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Marcos Santos/USP imagens

O Tropicalismo e a
crítica da canção
Celso Favaretto
resumo abstract

O ar tigo pretende destacar a The article highlights the uniqueness of


especificidade da atividade tropicalista, the activity of the Tropicalism movement,
entendendo os modos de produção da focusing on the modes of production
canção, que a distinguiram desde o seu which distinguished its songs since its
surgimento, em termos de concepção, beginning in terms of concept, structure,
estrutura, veiculação e de intervenção nos transmission and intervention on the
debates artístico-culturais da década de artistic and cultural debates taking place
60 no Brasil. in Brazil during the 1960s.

Palavras-chave: arte; cultura; canção; Keywords: art; culture; song; Tropicalism;


Tropicalismo; experimentalismo; política. experimentalism; politics.
D
esde o seu surgimento, mar- canção no Brasil. Os artistas, o público, a crítica,
cante no Tropicalismo foi o os sistemas de comunicação, todos foram atingidos
seu modo inusitado de arti- pelo modo inusitado como as invenções musicais
cular a ênfase experimental – e a atuação do chamado grupo baiano incidiram
que implicava uma inovação na situação de criação, na significação social da
no que se entendia por canção canção e nas estratégias políticas que pretendiam
– e a crítica às formulações evidenciar as contradições daquele momento his-
vigentes sobre as maneiras tórico. A singularidade do Tropicalismo caracte-
de integrar a crítica cultural rizou-se por fazer incidir a crítica social e política
e política, extensivamente ao diretamente na estrutura da canção, na sua cons-
que se entendia por realidade trução de imagens, que alegorizavam aspectos
brasileira, um conceito compó- emblemáticos da história, das culturas e das artes
sito que totalizava a ideia e os no Brasil, articulando uma contundente crítica às
processos de participação política nas artes. Mais nossas indeterminações. Significativamente, Cae-
precisamente: estranho foi o modo de conceber e tano Veloso em uma entrevista posterior disse que
realizar na música a relação entre arte e realidade o Tropicalismo distinguiu-se pela “explicitação da
social imediata, entre cultura e linguagem, através função crítica da criação” – o que pode ser enten-
de uma articulação inusitada em face das soluções dido como uma atividade crítico-reflexiva sobre os
que se apresentavam na época, particularmente nos poderes da canção, artística e politicamente.
domínios da arte de vanguarda. Foi raro, quando irrompeu, o entendimento da
A singularidade da atividade tropicalista foi especificidade e complexidade do Tropicalismo,
alvo de suspeitas e acusações, por uma parte da que produzia uma relação tensa entre vanguarda
crítica e do público – que lhe atribuíam a pecha e comunicação, vanguarda e mercado, vanguar-
de arte alienada, comercial e estrangeira sem re- da e participação e não, como era acentuado por
conhecer caráter inovador na estrutura da canção algumas críticas que lhe atribuíam um certo ime-
e revolucionário na significação e atuação política. diatismo, uma mera resposta a demandas cultu-
Configurou-se como uma intervenção artístico- rais e do mercado devido ao fato de se conectar
-cultural que definiu uma posição estética radical, a novos comportamentos que começavam a evi-
com ressonâncias imediatas e de ampla atuação na denciar uma cultura moderna. A urgência de po-
produção artística brasileira, que repercute, pela
sua exemplaridade, até hoje.
Foi uma intervenção cujo vigor deveu-se ao
CELSO FAVARETTO é professor aposentado
fato de situar-se consciente e decisivamente na da Universidade de São Paulo e autor de,
concepção e no próprio sistema de produção da entre outros, Tropicália Alegoria Alegria (Ateliê).

