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e1 les : O | a a L ier a & FUNDACAO UNIVERSIDADE DE BRASILIA Reitor Timothy Martin Mulholland Vice-Reitor Edgar Nobuo Mamiya Ke UnB Diretor Henryk Siewierski Diretor-Executivo Alexandre Lima Conselho Editorial Beatriz de Freitas Salles Dione Oliveira Moura Henryk Siewierski Jader Soares Marinho Filho Lia Zanotta Machado Maria José Moreira Serra da Silva Paulo César Coelho Abrantes Ricardo Silveira Bernardes Suzete Venturelli Jorn Risen Prof Lubstes id Historia viva Teoria da Historia III: formas ¢ fungdes do conhecimento histérico Tradugao Estevao de Rezende Martins Equipe editorial Rejane de Meneses » Supervisto editorial Sonja Cavalcanti - Acompanhamento editorial ‘Teresa Cristina Brandéo: Preparagdo de originais ¢ revisdo Raimunda Dias . Editoragdo eletrénica Rejane de Meneses ¢ Danizia Maria Queiroz Gama - fndice Tvanise Oliveira de Brito - Capa Elmano Rodrigues Pinheire - Acoripanharnento grafico Copyright © 1986 by Vandenhoeck & Ruprecht Copyright © 2007 by Editora Universidade de Brasilia, pela traducao Titulo original: Lebendige Geschichte: Grundztige ciner Historik Lil: Formen und Funktionen des historischen Wissens impresso no Brasil Colegao Teoria da historia, de Jorn Rasen: Volume 1 - Razio histérica (publicado em 2001) Volume II ~ Reconstrugao da pasado Volume III - Histéria viva Direitos exclusivos para esta edicao: Editora Universidade de Brasilia SCS Q.2 - BlacoC~ nt 78 EAOK andar 70302-907 - Brasilia-DF ‘Tel.: (61) 3035-4211 Fax: (61) 3035-4223 wwweditora.unb.br direcao@editora.unb.br wwwilivrariauniversidade,unb.br Todos os direitos reservados. Nerthuma parte desta publicagao podera ser armazenada ou reproduzida por qualquer meio sem a autorizacio por escrito da Editora. Ficha catalogréfica eluborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasilia R951 Risen, Jorn. Historia viva : teoria da historia : formas ¢ fungacs do conhe- cimento histérico / Jérn Risen ; tradugdo de Estevaa de Rezende Martins. ~ Brasilia : Editora Universidade de Brasilia, 2007. 160 p.; 21. cm. ‘Tradugao de: Lebendige Geschichte: Grundziige einer Historik UL: Formen und Funktionen des historischen Wissens. ISBN: 978-85-230-0974-8 1, Historiografia. 2, Formago histérica. 3. Teoria da historia, 4. Didaticada histéria. 5, Estética da historia, 6, Consciéncia historica, I. Martins, Estevio de Rezende. II. Titulo, CDU 94 Sumario PREFACi0, 7 IntRopucAo, 9 Cariruto 1 TOPICA — FORMAS DA HISTORIOGRAFIA, 17 Pesquisa historica e historiografia, 21 Historiografia como problema teérico, 21 Estética e retérica no discurso da historiografia, 28 Conseqiiéncias da pesquisa, 38 Tipologia da historiografia, 43 Principios da diferenciagao, 44 Constituig¢do tradicional de sentido, 48 Constituicéo exemplar de sentido, 50 Constituigio critica de sentido, 55 Constituigao genética de sentido, 58 Formas e topei complexes, 63 Ciéncia como principio da forma, 68 Ciéncia e sentido historico, 75 CarituLo 2 DIDATICA ~ FUNCOES DO SABER HISTORICO, 85 Teoria da historia e didatica, 88 © que é formagio histérica?, 95 As trés dimensdes de aprendizado da formagiio histérica, 103 A fora cognitiva da cultura histérica, 121 Equipe editorial Rejane de Meneses - Supervisito edttorial Sonja Cavalcanti . Acompanhamento editorial Teresa Cristina Brandio- Preparacao de originais ¢ revisao Raimunda Dias . Editoragdo eletrénica Rejane de Meneses ¢ Deniizia Maria Queiroz Gama - indice Tvanise Oliveira de Brito - Capa Elmano Rodrigues Pinheiro - Acompanhamento grifico Copyright ® 1986 by Vendenhoeck & Ruprecht Copyright © 2007 ty Editora Universidade de Brasilia, pela traducao Titulo original: Lebendige Geschichte: Grundziige einer Histortk III: ormen und Funktionen des historischen Wiscens Impresso no Brasit Coleco Teoria da histéria, de Jorn Risen: ‘Volume I - Razio histérica (publicado em 2001) ‘Volume II - Reconstrugao do passado ‘Volume Il] ~ Histéria viva Direitos exclusivos para esta edi¢ao: Editora Universidade de Brasilia SCS Q. 2 - Bloco C- 1 78 Ed. OK - 1° audar 70302-907 — Brasilia-DF Tel.: (61) 3035-4211 Fax: (61) 3035-4223 wwweditora.unb.br direcan@editora.unb.br werwlivrariauniversidade.unb.br Todos os direitos reservados. Nerihuma parte desta publicagio poderé ser armazenada ou reproduzida por qualquer meio sem a autorizacio por escrito da Editora. Ficha catalogréfica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasflia RIS] Rasen, Jorn, Histéria vive : teoria da historia : formas ¢ fungées do conhe- cimento hist6rico / Jorn Riisen ; tradugao de Estevio de Rezende ‘Martins. ~ Brasilia: Editora Universidade de Brasilia, 2007. Tradugao de: Lebendige Geschichte: Grundziage einer Historik IIL: Formen und Funktionen des historischen Wissens. ISBN: 978-85-230.0974.8 1. Historiografia. 2. Formagao histérica, 3. Teoria da histéria. 4. Didatica da historia. 5, Estética da historia. 6. Consciéncia histérica, I Martins, Estevio de Rezende. II. Titulo. cbus4 Sumario PREFACIO, 7 Inrropucio, 9 Capituto 1 Tortca — FORMAS DA isToRioGRaFiA, 17 Pesquisa histérica ¢ historiografia, 21 Historiografia como problema tedrico, 21 Estetica € retorica no discurso da historiografia, 28 Conseqiiéncias da pesquisa, 38 Tipologia da historiografia, 43 Principios da diferenciagao, 44 Constitui¢do tradicional de sentido, 48 Constituicéo exemplar de sentido, 50 Constituigio critica de sentido, 55 Constituig&o genética de sentido, 58 Formas e zopoi complexos, 63 Ciéncia como principio da forma, 68 Ciéncia e sentido hist6rico, 75 CapiruLo 2 DMATICA — FUNCOES DO SABER HISTORICO, 85 Teoria da historia e didatica, 88 O que é formagiio histérica?, 95 As trés dimensdes de aprendizado da formagao histérica, 103 A forca cognitiva da cultura historica, 121 Equipe editorial Rejane de Meneses - Supervisio editorial Sonja Cavalcanti . Acompanhamento editorial ‘Teresa Cristina Branddo- Preparagao de originais ¢ revisto Raimunda Dias . Editoragdo eletrénica Rejane de Meneses ¢ Danazia Maria Queiroz Gama - indice Tvanise Oliveira de Brito Capa Elmano Rodrigues Pinheiro - Acompanhamento grafico Copyright © 1986 by Vandenhoeck & Ruprecht Copyright © 2007 by Editora Universidade de Brasilia, pela traducio Titulo original: Lebendige Geschichte: Grundziige einer Historik III: Formen und Funktionen des historischen Wissens Impresso ro Brasit Colecdo Teoria da historia, de jOrn Rasen: Volume I - Razao histérica (publicado em 2001) Volume il - Reconstrucio do pasado Volume III ~ Histéria viva Direitos exclusivos para esta edigao: Editora Universidade de Brasilia SCS Q.2- Boca C - n?78 Ed OK - 1 andar 70302-907 - Brasilia-DF Tel.:(61) 3035-4211 Fax: (61) 3035-4223 ww editora.unb.br direcao@editora.unb.br wwwilivrariauniversidade.unb.br Todos os direitos reservados, Nenhuma parte desta publicagio poderd ser armazenada ou reproduzida por qualquer meio semi a autorizagio por escrito da Editora. Ficha catalogréfica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasilia R95] Riise, Jorn. Historia viva : teoria da historia : formas e fungdes do conhe- Cimento histérien / Jarn Riisen ; traducio de Estevio de Rezende Martins. - Brasflia ; Editora Universidade de Brasilia, 2007. 160 p.: 21. em. ‘Tradugao de: Lebendige Geschichte: Grundzlige einer Historik IIL: Formen und Funktionen des historischen Wissens. ISBN: 978-85-230-0974-8 1. Historiografia, 2, Formagio hist6riea. 3, Teoria da histéria. 4. Didatica da historia. 5, Estética da historia. 6. Consciencia histérica, I. Martins, Estevio de Rezende. II. Titulo. cpus Sumario PREFACIO, 7 IntRopucao, 9 CapituLo 1 Trica ~ FORMAS DA HISTORIOGRAFIA, 7 Pesquisa histérica ¢ historiografia, 21 Historiografia como problema tedrico, 24 Estética e retérica no discurso da historiografia, 28 Conseqiiéncias da pesquisa, 38 Tipologia da historiografia, 43 Principios da diferenciagao, 44 Constituicao tradicional de sentido, 48 Constituigdo exemplar de sentido, 50 Constituigao critica de sentido, 55 Constituigao genética de sentido, 58 Formas € fopei complexos, 63 Ciéncia como principio da forma, 68 Ciéncia e sentido histérico, 75 CariruLo 2 DIWATICA — FUNCGES DO SABER HISTORICO, 85 Teoria da histéria e didatica, 88 O que é formapio histérica?, 95 As trés dimensdes de aprendizado da formagao histérica, 103 A forca cognitiva da cultura histérica, 121 6 Jorn Rasen ConcLusio Utopia, ALTERIDADE, KAIROS ~ 0 FUTURO DO passavo, 135 Breuiocraria, 151 inoice, 157 Prefacio Este € 0 terceiro e ultimo volume da série em que consignei minha tentativa de desenvolver um conjunto sistematico de argumen- tos para apresentar a teoria da histéria como autocompreensao da ciéncia da histéria quanto a seus fundamentos ¢ 4 sua matriz disci- plinar. A pretensiio sistematica deve certamente reforcar a impressao de provisoriedade do resultado obtido. Os temas que sao tratados agora (historiografia ¢ formagio histérica) requerem uma reflexdo mais pormenorizada sobre modos de pensar ¢ contetidos do saber de outras disciplinas (como, por exemplo, a linguistica, a pedagogia, a psicologia, a teoria da literatura) do que o dia-a-dia da vida acadé- mica e os mites previstos para o volume permitem. O compromisso que teve de ser encontrado obedeceu ao critério de delimitar o cam- po das questdes abordadas e clarificar como devem ser tratadas. Encerro meu trabalho com uma mescla de trés sentimentos: receio, alivio e gratidéo. Receio quanto a distancia entre o que ten- cionava € 0 que apresento. Alivio, pois consegui colocar um ponto final (mesmo se provisério) e posso me dedicar a outros assuntos no- vos. E gratidao, pois pude contar com muita ajuda, apoio ¢ incentive no longo periddo da incubagao dos argumentos ¢ da elaboracao dos enunciados deste trabalho. Inicialmente, gostaria de registrar meus agradecimentos a Fundagdo Volkswagenwerk por um scmestre sabatico adicional. Nao sei como teria conseguido concluir a reda- 80 sem a bolsa cientifica. Em seguida, agradego cordiaimente aos colegas Frank Ankersmit (Groningen), Chang-Tse Hu (Taichun), Floris van Jaarsveld (Pretoria) e Augustin Wernet (Sido Paulo), cujo interesse e entusiasmo me impulsionaram nos ultimos anos a perse- yerar no labirinto da teoria da historia, malgrado muitos historiado- Tes considerarem que nele o ar é demasiado rarefeito. Klaus Fréhlich 8 Jom Risen Karl-Ernst Jeismann foram de grande valia, ao sustentarem que essa atmosfera faz bem igualmente a didatica da historia. Junte-se a isso a longa amizade ¢ colaboragdo em projetos de didatica da historia com Ursula A. J. Becher, Klaus Bergmann, Bodo von Borries, Annette Kuhn, Hans-Jiirgen Pandel, Gerhard Schneider e Rolf Schérken. Todos contribuiram para relembrar a utilidade.da reflexdo sobre os fundamentos para a didatica da historia. Hildegard Vords-Radema- cher e Jiirgen Jahnke convenceram-me que minhas reflexdes sobre a didatica da historia, por causa ou apesar de sua forte conotacio teéri- ca, podem ser de valia para a pratica do ensino. Horst Walter Blanke, Klaus Bergmann, Klaus Frohlich « Hans-Jargen Pandel tiveram a paciéncia de ler o manuscrito. Nao hesitaram em opinar e fazer boas sugestes de aperfeicoamento. Ursula Jansen e Christel Schmid merecem meus agradeci- mentos pela trabalheira com o manuscrito ¢ com o manuscio, por vezes frustrante, do progresso tecnoldgico em forma de computa- der, Agradego a Thomas Sandkuhier pela leitura atenta e critica do manuscrito e das provas, mas sobretudo pelo seu apoio constante no uso do computador. A ele ¢ a Udo Dreher meu agradecimento pela montagem € corregao dos indices. Bochum, agosto de 1988. Introduc¢ao O historiador deve poder infundir presente no passado, tal como o profeta Ezequiel: ele caminha por entre um emaranhado de esqueletos, mas medida que anda, por detrés dele eclode nova vida. Karl Lamprecht! A questau das formas ¢ fungdes do saber histérico parece, a primeira vista, desviar-se da tematica prdpria a teoria da histéria. Pois agora ja nao se trataria mais da histéria como ciéncia, nem da regulag’o metédica que fundamenta a cientificidade do conhe- cimento ¢ sua pretensdo especifica de verdade. Diante dessa ra- cionalidade intrinseca do saber histérico, de sua clareza apolinea, formas e fungdes parecem pertencer a um outro lado da ciéncia, 4 sua vivacidade dionisiaca, na qual se trata nao das regras ¢ das fundamentagées, mas das formas estéticas, das intengdes retoricas e do uso pratico. Em suas formas e com suas fungées, o saber histérico parece evadir-se de sua cientificidade propria e indicar, assim, os limites da cientificidade no processo do conhecimento histérico. Inquirir novamente e com profundidade as regras metodicas da historiografia, como é indispensavel 4 histria como ciéncia, seria aqui descabido, quando nao abstruso. Surgiria assim uma teoria da arte historiografica, na qual “método” significaria coisa completamente ''K. Lamprecht. Paralipomena der Deutschen Geschichte (1910), Ausgewdhlte Schriften zur Wirtschafts- und Kulturgeschichte und zur Theorie der Geschichts- wissenschaft. Aalen, 1974, p. 719-724, cit. p. 719. 