A preocupação, neste momento, era descobrir e expressar essas relações entre
grandezas de forma qualitativa. Exemplo disso é a afirmação de que, “Quanto maior o cı́rculo
é ‘através’ (referência ao diâmetro), maior ele é ‘em volta’ (referindo-se ao comprimento)[...]
Não importa como as duas quantidades variam proporcionalmente. Esta relação permanece
constante.”(BECKMANN, p. 11 - tradução nossa). Tal afirmativa caracteriza-se por não
possuir exceções.
Essa descoberta foi um grande passo para a determinação do π, pois, se o “em volta”

40
41

(circunferência) e o “através (diâmetro) são reconhecidas como proporcionais, como foram,


segue-se imediatamente que a divisão da primeira pela segunda resulta numa constante para
todos os cı́rculos. Essa divisão constante não recebeu a notação π até o século XVIII. d.C.
Há evidências de que povos da Antiguidade, como babilônios e egı́pcios, tinham noção
da existência do π como a divisão de grandezas mostrada acima. Ademais, teriam ambos
 2
1 8
chegado a aproximações de seu valor: π = 3 para os primeiros e π = 4 para os
8 9
1 1
segundos. Destacam-se, ainda na Idade Antiga, os valores π = 3, π = 3 e π = 3 como os
7 8
mais encontrados.
No Antigo Testamento, livro sagrado dos judeus, há referências nos textos de I Reis e de II
Crônicas, este segundo em seu quarto capı́tulo, no 2o verso, onde se lê: “Fez também o mar
de fundição; era redondo e media dez côvados duma borda à outra, cinco de altura e trinta
de circunferência.”. Por essas medidas relatadas, e considerando a medida de π como a razão
entre o comprimento da circunferência e seu diâmetro, temos que o valor de π aı́ seria igual
a 3.
Alguns filósofos gregos da Antiguidade Clássica também estão ligados à história do π.
Anaxágoras1 , quando preso em Atenas por anunciar que o Sol não era uma divindade, tentou
fazer a quadratura do cı́rculo – um problema relacionado ao π, que consiste em construir um
quadrado que possua área igual a de um cı́rculo dado.
O sofista2 Antifonte3 enunciou o princı́pio da exaustão: tomado um quadrado inscrito
num cı́rculo, e os polı́gonos regulares seguintes a ele, cada um com o dobro de lados que seu
antecessor, num dado momento um polı́gono eventual coincidirá com o cı́rculo, por serem seus
lados muito pequenos. Isso levou Antifonte a crer que poderia ser realizada a quadratura do
cı́rculo, partindo da ideia de que é possı́vel fazê-lo para qualquer polı́gono e que o “polı́gono
eventual”é equivalente ao cı́rculo.
A grande importância de Euclides de Alexandria4 se dá em relação ao rigor matemático
utilizado em suas construções. Foram postulados por ele axiomas que não poderiam ser prova-
1
Anaxágoras. ? Clazômenas, Grécia, ca. 500 a.C., † Lâmpsaco, Grécia, 428 a.C.
2
Os sofistas eram de grupos de mestres que viajavam de cidade em cidade realizando aparições públicas
(discursos, etc) para atrair estudantes, de quem cobravam taxas para oferecer-lhes educação. O foco central
de seus ensinamentos concentrava-se no logos (ou, discurso), com foco em estratégias de argumentação.
3
Antifonte. ? Atenas, Grécia, ca. 480 a.C., † Atenas, Grécia, ca. 410 a.C.
4
Euclides de Alexandria. ? Alexandria, Egito, 330 a.C., † Não conhecida
42

dos com os recursos dos gregos antigos. Os axiomas eram as verdades óbvias, que poderiam
ser aceitas por qualquer um. A partir deles, cada passo seria dado pela sua consequência
imediata, sem que se utilizasse o que se quer provar como elemento da demonstração, pois
isso a caracterizaria como circular e a faria perder seu valor. Um exemplo de demonstração é
fazer a quadratura de um retângulo. Esta não será exposta neste trabalho, mas é importante
salientar que consiste numa redução a um dos axiomas euclidianos, o que a tornaria uma
demonstração válida. O mesmo não acontece com a quadratura do cı́rculo de Hı́pias 5 , e,
portanto, tal construção é considerada inválida.
A contribuição romana para a matemática foi pequena, limitando-se à figura de Posidónio6 ,
que calculou a circunferência da Terra com certa precisão. Na arquitetura e engenharia militar
de Roma foram usados valores iguais ao já utilizados pelos babilônios cerca de 2 mil anos
antes.
Pouco se sabe sobre a vida de Arquimedes de Siracusa7 , grande matemático, fı́sico e
engenheiro. Ele estudou na Universidade de Alexandria, possivelmente com os sucessores
de Euclides, ou com ele próprio. Utilizou a abordagem de Euclides, partindo de postulados
simples e deduzindo suas proposições com uma lógica impecável. Ele foi o primeiro a utilizar
um método razoável para calcular o valor de π com uma precisão desejável. Seu método,
que lembra o conceito de limite, consiste, grosso modo, em tomar um polı́gono regular com n
lados inscrito numa circunferência e, portanto, com perı́metro menor que o dela, e um outro
polı́gono, circunscrito e de perı́metro maior que o da circunferência, com o mesmo número
de lados (n) que o anterior. Aumentando suficientemente o número n, os dois perı́metros se
aproximarão da circunferência, um por cima e um por baixo. Ele chegou ao seguinte resultado:

10 1
3 <π<3
71 7

.
Já Ptolomeu8 , o astrônomo, que trabalhou em Alexandria em 139-161 d.C., usou o seguinte
5
Hı́pias. ? Élis, Grécia, ca. 460 a.C., † ca. 400 a.C.
6
Posidónio. ? Apameia, Sı́ria, 135 a.C., † Rodes, Grécia, 51 a.C.
7
Arquimedes. ? Siracusa, Grécia, ca. 287 a.C., † Siracusa, Grécia, ca. 212 a.C.
8
Ptolomeu. ? Alexandria, Egito, 90 d.C., † Alexandria, Egito, 168 d.C.
43

valor:
17
π=3 = 3, 14167,
120

que provavelmente tomou de Apolônio9 , um matemático mais novo que Arquimedes.

4.1.2 Era Medieval

Um dos matemáticos mais importantes na Europa medieval foi Leonardo de Pisa, mas co-
nhecido como Fibonacci10 . Ele era um mercador italiano que usava rotas árabes. Publicou um
livro utilizando algarismos indo-arábicos e álgebra. A sequência que leva seu nome (sequência
de Fibonacci) tornou-o famoso e tem larga aplicação em diversas áreas. Também trabalhou
com o π, mas seu progresso não foi tão grande como em seus outros trabalhos. Teoricamente,
não apresentou tanta qualidade quanto Arquimedes. Contudo, os limites que encontrou foram
mais precisos, e o valor médio entre eles é correto em três casas decimais:

864
π= = 3.141818.
275

O papa Silvestre II11 , de origem francesa, cuja grande importância reside em ter estabele-
cido o cânon da missa, foi atuante na polı́tica e professor, tendo sido tutor e conselheiro de
imperadores alemães. Em seus estudos e ensino, utilizou o valor:

22
π= .
7

Dominicus Parisiensis12 , atuante nas áreas da matemática, medicina e astrologia, destacava-


22
se sobre seus contemporâneos por saber que o valor era uma aproximação.
7
O alemão Nicolau de Cusa13 , que viria a ser cardeal, após ter problemas com seu pai na
infância, iniciou sua vida de estudos. Tornou-se um dos maiores pensadores da Idade Média
a serviço da Igreja. Seu trabalho diretamente com o π não obteve grande sucesso, mas ele
encontrou uma boa aproximação para o comprimento de um arco circular.
9
Apolônio. ? Tiana, Turquia, 15 d.C., † Éfeso, Turquia, 100 d.C.
10
Fibonacci. ? Pisa, Itália, ca. 1170 d.C., † ca 1250 d.C.
11
Silvestre II. ? Saint-Simon, França, 946 d.C., † Roma, Itália, 1003 d.C.
12
Dominicus Parisiensis. ? 1378 d.C.
13
Nicolau de Cusa. ? Bernkastel-Kues, Alemanha, 1401 d.C., † Todi, Itália, 1462 d.C.
44

François Viète14 foi o primeiro a sistematizar a notação algébrica. Introduziu palavras


como negativo e coeficiente. Também era especialista em códigos, tendo decifrado mensagens
importantes. Começou a trabalhar com o π de maneira semelhante a Arquimedes, porém
utilizando o quadrado, em vez de um hexágono. Seu resultado colocou π como uma sequência
infinita de operações algébricas. Ele reduziu os limites de Arquimedes a:

3, 1415926535 < π < 3.1415926567.