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sições efetivas para o enfrentamento da situação “perspectiva criadora”, especialmente na “tendên-


sufocante na política, na cultura, na educação, na cia tropicalista”. Para ele, o Tropicalismo era “ne-
intelligentsia e nas artes contribuía decisivamente orromântico”, pois agredia apenas as aparências
para o aparecimento de suspeitas quanto às possi- da sociedade, “o predicado e não o sujeito”; era
bilidades críticas das produções de vanguarda em “homeopático”, porque ambiguamente endossava
todas as áreas, devido a possíveis ambiguidades o que criticava, pois esta crítica seria inarticulada,
do processo de composição de experimentalismo caótica, portanto, sem clareza política.
artístico, crítica social e ação política. Contudo, outra foi a posição explicitada por
Tome-se como exemplo privilegiado da com- Hélio Oiticica (1968) no artigo “A Trama da Ter-
plexidade da questão e das posições críticas do ra que Treme. O Sentido de Vanguarda do Grupo
período, os artigos: “MMPB: Uma Análise Ide- Baiano”. Oiticica ressaltou a coincidência de pro-
ológica”, de Walnice Nogueira Galvão (1968); “O posta, de procedimentos e de crítica cultural entre
Contexto Tropical”, de O. C. Louzada Filho (1968) o seu programa ambiental e a produção do grupo
e “Notas sobre Vanguarda e Conformismo”, de baiano. Detectou nos tropicalistas uma posição
Roberto Schwarz (1967). Nesse sugestivo e sinto- revolucionária no processo de revisão cultural por
mático artigo, significativo do entendimento que meio da renovação das artes no Brasil, pois esta-
se tinha na ocasião das ambiguidades ideológicas vam sintonizados com os “problemas universais
das vanguardas, mais amplamente da integração da vanguarda”, manifestando em suas atividades
do moderno, o crítico, comentando entrevistas visão estrutural e radicalidade crítica. Reconhe-
feitas por Júlio Medaglia (1967), publicadas no ce neles uma prática que se assemelhava à sua: a
Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, renovação da música, dos critérios de juízo e dos
com músicos eruditos de formação contemporânea comportamentos derivados da nova audição que
que atuavam em São Paulo – sendo que alguns, requeriam, passavam pelo modo de compor, ar-
como Duprat, Cozella e o próprio Medaglia, fize- ticulando conceitualismo, construtividade e par-
ram arranjos para canções tropicalistas –, assim ticipação. Os tropicalistas, dizia Oiticica, “modi-
ressaltava tais ambiguidades: ficam estruturas, criam novas estruturas”. Dentre
as produções tropicalistas, destacou a semelhança
“Sabe-se que progresso técnico e conteúdo social do programa de televisão “Divino Maravilhoso”
reacionário podem andar juntos. Essa combina- com as suas manifestações ambientais. Aí, diz ele,
ção, que é uma das marcas do nosso tempo, em foram reunidos todos os elementos que compõem
economia, ciência e arte, torna ambígua a noção o “caráter ambiental” das canções, totalizados
de progresso. Também a noção próxima, de van- no “calor ambiente” propiciado pelo espetáculo:
guarda, presta-se à confusão. O vanguardismo sentido grupal, dança, roupas e adereços, cenário,
está na ponta de qual corrida?”. recursos eletrônicos, improvisação, interferências
aleatórias geram “a trama-vivência”.
Em importante ensaio posterior, “Cultura e As coincidências entre as duas tropicálias, a
Política de 1964 a 1969”, embora ressaltando a despeito de suas especificidades, devem-se ao re-
importância do Tropicalismo, inclusive lançan- dimensionamento dos protagonistas, dos artistas
do a primeira formulação consistente da estética e do público, ao imbricamento de ética e estética,
tropicalista, com sua análise das imagens alegó- na ênfase nos comportamentos renovados; sobre-
ricas, em que acentua o brilho das imagens efetu- tudo pela articulação de uma atitude crítica, de
adas nas canções, ele reafirmava as dificuldades uma modalidade de pensamento que valorizava
ideológicas da posição tropicalista: que as am- a ambivalência das proposições e não suas am-
biguidades proviriam basicamente da aceitação biguidades, diferindo daquelas posições que, em-
conformista das determinações do mercado. Já bora diferenciadas, conservadoras ou não, davam
Augusto Boal, no texto “O que Pensa Você do a cor ao debate crítico em desenvolvimento. Para
Teatro Brasileiro?”, inserido no catálogo da 1a enfrentar as indeterminações do que chamou “Bra-
Feira Paulista de Opinião, em 1968, de modo re- sil diarreia” e Gil e Torquato Neto, “geleia geral
dutor denunciava a interferência do mercado na brasileira”, Oiticica considerava que a ambivalên-