10 Jorn Rusen distinta dos principios do procedimento para assegurar a validade do conhecimento, de que se serve a historia como cigncia. Método, apenas como regra canénica da composicao historiografica, seria entendido como uma restri¢éo das possibilidades de dar forma 4 historiografia, um enfraquecimento de suas potencialidades. Sua eventual exigéncia seria certamente recusada pela maioria dos historiadores. A pretens%o de entender as repercussées praticas do saber histérico como decorrentes de principios metédicos, obri- gatérios de um jeito ou de outro em nome da ciéncia, parece sem sentido. Pensar que os resultados adviriam somente da prescrigao metédica ¢ altamente problematico. Esse automatismo metédico estaria perto demais das rigidezes dogmaticas, mediante as quais determinadas posigSes seriam impostas autoritariamente como pontos de vista da vida pratica. Tal imposigSo estaria cm contradi- ¢&o com um principio fundamental para a historia como ciéncia: 0 da livre argumentagao. Por outro lado, o processo cientitico do conhecimento histé- rico n&o pode ser pensado sem os fatores “formas” ¢ “fungdes”. Nenhum saber histérico é amorfo. O saber histérico desempenha sempre fungGes na vida cultural do tempo presente. Forma e funcado so essenciais ao trabalho do historiador, E mesmo em sua forma e em suas fungdes que o saber histérico se completa, Somente nelas 6 que ele toma vida. E com elas que cle responde as caréncias de orientagao que suscitou. Sao elas que tormam necessarios e signifi- cativos todos os esforgos de reflexio da histéria como ciéncia. Se é por suas formas e fungSes que o saber histérico se torna verdadei- ramente vivo, seré que essa vida nfo se daria as custas de sua cien- tificidade? E, assim, a teoria da historia, que se ocupa em descobrir ¢ fundamentar os principios do pensamento que asseguram a cienti- ficidade da historia, ndo estaria 4 busca de resolver a quadratura do circulo? Ela se preocupa com cientificidade onde justamente nada parece cientifico, onde nenhuma regra metédica da pesquisa parece determinar o trabalho do historiador. ‘Nao é por acaso que a questo da forma e da fung4o do saber hist6rico esté no centro das preacupagdes dos historiadores, mes- mo quando ainda no consideram seu oficio primariamente como Historia viva un cientifico,? Na tradigao retérica da teoria da historia cuidava-se, so- bretudo, das regras da escrita historiografica, da poética normativa da historiografia. Tal poética ensinaria aos historiadores como escre- ver obras “faceis de ler”, ou seja: de boa repercussdo, A obra deveria dirigir-se ao “coragio” do leitor. A historiografia deveria habilité-lo a agir praticamente. Com a cientificizagao da historiografia, o mi- cleo das reflexées metédicas dos historiadores mudou. Ele passou da formatago da historiografia para as regras da pesquisa histdrica. O aspecto da forma e da repercussfo deslocou-se para a margem da profissionalizacao, quando nao para fora dela, como mero acessério, extemo a especializagao. Assim, por exemplo, a didatica da histéria, por muito tempo, no era considerada parte integrante da disciplina especializada “‘histéria”, mas apenas como aplicagao pedagdgica, referente apenas ao uso externo do saber histérico. N&o obstante, as formas e as fungées do saber histérico siio dois fatores originais e essenciais da matriz disciplinar da ciéncia da his- téria. Eles so e permanecem elementos integrantes do trabalho de obten¢ao do conhecimento cientifico. Afinal, a histéria continua pre- cisando ser “escrita”, ou seja, apresentada de alguma maneira, e toda historiografia — em que forma seja — esta inserida em um contexto pratico de fungées, Deixar as duas de lado scria uma limitagio inadmissivel do campo da ciéncia da historia, Digamos que 0 carter especificamen- te cientifico sé fosse reconhecido na forma de apresentacgao de uma monografia ou de uma edigao critica de fontes, bem préxima das praticas de pesquisa. Mesmo assim, ainda se impée reconhecer que esse resultado teve de receber determinada forma (embora limitada) de especificidade histérica, pois do contrario se chegaria 4 negagao ? Acerca do desenvolvimento da teoria da histéria, ver as concludes de H. W. Blanke, no artigo intitulado Georg Andreas Wills “Einleitung in die historische Gelahrheit” (1766) und die Anfiinge moderner Historik-Vorlesungen in Deutsch- land. Ditthey.Jahrbuch fir Philosophie und Geschichte der Geisteswissenschaf- ten, 2, 1984, p. 193-265, exp. p. 196-206. Ver também J. Risen. Geschichesschrei- bung als Theorieproblem (14).* *N. doE.: A exemplo desta nota, 0s titulos que aparecem neste ou nos volumes an- teriores desta série so citados com o nome do editor, titulo abreviado e o mimero, entre parénteses, da parte numerada da bibliografia. R Jorn Risen dos resultados historiograficos obtidos pela histéria como ciéncia em sua pratica de pesquisa. O mesmo vale para a fungSo pratica do saber histérico, Esse saber sempre tem um efeito determinante sobre 0 processo histéri- co de conhecimento (mesmo se por vias transversas), em particular sobre seu ponto inicial, a pergunta historica. Excluir esse fator da especificidade cicntifica da historia traria apenas descontrole sobre sua repercussdo, uma espécie de inconsciéncia acerca da praxis his- toriografica. Ademais, os historiadores, com sua competéncia pro- fissional, ficariam impedidos de tomar posig&o direta quanto ao uso pratico do saber histérico que produziram. A legitimagao histérica da politica, o ensino da histéria na educaco ou a apresentagao das experiéncias e interpretacdes historicas em museus — isso e muito mais seria subtraide 4 competéncia do historiador, se nio lhe fosse permitido exprimir, na forma ¢ nas fungdcs do saber histérico, seu proprio entendimento como cientistas. Como isso é possivel? A formatac4o do saber histérico obtido pela pesquisa e sua fun- go na vida pratica dos historiadores ¢ das historiadoras tém de ser seriamente levados em copta, em sua concepgdo da especialidade, como fatores originais ¢ essenciais da matriz disciplinar da ciéncia da hist6ria. Sao justamente essas propriedades, pelas quais a forma- tagao historiografica e o uso pritico do saber histérico parecem afas- tar-se da cientificidade do processo de conhecimente histérico, que devem ser examinadas como grandezas determinantes da pesquisa hist6rica. Como a teoria da histéria se pergunta, em primeiro lugar, em que consiste o conhecimento histérico necessario, historia, como ciéncia, deve-se colocar, com respeito aos fatores “formas ¢ fun- gGes”, duas questdes. (1) A que esquemas ordenadores esses fatores esto submetidos no processo de obtencio do conhecimento histé- tico? (2) Como esses esquemas se articulam com 0 principio da ga- rantia discursiva de validade, constitutivo da historia como ciéncia especializada? Quando os historiadores redigem textos e se referem aos desafios da vida cultural de seu tempo (por exemplo: 4 preten- sao politica de legitimar as dominagdes, aos problemas pedagdgicos do ensino de histéria, 4 organizagéio dos museus), ou quando atuam Historia viva RB nela— o que fazem de sua ciéncia? Que procedimentos adotam? Que regras observam? Existem formas dessas regras das quais se possa dizer que corespondem 4 especificidade do pensamento histérico, tipica da histéria como ciéncia? Seria um equivoco querer definir modelos historiograficos e didatico-politicos para 0s csquemas de ordenamento cientifico da pesquisa historica e do resultado pratico do saber historico. Por mais desejaveis que sejam a retorica sistematizada e a competéncia di- datico-politica dos historiadores, quando se trata da importancia do saber histérico como fator relevante para a orientagdo da vida pra- tica, a teoria da historia nao ¢ um livro de receitas — afinal, prescri- gées em forma de receita so contrarias 4 inovagao. Como a ciéncia é uma oportunidade institucionalizada de inovagdo, esquemas de ordenamento desse¢ tipo teriam efeito contraproducente se assumis- sem a forma de modelos. Por outro lado, o oposto a esterilidade das receitas prontas nao é a desordem ou um deserto dionisiaco nos fundamentos da forma historiografica ou no efeito pratico do saber histérico. Seria pensavel, contudo, conceber os principios ou refletir sobre os pontos de vista que atuariam na formatagZo historiografica € nos efeitos culturais do saber histérico, por forga da cientificidade da historia. E necessario que se trate de principios e pontos de vista que permitam medir ¢ avaliar a relevancia da formatagaio e do efeito cultural para a regulagio metédica da pesquisa histérica. Para além dessa relevancia, quem sabe existam ~ até no aparente distancia- mento da cientificidade, em que atuariam a forma de apresentagao ¢ 0 efeito politico-cultural — principios de formatagfo dessa atuagao que ajam complementarmente a cientificidade do saber histérico, de cuja vida se trata aqui. Essa questao nos remete ao ponto de partida desta teoria da his- t6ria. Tratava-se da conexdo direta da cientificidade da histéria com a especificidade do pensamento histérico. A racionalidade peculiar do conhecimento histérico deve tornar-se visivel desde sua origem na vida comum. A questéo da vivacidade historiografica e politico- cultural do saber historico remete diretamente a essa origem na vida comum. O olhar critico da teoria da histéria, que se volta para as formas c as funcdes do pensamento histérico, dirige-se em seguida “4 Jorn Risen Para 0s processos elementares ¢ gerais da constituicao narrativa de sentido mediante as operacdes da consciéncia histérica. Cabe, todavia, especificar também a questio da insercao do sa- ber histérico na vida comum, de modo semelhante ao que se fez com respeite aos fundamentos da pesquisa histérica no quotidiano. Ela se torna ainda mais critica ao deter-se nos principios metodolé- gicos da garantia discursiva de validade, determinantes da historia como ciéncia. S30 esses principios que transformam o pensamento histérico em processo de pesquisa, A questiio da narrativa histérica Jé nao trata mais, agora, das operagdes fundamentais da consciéncia historica em geral e em seu conjunto, mas do proceso de formagiio do saber histérico, que se distingue do processo cognitivo da pesqui- sa histérica ¢ que, come tal, pode ser sistematicamente relacionado 4 pesquisa. Nao resta divida de que essa relacdo consiste em um fator essencial da cientificidade da forma historiogrdfica. Mesmo quando a teoria da histéria vai além da formacdo do saber histérico ¢ suscita a questao de suas funcdes culturais, sempre se tem na narrativa histérica uma operaco basilar da consciéncia histérica. Trata-se agora de descobrir o que faz dessa narrativa um fato social. Lida-se aqui com a aplicagdo e com o uso de “histérias” na vida cultural de uma sociedade. Para a teoria da historia, o que interessa ¢ correlacao desse uso com a ciéncia. O que advém, para a historia como ciéneia, do uso pratico do modo tipico de narrar hist6rias? Que papel pode e deve desempenhar a estrutura argumen- tativa da constituigao histérica de sentido na vida cultural de uma socicdade? Como pode ¢ deve a histéria como ciéncia corresponder a esse papel? Antes como agora o que interessa é a razdo determinante da historia como ciéncia. Essa raz&o assegura as chances da garantia discursiva de validade quando se lida interpretativamente com o passado humano. Com relagaio 4 formatacao historiografica, a ques- t&o da razio dirige-se ao problema da articulagio entre pesquisa historica e formatag%o historiografica. Como é que se mantém, na apresentagio de intcrpretagdes histéricas, a discursividade que lida, interpretativamente, com a experiéncia histérica e que é determi- nante da pesquisa? De que modo essa discursividade estd presente Historia viva 15. especificamente na historiografia? A resposta a essa pergunta diz respeito a um ponto de vista decisivo para a praxis historiografica: a relagdo com os destinatarios, com o publico-alvo. Esse ponto de vista pode assumir as mais diversas formas. Uma teoria da historia, que trata da historia como ciéncia, leva em considerac4o 0 espago das possibilidades historiograficas sob 0 ponto de vista da maneira como a racionalidade dos destinatarios pode ser reforgada pelo con- tacto com o saber histérico e com a experiéncia histérica. Quando se volta para a constitui¢do narrativa de sentido pela consciéncia histérica como fato social, a teoria da historia pergunta- se entdo se e como a ciéncia da histéria se relaciona, na vida pratica dos historiadores, com o uso pratico do saber histérico produzido por ela. Em uma de suas operagdes cognitivas mais proprias, a historia como ciéncia esta intimamente conectada com a vida pratica. Com respeito a esta, nao lhe é possivel reivindicar qualquer neutralidade estrutural. E esse o resultado a que chegaram as mais criticas das teflexdes produzidas sobre o problema da objetividade.* No entanto, quando se esta debatendo as funcdes praticas do saber historico, nio basta apenas lembrar as formas da objetividade histérica determi- nantes da historia como ciéncia. Pelo contrario: refletir sobre o uso pratico do saber histérico é um requisito basico da ciéncia da histé- ria. (E € uma exigéncia aos especialistas, para que ndo confundam o fundamento de sua ciéncia na vida com uma torre de marfim perdida no espago.) Deve-se investigar, explicitar ¢ fundamentar os pontos de vista ¢ os principios particulares que se aplicam ao uso prati- co do saber historic. A relagdo para com a vida, inerente a praxis cientifica mesma, precisa ser refletida. Essa relagdo pode entio ser utilizada conscientemente quando a ciéncia da histdria (melhor: os historiadores) é chamada a explicitd-la. E os especialistas séo cons- tantemente chamados (quando nao, forgados) a isso, por exemplo, na elaboracao de diretrizes curriculares para o ensino de histéria, na elaboragdo de projetos de pesquisa ou nos comités de planejamento de muscus. 86 essas circunstancias j4 bastariam para evidenciar que a relagdo do saber histérico com a pratica niio se esgota no debate + CEL NG. 16 Jorn Rasen sobre se a objetividade pode ser garantida ou salva. Tem-se aqui um problema mais complexo, que associa a formatacio ativa pelos historiadores com a autocompreensio da ciéncia da histéria e que requer andlise ¢ sistematizacio. Seja como for, a histéria, como ciéncia especializada, est4 sem- pre em relacdo intima com a educagio, a politica e a arte. Ela ne- cessita articular-se no 4mbito dessa relagdo, sem que disso resulte uma amputagao fatal da autocompreensio dos historiadores profis- sionais, que consistiria em achar que a mera execugao do projeto de pesquisa ja bastaria para realizar essa relacéo. Nao se deve deixar para os outros a Teflexao e a sistematizac&o das regras decorrentes da pratica do saber histérico, que se distinguem das regras proprias da pesquisa e da historiografia desta decorrente. Existem, pois, fungdes culturais do saber hist6rico que nao estao plenamente exercidas s6 porque esse saber foi expresso em termos historiograficos. Ademais, nao se entende porque a ciéncia da histéria deve ficar alienada des- sas fungdcs, Ela ndo deve ficar alicnada dessas fungées porque scu trabalho cognitive nasce de impulsos que conduzem a elas. Com a questo das formas e das fungdes do saber histérico, a reflexdo da teoria da histéria retorna a seu comego, no qual a origem do pensamento histérico deve ser evidenciada nos produtos cultu- rais da vida humana pratica. Com esse retorno, deve ficar claro que © resultado das reflexdes feitas até aqui, que a demonstragao das chances de racionalidade do pensamento histérico — essenciais para a histéria como ciéncia — consistem em afirmar que a ciéncia da histéria abre uma chance de vida em seu 4mbito. O que seria de uma razdo, de que a histéria como ciéncia fosse capaz, se nao se dirigisse 4 raiz mesma da ciéncia: os processos com os quais os homens se esforcam por viver humanamente. Capitulo 1 Tépica - formas da historiografia Se aprender historia é preciso, merece nossa gratiddo aquele que a transforma de drida em encantadora ciéncta. Friedrich Schiller! Ao palavreado retérico da histéria universal dou forma por meu préprio engenho. Verifico 0 que a une para sempre... Hobble Frank? Escrever histéria é a tarefa dos historiadores. Isso ¢ trivial. Como fazé-lo, 6 um problema. Os procedimentos da escrita da his- téria perdem-se, no trabalho de reflexdo sobre os fundamentos da ciéncia da historia, na ambigitidade de um processo nao esclarecido. Esse processo € realizado com naturalidade, recebe reconhecimento publico ¢ nao raro € premiado. No entanto, se comparada com o cuidado metodolégico aplicado a pesquisa, a praxis historiografica profissional mostra-se infensa a um tegramento andlogo. Ela é atri- buida a um engenho de competéncia literéria, cuja importancia ndo édiscutida, mas que nao obstante se encontra numa relagfo confusa com a profissionalizacao da pesquisa histérica. A telacao confusa entre cientificidade e arte historiografica, con- tudo, no se constitui necessariamente, para a teoria da histéria, em. desvantagem. Ao revés, essa relagao pode ser oportuna, enquanto ) Carta a Kémer, de 8 de janeiro de 1788, 2 Bm K. May. Der Geist der Liana estakado. B. Koscinszko (Ed.). Stuttgart, 1984, p. 49. Jérn Risen forga produtiva da forma literaria, cujo desregramento beneficiaria a ciéncia da histéria com maior eficdcia de resultados. A ambigtiidade da avaliag&o do que os historiadores fazem e tal duplicidade de pa- drdes de regramento continuam, todavia, a constituir problema, pois atingem a Idgica do conhecimento histérico, o estatuto da histéria como ciéncia, suas pretenses de validade ¢ a representacao de seu papel na vida cultural da sociedade. , Ranke formulou o problema relativo 4 questao do estatuto da histéria da seguinte maneira: Ahistéria distingue-se das demais ciéncias Por ser, simultaneamente, arte. Ela é ciéncia ao coletar, achar, investigar. Fla é arte ao dar forma ao colhido, ao conhecido e ao representé-los. Outras ciéncias satisfa- zem-se em mostrar o achado meramente como achado. Na histéria, opera a Faculdade da reconstituigdo. Como ciéncia, ela é aparentada 4 filosofia; como arte, a poesia? Ranke via a diferenca da cigncia da histéria com respeito a fi- losofia e 4 arte no caréter investigativo das operagdes cognitivas da historia: no colher, achar ¢ investigar da heuristica, da critica e da interpretagdo. Até hoje nada mudou nesse particular. E certo que sabemos mais, entrementes, sobre o “parentesco” entre histéria ¢ filosofia, pelo menos na medida em que s¢ pode identificar ¢ des- crever os procedimentos especificos da pesquisa, da elaboracao de teorias e das explicagdes histéricas enquadradas teoricamente.