4.1.3 Idade Moderna e Perı́odo Contemporâneo

Muitos outros tentaram encontrar o verdadeiro valor de π, isto é, supunham que π teria
representação decimal finita ou infinita periódica, mas, em 1976, o matemático Johann Hein-
rich Lambert15 provou sua irracionalidade, entregando a quem viesse a estudar o π a nova
tarefa de identificar o maior número possı́vel de casas decimais.
Atualmente, já foram identificados através de super computadores mais de 2 quatrilhões de
dı́gitos decimais para o número π, mas, antes disso, muitos cálculos foram feitos por grandes
estudiosos. O que podemos afirmar é que o número π é um elemento importante para a
história da matemática e, em especial, para este trabalho, por ser um número irracional tão
expressivo e estudado no Ensino Básico.

4.2 A irracionalidade do π

As definições do número π, assim como visto em sua história, podem ser dadas por: o
resultado do quociente entre o comprimento da circunferência pelo diâmetro ou o quociente
entre a área do cı́rculo e o quadrado do raio. Contudo, estas são definições geométricas. O
que faremos agora, é dar uma definição analı́tica da constante π e, em seguida, a prova de
sua irracionalidade.

X (−1)n x2n+1
Defininamos as funções sen : R → R e cos : R → R por sen(x) = e
n=0
(2n + 1)!
14
François Viète. ? Fontenay-le-Comte, França, 1540 d.C., † Paris, França, 1603 d.C.
15
Johann Heinrich Lambert. ? Mulhouse, França, 1728 d.C., † Berlim, Alemanha, 1777 d.C.
45


X (−1)n x2n
cos(x) = 1 + para todo x ∈ R. Note que sen(0) = 0 e cos(0) = 1.
n=1
(2n)!
As definições acima são motivadas nas séries de Taylor16 das funções seno e cosseno e é
possı́vel provar que elas são analı́ticas, isto é, que elas são iguais às suas séries de Taylor. No
Ensino Básico, os estudantes conhecem o seno e o cosseno definidas no ciclo trigonométrico.
Estas são exatamente iguais as vistas aqui, no entanto, apesar de estarem corretas, as definições
do ciclo trigonométrico são geométricas, e seguiremos a tônica deste trabalho apresentando
as definições analı́ticas.

Proposição 4.1. As funções sen e cos são deriváveis com sen0 = cos e cos0 = − sen.

Demonstração. Dado N ∈ N, definimos SN , CN : R → R, para cada x ∈ R, por

N N
X (−1)n x2n+1 X (−1)n x2n
SN (x) = e CN (x) = 1 + .
n=0
(2n + 1)! n=1
(2n)!

Temos que (SN )N ∈N e (CN )N ∈N convergem simplesmente para sen e cos (LIMA, 1976, pág.
362)17 , respectivamente. Fixado M > 0, mostraremos que a convergência de (CN )N ∈N é
uniforme (LIMA, 1976, pág. 366)18 em [−M, M ].
X
Seja ε > 0. Como M n /n! converge (NERI e CABRAL, 2008, Exemplo 4.17), existe
N0 ∈ N tal que
+∞
X Mn
N ≥ N0 =⇒ < ε.
n=2N +2
n!

Então, para x ∈ [−M, M ] e N ≥ N0 , temos



+∞ +∞ +∞
X (−1)n x2n X M 2n X Mn
|CN (x) − cos(x)| = ≤ ≤ < ε.


n=N +1
(2n)! n=N +1 (2n)! n=2N +2 n!

0 0
Verifica-se facilmente que SN = CN para todo N ∈ N. Logo, (SN )N ∈N converge uniforme-
mente para cos em [−M, M ].

16
X f (n) (a)
Série de Taylor é uma série de funções da seguinte forma : f (x) = an (x − a)n na qual an =
n=0
n!
17
Diz-se que a sequência e funções fn : X → R converge simplesmente para a função f : X → R quando,
para cada x ∈ X, a sequência de números (f1 (x), f2 (x), . . . , fn (x), . . .) converge para o número f (x). Ou
seja, para todo x ∈ X fixado, tem-se lim fn (x) = f (x).
n→∞
18
[...] dizer que fn → f uniformemente em X significa afirmar que, para qualquer ε > 0 dado, pode-se
obter n0 ∈ N tal que todas as funções fn com n > n0 , têm seus gráficos contidos na faixa de raio ε em torno
do gráfico de f
46

0
Temos que (SN )N ∈N converge para uma primitiva da função cos em [−M, M ] (LIMA,
1976, Teorema 7, pág. 380)19 , ou seja, sen0 (x) = cos(x) para todo x ∈ [−M, M ]. Como M
é arbitrário, segue que sen0 (x) = cos(x) para todo x ∈ R.
Analogamente, mostra-se que cos0 (x) = − sen(x).

Corolário 4.2. Segue que sen2 (x) + cos2 (x) = 1 para todo x ∈ R.

Demonstração. Seja F : R → R dada por F (x) = ( sen(x))2 + (cos(x))2 , para todo x ∈ R.


Temos F 0 (x) = 2 sen(x) sen0 (x) + 2 cos(x) cos0 (x) = 2 sen(x) cos(x) − 2 cos(x) sen(x) = 0.
Portanto, F é constante. Como F (0) = 1, concluı́mos a prova.

Corolário 4.3. Segue que sen(x) ∈ [−1, 1] e cos(x) ∈ [−1, 1] para todo x ∈ R.

Demonstração. Pelo Corolário 4.2, sen2 (x) = 1 − cos2 (x). Daı́, 0 ≤ 1 − cos2 (x) donde
cos2 (x) ≤ 1. Portanto, −1 ≤ cos(x) ≤ 1. Analogamente, −1 ≤ sen(x) ≤ 1.

Teorema 4.4. Existe uma única constante c > 0 tal que sen é estritamente crescente e cos
é estritamente decrescente em [0, c] com sen(c) = 1 e cos(c) = 0. Além disto, para todo
x ∈ R temos, sen(c + x) = cos(x) e cos(c + x) = − sen(x).