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cia funcionaria como o procedimento crítico eficaz de coerência crítica que gera a tal conviconivência;
contra as atitudes polarizadoras, estéticas e ideo- a reação cultural, que tende a estagnar e se tornar
lógicas, contribuindo para o descentramento das oficial” (Oiticica, 1973, pp. 150-1).
posições, inclusive para a reavaliação dos fracassos
e inadequações dos projetos e estratégias culturais Assim, polêmica e distintiva, essa posição in-
e artísticas em debate, para a reavaliação da eficá- dicava a necessidade de deslocamentos na crítica
cia política das ações através do questionamento e na recepção da canção, de modo que a com-
dos modos de expressão artística e do papel sócio- preensão e aceitação do Tropicalismo exigia uma
-histórico das artes. No texto “Brasil Diarreia”, diz: mudança da audição, dos critérios do que era
até então considerado música popular e do seu
“É preciso entender que uma posição crítica im- valor cultural, assim como a transformação das
plica inevitáveis ambivalências, pois pensar em categorias de avaliação de suas várias dimensões
termos absolutos é cair em erro constantemente – – artísticas, políticas e de entretenimento. Se, na-
envelhecer fatalmente: conduzir-se a uma posição quela ocasião, de um lado, a música tropicalista
conservadora (conformismos; paternalismos, etc.); foi recebida com entusiasmo por aqueles que es-
o que não significa que não se deva optar com fir- tavam em busca do novo, valorizando a estranhe-
meza: a dificuldade de uma opção forte é sempre a za e desconfiando da suposta eficácia crítica da
de assumir as ambivalências e destrinchar pedaço maior parte da produção da arte participante, por
por pedaço cada problema [...] entender e assumir outro, não era aceita facilmente por aqueles que
todo esse fenômeno, que nada deva excluir desta se mostravam desconfiados de uma arte que se
‘posta em questão’: a multivalência dos elementos apresentava com inequívoco tom de provocação
‘culturais’ imediatos [...] reconhecer que para se política e moral através de uma expressão difícil,
superar uma condição provinciana estagnatória, estranha, em texto e música difíceis de serem en-
esses termos devem ser colocados universalmen- tendidos na chave da tradição da música popular
te, isto é, devem propor questões essenciais ao fe- brasileira, cheia de efeitos de linguagem que difi-
nômeno construtivo do Brasil como um todo, no cultavam a identificação das formas consagradas
mundo [...]. Nossos movimentos positivos parecem da canção e resistente à produção de mensagens.
definir-se como, para que se construam, uma cul- Para uma visada da música popular, e da arte
tura de exportação: anular a condição colonialista em geral, interessada na comunicação de conteú-
é assumir e deglutir os valores positivos dados por dos políticos, sociais, morais e artísticos, ou seja,
essa condição e não evitá-los como se fossem uma para uma visão ideológica que apostasse em algu-
miragem [...] assumir e deglutir a superficialidade ma espécie de instrumentalização da arte, tendo
e a mobilidade dessa ‘cultura’ é dar um passo bem em vista, por exemplo, a sua importância para a
grande – construir – ao contrário de uma posição transformação social, mais ou menos imediata,
conformista, que se baseie sempre em valores ge- as músicas tropicalistas não seriam satisfatórias,
rais absolutos: essa posição construtiva surge de pois os seus processos de construção e de elabo-
uma ambivalência crítica. [...] A formação brasilei- ração dos temas não poderiam ser acessíveis, não
ra [...] é de falta de caráter incrível: diarreica; quem servindo para efeitos de mobilização política. Mais
quiser construir [...] tem que ver isso e dissecar estranhas e complicadas eram as apresentações
as tripas dessa diarreia – mergulhar na merda [...] dos tropicalistas na televisão e em outros espe-
a condição brasileira, mais do que simplesmente táculos. O aspecto comportamental da atividade
marginal dentro do mundo, é subterrânea, isto é, tropicalista também escapava à maioria. Ora os
tende e deve erguer-se como algo específico ain- tropicalistas eram tratados, especialmente pelos
da em formação [...]: assume toda a condição de tradicionalistas e reacionários, como simplesmen-
subdesenvolvimento, mas não como uma ‘con- te extravagantes, ainda que às vezes tolerados, por
servação desse subdesenvolvimento’, e sim como serem jovens, artistas, astros da televisão, assunto
uma... ‘consciência para vencer a superparanoia, de revistas, etc., ora eram alvo de críticas ferinas,
repressão, impotência’ brasileiras. O que mais dilui por serem comerciais, irresponsáveis, alienados,
hoje no contexto brasileiro é justamente essa falta etc. O moralismo estava em toda parte.