‘ Res- tam, contudo, questdes abertas sobre o “parentesco” entre a pesquisa hist6rica e a arte, sobre 0 significado da “faculdade da reconstitui- go” da historiografia com relagao 4 racionalidade metédica da pes- quisa histérica, sobre a historiografia Jancar mao dessa faculdade. deixando de lado principios racionais. Por um longo periodo essas quest0es néo foram prioritarias para a ciéncia da historia. Ranke, Por exemplo, considerava que importava, antes de tudo, “investigar "L. von Ranke. Die Idee det Universalhistorie (1835). Vorlesungseinleitungen, v. Doterweich (Ed.); W. P. Fuchs (Werk und Nachlass, v. 4), Munchen, 1975, p.72. ‘ * Ver Il, 23 5. Historia viva 19 cuidadosamente o individual”, ficando o resto “ao Deus dard”. Ele via a formataciio historiografica do saber obtido pela pesquisa, pois, como uma conseqiiéncia automatica da pesquisa. O potencial criti- co da pesquisa foi sempre energicamente contraposto 4 “densidade” de uma tradicao historiografica, que recorresse aos meios da ficgdo literaria para representar processos histéricos.' Com respeito a essa questo, o debate no campo da teoria da histéria trata o problema da formatagao do saber historico considerando argumentos lingitiisticos como decisivos para o estatuto cognitive e para a fungao cultural do pensamento hist6rico, daquele decorrente. A historiografia foi posta 4 luz de um principio que coloca a pesquisa c suas opcragées metédicas na sombra da uma racionali- zagio meramente secundaria, a servico das constituigdes primarias de sentido de cunho poético ou retérico. Afinal: a historiografia é fungdo da pesquisa ou a pesquisa é fungdo da historiografia? Considero essa alternativa improdutiva, pois trata de fatores es- senciais e originarios da matriz disciplinar de modo que o esclare- cimento de um levaria ao obscurecimento do outro. Ora, a questao esta em analisar o construto complexo de suas relagées sistematicas como base de um trabalho de conhecimento histérico consistente. Para tanto, necessita-se de inicio p6r a quest4o das formas da apre- sentacao historica, de modo a ir além da orbita dos principios da pesquisa histérica, no interior da qual a pretensiio de cientificidade da histria costuma confinar a autocompreensio dos historiadores. Em um estagio anterior da evolugao da ciéncia, pesquisa ¢ apresentag¢io podiam ser subsumidas sob um mesmo conceito abrangente de método. Na primeira versdo de sua Teoria da hist6- ria, Droysen ainda considerava a apresentagio como uma opera- ¢&o cognitiva que poderia ser associada sem restrigdes 4 operacdo interpretativa.* No entanto, quanto mais se refinava a andlise do 5 Cito as criticas de Ranke 20 que ele considerava as “falsas narrativas” de Guic- ciardini. L. von Ranke. Zur Kritik neuerer Geschichtschreibung. 2. ed. Leipzig, 1874, p. 24. © Yer J. Riisen. Bemerkungen zu Droysens Typologie der Geschichtsschreibung, em R. Koselleck et alii (Org.). Formen der Geschichtsschreibung (14), p. 192- 200. 20 Jom Risen tegramento do conhecimento histérico, que o define como processo de pesquisa, tanto mais se distinguia dele a apresentacao, como uma opetacao de tipo proprio. Essa distingo consiste no fato de que a pesquisa se refere por principio aos contetdos da experiéncia do passado ¢ de que 2 apresentacdio histérica se dirige ao publico do presente. Essa relagdo com o publico-alvo confere ao fator “formas da apresentagfo” sua especificidade e seu Peso proprio no processo do conhecimento histérico. E com ele que a historiografia se orga- niza, de acordo com Tegramentos prdprios, distintos dos aplicados a pesquisa. No que segue, gostaria de desenvolver, inicialmente, essa dis- tingdo de principio entre a formatagao historiografica e a pesquisa histérica. E certo que, para isso, ndo basta remeter a circunstancia de o saber histérico estar marcado pela relagio que sua formatagao tem com 0 publico-alvo e a0 modo como isso ocorre. A remissio da historiografia 4 pesquisa nao pode faltar, pois é com ela que a historiografia se aiticula para corresponder 4 pretensSo de validade do saber histérico, que reproduz em si como tesultado da pesquisa. Nao se trata, entretanto, apenas de expandir a riqueza e a varieda- de das possibilidades historiograficas de apresentagao dos resulta- dos da pesquisa nem meramente de explicitar seu cardter literdrio, A questo nao estd numa falta eventual de conhecimentos em teoria da literatura, mas sim em um Ponto sistematico: no Ambito da teoria da histéria, da cigncia da historia que reflete sobre seus fundamentos com o fito de especificar e sustentar sua Pretensdo propria de racio- nalidade como ciéncia. Nesse contexto, racionalidade é entendida como a stimula dos principios cognitivos que asseguram a validade. Isso se aplica igualmente ao fator da formatagao historiografica do saber histrico. A teoria da literatura interessa-se pelas possibilida- des estéticas, pelas propriedades e pela qualidade da historiografia. Um tal interesse pode facilmente deixar de lado a especificidade da Taz4o metddica que constitui a ciéncia. Por esse motivo, a teoria da histéria deve ocupar-se, em primeiro lugar, de investigar essa racio- nalidade na historiografia. Nao obsiante, convém evitar a alternativa improdutiva “ciéncia ou literatura” e renovar a Proposta rankeana da unidade de ciéncia e Histéria viva a literatura. Por isso, a primeira questiio a ser trabalhada, quanto a formatacao historiografica, ¢ a dos processos elementares ¢ gerais da constituigao histérica de sentido, nos quais a consciéncia historica elabora e produz suas termbrangas. Minha inten¢ao & pois, de inves- tigar “pela base” a distin¢do entre elementos cientificos e elementos literarios do conhecimento histérico, ao examinar seus fundamentos na vida pratica. Em primeiro lugar, cabe explicitar a formatayao his- toriografica como um modo pratico de Operar da consciéncia histé- rica, que se apresenta na forma de narrativa histérica. Ao examinar essa formatag%o, quero concentrar-me no espectro dos modos es pecificamente histéricos de constituir sentido acerca da experiéncia do tempo. Essa constituigao de sentido sera qualificada mediante uma tipologia da narrativa historica. A tipologia permitird ordenar ¢ caracterizar categorialmente as multiplas formas da historiografia. Somente com 0 quadro dessa tipologia se consegue identificar como se apresenta, na historiografia, o ganho de racionalidade obtido pelo pensamento histérico mediante os procedimentos da pesquisa. Para concluir, examinarei a questiio de como os resultados da pesquisa se consolidam nos processos narrativos de constituigac de sentide realizados pela consciéncia histérica, cujas formas préprias serao articuladas tipologicamente. Pesquisa histérica e historiografia Historiografia como problema teorico A pesquisa e a historiografia sao dois lados, mas também duas fases do processo histérico do conhecimento. Distingui-los é um mero artificio. Toda pesquisa tem por objetivo transformar- se em historiografia, néo sé porque seus resultados hecessitam ser expressos em linguagem, mas também porque cles funcionam como componentes de uma histéria e assim so vistos. As ques- tdes resolvidas pela pesquisa esto sempre enquadradas em histé- rias. Elas servem para esclarecer processos temporais em contextos abrangentes de uma apresentagao que articula o passado, 0 presente 2 Jorn Risen o futuro em um construte significativo que funciona como refe- téncia pratica de orientacdo no tempo.’ Inversamente, nao ha his- toriografia que nao pretenda ser verdadeira, o que a remete forgo- samente 4 pesquisa. Por mais que a pesquisa e a historiografia se entrelacem ou se- jam lados de uma mesma coisa, perfeitamente plausivel distingui- las (mesmo se forma abstrata) como duas fases do Processo histéri- co de conhecimento. Essa distingiio se baseia nos dois principios ja mencionados: no principio da relaco a experiéncia (que o conheci- mento histérico mantém na pesquisa) e no Principio da relagio ao piiblico-alvo (na apresentagao historica). Ambos os principios deter- minam 0s aspectos formais do conhecimento histérico. Na pesquisa, trata-se de uma forma cognitiva, de uma estrutura de persamento, baseada nas regras dos procedimentos adotados para lidar com a experiéncia, ou seja, em Pprincipios metédicos. Na apresentacdo, tra- ta-se de uma forma expressiva, de formatacio lingitistico-“literaria”, baseada nas regras dos procedimentos adotados para lidar eam o interesse histérico, ou seja, em principios estéticos e ret6ticos, Ambos os aspectos formais aparecem sempre juntos. Por que entdo existiria um problema da telacdo de um com 0 outro (so- bretudo se for algo que v4 além da gencralidade e da radicalidade do problema do pensar ¢ falar, que obviamente escapa a teoria da histéria)? Para a problematica dessa Telagdo hé razes mais histéri- cas do que légicas. No processo de Cientificizagiio do pensamento histérico, a Pesquisa tomou-se auténoma, como construgdo propria as instituigdes académicas. A investigago dos fatos histdricos e a fundamentagao de sua facticidade sto elementos de toda historio- grafia (mesmo se ocorre grande variagao, ao longo do tempo ¢ na diversidade das culturas, sobre o que se entende por facticidade € sua plausibilidade). Com a ciéncia da historia, contudo, a pes- quisa ganhou peso préprio no processo do conhecimento histérico. A formatagao historiografica dos resultados da Pesquisa, no entan- to, pareceu secundaria, até mesmo mera fungiio da pesquisa. Como a cientificidade do conhecimento histérico foi identificada com seu * Ver mais pormenores em I, 56 ss. Historia viva 23 carater investigativo, 0 processo de formatagao historiogrifica pare- ceu ser algo externo a ciéncia. A expressio anti-retérica de Ranke, 3 verdade nua, sem nenhum ornamento”,* subentendia que © resulta lo decisivo, obtido pela constituigdo de sentido operada pelo comheci- mento histérico, decorre do processo de pesquisa. Como se tratava de estabelccer empiricamente o contexto histésico especifico dos fatos do passado, obtidos pela critica das fontes, nao sobrava hada de bem especifico para a apresentaca4o, do ponto de vista cognitivo. Essa apresentagdo deveria contentar-se em dar forma adequada 4 icidade investigada. , : ate cbstante, essa forma sc destacou por uma qualidade lite- raria tao peculiar, que a Histéria de Roma de Theodor Mommsen veio a ser agraciada com o Prémio Nobel de Literatura, em 1902, Isso em nada atenua, todavia, que a autocompreensao dos historia- dores profissionais considere suspcitos todos os elementos e fatores da formatacao historiogréfica que nao se relacionem diretamente com a pesquisa, Esses elementos e@ fatores estariam contaminados pelo gosto da literatura acientifica. A estrita relagao @ pesquisa é © nico critério adequado a historia como ciéncia a ser levado em. conia quando ‘se aborde a historiografia.” Mesmo a mais claborada teoria da ciéncia da histéria no 4mbito do historicismo, a Tépica de Droysen, estabelece uma tipologia das formas historiograficas quc, ao fim ¢ ao cabo, se baseia no Pressuposto de que todas as operagdes cognitivas da interpretagéo histérica esto relacionadas as diversas dimensGes da consciéncia historica dos destinat S O que houvesse de literério, mediante o qual as formas historio- graficas se distinguiriam dos procedimentos concretos da pesquisa histérica, conteria um elemento proprio de conhecimento ndio Te- dutivel 4 forma cognitiva da pesquisa, ao qual a estética filosofica se aplicaria, Esse componente literdrio sempre aparece como fonte TTT Be rit . . 8),p.24. * Liv Ranke. Zur Kritik nenerer Geschichtschreibung (ver nota a 5 Acerca dessa reflexdo ver a investigagdo pioneira de H.-J. Pandel. Mimesis und Apodeixis (14). ; ; ; Ver 1. Risen. Bemerkungen zu Droysens Typologie der Geschichisschreibung. In: R, Koselleck et ali (Org,). Formen der Geschichtsschreibung (14), p. 192-2005 W. Schieffer. Theorien der Geschichtschreibung (14). 24 Jom Rusen de inquietagao ¢ de dissensiio na autocompreensao dos historiado- Tes profissionais. Desde a controvérsia entre Bury e Trevelyan, na virada do século XIX para o século XX,'! encadeia-se até hoje uma polémica constante, na qual o carter especificamente cientifico e baseado nos procedimentos da pesquisa da historiografia é contra- posto 4 sua qualidade estética como Produto e manifestacao da for- mata¢ao lingiistica que elabora. Exemplos recentes dessa polémica s&0 o debate entre Golo Mann e Hans-Ulrich Wehler," 0 livro de Lawrence Stone sobre retorno da narrativa, assim como as discus- sdes que provocaram." No debate mais atual sobre o estatuto cientifico da histériae sua proximidade com a arte, a contraposigdo das perspectivas aplicaveis ao oficio do historiador acentuou-se fortemente. De um lado, tem-se uma consciéncia crescente da ciéncia da historia acerca de suas pre- tensdes de racionalidade, Essas pretensdes se fundam nas conquis- tas do método analitico ¢ no emprego de construtos tedricos para uma reconstruydo explicativa do passado. Nesse sentido, © carater atlisticu da historiogratia seria {mais) um resquicio de tradig6es his- toriograficas ndo superadas. A racionalidade inetédica contrapde-se a formatagao estética. “Zt will never be literature” [Nunca sera lite- tatura!] — essa exclamagao de um Tepresentante da New Economic History [nova historia econdmica] assinala a contraposigao."