Demonstração. Como cos é contı́nua (LIMA, 1976, Corolário do Teorema 10, p. 387)20
1
e cos(0) = 1, dado ε = , existe δ > 0 tal que cos(x) ∈ (cos(0) − ε, cos(0) + ε) =
   2
1 1 1 3
1 − ,1 + = , para todo x ∈ (−δ, δ) (LIMA, 1976, p. 222-223)21 . Seja a ∈
2 2 2 2  
1 3
(0, δ) arbitrário. Temos que cos(x) ∈ , para todo x ∈ [0, a]. Em particular, cos(x) >
2 2
1
> 0 para todo x ∈ [0, a]. Como a derivada da função sen, neste intervalo, é positiva,
2
temos que sen é estritamente crescente (LIMA, 1976, Corolário 6 do Teorema 7, p. 274)22 .
Em particular, sen(x) > sen(0) = 0 para todo x ∈ (0, a].
19
Seja (fn ) uma sequência de funções deriváveis no intervalo [a, b]. Se, para um certo c ∈ [a, b], a sequência
numérica (fn (c)) converge e se as derivadas fn0 convergem uniformemente em [a, b] para uma função g, então
0
(fn ) converge uniformemente em [a, b] para uma função X derivável f , tal que f = g.
20
A função f : (−r, r) → R, definida por f (x) = an xn , é contı́nua no intervalo de convergência (−r, r).
21
Em termos precisos, diremos que f : X → R é contı́nua no ponto a ∈ X quando, para todo ε > 0 dado
arbitrariamente, pudermos achar δ > 0 tal que x ∈ X e |x − a| < δ impliquem |f (x) − f (a)| < ε.
22
Seja f : I → R derivável no intervalo I. Tem-se f 0 (x) ≥ 0 para todo x ∈ I se, e somente se, f for
não-decrescente em I. Se f 0 (x) > 0 para todo x ∈ I então f é crescente em I. Neste caso, f possui uma
1
inversa f −1 , definida no intervalo f (I) = J, a qual é a derivável em J, com (f −1 )0 (y) = 0 para todo
f (x)
y = f (x) ∈ J.
47

Vejamos que existe y > a tal que cos(y) < 0. Suponhamos o contrário, isto é, que
cos(x) ≥ 0 para todo x > a. Como cos(a) > 0, cos(x) ≥ 0 para todo x ≥ a. Neste caso, sen
é crescente em [a, +∞). Seja x > a arbitrário, pelo Teorema do Valor Médio (LIMA, 1976,
Teorema 7, p. 272)23 , existe x̄ ∈ (a, x) tal que cos(x) − cos(a) = − sen(x̄)(x − a). Como sen
é crescente em [a, +∞), sen(a) ≤ sen(x̄) donde − sen(x̄) ≤ − sen(a). Daı́, − sen(x̄)(x −
a) ≤ − sen(a)(x − a) donde cos(x) − cos(a) = − sen(x̄)(x − a) ≤ − sen(a)(x − a). Logo,
cos(x) = cos(a) − sen(a)(x − a). Como lim [cos(a) − sen(a)(x − a)] = −∞, segue que
x→∞

lim cos(x) = −∞, o que é uma contradição ao Corolário 4.3.


x→∞

Pelo que foi demonstrado, o conjunto {b ∈ (0, +∞); cos(x) > 0 ∀x ∈ [0, b]} é não vazio,
pois contém a, e limitado superiormente por y. Logo, pela propriedade do supremo (Teorema
2.20), {b ∈ (0, +∞); cos(x) > 0 ∀x ∈ [0, b]} possui supremo. Denote por c este supremo. É
claro que 0 < c.
A função cos é positiva em [0, c) e, portanto, sen é estritamente crescente em [0, c). Mas
sen(0) = 0 donde a função sen é positiva em (0, c) e, como cos0 = − sen, temos que cos é
estritamente decrescente em (0, c). Da continuidade de sen, temos que sen é estritamente
crescente em [0, c] e, da continuidade de cos, temos que cos é estritamente decrescente em
[0, c].
Da definição de c e da continuidade de cos, obtemos cos(c) = 0. Do Corolário 4.2,
obtemos | sen(c)| = 1. Porém, sen(c) ≥ sen(0) = 0 donde sen(c) = 1.
Considere as funções s, c : R → R dadas por s(x) = − cos(c + x) e c(x) = sen(c + x),
para todo x ∈ R. Vemos facilmente que s0 = c, c0 = −s, s(0) = 0 e c(0) = 1. Daı́, obtemos
que s = sen e c = cos (LIMA, 1976, Exemplo 20, pág. 392), completando a demonstração
da existência de c.
Agora, vejamos a unicidade. Suponha, por absurdo, que exista d tal que d 6= c e d
tem exatamente as mesmas propriedades de c do enunciado do teorema. Sem perda de
generalidade, suponhamos c < d. Como sen é estritamente crescente em [0, d], temos que
23
Seja f : [a, b] → R contı́nua. Se f é derivável em (a, b), existe c ∈ (a, b), tal que

f (b) − f (a)
f 0 (c) = .
b−a
48

sen(c) < sen(d). Mas, como sen(c) = 1 e sen(d) = 1, temos que 1 < 1, o que é um
absurdo. Isto prova a unicidade de c.

Definição 4.5. Seja c a constante do Teorema 4.4. Chamaremos a constante 2c de π, isto


é, π := 2c.

π π
Observação 4.6. Note que sen(π) = 0 e cos(π) = −1. De fato, sen(π) = sen + =
π  π π  π  2 2
cos = 0 e cos(π) = cos + = − sen = −1.
2 2 2 2

Para o estudante do Ensino Básico é difı́cil entender que o número π é irracional, tendo
em vista suas definições, que usa o quociente como método de cálculo. Quando dizemos a
palavra “quociente”, nossa cabeça nos remete a ideia de números racionais, e para o estudante
deveria ser isto, afinal, o conteúdo de números racionais que foi lhes apresentado dizia a todo
instante que números racionais são aqueles que podem ser representados em forma de fração.
Precisa ficar claro, que todo núemro racional pode ser escrito como uma fração entre números
inteiros. Provar que o número π é irracional é tão difı́cil quanto apresentar sua definição. Na
verdade, vamos utilizar os mesmos pré requisitos que na definição, e, portanto, é inviável sua
apresentação ao Ensino Básico.
Esta demonstração se deve ao trabalho de Charles Hermite24 .

Teorema 4.7. O número π 2 é irracional e, portanto, π também é.

p
Demonstração. Suponhamos, por absurdo, que existem p, q ∈ N tais que π 2 = .
q
pn 1
Temos que lim = 0 (NERI e CABRAL, 2008, Exemplo 4.17). Assim, dado ε = ,
n→+∞ n! π
pn
n
p 1
podemos escolher n ∈ N, suficientemente grande, para que = − 0 < ε = (LIMA,
n! n! π
25
1976, p. 107) .
xn (1 − x)n
Seja f : R → R dada por f (x) = para todo x ∈ R e vejamos que
n!

f (k) (0), f (k) (1) ∈ Z para todo k ∈ N. (4.1)


24
Charles Hermite. ? Dieuze, França, 24 de dezembro de 1822, † Paris, França, 14 de janeiro de 1901
25
Diz-se que o número real a é limite da sequência (xn ) de números reais, e escreve-se a = lim xn , ou
a = lim xn , ou a = lim xn , quando para cada número real ε > 0, dado arbitrariamente, for possı́vel obter
n n→∞
um inteiro n0 ∈ N tal que |xn − a| < ε, sempre que n > n0 .
49

1
(cn xn + cn+1 xn+1 +
Primeiro, note que existem cn , cn+1 , . . . , c2n ∈ Z tais que f (x) =
n!
2n n n
. . . + c2n x ) para todo x ∈ R. De fato, x (1 − x) é um polinômio em x de coeficientes
inteiros, grau 2n e múltiplo de xn . Segundo, observe que as derivadas até a ordem n − 1 são
polinômios múltiplos de x, logo, se anulam em x = 0. As derivadas de ordem superior a 2n são
identicamente nulas. Logo, f (k) (0) ∈ Z para k < n ou k > 2n. Para n ≤ k ≤ 2n, temos que
k!ck
f (k) (0) = ∈ Z. Finalmente, como f (x) = f (1 − x) temos f (k) (x) = (−1)(k) f (k) (1 − x)
n!
donde f (1) = (−1)(k) f (k) (1 − 1) = (−1)k f (k) (0) ∈ Z.
(k)

Agora, considere as funções F e G definidas, para cada x ∈ R, por

F (x) = q n (π 2n f (x) − π 2n−2 f (2) (x) + . . . + (−1)(n−1) π 4 f (2n−2) (x) + (−1)n π 2 f (2n) (x))

G(x) = F 0 (x) sen(πx) − πF (x) cos(πx).

Para k ∈ {1, . . . , n}, temos que q n π 2k = q n−k pk ∈ N. Disto e de (4.1), concluı́mos que
F (0), F (1) ∈ Z. Também temos, pela Observação 4.6, que G(0) = −πF (0) e G(1) =
F 0 (1) sen(π × 1) − πF (1) cos(π × 1) = F 0 (1) sen(π) − πF (1) cos(π) = F 0 (1) × 0 − πF (1) ×
(−1) = πF (1).
Derivando G uma vez e F duas vezes, obtemos:

G0 (x) = F 00 (x) sen(πx) + πF 0 (x) cos(πx) − πF 0 (x) cos(πx) + π 2 F (x) cos(πx)


= (F 00 (x) + π 2 F (x)) sen(πx),
F 00 (x) = q n (π 2n f (2) (x) − π 2n−2 f (4) (x) + . . . + (−1)(n−1) π 4 f (2n) (x))
= −π 2 q n (−π 2n−2 f (2) (x) + π 2n−4 f (4) (x) + . . . + (−1)n π 2 f (2n) (x))
= −π 2 (F (x) − q n π 2n f (x)) = −π 2 F (x) + π 2 pn f (x).

Portanto G0 (x) = π 2 pn f (x) sen(πx). Segue do Teorema Fundamental do Cálculo (LIMA,


1976, Corolário do Teorema 8, p. 323)26 que

1
G(1) − G(0)
Z
π pn f (x) sen(x)dx = = F (1) + F (0) ∈ Z.
0 π
26
Dada f : [a, b] → R contı́nua, existe F : [a, b] → R derivável, tal que F 0 = f .
50

1
Por outro lado, note que, pela definição da f , 0 < f (x) < para todo x ∈ [0, 1] donde
n
n!
p h πi
0 < pn f (x) < para todo x ∈ [0, 1]. Como 0 ≤ sen(x) ≤ 1 para todo x ∈ 0, , temos
n! 2 n
n p
que, em particular, 0 ≤ sen(x) ≤ 1 para todo x ∈ [0, 1] donde 0 < p f (x) sen(x) < para
n!
todo x ∈ [0, 1]. Daı́,
Z 1
πpn
0<π pn f (x) sen(x)dx ≤ < 1.
0 n!

Ou seja, F (0) + F (1) ∈ Z ∩ (0, 1) = ∅. O que é um absurdo.


Capı́tulo 5

O número e

5.1 Breve histórico do número e

Filho de Sir Archibald Napier e de Janet Bothwell, John Napier nasceu em 1550, na Escócia.
Seus interesses não davam a entender que ele seria um grande matemático. Protestante,
interessava-se pela religião e por economia, além de apresentar uma personalidade curiosa, a
quem poderı́amos atribuir o adjetivo “brigão”(MAOR, 2003, p. 17). Apesar de se dedicar
a várias atividades, Napier pôs seu nome na História com uma ideia matemática de grande
relevância que ele levou 20 anos para desenvolver: os logaritmos.
Num contexto de grande avanço nas Ciências, os estudiosos de sua época tinham grande
parte de seu tempo roubada pela tarefa de executar cálculos imensos. Um dos motivos do uso
destes cálculos é alta demanda por comércio. Grandes navegações aconteciam com frequência
em busca de novos acordos e conquistas e era necessário realizar grandes cálculos para aper-
feiçoar as rotas. Napier, então, aceitou o desafio de tentar diminuir esse tempo. Inspirado
na trigonometria, teve a ideia de reduzir operações aritméticas complexas para outras mais
simples. Outra ideia que o inspirou envolvia o uso da progressão geométrica (PG). Já havia
sido percebida a existência de uma relação entre os termos de uma PG e os expoentes da
razão comum.
De acordo com Maor (2003, p. 18),

51
52

O matemático alemão Michael Stifel (1487-1567), em seu livro Arithmetica


integra (1544), formulou esta relação como se segue: Se multiplicarmos
quaisquer dois termos da progressão 1, q, q 2 , . . ., o resultado será o mesmo
que se somarmos os expoentes correspondentes. Por exemplo, q 2 · q 3 =
(q · q) · (q · q · q) = q 5 , um resultado que poderı́amos ter obtido somando os
expoentes 2 e 3. De modo semelhante, dividir um termo de uma expressão
geométrica por outro equivale a subtrair seus expoentes: q 5 /q 3 = (q · q ·
q · q · q)/(q · q · q) = q · q = q 2 = q 5−3 E assim temos as regras simples
q m · q n = q m+n e q m /q n = q m−n .

Stifel, ao trabalhar dessa forma com as progressões, tinha em mente só os expoentes
inteiros. Um exemplo dessas progressões pode ser vista na tabela abaixo.

n −3 −2 −1 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
1 1 1
2n 1 2 4 8 16 32 64 128 256 512 1024
8 4 2

O objetivo do uso dessas tabelas era que, se quiséssemos multiplicar dois números da
segunda linha, bastava somar os números correspondentes da primeira linha aos dois escolhidos,
verificar o resultado, e pegar o correspondente a este na segunda linha. Por exemplo, se
quisermos calcular 8 × 64, bastava somar 3, correspondente da primeira linha do 8, com 6,
correspondente da primeira linha do 64. Ou seja, 3 + 6 = 9, cujo correspondente na segunda
linha é 512. Portanto, 8 × 64 = 512. Mas se quiséssemos calcular 5 × 29, por exemplo,
usando essa tabela, saberı́amos que 5 está compreendido entre 4 e 8 e 29 está entre 16 e 32.
Portanto, o resultado estaria entre 32 e 512. Observe que á uma grande lacuna entre esses
dois números, e ficaria difı́cil encontrar esse resultado.
Napier pretendia estender os expoentes para uma faixa contı́nua de valores. Seu pensa-
mento era de que, se pudesse escrever qualquer número positivo como uma potência de algum
número fixo (Que ainda não era chamado de base. A partir daqui, colocaremos a palavra
base entre aspas para representar os números que não haviam sido nomeados assim.), então
poderia resolver a multiplicação ou divisão de números através da adição e subtração de seus
expoentes. Poderia, também, fazer o mesmo com apenas um número: elevá-lo à n-ésima
potência seria o mesmo que somar n vezes o expoente a si próprio. Em suma, cada operação
aritmética seria resolvida utilizando-se a operação que está um nı́vel abaixo.
Essa nova forma de calcular só seria útil se não tivesse seu uso limitado aos números
53

inteiros, mas se estendesse para números quaisquer. Napier teria, então, a tarefa de retirar
os “buracos”entre os números de sua tabela, preenchendo os espaços entre eles. Isto é, ele
procurava uma forma de diminuir a distância entre os resultados conhecidos a partir da “base”.
Havia, para isso, dois caminhos possı́veis: usar expoentes fracionários ou usar como “base”um
número suficientemente próximo de 1 para que suas potências variassem lentamente, mas
diferente de 1, caso contrário as potências seriam constantes. Pela não familiaridade com os
primeiros, ele escolheu a segunda opção. A “base”escolhida por ele foi 0, 9999999 = 1 − 10−7 .
O problema era que, ao usar este valor as contas continuavam grandes, pois geravam números
decimais, que dificultavam os cálculos. Uma maneira de resolver isso foi introduzindo o valor
de 10−7 como um multiplicador. Dessa maneira, segundo Maor (2003), Napier passou vinte
anos de sua vida realizando operações até que chegasse em algumas tabelas, a primeira com
cento e um elementos, a segunda com cinquenta e um e a terceira com vinte e um. De cada
elemento de sua última tabela, criou mais sessenta e oito.
Após árduo trabalho, como destaca Maor (2003), faltava batizar sua invenção. Inicial-
mente, deu ao expoente de cada potência o nome de “número artificial”. Depois, se decidiu
pelo termo logaritmo. Os logaritmos criados por Napier se diferem dos atuais em vários
aspectos . Maor (2003) diz que, na notação moderna, seu logaritmo significa dizer que se

N = 107 (1 − 10−7 )L (5.1)

então o expoente L é o logaritmo (de Napier) de N . Nesse sentido, se N = bL , onde b é


um número positivo, diferente de 1, então L é o logaritmo (de base b) de N . Assim, pelo
sistema de Napier, L = 0 corresponde a N = 107 , enquanto no sistema moderno N = 1.
Outra caracterı́stica importante é que as regras básicas conhecidas hoje nos logaritmos, não
são mantidas nos logaritmos de Napier. De certo, várias diferenças existem, por conta da
preocupação de Napier com a não utilização de números decimais. Se não houvesse tanta
preocupação, seus resultados chegariam próximo ao que conhecemos hoje. Afim de obtermos
valores, proporcionais aos de Napier, mas em escala menor, dividimos os números, N , e os
N L
logartimos, L, de Napier por 107 obtendo N 0 = 7
e L0 = donde N = 107 N 0 e
10 107
107 L0
L = 107 L0 . Desta forma, a equação em (5.1) se torna 107 N 0 = 107 1 − 10−7 , que é
54

h i 0
7 L
equivalente a N 0 = (1 − 10−7 )10 . Na linguagem de hoje, chamando a = (1 − 10−7 ),
7 7
terı́amos L0 = loga107 N 0 . Em essência a10 = (1 − 10−7 )10 é a base de Napier. Como
n 1 1
sabemos que lim 1 − n−1 = , podemos dizer que a base de Napier é próxima de .
n→∞ e e
Cabe ressaltar que outra pessoa reclamou a autoria da invenção dos logaritmos. Seu nome
era Jobst ou Joost Bürgi 1 , e seu método era semelhante ao de Napier. Contudo, escolheu
uma “base” diferente, 1 + 10−4 . A grande diferença entre os números criados por ambos, é
que Bürgi aproxima a “base” para 1, porém com valor maior do que 1, o que faz os logaritmos
de Bürgi aumentarem à medida que os números aumentam, ao contrário do que acontecia
com os logaritmos de Napier. Essas duas “bases” serão novamente citadas na proposta para
a definição do número e no Ensino Básico na Seção 6.3.
A invenção de Napier foi publicada em 1614, no tratado Mirifici logarithmorum canonis
descriptio. Napier teve seu outro trabalho publicado, já postumamente, por seu filho em 1619.
É importante ressaltar que a invenção foi logo bem recebida e divulgada por toda a Europa
e também para o Oriente. Henry Briggs2 , professor de geometria em Londres, foi aquele que
deu contribuições importantes, como fazer o logaritmo de 1 igual a zero e ter o logaritmo de
10 igual a uma potência apropriada de 10. Ele realizou seu trabalho de computar as novas
tabelas e o publicou em 1624 no Arithmetica logarithmica. O editor holandês Adriaan Vlacq3
completou essas tabelas e divulgou o seu complemento na segunda edição do Arithmetica.
É importante dizer que os logaritmos foram tão bem recebidos no mundo cientı́fico que
foram sendo divulgados pelos próprios cientistas em seus trabalhos. Exemplos disso são: a
tradução da Descriptio de Napier para o inglês por Edward Wright4 , matemático inglês (Aqui
cabe uma observação: numa segunda edição de Edward Wright para a Descriptio de Napier, há
em um apêndice uma declaração equivalente a: loge 10 = 2, 302585. Esse parece ser o primeiro
reconhecimento explı́cito no número e na matemática.); publicação das tabelas de logaritmos
comuns de Briggs e Vlacq na Holanda em 1628 e a divulgação dos logaritmos na Itália por
Bonaventura Cavalieri5 ; Johannes Kepler6 na Alemanha. Na China, apareceu um tratado sobre
1
Joost Bürgi. ? Lichtensteig, Suı́ça, 28 de fevereiro de 1552, † Kassel, Alemanha, 31 de janeiro de 1632
2
Henry Briggs. ? Yorkshire, Reino Unido, fevereiro de 1561, † Oxford, Reino Unido, 26 de janeiro de 1630
3
Adriaan Vlacq. ? 1600, † 1667
4
Edward Wright. ? Garvestone, Reino Unido, † Londres, Reino Unido, 1615
5
Bonaventura Cavalieri. ? Milão, Itália, 1598 † Bolonha, Itália, 30 de novembro de 1647
6
Johannes Kepler. ? Weil der Stadt, Alemanha, 27 de dezembro de 1571 † Ratisbona, Alemanha, 15 de
55

logaritmos escrito por Xue Fengzuo7 . Segundo Maor (2003), Houve a reimpressão das tabelas
de Vlacq em Pequim em 1713.
Após a aceitação, pelos cientistas, dos logaritmos, foi criada a régua logarı́tmica. Na
régua de Edmund Gunter8 , havia uma escala logarı́tmica em que que as distâncias poderiam
ser medidas e depois somadas ou subtraı́das com um par de compassos. Uma evolução do
instrumento veio com William Oughtred9 , que construiu duas versões: uma régua de cálculo
linear e uma circular.
A régua de cálculo foi amplamente utilizada no mundo cientı́fico até o surgimento das
primeiras calculadoras. Ao longo do tempo, o uso do logaritmo foi sendo dispensado para
calcular. Em contrapartida, a função logarı́tmica mantém sua alta importância em variados
campos, como a própria matemática, fı́sica, engenharias, economia, música e artes.
Uma das inspirações para o número e veio da matemática financeira, do cálculo de juros
compostos. A favor dessa afirmativa tem-se o contexto histórico em que a invenção do número
estava inserida. Desde o fim da Baixa Idade Média, a Europa passava por um intenso perı́odo
de “renascimentos”: desde o renascimento cultural, passando pelo cientı́fico e comercial.
Saindo da economia agrária e quase amonetária medieval, a questão financeira está em plena
ascensão, devido, assim como já dissemos, ao crescimento do comércio. Mostraremos essa
relação do e com o cálculo de juros, através de uma proposta de atividade na Seção 6.3.

5.2 A irracionalidade do e

Existem diversas maneiras de definir e. As mais populares são:

1
1. e é o número, maior que 1, tal que no intervalo [1, e], a área sob a hipérbole y = é
x
igual a 1. Essa definição costuma ser utilizada quando defini-se a função logarı́tmica via
1
integral da função y = .
x

novembro de 1630
7
Xue Fengzuo. ? (Nanquim, 1600 † 1680
8
Edmund Gunter. ? Hertfordshire, Reino Unido, 1581 † Londres, Reino Unido, 10 de dezembro de 1626
9
William Oughtred. ? Eton, Reino Unido, 5 de março de 1574 † Albury, Reino Unido, 30 de junho de 1660
56

Figura 5.1: Área sob a hipérbole.

 n
1
2. e := lim 1 + . Pesquisas apontam Leonhard Euler como quem efetivamente
n→∞ n
calculou esse limite, portanto, e também é conhecido como número de Euler. Alguns
dizem que o sı́mbolo e vem da inicial de seu nome, outros consideram que se deve à
inicial de “exponencial”.

1 1 1
3. e = 1 + + + ... + + . . .. Esta será usada para a prova de sua irracionalidade.
1! 2! n!
 n
1
Utilizamos a definição e := lim 1 + , pois esta é motivada nos logaritmos de Napier
n→∞ n
e Bürgi e, também será utilizada na proposta para a definição do número e no Ensino Básico
na Seção 6.3. Abaixo, provamos a existência de e mostrando que esse limite existe.
 n
1
Proposição 5.1. O lim 1 + existe.
n→∞ n
 n
1
Demonstração. Para cada n ∈ N, denote xn := 1 + .
n 
Primeiro, vejamos que (xn )n∈N é crescente. Para todo n ∈ N, temos xn+1 = 1+
n+1
1
donde
n+1

1 n+1 1 n 
(1 + n+1 ) 1 + n+1
 
xn+1 1
= 1 n = 1 1+
xn  (1 + n ) n    1+ n n n + 1 
n(n + 2) 1 1 1
= 1+ = 1− 1+ .
(n + 1)2 n+1 (n + 1)2 n+1

1
Fazendo x = − na desigualdade de Bernoulli (LIMA, 2006, Exemplo 1, p. 14)10 ,
(n + 1)2
tiramos que
 n  
1 n
1− ≥ 1− .
(n + 1)2 (n + 1)2
10
Para todo número real x ≥ −1 e todo n ∈ N, tem-se (1 + x)n ≥ 1 + nx.
57

Assim,

 n     
xn+1 1 1 n 1
= 1− 1+ ≥ 1− 1+ .
xn (n + 1)2 n+1 (n + 1)2 n+1

 
n 1
Repare que 1 − ≥ 1 . De fato, pois
(n + 1)2 1 + n+1

(n + 1)3 + 1 ≥ (n + 1)3 ⇒ (n + 2)(n + 1)2 − n2 − 2n ≥ (n + 1)3


⇒ (n + 2) (n + 1)2 − n ≥ (n + 1)(n + 1)2


(n + 1)2 − n
 
(n + 1)
⇒ 2

 (n + 1)  (n + 2)
n 1
⇒ 1− 2
≥ 1 .
(n + 1) 1 + n+1

Portanto, temos que


  
xn+1 n 1
≥ 1− 1+
xn (n+ 1)2 n+1
1 1
≥ 1 1+ = 1.
1 + n+1 n+1

Daı́, xn+1 ≥ xn para todo n ∈ N.


Agora, vejamos que (xn )n∈N é limitada. Pelo Teorema do Binômio de Newton (LIMA,
1976, Exemplos 8 e 9, p. 104-105), temos que, para todo n ∈ N,

1 n(n − 1) 1 n(n − 1)(n − 2) 1 1


xn = 1 + n · + · 2· · 3 + ··· + n
n 1 · 2  n 1· 2 · 3   n  n
1 1 1 1 2
= 1+1+ 1− + 1− 1− +
1·2 n 1· 2 · 3  n n 
1 1 n−1
+ ··· + 1− ··· 1 −
1 · 2 · · · · · (n − 1) · n n n
1 1 1
< 1+1+ + ... +
1·21·2·3
 1· 2 · 3 · ··· · n
1 1 1
< 1+1+ + + . . . + n−1
2 22 2
< 3,

pois a expressão entre os últimos parênteses é parte da série geométrica

1 1 1
+ 2 + · · · + n−1 + · · · = 1.
2 2 2
58

E, é claro: 2 < xn para todo n ∈ N.


Vemos que (xn )n∈N é monótona e limitada. Logo, (xn )n∈N é convergente (LIMA, 1976,
Teorema 4, p. 111)11 .

Para demonstrar a irracionalidade do e, precisamos usar uma de suas caracterı́sticas im-


portantes, como podemos ver abaixo.

1 1 1
Lema 5.2. Segue que e = 1 + + + ··· + + ···.
1! 2! n!

Demonstração. Toda função de classe C ∞ em R pode ser escrita pela série de Taylor (LIMA,
1976, Exemplo 24, p. 279)12

f 0 (x0 ) f 00 (x0 ) f (n) (x0 )


f (x) = f (x0 ) + (x − x0 ) + (x − x0 )2 + · · · + (x − x0 )n + · · · .
1! 2! n!

No caso particular de f (x) = ex , que é de classe C ∞ em R (LIMA, 1976, Exemplo 31, p.


291)13 , em torno da origem (ou seja x0 = 0) temos:

f 0 (0) f 00 (0) 2 f (n) (0) n


f (x) = f (0) + (x) + (x) + · · · + (x) + · · · .
1! 2! n!

Sabemos que f (n) (x) = ex (LIMA, 1976, Exemplo 31, p. 291), para todo n ∈ N. Em particular
para x0 = 0, temos f (n) (0) = e0 = 1 para todo n ∈ N. Note ainda que f (0) = e0 = 1.
Das observções feitas, concluimos que

x x2 xn
ex = 1 + + + ··· + + ··· ,
1! 2! n!

ou seja,
1 1 1
e=1+ + + ··· + + ···
1! 2! n!
11
Toda sequência monótona e limitada é convergente.
Diremos que f : I → R é de classe C ∞ em I quando f ∈ C n para todo n = 0, 1, 2, 3, . . . Em outras
12

palavras, quando se pode derivar f tantas vezes quantas se deseje, em todos os pontos do intervalo I.
13
Seja f : R → R a função exponencial: f (x) = ex . Então suas derivadas sucessivas são todas iguais a ex .
A fórmula de Taylor em torno de 0 tem o aspecto:

x2 xn ecn
ex = 1 + x + + ... + + · xn+1 com |cn | < |x|
2! n! (n + 1)!
.
59

Agora, a prova de que e é irracional.

Teorema 5.3. O número e é irracional.

1 1 1
Demonstração. Foi demonstrado no Lema 5.2 que e = 1 + + + ··· + + ···.
1! 2! n!
p
Suponha que e seja um número racional. Portanto, existem p, q ∈ N tais que e = .
q
p
Suponha ainda que seja irredutı́vel, isto é, mdc(p, q) = 1. Assim, temos que
q
 
p 1 1 1 1
= 1 + + + ··· + + + ···
q 1! 2! q! (q + 1)!

donde
 
p 1 1 1 1 1
− 1 + + + ··· + = + + · · · > 0.
q 1! 2! q! (q + 1)! (q + 2)!
1 1 1 1
Mas, observe que = e = e
(q + 1)! (q + 1)q! (q + 2)! (q + 2)(q + 1)q!
1 1
= , . . . . Assim,
(q + 3)! (q + 3)(q + 2)(q + 1)q!

 
1 1 1 1 1
+ + ··· = + + ...
(q + 1)! (q + 2)! q!  (q + 1) (q + 2)(q + 1)
1 1 1
< + + ... .
q! (q + 1) (q + 2)2

 
1 1
Agora note que + + . . . é a soma dos termos de uma progresão geométrica
(q + 1) (q + 2)2
1 1
infinita cujo primeiro termo é e a razão é . Logo, a soma é igual a
q+1 q+1

1
(q+1) 1 (q + 1) 1
 = = ,
1− 1 (q + 1) q q
(q+1)

isto é,
 
1 1 1
+ + ... = .
(q + 1) (q + 2)2 q

Segue que,
1 1 11
+ + ··· <
(q + 1)! (q + 2)! q! q
60

e, portanto,
 
p 1 1 1 11
0 < − 1 + + + ... + <
q 1! 2! q! q! q

donde
 
p 1 1 1 1
0 < q! − 1 − − − ... − < ≤ 1.
q 1! 2! q! q
 
p 1 1 1
Como q! − 1 − − − ... − ∈ Z+ , temos um absurdo, pois é impossı́vel existir
q 1! 2! q!
um número inteiro positivo menor que 1. Portanto, e é irracional.
Capı́tulo 6

Algumas sugestões de abordagem dos


números reais no Ensino Básico

As atividades abaixo são sugestões para o ensino dos números reais no Ensino Básico. Nelas
o professor poderá utilizar dos recursos históricos apresentados neste trabalho nos capı́tulos
anteriores, como base para uma apresentação dos números. Além disso, estas atividades não
estão relacionadas a um nı́vel de escolaridade especı́fico, ou seja, não é necessário que sejam
aplicadas somente no primeiro contato do aluno com os números irracionais, elas podem ser
utilizadas a qualquer momento em que o professor perceber a necessidade.

6.1 Definição de números reais

Como foi dito anteriormente, ensinar a construção dos números reais através das sequências
de Cauchy é um tanto quanto inadequado para o Ensino Básico. Entretanto, apresentaremos
uma proposta de ensinar o conteúdo ao estudante evitando cometer o pensamento cı́clico
comentado no Capı́tulo 1, todavia, sem adentrarmos os detalhes técnicos apresentados no
Capı́tulo 2, para que ele consiga assimilar o conteúdo.
Já vimos que, para cada número racional, existe um segmento de reta cuja medida é o valor
deste número. Isto é, existe um ponto na reta para cada número racional. Se escolhermos
uma origem para a reta, podemos marcar os racionais como segmentos dela. Contudo, existem
segmentos na reta que não correspondem a números racionais. Seguiremos com um exemplo

61
62

de atividade cujo objetivo é fazer com que os estudantes compreendam isso.


Iniciamos com um exemplo que leve o estudante a perceber que, dados dois objetos lo-
calizados no espaço, é possı́vel medir a distância entre eles. Em outras palavras, dado um
segmento de reta, temos um número que podemos associar a ele. Sendo assim, podemos
imaginar uma reta como uma régua, com certo ponto fazendo o papel de origem O. É intui-
tivo para o estudante que, ao escolhermos qualquer outro ponto na reta, existe uma distância
entre esse ponto e a origem. Escolhemos uma distância que consideramos ser de uma unidade.
Denotamos esse ponto por B. Após isso, traçamos uma reta a partir do ponto B, formando
um ângulo reto com a reta inicial e marcamos a posição de uma unidade nesta nova reta.
Este será o ponto C. Traçamos um segmento de reta entre O e C. A seguir, fazemos uma
circunferência de centro em O e raio OC. Esta cortará a reta inicial em um ponto D. A
imagem abaixo representa a figura formada após estes passos.

Figura 6.1: Proposta de apresentação dos números reais.

Conforme mencionado, é intuitivo para o estudante que existe algum número que representa
a distância entre os pontos D e O. Denotamos este número por d. Mas d é a medida de
OC, e OBC é um triângulo retângulo em B. Ao aplicarmos o Teorema de Pitágoras teremos
d2 = BC 2 + OB 2 , donde d2 = 1 + 1 = 2 . Portanto, procuramos um número positivo, d,

que elevado ao quadrado seja igual a 2. Denotamos d = 2. Suponha que este número seja
√ p
racional. Podemos escrevê-lo na forma de 2 = , com p, q ∈ Z, q 6= 0, onde mdc(p, q) = 1
q  2
p
(p e q são primos entre si). Elevamos ambos os lados ao quadrado, 2 = . Então
q
63

2q 2 = p2 . Temos que 2q 2 é par donde p2 também é par. Como p2 é par, p também é par.
Logo, podemos reescrever p por p = 2k com k ∈ Z. Substituindo na última igualdade temos
2q 2 = (2k)2 donde 2q 2 = 4k 2 . Daı́, q 2 = 2k 2 . Isso mostra que q 2 é par donde q também

é par. Mas isso contraria a hipótese de que p e q são primos entre si. Portanto 2 não é
um número racional. Ou seja, existe um número na reta que não pode ser representado por
divisões entre inteiros.
Utilizando a atividade descrita, é possı́vel mostrar a existência dos números irracionais de
maneira correta, pois, de fato, existe um número que não é racional que foi encontrado em
uma reta no qual não se vê nenhum espaço vazio. Podemos estender essa atividade para
calcular outras raı́zes quadradas inexatas. Portanto, seu uso permite-nos encontrar infinitos
números irracionais.
Essa é uma apresentação geométrica que não apresenta erros. Contudo, é de grande valia
que o professor do Ensino Básico conheça a forma analı́tica de construção dos números reais,
pois esta última nos permite a construção da totalidade dos números irracionais, e não somente
alguns.
Além do método geométrico ser uma proposta que visa facilitar a aprendizagem, vale
ressaltar que foi através da ideia intuitiva de uma reta contı́nua que Dedekind iniciou seus
estudos, no qual, surgiu uma das construções dos números reais.

6.2 O número π

É importante que o professor conheça a demonstração da existência e irracionalidade do


π vistas no Capı́tulo 4, no entanto, usaremos a definição usual para elaborar uma proposta de
apresentação do π no Ensino Básico.
Essa proposta envolve o trabalho com material manipulativo e o software GeoGebra. Di-
versos objetos de formato circular são usados. Como, por exemplo, tampa de pote, tampinha
de refrigerante, moeda. Além desses, tiras de barbante e régua.
Com o barbante, tira-se o tamanho da circunferência de todos os objetos e mede-se com
a ajuda da régua. É impostante que essa medição seja a mais precisa possı́vel.
Tenta-se marcar, com a maior precisão possı́vel, o centro da circunferência de todos os
64

Figura 6.2: Medição da circunferência da tampa.

objetos. Usando a régua, mede-se o diâmetro de todas as circunferências.

Figura 6.3: Medição do diâmetro.

Por fim, divide-se o valor dos comprimentos pelos seus respectivos diâmetro.
Os números encontrados sempre serão aproximadamente 3, 1415. Para ter uma outra
ideia disso, usamos o software GeoGebra para uma apresentação de que, independente do
C
comprimento da circunferência C e de seu diâmetro d, a proporção é sempre a mesma.
d
Uma ilustração da atividade pode ser vista na figura abaixo. Para ver a atividade completa, o

Figura 6.4: Definição de π.

leitor pode acessar o link:

https://www.geogebra.org/m/PtyurjME?doneurl=%2Falexandretuller90
65

É claro, estas atividades não demonstram que a razão entre o comprimento e o diâmero tem
sempre o mesmo valor para qualquer circunferência. No entanto, depois de muitos exemplos e a
atividade no GeoGebra, o estudante se dará por convencido. Se, por um lado, as demonstrações
no Capı́tulo 4 são inadequadas ao estudante do Ensino Básico, por outro, após essas atividades,
o professor pode, ao menos, informar ao estudante que existem demonstrações para o fato
que está sendo verificado intuitivamente.
C
Tendo concluı́do que a razão é constante, chamamos esta razão de π. Isto é, definimos
d
C
a constante pi por π := onde C é o comprimento de uma circunferência qualquer e d é o
d
diâmetro da mesma circunferência. O professor pode até aproveitar o momento e justificar a
fórmula para calcular-se o comprimento da circunferência a partir do raio. Ora, da definição
acima, temos que C = πd. Como o diâmetro é o dobro do raio, temos que C = π2r, onde r
denota o raio da circunferência. Portanto, C = 2πr.

6.3 O número e

Como dito na Seção 5.1, para Napier, dizer que L é o logaritmo de N significa dizer que
N = 107 (1 − 10−7 )L . Napier precisava que os números de sua tabela variassem lentamente.
O número que ele utilizou para o que hoje chamamos de base foi 1 − 10−7 . Repare que este
número é bem próximo de 1 (este era o objetivo dele) e menor do que 1. Bürgi utilizou
1 + 104 . Observe que este é maior do que 1. Para definirmos o número e, iremos utilizar,
propositalmente, 1 + 10−7 . Esta “base” é parecida com a de Napier, tem função análoga, e
é maior do que 1 (Estamos escolhendo a “base” maior do que 1 por conveniência, para que
1
no final tenhamos, de forma, direta o número e e não o . O leitor pode notar que isto não
e
altera o entendimento do número e.). Desta forma, passamos a ter

N = 107 (1 + 10−7 )L . (6.1)

Dividindo os números, N , e os logartimos, L, por 107 para obter valores em escala menor,
N L
temos N 0 = 7 e L0 = 7 donde N = 107 N 0 e L = 107 L0 . Desta forma, a equação em
10 10
66

107 L0
(6.1) se torna 107 N 0 = 107 1 + 10−7 , que é equivalente a

h i 0
7 L
N 0 = (1 + 10−7 )10 .

Na linguagem de hoje, chamando a = (1 + 10−7 ), temos L0 = loga107 N 0 . Em essência


7 7
a10 = (1 + 10−7 )10 é a base do nosso logaritmo, análogo ao de Napier.
Mas, sabemos que a utilização do número (1 + 10−7 ) é para termos um valor próximo de 1.
Portanto, se escolhermos (1 + 10−8 ) encontraremos um valor mais próximo de 1. Quanto mais
próximo de 1, mais lentamente vão variar os valores da tabela de logaritmos. Na verdade, o
número não precisa ser particularmente da forma (1 + 10−n ). Se tomarmos n grande, teremos
que (1 + n−1 ) estará próximo de 1. E quanto maior o n, mais próximo de 1 estará (1 + n−1 ).
Desta forma, a tabela “perfeita” de logaritmos é aquela tomando-se o valor (1 + n−1 ) com
n infinitamente grande. Por isso, a base “perfeita” para o logaritmo é (1 + n−1 )n com n
infinitamente grande.
Abaixo, vemos uma tabela com valores de (1 + n−1 )n para alguns valores de n.
 n
1
n 1+
n
1 2
2 2, 25
3 2, 37037
4 2, 44141
5 2, 48832
10 2, 59374
50 2, 69159
100 2, 70481
1000 2, 71692
10000 2, 71815
100000 2, 71827
1000000 2, 71828
10000000 2, 71828

Tabela 6.1: Aproximações do número e.

É claro, introduzir a definição rigorosa de limites no Ensino Básico pode não ser adequado.
No entanto, a Tabela 6.1 induzirá, facilmente, o estudante a acreditar que quanto maior o
 n
1
valor de n, mais próximo 1 + está de um número cujas primeiros decimais são 2, 7182.
n
67

O professor pode dizer, então, que, de tão especial que é este número, ele ganha um nome.
 n
1
Chamamos de e o número ao qual o valor de 1 + fica cada vez mais próximo conforme
n
n vai ficando cada vez maior.
O número e tem uma forte ligação com a matemática financeira, no cálculo de juros
compostos. Mostraremos como entender essa relação de forma bem simples e resumida,
considerando o problema a seguir.
Imagine que um banco pague juros de 100% ao ano. Faça um esforço para considerar
essa situação hipotética com um banco com tamanha generosidade. Após um ano, terı́amos
o montante de R$ 2, 00 para cada R$ 1, 00 aplicado.
E se, com uma generosidade inexplicável, os juros fossem creditados semestralmente, ao
final de um ano terı́amos R$ 2, 25. Um sonho! A expressão para esse cálculo é a seguinte:
 2  4
1 1
1+ = 2, 25. Se o crédito for trimestral, temos 1 + = 2, 44141. De forma geral,
2 4  n
1
o montante obtido, ao final de um ano, para cada real investido é 1 + se os juros são
n
creditados n vezes ao ano.
O que nos parece ideal, seria o crédito instantâneo, isto é, os juros seriam creditados
continuamente. Na matemática financeira isto é chamado de “capitalização contı́nua”. Neste
 n
1
caso, o montante obtido, ao final de um ano, para cada real investido é 1 + para n
n
infinitamente grande, isto é, este montante é igual a e.
De forma geral, o montante M (t) obtido após t anos a partir de um capital C investido
a taxa de juros i ao ano, com juros creditados continuamente é dado pela expressão M (t) =
 nt  n
i 1
C 1+ para n infinitamente grande. Como já sabemos, o valor de 1 + para n
n n
infinitamente grande é igual a e. Com isso, após alguns cálculos, obtemos M (t) = Ceit .
Considerações finais

No desenvolvimento do presente estudo falamos sobre a dificuldade em ensinar números


reais no Ensino Básico, em especial os números irracionais; fizemos uma construção rigorosa
deste conjunto e de suas propriedades; fizemos um breve histórico dos números irracionais
π e e, suas definições analı́ticas e suas demonstrações de irracionalidade; finalizamos com
sugestões de abordagens dos números reais para o Ensino Básico.
Vimos uma breve história do surgimento dos conjuntos numéricos e vimos, ainda, a cons-
trução do conjunto dos números reais através das sequências de Cauchy. Foi possı́vel observar
que essa construção é inadequada ao Ensino Básico, contudo ela é uma das formas corretas,
do ponto de vista analı́tico, da abordagem dos números reais. Sugerimos, então, atividades
nas quais é possı́vel lidar com este conteúdo usando conhecimento prévio dos estudantes do
Ensino Básico adquiridos ao longo de seus estudos.
Para que isso seja efetivo, o professor, além de conhecer o conteúdo de Análise Real, deve
ter intimidade com ele a ponto de conseguir estabelecer uma relação deste com o que será
ministrado por ele. Essa é uma das justificativas da necessidade do estudo da disciplina Análise
Real, pois a visão analı́tica proporciona ao licenciando um contato com os “porquês” que estão
atrelados ao conteúdo do Ensino Básico.
Não obstante, argumentamos sobre a dificuldade de realizar essa ligação, por conta dos
obstáculos inerentes à disciplina e pela forma em que os assuntos são abordados. À vista disso,
este trabalho pode ser utilizado como instrumento auxiliador ao licenciando, considerando as
diversas demonstrações aqui presentes e suas ligações com os estudos do Ensino Básico. De
fato, o leitor pôde perceber a utilização de assuntos da Análise Real e como é necessário saber
as definições e teoremas. É possı́vel que, durante os estudos na licenciatura, o estudante não

68
69

note o quanto eles são importantes, no entanto vimos que eles explicam muita coisa que é
ensinada em sala de aula no Ensino Básico. Por exemplo, as séries de Taylor motivam as
definições analı́ticas de cosseno e seno; para definir o número π foram necessários a definição
de continuidade, as questões de monotonicidade e o Teorema do Valor Médio; para a de-
monstração de sua irracionalidade foram necessários a definição de limite de sequências e o
Teorema Fundamental do Cálculo; o teorema que diz que toda sequência monótona e limitada
é convergente foi necessária para a definição do número e. Estes são alguns dos exemplos
dentre tantos que utilizamos, mesmo que implicitamente, nos conteúdos do Ensino Básico.
Ao considerar o que foi abordado, podemos reafirmar a essencialidade da disciplina Análise
Real na formação do licenciando em Matemática
Referências

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