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O que é que essas diversas críticas, com orien- de alusão a uma outra posição na arte e na história.
tações ideológicas opostas, não toleravam quando Essa ruptura produzida pelo Tropicalismo tema-
atribuíam aos tropicalistas ora um certo confor- tizava e insistia criticamente no processo de des-
mismo, ora uma certa petulância? O que não esta- centramento cultural, enfatizando que, no Brasil,
va sendo entendido? Certamente não se percebia posição crítica permanente, da política e da cultu-
a dimensão, fundamentalmente construtivista, do ra, e experimentalismo artístico são indissociáveis,
trabalho dos tropicalistas; o “sentido de constru- são elementos construtivos (Oiticica, 1973, p. 152).
ção”, para usar a expressão de Hélio Oiticica, que Para se perceber essa nova atitude em face da
considerava que o experimentalismo construtivista participação, e nela entrar, exigia-se dos partici-
seria a única saída para dissolver a “conviconivên- pantes uma sensível mudança de posição, de ideias,
cia” brasileira. Sua posição crítica seguia a propo- de comportamento; uma sensibilidade aguçada
sição de Mário Pedrosa quanto à importância dessa para as diferenças, crítica das totalizações, enfim,
direção experimental em desenvolvimento no Bra- uma abertura, uma coragem para viver transforma-
sil, primeiro com Oswald de Andrade, depois nas ção. Dentre estas, era preciso valorizar o trabalho
linhagens abstratas dos anos 50, especialmente o dos tropicalistas com a heterogeneidade cultural
concretismo e o neoconcretismo – sem esquecer e a mistura de referências artísticas, perceber as
as invenções de João Gilberto. O nosso passado, relações tensas entre elementos provenientes das
dizia Pedrosa (1998, p. 412), “não é fatal, pois nós culturas populares, do consumo e das vanguardas
o refazemos todos os dias. E bem pouco preside ele – o que, aliás, ocorria não só na música como nas
ao nosso destino. Somos, pela fatalidade mesma de artes plásticas e no teatro, e em breve em todas as
nossa formação, condenados ao moderno”. artes. Basta lembrar, para exemplificar, trabalhos
A ênfase no processo construtivo das músicas de José Celso Martinez Corrêa, Oiticica, Antonio
tropicalistas permite ver nelas como se articulam Dias, Rubens Gerchman, Roberto Magalhães, Jo-
o conceitual e o sensível, ideia e comportamento aquim Pedro de Andrade, Glauber Rocha e José
– uma experiência em desenvolvimento em vários Agrippino de Paula, entre outros.
domínios artísticos, mas que nunca havia sido ex- Com esse procedimento, deslocando a ênfase
perienciada na canção. Para os críticos do Tropi- do tema para o modo de formar, o Tropicalismo
calismo, haveria nas canções uma desarticulação evidenciou as assincronias e sincretismos cultu-
de linguagem e uma falta de sentido, algo caótico, rais enquanto simultaneamente desconstruía as
incompreensível, não um processo construtivista. linguagens instituídas, o que provocava um mal-
Daí não entenderem que a participação, um re- -estar, à direita e à esquerda, embora por razões
quisito da arte do tempo, não estava ausente no diferentes. Da mesma maneira, deslocou a forma
Tropicalismo, que o político aparecia e era contun- básica da arte de protesto: as interpretações da
dente, só que, devido ao modo construtivista com realidade brasileira, transformadas em palavras
que eram compostas as músicas, a participação de ordem por via emotiva, que tiravam todo o seu
também era constitutiva da estrutura, não um efei- efeito da produção de significados totalizadores
to de uma fala através da música. A participação que deviam imprimir no público visado, o im-
dependia do grau de elaboração a que o ouvinte perativo da ação, imediata, ainda que reduzida a
era levado a operar; efeito da abertura estrutural manifestações espetaculares de inconformismo.
das canções, exigindo a entrada e interferência do Os tropicalistas não desdenhavam a necessidade
ouvinte-espectador-participante. de atingir virulentamente o seu público, apenas
As canções tropicalistas produziram, em virtu- pensavam de outro modo a eficácia de suas inter-
de dessa atitude, uma verdadeira ruptura no imagi- venções. Utilizando os efeitos de humor, a sátira,
nário da participação que comandava as ações em linguagem e gestos grotescos, carnavalizando as
quase todas as manifestações artísticas, ao operar referências, deslocaram o ouvinte-receptor dos
o deslocamento da ideia e das práticas para mo- lugares de fala estabelecidos ideologicamente,
dalidades de participação focadas no princípio de lançando o receptor a um estado de produtividade.
intervenção – na estrutura da canção e na proposi- Os desenvolvimentos posteriores da música
ção de gestos simbólicos com poder de choque ou popular, impulsionada pelo rock e pela especia-

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lização dos espetáculos, levaram adiante aquelas petáculo, internalizados na forma da composição
primeiras experimentações, transformando o cho- e externados nos comportamentos.
que e a estranheza em matéria assimilável. Mas O Tropicalismo aguçou a relação entre arte e
naquele tempo era preciso estar muito disposto à política, entre arte e sociedade, levando ao limite
inovação e a ser violentado, no gosto, nos gêneros, as possibilidades de se fazer música, de se fazer
nos temas, nas atitudes, nos valores. Era difícil as- arte e, ao mesmo tempo, produzir significações que
similar o princípio básico de construtividade, na não podiam ser imediatamente consumíveis. Um
criação, na crítica e na fruição. Os tropicalistas fi- certo anarquismo compunha-se como um ímpeto
zeram da transgressão comportamental um princí- construtivo, gerando um espírito libertário. Embo-
pio também construtivo. O modo como os artistas ra o trabalho dos tropicalistas tivesse se efetivado
se apresentavam, com roupas extravagantes, ges- dentro do sistema das comunicações, como estra-
tos provocativos, cabelos desgrenhados, compunha tégia de ação sobre o público, essa determinação
uma imagem de rebeldia, de mau gosto, segundo não partiu de uma suposta contradição entre os
os padrões da época, de cafonice, como se dizia. O meios de comunicação e a postura libertária. Os
desafio das convenções era, portanto, intrínseco às tropicalistas sabiam que trabalhavam com sistemas
canções e manifestações dos artistas. e materiais culturalmente datados e socialmente
Nas músicas, os temas eram os correntes, parti- localizados, mas escolheram correr o risco.
cipavam da atmosfera crítica do momento, presente É possível constatar mais intensamente a
em toda parte, especialmente nos programas de eficácia da intervenção tropicalista relançando
televisão dedicados aos vários aspectos da música a atenção sobre os processos de construção das
brasileira, em que se destacaram os famosos fes- imagens tropicalistas, basicamente sobre o processo
tivais. A novidade tropicalista foi transformar as alegórico. As canções tropicalistas resultam de um
costumeiras apresentações na televisão em espe- processo construtivo que agencia imagens criadas
táculos que estendiam e realizavam cenicamente a partir da justaposição de materiais diversos, de
o que estava, construtivamente, nas canções. Nas elementos díspares, provocando um efeito de obs-
músicas e nas apresentações manifestava-se a po- curidade, de estranheza, como se fosse um sonho.
ética do espetáculo centrada na eficácia do gesto Cena alusiva que alegoriza o Brasil, esta cena des-
simbólico. A espetacularidade foi a sua marca, montada evidencia as aberrações da persistência
atingindo a um só tempo a boa consciência bur- dos arcaísmos, das deformações no processo de
guesa, a música bem-comportada e, especialmente, modernização da sociedade, tal como estão expli-
as linguagens instituídas de denúncia ou de justi- citadas nas interpretações culturais, nas artes, na
ficação das posturas políticas imperantes. O que política, no sistema artístico e cultural. As can-
aparecia nas primeiras apresentações de “Alegria, ções, individualmente ou em conjunto, quando
Alegria” e “Domingo no Parque” desdobrou-se e assim consideradas, configuram na fulguração de
especificou-se, tornou-se cada vez mais contun- suas imagens uma situação histórica impossível de
dente na produção tropicalista até o final de 1968. ser concretizada com nitidez, que irrompe sob a
A música de Caetano Veloso “É Proibido Proibir”, forma de retorno do recalcado, precisamente, do
e principalmente o seu discurso, quando foi quase recalcado da nossa história. Assim, as canções ge-
impedido de cantá-la no Festival Internacional da ram significações conflitantes com os significados
Canção, no Tuca, em São Paulo, reprimido pelo designados como identificadores de uma entida-
público e a música desclassificada pelo júri, dá de abstrata, o Brasil, emblematizado em signos
bem a ideia do gesto abusado dos tropicalistas. sensíveis, que compõem “as relíquias do Brasil”.
Assim, os tropicalistas exploraram na música e Os fatos culturais designados, as formações his-
nos comportamentos os efeitos de choque e de tóricas, os estilos artísticos, usos e costumes são
estranheza. As músicas propunham ao ouvinte desapropriados de seus valores já fixados como
uma experiência inusitada de participação, pois tradição, como identitários, e são transfigurados
não poderiam ser entendidas e apreciadas sem de- pela parodização, pelo humor, pela sátira, pelos
codificação e trabalho interpretativo. Propunham procedimentos grotescos, pela carnavalização da
uma experiência de prazer e êxtase, dados no es- linguagem, evidenciando sintomas de uma histó-

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ria malformada e que talvez nunca tenha chegado são vistas como dispositivos de levantamento da
verdadeiramente a ser. repressão. A composição de paródia e alegoria,
Ora, se essas canções tropicalistas funcionam efetivada nas canções tropicalistas, leva adiante
assim como sonhos, se elas são figurações de um um trabalho extremamente importante e inédi-
desejo recalcado, do desejo disfarçado – de uma to, o trabalho de corrosão da cultura instituída
imagem de Brasil destoante das emblematizadas em seus diversos matizes. Corrosão do mito das
em muitas das canções da época, na forma da raízes populares, das mitologias da cultura de
ideologia nacionalista, em utopias como “Brasil, mercado, que pode ser entendido como um tra-
o país do futuro” e do projeto moderno desen- balho crítico, um processo de descolonização e
volvimentista –, analisar essas canções implica descentramento cultural. As canções tropicalistas
detectar, evidenciar sensivelmente as deforma- exploram o conflito entre o que é designado e
ções processadas na passagem dos conteúdos o que é significado, instalando o ouvinte numa
latentes para os manifestos através da apreensão tensão de tal modo incômoda, inquietante, que
do trabalho que produziu essa imagem: trabalho exige dele uma transformação dos modos habi-
interpretativo, como na elaboração psicanalítica tuais de ouvir, de entender, de interpretar. Assim
do processo de agenciamento dessas imagens. As fazendo, as canções conseguem desmobilizar as
canções, uma vez apresentadas, violentam as de- significações consagradas, veiculadas pela arte e
fesas do ouvinte, desde audições conformadas até pela cultura que então circulavam. Nisso consiste
as impostas pela censura. As canções, portanto, a operação desmitificadora do Tropicalismo.

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