* De outro lado, cresce a aceitagfio de que ndo se tem como aban- donar os elementos narrativos na apresentacao da histéria (‘“narrati- vo” entendido aqui como uma forma Possivel de apresentagiio histo- riografica, dentre outras).'* Alm disso, a0 se examinar mais de perto "Documentado ex F. Stern (Ed.). Geschichte und Geschichisschreibung, Mégli- chheiten, Aufgaben, Methoden, Texte von Voltaire bis zur Gegenwart, Miinchen, 1966, p. 214-252. "°). Kocka; T. Nippetdey (Bd). Theovie und Eroahlung in der Geschichte (Theorie der Geschichte. Beitrdige zur Historik, v.3), Miinchen, 1979, p. 17-62. SL, Stone. The revival of narrative: reflections on a new old history, Past and Present, 85, 1979, p, 3-24; E. J. Hobsbwam. The revival of narrative: some com. ments. Past and Present, 86, 1980, p. 3-8. “L. E, Davis. The new economic history: a critique. in: R. L. Andreano (Ed). The mew economic history: recent papers on methodology. Nova York, 1970, p. 65, A Zeitschrift fir Geschicheswissenschaft dedicou a ease tema um niinero espe- cial: 34, 1986, n. 2. Histéria viva 25 essa questo, encontra-se que um significado especial é atribuido A estrutura narrativa do saber histérico, Essa estrutura diz respeito a peculiaridade Logica do conhecimento histérico. Actesce que um olhar mais detido sobre as operagées narrativas da consciéncia his- térica traz a luz fatores do conhecimento historico que dificilmente podem ser reduzidos 4 concepgao corriqueira de tacionalidade cien- tifica (desenvolvida obviamente a partir do paradigmna das ciéncias naturais matematizadas). Os critérios de sentido decisivos para o pensamento histérico, com os quais acontecimentos passados sio ordenados em um contexto especificamente histérico (post festum), possuem uma qualidade especial. Hayden White os descreveu como “poéticos” e alcangou, com isso, uma influéncia altamente benéfi- ca sobre o debate na teoria da histdria."*" Com cssa peculiaridade narrativa ou até pogtica, o pensamento histérico protege-se de sua subsungdo a uma concep¢4o unitaria da ciéncia, dependente de uma racionalidade nomoldgica. O anguls lingiistico dessa concepgao de {mota)tooria da ciéncia histérica vale para os procedimentos lingiis- ticos mediante os quais os fatos obtidos das fontes pela pesquisa ad- quirem seu sentido historico especifico. Esse sentido se constitui na conex4o narrativa que os articula, transformando assim “passado’ em “historia”. Tais procedimentos constituem uma profunda dimen- sao da historiografia, na qual sdo evidentes surprecndentes pontos em comum com as formas literdrias da constituigao de sentido. Na interpretacao ¢ apresentacao, pela ciéncia da historia, dos contextos histéricos, consolidam-se os modos fundamentais de atribuicio de sentido, pela linguagem, a fatos que vinham sendo consignados praticamente sé em textos literdrios. Hayden White classificou tipologicamente esses modos como metéfora, metonimia, sinédo- que ¢ ironia. Interpretou-os como “tropos” da constituigdo historica de sentido.” Sao cles que, afinal, determinam a interpretagio dos fatos obtidos pela critica das fontes. Eles conférem ao contexto tem- poral desses fatos seu sentido especificamente histérico. A uz de uma tal concep¢io, a pesquisa aparece como mera racionalizagdo de ‘SH. White. Metahistory (14), Tropics of discourse (15), The content of the form (5). "H. White. Metahistory (14).p. 31s. 26 Jérn Rasen tais atribuicdes de sentido. A pesquisa é entdo submetida ao crivo de principios lingitisticos que integrariam doravante o estoque de ins- trumentos de qualquer ser humano em sua telacio lingiiistica com 0 mundo e em sua auto-interpretagio, Esses principios precederiam e fundamentariam os procedimentos met6dicos da pesquisa. A afirmagio de que os pontos de vista determinantes da in- terpretacao hisiérica sao critérios poéticos de sentido abalou for- temente 0 estatuto cientifico da historia. Essa afirmagao decorre quase inevitavelmente da concepedo tradicional de ciéneia, que a ciéncia da historia utilizou para distinguir-se de sua tradiga0 pré- cientifica, retérica. Com essa concepedo, a pesquisa histérica ga- rante uma facticidade pela qual as apresentacées historiograficas relacionadas com a pesquisa se diferenciam substantivamente das produgées literdrias. Ficgdo é 0 conceito que se opée a essa factici- dade, de modo a referir 0 cardter “literario” ou “artistico” das cons- tituigGes ndo-cientificas de sentido na narrativa. Facticidade contra ficcionalidade — é disso que se tratava ontem, € disso que se trata hoje. Apenas o significado do ficcional modificou-se tadicalmente: deixou de ser o “outro” do historico, mas seu proprio fundamento, ao menos uma parte essencial dele. A ciéncia da histéria fiou-se longo tempo em sua capacidade de obter, das fontes, fatos {informagdes) comprovaveis intersubjeti- vamente (por certo nao se pode colocar em divida os tesultados da critica das fontes). Isso conduziu, no entanto, a conferir, ao contexto construfde pela interpretago histérica a partir dos fatos sustentados pelas fontes, uma facticidade scmelhante a que se reconhece a estes. A presungo “factualista” da critica das fontes transferiu-se para in- terpretagdo propriamente histérica do passado, Com isso, a ciéncia da histéria usufruiu do Prestigio cultural das ciéncias naturais en- tendidas como positivistas e empiristas."* Em uma tat concepgao da ciéncia nio t8m lugar, naturalmente, critérios de sentido que "Ver R. Barthes. Die Historie und ihr Diskurs (14); H. R. Jauss. Der Gebrauch der Fiktion in Formen der Anschauung und Darstellung der Geschichte. In: R. Koselleck et alii (Org). Formen der Geschichisschreibung (14), p. 415-451. "Um exemplo pico encontra-se em B. H. v. Sybel. Uber die Gesetze des historis- chen Wissens (1864). Fortrage und Aufsdize. Berlim, 1874, p. 1-20. Historia viva 27 correlacionem o significado da facticidade do passado com os pro- blemas de orientaca4o do presente, submetidos a regras. No dmbito de uma concepeao restrita de ciéncia, como a Positivista-empirista, esses pontos de vista sé podem valer como ndo-cientificos ou exter- nos 4 ciéncia. Eles siio confinados na esfera da atribuigao de sentido e da auto-interpretagao que, como arte, compensa, com atribuigdes de sentido e significado, a neutralidade valorativa da ciéncia. A teoria contemporanea da literatura igualmente se fiou ampla- mente na possibilidade de questionar a pretensio de cientificidade da histéria, mediante o mito da facticidade da histéria que se obtém a partir de dados adquiridos, interpretativamente, pela critica das fontes.” Sua critica continua na dependéncia de uma concepgao po- sitivista da ciéncia. Nao se levou em conta que esse positivismo nao é apropriado a descrever adequadamente as operagGes metodicas de- terminantes da historia como ciéncia. Se a interpretagao da realidade depender exclusivamente da alternativa entre facticidade dos dados das fontes ¢ fiecionalidade dos contextos de sentido e significado, entio a operagao cognitiva da pesquisa especificamente histérica, a interpretagao, deve ser vinculada 4 segunda opcao. Sé assim € que se pode opor o carater poético-retérico ao carater cientifico da ciéncia da historia. , A propria pesquisa j4 produz sentido cm scu procedimento de interpretardo. Por esse motivo, é possivel caracterizar, até certo Ponto, como “ficgées” os contextos histéricos reconstruidos pela pesquisa, por contraste com a facticidade dos dados obtidos pela critica das fontes. Isso s6 ¢ admissivel, contudo, quando se admite um concei- to duvidoso de realidade, que a define como facticidade pura (sem sentido ou significado) de dados ou informagdes. O que se ganha, no entanto, com isso? Mesmo com 0 entendimento de que o contexto histérico possui um outro estatuto ontolégico do que o fato obtido das fontes, a interpretacio nio deixa de ser uma operagGo especifi- camente cientifica. O historiador se beneficia do brilho poético da constitui¢do narrativa de sentido inclusive quando, como pesquisa- dor, lida com as fontes de metédica e regradamente. Deve sobrar » Assim por exemplo R. Barthes. Die Historie und ihr Diskurs (14). 28 Jorn Ruser ainda, para a historiografia, alguma coisa desse britho, para produ- zir uma constitui¢ao narrativa de sentido proprio, peculiar. Colocar problemas, nos quais a pesquisa e a apresentacdo absurvem uma a outra ou se instrumentalizam mutuamente, é improdutivo. A pesqui- Sa € a apresentagao devem ser vistas, analisadas e entendidas como dois Processos distintos de um mesmo procedimento abrangente diferenciado de constituicao narrativa do sentido da experiéncia do tempo. Suas diferencas podem ser abordadas produtivamente com a questdio de que pontos de vista ou Tegramentos sao necessdrios para a tealizagao respectiva da constitui¢do narrativa de sentido pela pes- qutsa ¢ pela historiografia. Estética e retorica no discurso da historiografia Pesquisa é 0 processo da constituigéo narrativa de sentido, no qual a relagao a experiéncia, presente cm todo pensamenta historico, se exprime de mancira a que essa constituigao de sentido adquira de- terminada relevdncia cognitiva. Essa televancia cognitiva consiste em um grau elevado do contetido empirico ¢ da forma explicativa das histérias, Relacionadas a pesquisa, elas so narradas de maneira a serem mais bem fundamentadas empiricamente e explicadas teo- nicamente, A apresentacao historiografica é, por conseguintc, um modo da Constitui¢ao narrativa de sentido, no qual domina o fator da relacao 20 publico-alvo, de dirigir-se a alguém mediante o pensamento his- térico (que, alids, sempre ¢ pensado para alguém, para um publico ou para um grupo de pesquisadores, por exemplo). E determinante desse modo e de sua especificidade cientifica o ponto de vista da relevancia comunicativa. Ela diz respeito 4 receptividade das histo- rias. Ela consiste em que a recepeao do saber histérico apresentado pela historiografia possa ocorrer, na vida pratica, de modo sustentavel, Essa “insergao na vida” a que se destina todo saber hist6rico - Seja mediado como for - é tratada hoje em dia pela categoria do ‘discurso”. O discurso histérico é 0 tipo de discurso em que “subsis- te” o saber histérico, isto é, em que aparece como parte integrante da Historia viva 2° orientacdo existencial, constituindo um elemento essencial da re- lag4o social na vida humana pratica. No discurso historico, o saber histérico torna-se um fator da cultura da interpretagdo, um meio da socializagdo ¢ da individuacdo. Como discurso, atua sobre o modo como as condi¢des atuais da vida sic experimentadas, interpreta- das e, 4 luz das interpretagées, gerenciadas praticamente. Relevancia comunicativa significa que o saber historico pode exercer essa fingio mediante seu tipo de apresentacfo, de forma bem engajada e muito bem sucedida. A “verdade nua”, que Ranke havia definido como objetivo da pesquisa para o saber historico,”! deve ser entendida da seguinte forma: esse saber deve estar formu- lado de tal modo que possa inscrir-se nos processos culturais da vida humana pratica, que lida com a experiéncia, a interpretacdo ¢ a gestdo das mudangas no tempo. A historiografia tem de apresentar (mediante a pesquisa) o tempo interpretado de maneira que se torne parte da vida, que recebe dela direcionamento temporal efetivo, ao ser transposta para as intengdes concretas do agir dos sujeitos. Essa vivéncia, essa participagao do saber histérico na mobilidade cultural da vida pratica humana, aparece na historiografia como coeréncia estética e retérica da apresentagiio histérica. Os termos “estética” ¢ “retorica” carecem de explicitagao, Am- bos devem exprimir o que se passa quando se formata historiogra- ficamente o saber historico, na medida em que essa formatacio é mais da que se da no pensamento histdérico durante a pesquisa, ¢ é diferente dela. “Fstética” designa aqui duas coisas: um plano e uma inten¢do, mediante os quais qualquer pessoa é interpelada pela apresentagao histérica. E estético o plano pré-cognitivo da comunicagiio simbé- lica, sobre o qual tém de se basear construtos cognitivos como o conhecimento ¢ o saber, na medida em que influenciam culturai- mente a vida de uma sociedade ou de um individuo. O elemento estético da formatagiio historiografica permite a percepgdo do saber histérico, abre-lhe a possibilidade da imediatez ¢ da forga de con- vencimento da percepcao sensivel. 2 Ver p. 23 e nota 6. 30 Jom Risen O que se entende por isso pode ser exemplificado de maneira bastante trivial. No ensino de historia, o saber histérico pode vir a ser percebido pelas alunas ¢ pelos alunos como um ramo morto de sua arvore do conhecimento. Aparece, assim, como massa de infor- magOes a serem decoradas e repetidas para satisfazer os professores, com 0 mero objetivo de tirar boas notas, Perde qualquer valor rela- tivo no modo como as criangas e os jovens pensam seu tempo, sua vida ¢ scu mundo. Em momentos de crise, até mesmo professores de historia chegam a admitir que muitos dos conteudos tratados nas aulas possuem esse cardter disfuncional ¢ que dificilmente desem- Ppenharae qualquer papel decisivo em situagSes concretas da vida, Posteriormente. De outro lado, tem-se — para a satisfacao dos profes- sores — a experiéncia de que o saber histérico pode contribuir para a auto-afirmagdo e autocompreensio das criangas e dos jovens ao longo do tempo de suas vidas préprias. Ademais, a sabedoria peda- gégica universal adverte que essa insergao do saber historico depen- de cum grande parte de seu tratamento comunicativo em sala de aula. E-ihe necessdrio desenvolver uma vivacidade que conduza seus destinatarios a vé-lo e aproprid-lo como parte de sua vida pessoal. 0 termo “estética” exprime, pois, que essa vivacidade Ppossui uma dimensio pré-cognitiva e uma dimensao metacognitiva, nas quais as formas cognitivas e os conteidos do conhecimento histérico tém de estar enraizadas, se sua interpretagio do tempo busca ter influéncia sobre as disposigdes mentais profundas do agir. Um outro exemplo: a critica da “frieza”, que certos historiado- res do quotidiano dirigem a historia social que recorre as teorias, diz Tespeito 4 sua capacidade de lograr tal chraizamento. Trata-se, ao final de contas, de um argumento esiético, que remete a relevancia comunicativa do saber hist6rico e nao, em primeiro lugar, a rele- vancia cognitiva. Por esse motivo, nao deve ser debatido apenas no plano da pesquisa, mas antes no da historiografia. A dimensio estética da historiografia consiste na incluséo, na formatagao do saber historico, de elementos lingitisticos que se re- ferem a dimensdes pré e extracognitivas do discurso histérico. Com esses elementos a subjetividade dos destinatarios é interpelada no plano em que lida com a forga sensorial, simbdlica ¢ representativa Historia viva 31 da relago com o mundo, da auto-expressao e da autocompreensao. Nao se trata mais apenas da qualidade literaria dos textos historio- graficos. A questio esta agora na fora interpeladora do discurso, na qual, em Ultima instancia, também reside a qualidade literaria desses textos. Ela torna vidvel a aptiddo a apresentar as constituig6es de sentido de maneira que suscitem, nos destinatarios, sua propria capacidade de constituir sentido, o que leva 4 ampliagéio ¢ ao apro- fundamento de sua competéncia para tanto. Temos assim ja um segundo significado para o termo “estéti- ca”. Bo que consigna uma determinada inten¢ao da formatagiio his- toriografica no plano pré e extracognitivo. Essa intengio relaciona a percepcao sensivel ¢ a forga das representacdes imageéticas, como fontes da vida pratica do saber histérico, aos contetdos cognitivos da apresentacao histérica. Essa relagao se da de maneira a que o entendimento histérico das energias da vida pratica atue de modo libertador, sempre que haja interesse cm agir. Com suas proprie- dades estéticas, a historiografia nado apenas enraiza o saber histéri- co nas dimensées intencionais profundas da vida pratica humana, como produz também o entendimente histérico como compensagio das coergées do agir, possibilitando assim uma relagao livre ¢ in- condicionada dos destinatarios com sua memoria historica. A inten- ao da estética de fomentar a liberdade provém da filosofia classica da arte (Kant, Schiller, Hegel). Ela pode ser mostrada também como elemento formador da historiografia. Seus efeitos aparecem quando o saber histérico esta a tal ponte enraizado nos impulses intencionais da vida pratica, que a meméria histérica se abre a re- presentagdes do passado nao predeterminadas. Os elementos es- téticos da historiografia introduzem o saber histérico como fator de libertacdo na motivagao para o agiz, que depende das memérias histdricas. As coergdes tomam-se assim t4o visiveis, que podem ser vencidas. A subjetividade dos destinatarios é inserida no movimento de participagao ativa na meméria, do que extrai sua forga criativa para dar forma ao futuro. Da-se pela historiografia uma espécie de ® Acorca da estética de Hegel, ver mirha interprotagiio em J. Risen. Asthetik und Geschichte (15), p. 41 s. 2 Jorn Rusen catarse da memoria. Por seu intermédio, os destinatarios alcangam um entendimento aprofundado de si mesmos e de sua historicidade, Ganham, ademais, uma motivagao para agir, na qual seu proprio eu se vé liberado das coeredes decorrentes de um passado incom- preendido no presente, que pesaria como um lastro. Uma catarse assim libertadora ¢ estimulante se funda na cocréncia estética da formatagao historiografica. Gostaria de explicitar esse ponto recorrendo aos exemplos j4 trazidos. O saber histérico pode ser aproximado das criangas e dos jovens, como meio de sua orientacdo existencial, de diferentes ma- ueiras. Eles podem ser manipulados para assumir atitudes politi- cas determinadas, com as quais se entregam incondicionalmente aos poderes dominantes. Essa vivéncia do saber histérico seria um fracasso estético. Inversamente, eles podem se tornar senhores de si nas atitudes que assumam com relagéio aos'poderes dominantes, habilitar-se para serem eles mesmos a darem forma a suas vidas. Um saber histérico com essa furga de vida seria um sucesso estéti- co. Quanto ao argumento estetico, de que o uso analitico de teorias levaria a0 “esftiamento” da relagio com a experiéncia histérica, deve-se insistir em que 0 “calor? exigido, como proximidade da vida pratica e da experiéncia pessoal, sé pode ser historiogratica- mente plausivel se aprofundar e ampliar o entendimento histérico, € ndo as suas custas. Na estética classica,” 0 processo pré-cognitivo da subjetivi dade humana, no qual s&o produzidas as impressdes sensiveis, é caracterizado como um movimento €spontaneo da imaginagdo, que corre sem sé opor as Operagdes cognitivas intelectuais ¢ conceituais da consciéncia. Pelo contrario: o movimento da imaginagio é con- siderado como um complemento, quando nao um Pptessuposto da producao de conhecimento, Dentre as fungdes de complemento ou de fundamento das operagées estéticas da consciéncia cabe desta- Car 0 peso estético especifico que a formatacao historiografica ad- quire sobre a pesquisa histérica. Nao se pode esquecer, todavia, que ®Penso sobretudo na Critica do juizo (1790), de Kant, e em Schiller (Uber die &sthetische Erziehung des Menschen, in einer Reihe Von Briefen, 1795). Historia viva 33 a imaginagiio representativa da consciéncia histérica esté sempre limitada — enquadrada mesmo ~ sistematicamente pela relagao da pesquisa a experiéncia. Herder bem retratou esse limite: ‘oO poeta é sufocado se o olharmos como historiador”.* A formatacao historio- grafica esté sempre estruturalmente enquadrada por um limite que fica aquém da imaginagao, que produz sentido estético sempre em so utdpico. ; eee limite nao pode ser caracterizado pela distingaa entre facti- cidade e ficcionalidade, pois a articulagdo entre sentido e significado dos fatos do passado vai além de sua facticidade. Justamente se se desejar considerar a facticidade pura de que determinada ocoméncia foi o caso em determinado tempo e lugar, de determinada maneira por determinadas razGes, como a esséncia da facticidade historica, entdo o especificamente histérico dessa facticidade estard sendo tratado nao factual, mas ficcionalmente. No entanto, se “ficcional devesse significar que 0 contexto histérico dos fatos nao Possui fac- ticidade alguma, desapareceriam os limites 4 imaginagao utopica no pensamento historico. Nao faria mais sentido, entio, discutir ¢ cri- ticar as interpretagdes histéricas desde o ponto de vista de saber em que medida lidam ou nao com a experiéncia histérica. Ora, uma historia ndo é narrada sob a pressdo esquizofrénica de ser ou a pura facticidade das informagdes das Fontes, de um lado, ou a imaginacdo ficcional de seu cardter historico. Sua fac- ticidade propria, muito mais real do que a facticidade dos dados das fontes, encontra-se na forma em que o passado se torna um elemento influente na vida humana pratica no presente. A memoria historica nao catapulta representagdes imagindrias, por passe de magica, de um passado factual longinquo para a proximidade da orientagdo concreta do agir humano. Ela se esforca, isso sim, e por vezes com grande dificuldade, por amenizar, mediante 0 tra- balho interpretative da consciéncia histérica, o peso determinante do passado sobre a vida presente ¢ suas perspectivas de futuro. A consciéncia histérica tem por objetivo, pois, extrair do lastro do passado pontos de vista ¢ perspectivas para a orientagao do agir, * Obras, ed. B. Suphan, v. 11, p. 76. 34 Jorn Rasen nos quais tenham espaco a subjetividade dos agentes e sua busca de uma relagao livre consigo mesmos ¢ com scu mundo. Essa li- berdade e a qualidade estética mencionada acima s4o entendidas como metas da apresentacio histérica.?> A pressdo do passado sobre os pressupostos e as circunstéincias da vida humana pratica atual é tao real quanto.o so os elementos inten- cionais dessa praxis, com os quais os individuos buscam transformar tal pressiio em impulsos de seu agir auténomo. Essa realidade atraves- Sa a distingdo entre facticidade e ficcionalidade no processo de memé- tia da consciéncia histética. O limite das possibilidades estéticas da apresentacao historica esta no ponto em que a imaginapao simbélica da interpretagfio do mundo, da autocompreensio e da autoconcep¢ao descole dessa realidade e introduza uma dimensio utépica do tempo na determinagao do sentido do agir e o transforme em simulagao.”6 Naturalmente, esse limite separa, do potencial estético da constituigade histérica de sentido, todos os campos da constituigdo estética de sen- tide, na medida cu yue estes se subtraiam a Pressao experiencial dos Pprocessos temporais reais, liberando a imaginacao. A coeréncia formal com que a historiografia leva em conta a televdneia comunicativa, necessaria ao processo de constituigao de sentido pela consciéncia historica, ndo se esgota na qualidade esté- tica, A categoria da estética € demasiado estreita. Desconectada da qualidade paraut6pica de sua ultrapassagem da realidade pela imagi- nagao, a estética estreita a vistio da constituigao de sentido produzi- da pela formatacao historiografica. $6 com ela nao é possivel expli- citamente suficientemente 0 que a categoria da retérica representa para a historiografia. Nessa categoria encontra-se a telagdo pragmatica a realidade, na qual © potencial significativo da historiografia se distingue nao negativa, mas positivamente das constituigdes “puramente” estéti- cas de sentido na arte (entendidas como ultrapassagem da realidade pela imaginagao). Embora as dimensies estética ¢ retorica das cons- tituigées narrativas de sentido sempre se superponham, a intencao 25-Ver p. 30. Isso no quer dizer que os construtos utépicos de sentide no possam gerar impul- 80S produtivos para a historiografia. Ver p. 135 8. Histéria viva 35 de surtir efcito sobre os destinatarios, prdpria a toda formatagiio lingitistica do saber hist6rico, é mais bem-apreendida pela categoria da retorica do que pela categoria da estética. Esta ocupa-se mais da eficacia ou do potencial que possa alcangar por forca de seus com- ponentes imaginativos. A qualidade retérica de um texto historio- grafico esta, ao invés, em sua estrutura de interpelagdo, na maneira ena forma com que motiva o destinatario a conceber inten¢des que se desdobram em sua disposi¢ao para agir (com relagdo a si ou a outros). Essa relag4o as disposigdes para o agir e 4 autoconcepeao pratica ¢ assegurada pela forma significativa com que uma detenmi- nada interpretagdo da experiéncia do tempo é expressa pelos modos lingilisticos, que so, simultaneamente, os modos praticos de pro- mover orientag&o para o agir e constituig&o de identidade. A reto- rica da historiografia articula a linguagem do saber histdérico a lin- guagem falada pelos préprios destinatarios. Com outras palavras: a linguagem que sempre falaram, pois sua relagéo consigo mesmos e€ com 0 mundo estd fundamentalmente determinada pelas interpreta- gdes do tempo, pelas atitudes quanto as experiéncias do tempo, por modelos de interpretagdes do tempo. “Tépos histérico” é 0 termo que se utiliza para designar os tipos de discurso ou de linguagem que conectam os historiadores e seu publico-alvo, nos quais o agir a constituicio da identidade so orientados no tempo.” Ao utilizar a designagdo “tdpos” para caracterizar sua reflexao sobre a historiografia, a teoria da histéria afirma que o ponto de vista da relevancia comunicativa, determinante da historiografia, aponta para o papel que o saber histérico desempenha no discurso cultural da respectiva sociedade. “RetOrica” € toda e qualquer historiografia, uma vez que esta sempre determinada pelas intengGes de seu autor, dirigidas aos seus destinatarios potenciais. Essa intencionalidade pode ser mais bem explicitada: ela se dirige (evidentemente pelos mais diversos graus de mediac&o) ao ponto da vida humana pratica, © Acerca da t6pica ¢ da retorica, em geral, ver o insteutive panorama de L. Fischer. Topik, Rhetorik. In: H. L. Arnold; V. Sinemus (Ed.). Grundsiige der Literatur- und Sprachwissenschaft, v. 1: Literaturwissenschaft, Miinchen, 1973, p. 134-156, 157-164. Para os fundamentos, ver Bornscheuer. Zopik (15). Uma visio de con- junto do debate atual est4 em Brever; Schanze, Ed. Topik (15). 36 Jom Risen em que os significados do tempo interpretado cxercem uma fun¢ao de orientagao pratica da relacao dos sujeitos consigo mesmos ¢ com o mundo. Essa teleologia retérica manifesta-se nos modos “tépicos” do discurso historiografico, no uso de modelos histéricos de pensa- mento e de argumentagdo, que possuem um papel decisivo na ges- tao da vida pratica. Um édpos articula “a intengdo de sistematizar e a vontade de convencer de maneira nao-impositiva”.”* A tépica da historiografia demonstra que modelos culturalmente elaborados sao utilizados para a interpretacg&o do tempo, ¢ de que modo atuam quan- do o saber histérico busca ter influéncia sobre seus destinatérios. Estética e retorica sdo dimens6es da formatacio historiografica, mediante as quais o saber hist6rico adquire as propriedades com as quais pode “inserir-se na vida”. Na dimensio estética, pela lingua- gem, que abarca as disposicdes ¢ intengdes pré © extracognitivas dos sujeitos interpelados. Na dimensdo retérica, pela teleologia da interpelagao, que abarca os modos, modelos e estratégias da argu- mentacao lingilistica sempre presentes na orientagdo pratica da vida na constituigio da identidade. Ou seja: abarca o discurso histérico, que opera como cédigo cultural em uma dada sociedade. A relevancia comunicativa da historiografia expressa-se na coeréncia estética e retérica de cada formatagdo lingiiistica histo- tiogrdfica. Com respeito 4 dimensio estética, pode-se chamar essa coeréncia de “beleza”. Com respeito 4 dimensdo retérica, pode-se chamar essa coeréncia de “eficacia”. Presta-se, assim, homenagem 4 conhecida classificagio das fungSes da poesia por Horacio, re- conhecendo o prodesse ¢ 0 delectare. A formatagio historiografi- ca é coerente esteticamente se apresenta o saber historico com as expressées lingtifsticas significativas que satisfagam 4 caréncia de sentido e 4 capacidade de constituir sentido dos destinatarios. Algo semelhante vale para o critério historiografico da coeréncia reté- rica: ele é satisfeito por formatacgées que respondam aos sujeitos interpelados justamente no ponto em que agem praticamente por teferéncia a constitui¢ao histérica de sentido. 3D. Harth. Strukturprobleme der Literaturwissenschaft. In: D. Harth; P. Gebhardt (Ed.). Erkerminis der Literatur, Theorien, Konzepte, Methoden der Literaturwis- senschaft, Stuttgart, 1982, p. 7. Historia viva 37 Como se relacionam a estética e a retérica da historiografia? Aresposta mais comum a essa pergunta é que uma dimensdo esta subordinada 4 outra e dela depende. Isso decorre da evolugio di- vergente desses dois tipos de reflexdo sobre a comunicagiio humana. Aestética desenvolveu-se como uma disciplina filos6fica, cuja visio da arte teve um efeito fortemente anti-retérico. A beleza, como qua- lidade cognitiva particular da percep¢do sensorial, foi rigorosamente separada da eficacia pratica, e mesmo oposta a ela, de modo que a qualidade estética de uma forma de significado seria medida pelo quanto ela evita interferir nas intencdes do agir. O desinteresse valia como qualidade essencial da estética. A coeréncia estética de um construto significativo estaria ent&io em fomentar nos destinatarios uma relagao de liberdade com as determinacées do agir em suas vi- das concretas. Ao invés de induzir os sujeitos a agir de determinada maneira, libera-os da pressao para agir e habilita-os a conhecer me- thor as circunstancias de suas vidas, que lhes ficariam veladas na ro- tina quotidiana do agir por interesse. A cocréncia estética predispoc para a libertac&o do sujeito dos constrangimentos para agir. Por sua vez, essa liberagao confere 4s intengdes orientadoras do agir uma nova qualidade: entendimento dos contextos de sentido que envol- vem 0 agit, liberdade como motivo ¢ intengdo do agir. Essa fungio libertadora da estética faz a retérica aparecer como um contra-senso, pois ela vincula os destinatarios de um significado a determinadas induces a agir, de que a qualidade estética da imaginagdo os quer justamente libertar. Diante desse quadro, a retorica tende a conceber a coeréncia histérica como um fépos histérico, que tem por objetivo determina- das disposi¢6es para o agir. Isso ndo é incorreto, na medida em que, pela coeréncia estética, a referida liberdade de agir ¢ uma qualidade que serve de motivo para agir. E nao se trata de uma qualidade qual- quer dentre outras, mas a qualidade do agir humano por exceléncia. Esse motivo suscita um agir em que os seres humanos se véem mu- tuamente como fins em si mesmos e nao como meios para a realiza- go de fins particulares. Estética e retérica nado precisam se contradizer ¢ tampouco se subordinar uma 4 outta. Sua articulagao é mais bem explanada 38 Jom Rusen assim: a retérica concentra-se, na estética, no efeito que o cons- truto lingitistico de sentido tem no agir, liberando os sujeitos de constrangimentos prévios para determinada ag&o, fomentado sua reflexdo sobre outras formas de acdo, dispondo-os, assim, a um agir novo, qualitativamente diferente. Na estética, a retérica torna-se metapragmitica: ela faz lidar com o proprio agir, provoca tomada de posigao dos sujeitos agentes quanto ao agit, fazendo-os ganhar mais liberdade. | oO que significa tudo isso para a historiografia? Trata-se da re- levancia comunicativa da formatagdo historiogréfica, com a qual ela vai além das intengées prdticas de influir (no mais das vezes politicamente), capacitando seus destinatarios a entender as cir- cunsténcias temporais de sua vida pratica, que admitem outras in- tengdes praticas. A historiografia de Ranke, por exemplo, esta sem dtivida alguma impregnada Por representagGes politicas conserva- doras, mas sua qualidade esictica, tao apreciada, agrada também ao publico que assume outras posigdes politicas. Essa historiogra- fia Apresenta-lhe outros entendimentos historicos, que podem ser de interesse mesmo se originada em posturas politicas ¢ interesses divergentes do seu. Arelevancia comunicativa da historiografia consiste, pois, em um contexto de mediagAo entre a coeréncia estética ea coeréncia retorica. Nesse contexto, os elementos cognitivos desempenham um Papel es Sencial. Para a teoria da historia, 4 qual interessa explicitar a historia como ciéncia, é decisiva a perspectiva historiografica em que a fer- mentagdo cognitiva de sua televancia comunicativa prevalece. E-lhe necessario colocar a questo da relacdo da historiografia 4 pesquisa, como fator de sua coeréncia estética ¢ retérica, Que papel desempe- nha a relevancia cognitiva, constituida pela pesquisa no pensamento hist6rico, na relevancia comunicativa propria 4 historiografia? Conseqtiéncias da pesquisa Para poder responder a essa pergunta, é preciso levar em conta © Passo que, no processo do conhecimento histérico, vai da pesquisa Historia viva # a apresentagdo. A pesquisa, como ja foi dito, esta tendencialmente sempre dirigida 4 apresentagdo. Todo resultado de pesquisa s6 pode ser entendido como componente de uma histéria, e 6 assim a pode produzir. No entanto, essa tendéncia, essa virtualidade, requet ser transformada em manifestagio, cm atualidade. Para tornar claro o que ocorre ai, deve-se lembrar, previamente, 0 que acontece quando a pesquisa se pde em movimento. A pesquisa comega com certas abstracdes. Essas abstragdes precisam ser compensadas pela histo- riografia no nivel cognitive do saber histérico alcangado pela pré- pria pesquisa. E fato que a pesquisa se articula com as caréncias de orientacao da vida pratica pelas operacdes cognitivas da heuristica. A pesquisa sublima essas caréncias, transformando-as em perspec- tivas quanto a experiéncia acumulada, na qual o passado remanesce presente. O sujeito do conhecimento, ao voltar-se decididamente na pesquisa 4 investigagdo empirica do passado (“voltar as fontes mes- mas”), da as costas a seu presente. O quadro tedrico de referéncias da pesquisa ¢ da intorpretagio histéricas é por certo algo distinto da orientacao da vida pratica no tempo, embora estejam imbricados. A pesquisa nao exclui a base existencial do pensamento his- torico, a inquietagéo da experiéncia do tempo, que engendram as questdes histéricas, sob o pretexto de um ponto de vista neutro, fora de seu tempo. Pelo contrario, cla as inclui. As inquictagées sao apaziguadas pelos procedimentos regulares do trabalho com © material das fontes. Além disso, como a pesquisa, por definigao, desbrava caminhos novos do saber histérico, vem a colocar entre parénteses 0 acervo de conhecimento jé acumulado. E assim que 0 complexo processo do questionamento mais ou menos tedrico das fontes e da interpretacgao de seus dados gira, primariamente, nao em torno dos abalos e das tentativas de estabilizagao da identidade histérica (por mais que cssa scja a origem de todo questionamento histérico), mas sim em torno da questdo de “como foi mesmo que tudo ocorreu”’. Ao fim do processo, entretanto, quando a pesquisa encontrou as respostas as perguntas formuladas e trata-se de formular essas respostas de maneira inteligivel ¢ eficaz, o saber histérico aleancado pela pesquisa precisa ser reintegrado ao acervo de conhecimento ja a0 Jorn Riisen acumulado. Nesse ponto, surge a questéio dos pontos de vista que orientam essa reintegragao, o que em qual perspectiva deve ser mais ou menos importante. Essa questo leva de volta as inquietantes ex- periéncias do tempo e a busca de identidade histérica no contexto Pratico da vida em que se produz o conhecimento histérico, Se esse contexto havia sido colocado entre parénteses por exigéncia da re- levancia cognitiva do saber histérico, agora esses parénteses tém de Ser retirados no ato da formatagao historiografica do saber histérico obtido pela pesquisa. Naturalmente, faz diferenca se o resultado da pesquisa € di- tigido em primeiro lugar aos especialistas ou ao publico em geral {por isso mesmo inespecifico). O gran de inovago que a pesqui- sa introduz, com relagao a0 acervo de conhecimento acumulado, amitde vai além do circulo estreito dos especialistas ¢ dirige-se a interessados em geral. No primeiro caso (o dos especialistas), a re- consideracao do sujeito do conhecimento da vida concreta presente bermanece um momente implicito da formatagao historiografica. E preciso ler muito nas entrelinhas para descobrir-se onde e como a experigncia do presente influcnciou ou até engendrou a realizacao da pesquisa. No segundo caso (o do pubblico em geral), esse cardter implicito nao existe; a historiografia assume a plenitude de sua re- levancia comunicativa. Como fazer valer, entio, as conquistas cognitivas da pesquisa, quando o conhecimento histérico retoma, na formatacao historio- grafica, as suas origens no contexto existencial? A tesposta dada pela tradipdo cientifica a essa questio, ainda valida na autocompre- ensao cotidiana dos historiadores profissionais, é a “des-retoriza- s4o”” das apresentagées historiograficas. Como um fio condutor, encontram-se as observacdes anti-retéricas nos textos em que a autocompreensdo da historia se enuncia programaticamente como ciéncia especializada.” O que se quer dizer com esse tépos, que ® Sobre esse conceito e sua problemitica, ver II, 15s. Eo que declara a Revue Historique — para citar apenas um exemplo — ne mani- festo introdut6rio de seu primeiro nimero: “... que cada afirmagio seja acom- Parthada de provas, de remissiio as fontes e de citagdes, excluinda com rigor as generalidades vagas e os arroubos otatérios ...” [tradugde da citaeao do original Historia viva 4 a historiografia orientada cientificamente nada teria a ver com a retorica? E corriqueira a concepoao de que a historiografia baseada em pesquisa nada mais diz do que teria ocorrido. No sentido de uma objetividade cientifica entendida como neutralidade, a histo- riografia nao estaria de nenhum modo relevante vinculada a praxis. Ranke deu a essa concepcAo sua formulapao mais forte: “A verdade nua, sem nenhum ornamento. Investigaga4o profunda do individual; o resto ao deus-dara. Nada de poesia, nadinha, nada de elucubra- gio”.*! Uma concep¢ao dessa expulsa do processo de conhecimento historico 0 peso proprio e a especificidade da apresentacdo histo- riografica. Mesmo assim, Ranke ainda admite que ha um “resto”. Na pratica, ¢ muito menos ao deus-dard do que 4 maneira como sua historiografia dominou magistralmente seus temas que ele obteve reconhecimento, pois soube inserir o resultado de suas pesquisas na forma estética de uma grande historiografia épica, Nao resta divida de que essa épica se compée de elementos retéricos, de que decorre a influéncia da historiografia de Ranke sobre a cultura politica dos alemaes. O tépos anti-retérico opde-se explicitamente tanto a linguagem historiografica empolada, que aparece como fim em si mesma, quan- to 4 utilizag&o de clementos ficcionais na historiografia. Para Ranke, esses elementos ficcionais sdo os discursos ficticios que Guicciardi- ni inseriu em sua apresentagdo, mediante os quais os agentes forne- ceriam ao leitor os motivos explicativos de suas agdes. Mesmo se essas duas exclusdes parecem justificadas, no plano da historiogra~ fia baseada em pesquisa, em nada contribuem para compreender o estatuto de seus elementos estéticos e retéricos. Esses elementos nao s&o imunes 4 relevancia cognitiva que a pesquisa confere ao pensamento historico. As conquistas cognitivas, aleangadas por este pensamento na pesquisa, entram na relevancia comunicativa da historiografia. A historiografia resultante da pesquisa ganha, com isso, uma quatidade que a diferencia de outras formas de formata- go histérica. francés, N.T.]. G. Monod, G. Fagniez. Avant propos. Revue Historique, 1, 1876, p. 1-4, cit. p. 2. » Ver nota &. 2 Jorn Risen Bascar-se na pesquisa € 0 objetivo da relacao estética e retérica da historiografia com o publico. O movimento estético da imagi- nacdo aponta para a vivificacdo das faculdades cognitivas. A inter- pelagao retorica das estratégias topicas da orientagdo do agir e da constituigado da identidade aponta para a tomada de posigao. Esta articula a satisfacdo dos interesses e as pretensdes de validade no formato de uma argumentagao. A forga da imaginagao é dirigida para o conhecimento e a forga de convencimento dos fopoi histéri- cos é dirigida para a experiéncia ¢ para o entendimento. As faculdades cognitivas e os elementos da argumentag4o es- téo sempre presentes e ativos na vida humana pratica, inclusive na orientagdo temporal do agir. Elas sfio o fundamento de qualquer ra- zo pratica. Na historiografia, sao reforgadas pela rclagdo a experién- cia como modo da interpelagao do publico. A historiografia wanspde a racionalidade da relagdo 4 experiéncia e da andlise tedrica, que o saber histérico obtém pela pesquisa, para a razdo pratica, que pode ser alcangada na relagio cstétiea ao sujcito c na relagio retérica & praxis. Ela transforma a racionalidade metédica da pesquisa em um potencial racional das formas de vida. Os elementos de orientacdo temporal, sempre presentes na praxis humana, so esciarecidos pela historiografia baseada na pesquisa. Os elementos de sentido do tem- po, sempre presentes na autocompreensao humana, na interpretagado significativa e na orienta¢4o intencional da vida pratica, so enrique- cidos com as potencialidades do pensamento argumentativo e com a reflexZo sobre a experiéncia da vida, Sentido é vinculado a razio. Com isso, o sentido é “esclarecido”, isto é, vinculado aos resultados intelectivos do conhecimento hist6rico. Inversamente, esses resul- tados intelectivos séo relacionados ao sentido que determina o agir, tornando-se assim praticos. O esclarecimento que a historiografia se toma capaz de pro- duzir, mediante sua vinculag&o sistematica 4 pesquisa histdrica, da especificidade a seus fatores estético e retérico. Eles se com- péem nas apresentagdes histéricas que s’o consideradas como especificamente cientificas ou, pelo menos, proximas ou afins & ciéncia. A cientificidade, para a interpelagdo estética dos potenciais de sentido pré ou extracognitivos da vida pratica, significa que as Historia viva 43 potencialidades imaginativas da constituigao narrativa de sentido sho dirigidas 4s competéncias cognitivas dos sujeitos interpelados. Pensamentos histéricos ténues s&o reforgados pela vivacidade das atitudes ¢ motivagdes emocionais. Inversamente, a forga dionisiaca do belo é transmutada na clareza dos construtos apolinico-racio- nais de sentido. Para a interpelagdo retdrica das intengées praticas, cientificidade significa que a vontade de poder, de que os sujeitos sempre revestem suas intengGes priaticas, ¢ civilizada pela vontade de verdade, que vincula a busca de validade dos agentes aos proce- dimentos do entendimento que Ihes torna a vida social suportavel. Tipologia da historiografia Para se poder caracterizar a fungao de esclarecimento que a relagfio 4 pesquisa exerce no campo da historiografia, é necessario yoltar 4 basc cxistencial das opcragdes cognitivas da consciéncia historica.” Essas operagdes bdsicas precisam ser explicitadas de forma que a dimens&o comunicativa do saber histérico fique clara. A historiografia pode ser caracterizada como o processo da cons- tituig&o narrativa de sentido, na qual o saber histérico ¢ inserido {mediante narrativa) nos processos comunicativos da vida humana pratica. E nesses processos que o agir humano e a autocompreensio dos sujeitos se orientam pelas representagdes das mudangas tempo- rais significativas. No que segue, nao trato de avaliar a amplitude das possibili- dades de apresentacao literdria de que a historiografia lanca mao e de esbogar uma poética dos géneros historiograficos (conquan- to uma tipologia dos géneros historiogrficos seja um desiderato urgente da teoria da histéria). Minha intenc&o é, antes, expandir conceitualmente 0 espectro das constituigdes narrativas de sentido e ordend-las categorialmente. Gostaria, pois, de esclarecer como 0 superavit cognitive, que o pensamento histérico ganha mediante a pesquisa histérica cientifica, entra na relagdo da historiografia com Ver I, 568. “4 Jorn Rusen seus destinatarios. Para tanto requer-se classificar essa relagio aos destinatarios em uma estrutura do discurso historiografico, esbocan- do ao mesmo tempo uma gramatica da historiografia como operago cognitiva da “topologizagiio” do saber histérico. Desejo apresentar essa proposta sob a forma de uma tipologia da constituigao histérica de sentido, que acompanhe os pontos de vista determinantes dessa constituicao de sentido. Ao fazé-lo, dedicarei atencio especial ao aspecto comunicativo, que a historiografia confere ao saber histérico. Principios da diferenciagdo As distingdes “tépicas” ¢ as diferenciagées da constituicao historica de sentido podem ser esquematizadas de acordo com os pontos de vista decorrentes da fungao de orientacio que possui o saber histérico. Que condigdes devem ser satisfeitas, para que a vida humana prética possa ser oricntada no tempo ¢ realizada, Icvando-se em conta suas experiéncias contingentes, em cujo meio a meméria histérica é constituida de modo a fazer sentido? A resposta a essa pergunta € fornecida por uma série de principios da orientagdo his- térica, que deve ser elaborada de modo que cada principio seja ne- cessdrio € seu conjunto suficiente para que o saber histérico exerca sua fungdo de orientagdo. Elaborada essa série, cada principio eo conjunto deles ainda pode ser diferenciado de acordo com as pers- pectivas que determinam a especificidade da constituigdo histérica de sentido, dentro do contexto da interpretagZo do tempo pela narra- tiva. Essas perspectivas sao: a elaboracdo da experiéncia do tempo por meio da memaéria histérica, a formacao de uma representacdo da mudanga temporal (“continuidade”), que sintetize as trés dimen- sdes do tempo num construto abrangente de sentido e, por fim, a fungdo de constituicdo de identidade, que articula a representagao da mudanga temporal, enriquecida com a interpretagdio da experién- cia histérica, com a vida concreta dos sujeitos. Essa fungo deve ser considerada sobretudo quanto a forma comunicativa em que s¢ realiza. E nessa forma que a historiografia corresponde ao principio tegulativo da relevancia cognitiva. Historia viva 45 Segundo que pontos de vistas fundamentais, entéo, a vida hu- mana pratica ¢ historicamente orientada? O primeiro ¢ 0 ponto de vista da orientacao por afirmagdo. Toda orientagao histérica da vida humana pratica baseia-se no pressuposto incontomavel de que a vida pratica ja é orientada, ainda mesmo antes de qualquer constituigdo natrativa de sentido. Assim, toda forma de tratamento comunicativo das perspectivas temporais das relagdes sociais est4 necessariamen- te conectada ao pressuposto de um entendimento prévio de todos os participantes. Que as pessoas possam entender-se ¢ que se te- nham sempre entendido é condigao de qualquer comunicacao. Essa condi¢ao vale também para as situagdes de conflita na orientagao histérica, pois é preciso que haja entendimento ao menos sobre 0 que é dissens&o, pois de outra forma nao se poderia esperar vencer o debate. Essa circunstaéncia prévia da orientagae histérica, como condigdo da possibilidade da vida humana pratica, é a base objetiva ¢ 0 ponto de partida subjetivo de toda atividade da consciéncia hist6- rica € de todo entendimento comunicativo dos construtos narrativos de sentido. Pode ser descrita como fradicdo, como presenga pura ¢ simples do passado no presente.” Nela, a hist6ria ~ objetiva e sub- jetivamente — esta sempre “viva”, como forga influente das chances de vida previamente decididas e como apreensio significativa do processo temporal dos atos que fazem a vida humana. Nessa vida e nessa eficacia da tradigao se enquadra toda orientacao histérica consciente. Afirmagao, como condicao necessaria da orientacdo his- térica, constitui o topos da narrativa tradicional e o tipo de consti- tuig&o narrativa de sentido que lhe corresponde. Um segundo principio da diferenciagdo tipolégica torna-se visivel quando nos é presente que o entendimento prévio acerca de orientacio histérica, no modo da tradigo, nfo basta, nem de longe. Sempre que as tradigdes chegam ao limite de sua (estreita) capacidade de elaborar a experiéncia, quando se necessita superar uma experiéncia da contingéncia, que nao tenha sido trabalhada anteriormente na constituigdo tradicional de sentido, surgem outros pontos de vista da constituigdo narrativa de sentido. O préximo ¢ » A esse respeito, ver I, 81 s. 6 Jorn Rasen o da regularidade. Esse critério de sentido distingue-se do critério da afirmagao por uma relagdo mais ampla com a experiéncia e por um grau mais elevado de abstracdo. Fle permite que sejam sinteti- zadas diversas tradi¢des em interpretagdes unificadas das experién- cias temporais e que seja estendido significativamente o alcance das experiéncias histéricas relevantes para a orientagdo, As regularidades sao o inventdrio necessario das interpretagées das experiéncias que influenciam o agir e a capacidade reguladora é um elemento essen- cial da forga da identidade. Como pontos de vista da comunicagiio, as regras abrem o espago de atuacdo da argumentacdo sobre experiéncia ¢ interesses diversos, assim como articula essa diversidade na pos- sibilidade de formagao de consenso, mediante o recurso abstrato a pontos de vista gerais, baseados na experiéncia. Esse principio da tegularidade constitui o topos da narrativa histérica exemplar ¢ 0 tipo de constituigao narrativa de sentido que The corresponde. Um terceiro principio de diferenciagao baseia-se no fato ele- mentar de que toda comunicag&o (inclusive, pois, a prdpria ao dis- curso histérico) pressupde que os sujeitos, em cujas vidas se dio as orientagées histéricas, sao diversos (individuos, grupos, sociedades, culturas). Esses sujeitos as compartilham, utilizam-nas na luta pelo reconhecimento e pelo poder, podendo ganhd-las para si. Indepen- dentemente de que maneira as formas ¢ as estratégias da comunica- gao sao empregadas por meio da constituigdo narrativa de sentido, todos os sujeitos participantes colocam nelas sua diversidade e sua contraposigao. O principio da negagdo ou da contraposigdo expri- me sistematicamente essa diversidade e essa oposigao. E necessario haver orientagées histéricas, nas quais ¢ com as quais os sujeitos exprimam sua diversidade e sua contraposig&o a outros sujeitos Com essas orientagées, os sujeitos tornam-se proprios ~ recusam orientagSes prévias ou impostas e desenvolvem suas préprias orien- tagées, que exprimem sua particularidade, sua diversidade, sua con- traposigao. Esse principio da negagdo constitui o tapos da narrativa histérica critica e o tipo de constituigao narrativa de sentido que Ihe corresponde. Os principios de diferenciag4o da oricntagdo histérica mencio- nados até aqui coincidem em um ponto: os trés dirigem 0 trabalho Historia viva 47 de constitui¢ao de sentido da consciéncia histérica, em tempos de inquietagao e de mudancas constantes, desafiadoras, do homem e de seu mundo, para produzir ou recuperar uma representagao do tempo em que prevalecam a quietude ¢ a constincia. Isso, contudo, sé pode ocorrer dentro de determinados limites, que precisam ser supcrados, se a consciéncia historica com efeito deve controlar a experiéncia do tempo que a constitui. A mudanca temporal deve poder receber uma qualidade de sentido apta a orientar o agir, pois ela ndo se aquieta no mero sentido guardado na memoria e carece de ser significada em si mesma. Isso ocorre mediante 0 principio da transformacdo. Por ele, a propria mudanga temporal toma-se ponto de vista orientador da vida pratica e da formagdo da identidade. As diferengas e as di- versidades diacrénicas ndo sio mais mantidas afastadas, de acordo com a tradigao, no se abstrai mats delas por recurso 4 argumentagao tegrada, nao se nega mais simplesmente as orientagdes precedentes. Pelo contrario, diferengas e diversidades podem e devem ser elabo- radas positivamente (se se almeja que a comunicagdo seja efetiva). As orientagées histéricas so colocadas, assim, em perspectiva pe- las mais diversas posigdes. As perspectivas e as posigdes sao, por sua vez, integradas na representacio de uma unidade abrangente e dinamica do tempo. Esse principio constitui o topos da narrativa histérica genética ¢ 0 tipo de constituigdo narrativa de sentido que Ihe corresponde. Os quatro principios pertencem a um contexto sistematico. Uma orientagao histérica que dependesse exclusivamente de um de- les nado é pensavel. Cada principio traz forg¢osamente os demais ¢ somente os quatro em conjunto constituem condigao suficiente para a orientagao bem-sucedida no tempo. Os principios estao interligados de forma extremamente com- plexa. Condicionam-se mutuamente e opdem-se ao mesmo tempo. Constituem um conjunto de relacdes dindmicas, cujo formato varia conforme as circunst4ncias sob as quais as orientagGes histéricas se tornam necessarias na vida pratica. Essa dindmica corresponde a dinamica temporal intrinseca 4 vida humana pratica. Ela estabelece logicamente a historicidade interna das orientagdes histéricas. Isto pode ser especificado, para a formatagao historiografica do saber 48 Jorn Rasen histérico, como a correlagio dos pontos de vista necessdrios 4 rela- ¢4o historiografica aos destinatarios do saber histérico. Como fopai da narrativa histérica, os quatro principios formam uma rede de caracteristicas topicas da historiografta, que abrange a totalidade do campo das estratégias histéricas de argumenta¢io. Em suas diferentes conformagées, os quatro fopoi constituem o discurso histérico. E, como tipos da constituigao narrativa de sentido, que é determinante do ordenamento narrativo de uma hist6ria, eles assu- mem conformagdes que fomecem 0 formato significativo especifico das histérias, podendo ser identificados exatamente como tais. Constituigao tradicional de sentido A narrativa tradicional é a forma da constituicéo narrativa de sentido e um fépos da argumentacao histérica que interpreta as mudangas temporais do homem e do mundo com a representa¢4o da durag&o das ordens do mundo e das formas de vida. Historias que obedecem a esse formato ¢ a esse dOpos remetem as origens, que se impdem as condigdes contemporaneas da vida, e que se querem manter inalteradas, presentes e resistentes ao longo das mudangas no tempo. O mito da origem seria uma forma especialmente “pura” desse tipo. As agdes do discurso histérico, em que as orientagdes historicas tradicionais se tealizam socialmente, séo de cunho ritual. Nao deixam de existir, contudo, iniimeros exemplos desse tipo de discurso histérico em sociedades seculares ¢ no cotidiano contem- poraneo. Discursos comemorativos de jubileus, por exemplo, nos quais o ponto de vista de uma origem impositiva dé a partida reté- rica e que tém em si, indubitavelmente, algo de ritual. (O buqué de flores na mesa dos oradores levou o historiador alemao Karl-Ernst Jeismann a falar de uma “fung30 cosmética” do pensamento histéri- co,** demasiado facilmente a servico da legitimagao tradicional, sem fazer valer sistematicamente o potencial critico da ciéncia.) “Comentario durante um debate em um congresso na Academia Evangélica de Locum (da Igreja luterano-evangélica de Hannover, Alemanha). Historia viva 9 A categoria da continuidade, determinante para a interpre- tagdo da experiéncia do tempo, é elaborada como representacdo da duragao na mudanga. Isso pode ocorrer de diversas manciras. Pode-se constatar empiricamente ¢ apresentar como formas de vida reguladas normativamente se mantém. Pode-se ainda produ- zit a representacdo das origens ocultas, que so aparecem de tempos em tempos, como garantias de uma vida estavel, etc. Em todos os casos, 4 inquietagdo provocante das mudangas no tempo da vida humana é domesticada pela representagdo, na profundeza ou na raiz do tempo, da permanéncia dos principios que, empiricamente, produzem a ordem. A identidade forma-se, nesse discurso, como enraizamento das formas sociais tradicionais da subjetividade em atitudes, motivagdes e modelos de percep¢4o e interpretagéo profundamente inseridos nas mentalidades. Histérias desse tipo funcionam como formado- ras de identidade, na medida em que interpelam seus destinatarios areproduzir modelos de comportamento. A identidade sexual é um bom exemplo da identidade profunda formulada tradicionalmente e estabilizada pelos discursos da tradigao. A forga da constituigdo tradicional de sentido, nas profundezas da exisiéncia humana, pode ser identificada, tipologica ¢ topologicamente, com facilidade, no campo da socializagao e da individuagao humana. Igualmente elementares so as formas de comunicago desse discurso. Ele institui um entendimento origindrio que pode chegar até ao limite do inquestionavel, indizivel, ébvio. (E certo que até 0 que apareca como ébvio requer uma afirmagao histérica, se essa obviedade deve sobreviver 4 evolugdo do tempo.) As formas de orientagdo histérica expostas aqui sio uma apresentagio expressi- va (mas também explicativa ¢ argumentativa) de um sentimento do “nds”, de um pertencimento coletivo a uma (como se diz hoje em dia) “comunidade de valores”, que se baseia em pré-hist6rias comuns as circunstancias dadas da vida (no mais das vezes apresentadas como “destino”). O critério de sentido determinante para essa forma de constituicao narrativa de sentido ¢ 0 enraizamento do ordenamento da vida e do mundo na profundeza inconsciente do tempo em movi- mento. Por ele, o tempo é eternizado como sentido. 50 Jorn Rasen No campo da historiografia académica, o “Lutero” de Gerhard Ritter € um bom exemplo dessa constituigao tradicional de sentido e dos fopoi e recursos lingiiisticos proprios a ela.** Ritter (1962) gene- taliza a experiéncia da crise da Primeira Guerra Mundial e do inicio da Republica de Weimar para tepresentar a decadéncia cultural do Ocidente. Ele considera indispensavel a pergunta pelas “fontes da for- ga espiritual” (idem, p. 5) que devem ser novamente acionadas para renovar e assegurar “nossa existéncia espiritual”. Com Lutero, Ritter recorda com énfase a tradi¢ao da fé cristd. Somente essa {é estaria em condig&es de superar a crise cultural do tempo presente. Além disso, a rememoracio de Lutero contribuiria para estabilizar a identidade alem, fortemente abalada. Com Lutero renova-se no apenas “‘o mis- tério religioso do cristianismo primitivo ... com uma forga originaria misteriosa” (p. 33) (de forma paradigmiética para o presente), mas ele € também o alemao por exceléncia: sua vida e sua obra pertencem “a um destino que ... forjou ... com a maior forga a forma da esséncia alema’ (p. 8). Lutero representa, “om todo o seu ser”, “a nds, ale- mies” (p. 186). Ritter enuncia o saber histérico sobre Lutero com a clara intengdo de que “‘nés busquemos compreender a nés mesmos na esséncia de Martinho Lutero” (p. 187). O modo de comunicagao historiografica depende também do idpos tradicional. Ritter associa 0 Icitor com 0 uso freqiiente do “nés” em formulacdes interpelantes, que apresentam o “mistério proprio” (p. 13% de Lutero, uma f po- derosa, originria, quase meta-historica, ativa. E com ela que se pode interpretar a experiéncia, formar a identidade, orientar 0 agir. Constituigdo exemplar de sentido O tipo da constituigao exemplar de sentido é uma forma da narra- tiva historica ¢ um ‘dpos da argumentagao historica que se distingue *G, Ritter. Luther. Gesiale und Tat. 1. ed., 1925, reedigoes inalteradas em 1943 e 1959. As citagdes foram tiradas da edigao de bolso, Stuttgart, 1962. 3 “mistério” que Lutero apresenta & andlise histérica, ¢ que pode ser decifrado por essa anilise como solugo para a identidade alemi e para a fé cristi, atravessa lingitis- ticamente toda a obra de Ritter, como um fio condutor (14, 24, 32, 182, 195, etc). Historia viva 51 do tipo da constituigao tradicional de sentido por uma ampliagao do campo da experiéncia ¢ por um nivel mais clevado de abstragao na relacéo normativa do saber historico a pratica. Os limites estreitos, jmpostos por uma constituig¢ao tradicional de sentido 4 elaboracio da experiéncia do tempo, so ultrapassados. Nao se trata mais dos processos ¢ acontecimentos do passado nos quais se constitui o sen- tido necessdrio para dar conta de situagdes concretas do agir hoje. A questao agora é de ter presentes todos os contetidos da experiéncia nos quais as determinagdes de sentido relevantes para a vida pratica concreta aparecem, consolidam-se e podem ser demonstradas. Nes- se processo, as determinagées de sentido tomam uma forma abstrata: ndo aparecem mais como realidades concretas na vida pratica, mas s&o pensadas como regras, pontos de vista, principios. A constitui- gio exemplar de sentido segue a famosa divisa “Historia magistra yitae” 37 A histéria ensina, a partir dos inumeros acontecimentos do pas- sado que transmite, regras gerais do agir. A memoria hist6rica volta-se para os conteudos da experiencia do passado que representam, como casos concretos de mudangas no tempo (no mais das vezes por cau- sadas agdes intencionais), regras ou principios tomados como validos para toda mudanga no tempo e para o agir humano que nela ocorte. As histérias que contam dos senhores, por exemplo, ensinam regras do bem-mandar. Histérias do surgimento, da evolugdo e do desapare- cimento de estruturas politicas transmitem os ensinamentos de como a dominaco se modifica sob determinadas circunst&ncias. Os entendi- mentos abstratos e gerais, aparentados as regras, sao transpostos para uma série de exemplos historicos e, por meio deles, consolidados. A unidade do tempo faz os acontecimentos lembrados e toma- dos presentes pela historiografia serem significativos para o presen- te e faz esperar que 0 futuro seja orientado pela experiéncia. Essa unidade esté na generalidade abstraida dos tempos, gerada a partir dos acontecimentos histéricos e nas regras do agir concretamente 3" Descrito magistralmente por R. Koselleck. Historia magisira vitae. Uber die Auf- lésung des Topos im Horizont neuzeitlich bewegter Geschichte. In: R. Kosel- leck. Vergangene Zukunft. Zur Semantik geschichtlicher Zeiten. Frankfurt, 1979, p. 38-66. Futuro passado: contribuicdo a semdntica dos tempos histéricos. Rio de Janeiro; PUC-Rio/Contrapento, 2006. 52 Jorn Risen observadas neles. A continuidade histérica, que torna compreensi- vel e operivel a experiéncia do tempo presente, ja nfo esté mais conexa primariamente a um processo temporal interno (como no caso dos ordenamentos de sentido do tempo arcaico, estabelecidos pela constitui¢ao tradicional), mas sublimada na generalidade de um sistema de regras. Esse sistema inclui a plenitude e a diversidade dos tempos. Na generalidade, as circunsténcias da vida presente so subsumidas ¢ a mudanga no tempo submetida a um agir sob regras. Com a validade atemporal das regras gerais, a histéria ensina sua propria supratemporalidade como sua “moral”, com a qual ganharia significado para a vida pratica atual. Esse ensinamento institui uma comunicacgdo livre entre seus destinatérios, na qual os contetidos da experiéncia e do saber so tra- tados de maneira que os participantes se ponham de acordo quan- to a regras e principios e os utilizem como fundamento de suas agSes. Essa comunica¢ao vincula a diversidade das situagdes do agit concretv a comunidade das regras e dos principios abrangentes. A argumentagao histérica desenvolve-se no ambito de uma facul- dade de julgar, no qual se produzem regras gerais a partir de casos particulares e no qual as regras gerais sio concretizadas nos casos particulares, A historiografia é uma escola da faculdade de julgar. Como formulou Tucidides ¢ imimeros historiadores 0 repetiram até a mudanga epocal em meados do século XVIII, a histéria, pelos casos do passado, torna-nos sabios para sempre. A historiografia apresenta o saber histérico numa forma que faz das mudangas no tempo uma “posse duradoura” e que insere a massa dos acontecimentos em que os homens esto envolvidos no entendimento de sua natureza. Essa forma possibilita estipular, consciente ¢ sistematicamente, como os homens podem ou devem agir em determinadas situagdes ou sob determinadas condigées.”* Nesse tipo de constituigio narrativa de sentido, a identidade histérica assume a forma de uma competéncia reguladora que torna a praxis possivel. As representagées do ordenamento da vida, que *Tucidides. Geschichte des Peloponnesischen Krieges. Your. ¢ trad. de G. P. Land- mann, Zurique/Munique, 1976, I, 22. Histéria viva 33 constituem a identidade, passam a ser criticaveis e fundamentdveis 4 luz de principios. Com os modos da fundamentagio critica e da criti- ca fundante, a identidade histérica ultrapassa os limites da atribuigéo tradicional dos papéis sociais, ao assumir a autofundamentagao por recurso a principios gerais. Quem sou ou quem somos nés depende da medida de minha ou de nossa capacidade de realizar por mim ou por nés mesmos os principios do ordenamento da vida que se considera obrigatérios em geral. (E possivel formular isso de forma negativa: em toda forma de identidade constituida tradicionalmente estd presente uma dose de dogmatismo, na medida em que a limita- do ¢ a particularidade das tradigdes constituintes de identidade sao sempre tomadas pelo todo ¢ pelo préprio, de modo que desvios 36 podem ser sancionados negativamente. Esse dogmatismo se trans- forma no tipo de constituig&o exemplar de sentido, ao ultrapassar os limites para o abstrato-geral. Transforma-se ainda na arrogancia de principio, que atribui 4 sua propria vida a dignidade de ser a mani- festagao por exceléncia da regra geral ¢ tende a ver em vulros mudus de vida formas mais fracas ou fracassadas.) SA0 casos da identidade histérica formada pelo tépos da constituig¢do exemplar de sentido as identidades nacionais marcadas pela universalizagao de seus pontos de vista sobre a humanidade (come € 0 caso dos direitos do homem e dos cidadaos americanos e franceses). Em suma, o tipo historiografico da constituigao exemplar de sentido, com respeito a experiéncia histérica que consigna e 4 con- cepcio de um contexto abrangente da comunicac4o que possibilita, pode ser caracterizado como uma forma do saber histérico que apre- senta o contexto de sentido dos fenémenos temporais na supratern- poralidade dos principios e das regras. O tempo é espessado como sentido. Isto é, estipulada qualitativamente a igualdade de sentido com qualquer passado conhecido, o tempo adquire uma nova dimen- sHo experiencial. Essa dimensao permite levar em conta, na orienta- 40 histérica, diversas tradigdes ¢ ordenamentos de vida. E isso de modo que a particularidade da situag&o de um fique clara em compa- racao com a de outros. Ao mesmo tempo, lidar com essa situacdo de vida continua submetido sistematicamente as regras gerais do agir, nas quais a validade supratemporal dos principios esta contida. 34 Jorn Rusen Casos de argumentagaio e de pensamento para os quais “a his- t6ria” “ensina” algo de universal e supratemporal abundam na vida cotidiana. No discurso politico, por exemplo, acontecimentos € situa- gées presentes sdo freqticntemente remetidos a casos histéricos, de modo a deixar entender que ambas as circunsténcias obedecem aos mesmos principios gerais e que a experiéncia do passado deve ser- vir de lig&o para o presente. A lembranca dos crimes nazistas pode servir a um jornal liberal sul-africano para fustigar as praticas da politica do apartheid. Qualquer cidadao critico da Alemanha de hoje conhece a exemplaridade histérica da Repablica de Weimar para lidar com a autocompreensao e com a critica da vida e das ocorréncias politicas da Republica Federal. No plano da historiografia produzida cientificamente, é difi- cil encontrar exemplos de formas “puras” (no sentido de simples) de constituigdo exemplar de sentido. A cientificizagao da histdéria transformou o tipo da constituigéo exemplar de sentido, até entao culturaimente dominante, no tipo da constituigde genética”? Nao obstante encontram-se ocasionalmente exempios do pensamento exemplar nos planos da apresentago e dos apelos presentes na historiografia. Sobretudo em temas histéricos que tém diretamente a ver com a autocompreenséo c para a interpretagdo politica apare- cem fopoi exemplares € os correspondentes modelos de apresen- tagdo. A historiografia académica comporta-se nesse particular de modo muito semelhante 4 propaganda politica, como mostram os trabalhos sobre a Republica de Weimar ou sobre o nazismo, que se tornaram muito influentes na formagao politica. O uso das teo- tias do totalitarismo na interpretacao histérica esta determinado, por razées ldgicas, pelo tipo exemplar da constituigfo de sentido. O exemple histérico é evidenciado nesses casos como estrutura universal das relagdes politicas (por certo nao na supratemporali- dade das teorias politicas classicas, mas pelo menos aplicado ao século XX). *Ver J. Risen. Von der Aufklarung zum Historismus. Idealtypische Perspektiven eines Strukturwandels. In: H.W. Blanke; J. Risen (Org). Vou der Aufildrung zum Historismus. Zum Strukwurwandel des historischen Denkens. Paderborn, 1984, p. 15-58. Historia viva 35 Mesmo quando essa concep¢ao da interpretapdo é recusada, pois se alega existirem diferencas histéricas entre os diversos sis- temas totalitarios - ¢, no caso alemao, ainda mais marcantes —, nao se deixa de empregar modelos lingilisticos e topoi retoricos de tipo exemplar. Assim 0 ensaio de Hans Mommsen sobre “O peso do pas- sado”, por cxemplo, que esclarece a situagiio da Republica Federal da Alemanha ao final dos anos 1970 a luz da experiéncia historica da Republica de Weimar e do Terceiro Reich. Também aqui a historia é a mestra da vida: “A experiéncia ... ensina que ...”.“° Tais recur- sos estilisticos utilizam os acontecimentos da Republica de Weimar, sobretudo seu fracasso, para abordar criticamente a evolugdo da Re- publica Federal ao final dos anos 1970. Constituiedo critica de sentido O tipo da constituigao critica de sentido surge nas formas da narrativa histérica e nos iopoi de uma argumentagao histérica que trata sobretudo de esvaziar os modelos de interpretagiio histérica culiuralmente influentes, mediante a mobilizagdo da interpretagao alternativa das experiéncias histricas conflitantes. Modelos consa- grados de autocompreensao e da legitimaciio histéricas das relagdes sociais so desmantelados quando contrastados com as possibilida- des alternativas da memoria histérica. Do mesmo modo, as interpre- tages hist6ricas das circunstancias atuais da vida, € as perspectivas de futuro da vida pratica que delas decorrem, s4o desconstruidas pelo conflito das experiéncias histéricas, abrindo espago para outros ¢ novos modelos de interpretacdo. Aconstituicao critica de sentido € o meio de uma comunicagao intercultural, na qual o discurso histérico se modifica radicalmen- te, quando novas representagées substituem as antigas, ou mesmo quando uma linguagem simbélica do histérico, inteiramente nova, varre a precedente. A forga de convencimento de uma linguagem “H, Mommsen. Die Last der Vergangenheit. In: J. Habermas (Bd.). Stichworte zur ‘Geistigen Situation der Zeit’, v.1: Nation und Republik. FrankfurtMeno, 1979, p. 164-184, cit. p. 167. 56 Jorn Rusen historica, com suas formas usuais de apresentacado e modelos cos- tumeiros de argumentardo, deve ser sistematicamente reinstituida por meio da prépria linguagem, se o discurso histérico deve ser renovado, em beneficio de novas orientagdes. Isso se da com a forga explosiva da constitui¢do critica de sentido ¢ de suas formas e topoi Upicos para o pensamento histérico. A historiografia critica apresenta uma experiéncia histérica que problematiza ¢ relativiza o modelo precedente de interpretagdo histérica, abalando os fundamentos de sua plausibilidade. A histo- riografia fala a linguagem dos contra-exemplos, de uma subversdo empirica que abala a naturalidade aparente e a saturagdo experien- cial das perspectivas histéricas da vida pratica ¢ da autocompreen- sd. Voltaire, por exemplo, gostava de reescrever as passagens da Sagrada Escritura, cujos episdios exemplificam a historia da salva- ¢ao, fazendo-as parecer crénicas escandalosas. Colocava-as assim sob um Angulo irénico, no qual o significativo salvifico se desfazia. Por outro lado, cra capaz de amplia o horizunte experiencial da histéria com exemplos de fora da Europa, de modo que se abriam perspectivas de novas dimensées “humanitarias” de uma identidade historicamente formada.*! Arepresentacao do contexto temporal, decisiva para a constitui- ¢ao critica de sentido, ¢ a da ruptura da continuidade. A marca filo- s6fica dessa constitui¢ao critica de sentido na historia é sua relagiio negativa com as concep¢ées fundamentais do sentido histdrico. Ela desestrutura narrativas mestras e rompe com os construtos catego- tiais, destruindo conceitos-chave, categorias e simbolos. Esse traba- lho de negacao histérica dos modelos de interpretagiio e das formas de pensar consagrados culturalmente pode ser observado nas cor- rentes de pensamento contempordneas, conhecidas sob a designacao genérica de “pés-modernismo”” ou “pés-estruturalismo”.” Michel *' Assim, por exemplo, no Essai sur les moeurs et l’esprit des nations. “ Ver J. Rilsen, Historische Aufklanung im Angesicht der Post-Modeme: Geschichte im Zeitalter der “neuen Uniibersichtlichkeit”. Streipfall deuische Geschichte, Geschickis- und Gegenwartshewusstsein in den 80er Jahren, publicado pela Landescentcale fis politische Bildung (Rendnia do Norte/Vestfilia). Essen, 1988, p. 17-38. * Ver M. Frank. Was ist Neostrukturalismus? Frankfurt, 1984. Historia viva S7 Foucault, por exemplo, apresentou contra-histérias impressionantes com relagao as histérias do progresso da modemizagiio, com o fito de deslegitimar sua representatividade cultural. Com as formas e os fopoi da constituicado critica de sentido pSe-se em movimento uma comunicagao que se pde a servigo do distanciamento dos modelos consagrados de interpretacdo histérica do tempo ