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ole Cappellini REFERENCIAS AMARAL NETO, Francisco, Raclonalidade e sistema no direito civil brasileiro, Rio de Sancire: 0 Diteito, 1994. v. 1-2 BERTI, Giorgio, Interpretazione costituzionale. 2. ed. Padova, 1990. BULOS, Uadi Lamego, Constituigio Federal Anotada, Sao Paulo: Saraiva, 2000. ESPOSITO, Robert; RODOTA, Stefano, La maschers della persona. In: MicroMega 3/2007 p. 105-115. FACHIN, Luiz Edson. Temas de Direito Civil Rio de Janeiro: Renovar, 1999. "Teoria Critiea do Direto Civil, Rio de Janciro: Renovar, 2000. FFARIAS, Cristiano Chaves de. Achegas para (além da) reforma do Cédigo Civil. Teresina, 42.5; 36, abr 2001, Dispontvel ems chifpjus2uol.com bridoutrina/texto,asp?id=2019>. LOPES, José Reinaldo de Lima, Direitos sociais: Teoria e prt. Sto Paulo: Método, 2006, LOWITH, K. Der europAische Niklismus: Betrchtungen zur geistigen Vorgeschichte des curoplischen Krieges, 1939-40, Tradvedo italiana de C. Gali. Roma-Bar, 1989. SOARES, Mirio Licio Quinto; BARROSO, Lucas Abreu. Os prineipios informadores do ‘novo Cédigo Civil eo: principias constitucionais fundamentais: Lineamentos de um con- flit hermenutico no ordenamento juriico brasileiro. Teresng, a. 7, n. 64, abr, 2003. Dispo- nivel etn: . ‘SPAEMANN, Robert. Persone, Sulla differenza fra “qualcosa” e “qualcono”. Roma-Bari, 2005. ESTADO DE DIREITO E DIREITOS DO SUJEITO: O PROBLEMA DESSA RELACAO NA EUROPA MODERNA' Pietro Costa’ ‘Sumério: 1. Premissa; 2. Estado de direto e direitos Individuais: Um ineulo consitivo da madernidade; 3. A consirugo da teoria: Da ad isirago sub lege oo Rechtsstaat constiucional 4. Do modelo Kelseniano ‘a0 consttucionalizmo do segundo pés-guerra: 5. O caréter “seletivo” e “inlermitene" do estado de direlto: Os paradaxos da igualdade ea asti- cia co poder; 6. Referéncias. 1 PREMISSA © titulo da nossa sesio congressual nos convida a refleti sobre o vi culo que une dois conceitos-chave da modemidade: Estado de direito e cidada- nia, Esse vinculo pode ser focalizado a partir de diversos pontos de vista © as- sume caracteristicas diversas de acordo com o significado atribuido aos termos cempregados. No que diz respeito ao termo cidadania — cujo recente sucesso planeté- rio é inversamente proporcional a clareza do seu significado — o recurso a uma definigio convencional, estipulativa, parece indispensdvel. Proponho empregar 0 termo “cidadania” para descrever a relagdo de pertencimento de um sujeito a ‘uma comunidade politica; uma relago da qual decorre o conjunto dos Onus € dos privilégios, dos deveres e dos direitos dos quais goza um individuo em uma ‘determinada sociedade. Na qualidade de relagio politica fundamental, na quali- dade de relacio de pertencimento a uma comunidade politica, a cidadania inclui ‘08 direitos do sujeito, mas nao se identifica totalmente com eles. Os direitos dos ‘Tradueto de Luiz Emaai Fs i (Professor do departamento de letras estrangeiras moderas da UFPR) Sérgio Seid StautJinir Profesor do departamento de drcto privado da UFPR), Professor eatedrdtco de Hstria do Direito da Universita degli Stu i Fienze, Ilia, 58 Pietro Costa {quais um individuo vem efetivamente a gozar dentro da sua cormmidade politica da qual pertence constituem, entretanto, um momento essencial da cidadania, 'No que diz respeito ao termo ‘Estado de direito’, poderfamos partir da sua acepgio mais genética, possivel de ser reconduzida & imagem de uma po- testas sub lege, & idéia de um Estado submetido ao dieito. Convém, entretanto, precisar imediatamente que uma tal nogdo se presta a ser declinada em duas diregGes notadamente diversas: em um primeiro sentido, o Estado submetido a0 direito é simplesmnente um Estado que deve expritnir a sua vontade na forma do direito, sem que disso derive alguma destinagéo funcional ou qualquer vinculo 4e conteiido em sua aro; em um segundo sentido, a submissio do Estado a0 direito é, a0 contrétio, justificada e valorizada em nome de uma visio, substan- ccialmente comprometida com 0 conteiido, do ser humano e da sociedad, #8 aesta segunda imagem do Estado de diteito que farei referéncia: um Estado de diteito construfdo em fungdo de um sujeito e de uma ordem que en- contram nos direitos o seu principal ponto de referéneia. A hipétese da qual parto é, portanto, que os direitos do sujeito constituem, de fato, o ponto no qual a teoria do Estado de direito se imbrica no discurso da cidadania. 2 _ ESTADO DE DIREITO E DIREITOS INDIVIDUAIS: UM ViNCULO CONSTITUTIVO DA MODERNIDADE, im qual contest histric coloea o pono de rigem da toa do Et do de dre!” A exigeneia' ql Esta de dict que tesponet esl pre sente em toda a extensio da cultura ocidental, de Platdo a Aristoteles, aos juris- tas medievais, ao modemno constitucionalismo: é a exigéncia de por limites & vontade arbitréria do soberano, constrangendo-o a respeitar uma norma impes- soal ¢ geral. Podemos, entao, afirmar que nihil sub sole novi, que a historia & uma mondtona repetigao do idéntico? Nao creio. Se é verdadeiro que algumas Grandes Perguntas sio recorrentes nas mais diversas culturas, é igualmente ver- dadeiro que as respostas a elas (¢ 0 proprio modo de propd-las) mudam drasti- camente segundo as erengas e 0s valores compartilhados, de acordo com os interesses € os contlitos em jogo. ‘Observemos a Idade Média. A idéia de um poder limitado ¢ familiar aos autores medievais', mas a representago do poder e dos seus limites profun- ‘Sobre o Estado de dreito em termos gras, entre as obras recentes, ef. JOUANIAN, O. (Org). Figures de Etat de droit: Le Rechtstat dans histoire intellciuelle et constitionnelle de Allemagne; COSTA, P; ZOLO, D. (Orgs). Lo Stato di dirt: Storia, eo, cities (Traduyao brasileira: O Estado de Direlto: Historia, teria, erica); HEUSCHLING, L. Etat de droit, CHEVALLIER, 1. L'Etat de droit; BIN, R. Lo Stato di dirito (come imporre regole al po- tere); BELLAMY, R. (Ed). The Rule of Law and the Separation of Powers, Cf, p. ex, CARSTENS, R. W. The Medieval Antecedents of Const PENNINGTON, K. The Prince and the Law, 1200-1600: Sovereignty and Righis inthe Wester Lega Tradition. Histria do Direito em Perspectiva Ey damente diversa daquela elaborada pelos modemnos. Em primeiro lugar, os mo- dernos tém uma visio voluntarista da soberania, contréria ao racionalismo do- minante na cultura politica medieval. © mesmo Corpus Juris, expresséo da vontade legiferante de um imperador, toma-se, nas m&os dos juristas medievais, ratio seripta, Em segundo lugar, a ordem politica € concebida como uma piré ‘mide, uma hierarquia auto-suficiente: o imperador é o seu cume, mas € mesmo assim parte dela, parte do todo, mero componente de uma ordem que 0 inclu. O ‘seu poder é, portanto, limitado pelas regras que govemam 0 corpo social e poli- tico, Para comprovar, pense-se na representagao do tirano. O tirano é um sobe- rano que violou a justa ordem: a condenago unénime a eie reservada pela lite- ratura medieval chama em causa no tanto as liberdades € 08 direitos dos indi duos, quanto as razSes descumpridas do bem comum e da ordem geral’. Em con- clusdo: a imagem medieval de uma potestas sub lege temete & idéia de uma ordem geral, desigual e hierérquica, dentro da qual 0 individuo no ocupa uma posigaio decisiva e fundante®, ‘A passagem & modernidade & assinalada pela difusdo de uma nova visio antropolégica. F 0 protagonismo do sujeito que reclama a satisfacdo de duas, cexigéncias complementares: a submissdo do poder a vinculos insuperéveis © a atribuigdo ao sujeito de direitos fandamentais. Na perspectiva lockiana, © mais, tarde também iluminista e revolucionéria, os direitos so a expressio imediata do ser humano como tal. O individuo lockiano € capaz de conservar a si mesmo ‘enquanto livre para apropriar-se, com o Jabour do seu corpo, com o emprego das suas energias intelectuais fisicas, dos bens necessirios para a sua subsistencia: liberdade € propriedade so, ao mesmo tempo, 08 direitos invioldveis de todo individuo e as regras essenciais de uma ordem que precede logicamente 0 arranjo dda soberania. A liberdade ¢ # propriedade — que so conjuntamente direitos do sujeito e estruturas de sustentag#o da ordem social ~ ndo sio criadas, mas so apenas reconhecidas e garantidas pelo soberano. O soberano age nos limites de ‘uma ordem que € uma “ordem dos direitos”: uma ordem que coincide com os direitos — a liberdade-propriedade — dos sujeitos. Também quando se optar por sublinhar o papel decisivo da lei, expressdo de uma nova soberania racional — pense-se em tantos reformadores iluministas ¢ também na ‘filosofia revolucion ria’ ~ ese olhard para ela como um instrumento destinado & tutela e & realizagio dos direitos fundamentais Podemos entio colocar na cultura do constitucionalismo e do jusnatura- lismo do século XVITI 0 ponto de encontro entre o Estado de direito e os direitos, do sujeito? A resposta deve ser articulada. Estamos certamente diante de uma convergéncia fundamental: a intengéo de impor vinculos ao soberano se confun- de com a exigéncia de atribuir ao sujeito os direitos fundamentais da liberdade e da propriedade. A cultura reformadora do século XVIII pensa (conjuntamente, + Cf. GROSS!, Palo. Lorde giueidio medievale, * CL OOCHI, Cl; SIMONETTA, S. II Principatus dspoticus nellaristotelismo bassomedic- vale. n: FELICE, D. (Org). Dispotismo: Genesiesvilupi di un concett flosofice-polticn, vp. 71-54 © 10 Costa em um mesmo movimento) os direitos dos sujeitos e os vineulos do soberano; ou, se preferirmos, pensa 0 sujeito como titular de direitos fundamentais ¢ 0 soberano como investido de um poder funcionalmente direcionado & defesa desses direitos. A rigor, nfo deveriamos nem ao menos falar da instaurago de uma relagio entre a limitagao da soberania ¢ 0 reconhecimento dos direitos, visto que 0 conceito de relagao induz a pensar na existéncia de entidades auté ‘nomas que spenas em um segundo momento estabelecem uma relagéo entre si. 5 direitos do individuo e a limitago do poder soberano sao preferencialmente deserites como dus faces da mesma moeda. Este vineulo origindrio é em uma certa medida, fundante ¢ determi- nante para toda a historia sucessiva do Estado de direito. necessério, porém, acrescentar prontamente uma especificagao. No contexto do século XVIII, re- volucionario, j6 existe a “coisa”, mas ainda nfo o “nome”: ndo existe o nome ‘Estado de direito” e nfo existe tampouco uma correspondente e articulada teoria Jjuridica; existe, e se manifesta com grande evidéncia, a ‘coisa’: ou seja, @ exi- géncia de limitar o poder com um direito que tende a coincidir ~ esta é a novida- de que inaugura uma nova época — com os direitos fundamentais dos suj ‘Uma verdadeira e prépria teoria do ‘Estado de direito’ se desenvolve somente no século XIX; e se desenvolve, por um lado, acolhendo ¢ desenvol- vendo as reivindicagdes emersas na cultura do século XVIII, mas, por outro ado, expressando preocupapdes ¢ tendéncias novas e originais. ‘Uma heranca iluminista & sem divida a conexao obrigatoria entre 0 primado da lei e a liberdade dos individuos. Para complicar 0 quadro interveio, porém, um evento que marca enormemente uma época: a revolugao francesa, €, sobrettdo, a sua corrente jacobina. Depois do jacobinismo a imagem da sobera~ nia no pode mais ser a mesma porque o Terror revoluciondrio demonstrou per ‘facta a forga terrivel e a capacidade destrutiva do poder. Cafa por terra a hipote- ‘se, que continuava a ser cultivada no século XVIII ¢ também nos anos da tevo- Iugao, da espontinea alianga entre o soberano ¢ 0 individuo. liberalismo nasce na Franga do inicio do século XIX (é eto que 0 termo comega a difundir-se) segundo os preceitos de uma dupla preocupagao: salvar 0 micieo racional da mensagem revoluciondtia (os direitos: a liberdade © a propriedade) e por um freio ao poder; a aquele poder jacobino que, em nome do povo e da revolugdo, havia destruido a auitonomia do sujeito”. Para Benjamin Constant, a resposta a0 jacobinismo roda em torno de dois elementos estreita- mente entrelagados: o caréter absoluto dos diteitos (a liberdade, antes de mais nada, © por conseqléncia também a propriedade), assumidos como o funda- mento nilo negocifvel do ordenamento, ¢ a submisséo do poder a um sistema de limites e freios que bloqueiem a sua recorrente tentagao expansiva e invasiva. Os direitos esto em perigo no momento em que o poder se torna arbitririo, + BARBERIS, M, Sette studi sul lberalismo rivoluzionari: Con un'introduzione metodologi- ‘ce un'appendicebibliografica; JAUME, L. L'individu effact, ou le paradoxe du libéralis- ‘me frangais; GIRARD, L. Les Ubéraur francais, 1814-1875, KELLY, G. A. The Humane ‘Comedy’ Constant, Tocqueville and French Liberalism, subtraindo-se as regras. A submissto do poder ds regras (sob o olhar vigilante da opinido piblica) é a condigdo imprescindivel da salvaguarda dos direitos. Apre~ sentam-se estritamente complementares a submissio do Estado ao direito (a existéncia de um Estado ‘de direito’, mesmo que seja ainda a coisa, muito mais que ‘© nome, a comparecer) e a tutela dos direitos individuais (a liberdade ¢ a pro- priedade, aqueles direitos que eram assumidos como naturais na tadigao do século XVII e agora, realizados e garantidos pelas leis da civitas, pode-se dizer que em sentido plenamente ‘civis’) Defender os direitos por meio do Estado (indispensével tutor da ordem ppiblica), mas também defender os direitos contra o Estado (assegurando a su- premacia das regras sobre 0 poder): 0 vineulo entre Estado ¢ direitos é 0 ele- mento propulsor de toda a parabola do Estado de direito no Ocidente. O proble- ‘ma, entretanto, que no continente europeu petmanece nao resolvido (nos paises de common law a histéria assume por outro lado caracteristicas diversas), & a relacio entre a lei ¢ os direitos: um n6 sobre © qual pesa indubitavelmente a heranga iluminista e revoluciontria. A lei, de fato, & a expresso de uma soberania (a lé Rousseau) absoluta da qual dependem a tutela e a realizagio dos direitos, Os direitos, entretanto, por sua vez, apresentam-se como fundamentos ‘absolu- tos’ e ndo suprimiveis do ordenamento. Anuncia-se entdo um potencial conflito entre ‘absolutos” que se consttui uma aporia dificil de se resolver no ambito da ‘tadisSo juridica continental-européia do século XIX. E um problema do qual o liberalismo do século XIX ¢ perfeitamente cconsciente. Para os primeiros liberais franceses - para Constant, para Guizot, também para Tocqueville — um soberano legitimo (uma maioria parlamentar formada apés eleigbes regulares) pode tomar providéncias subversivas aos fun-

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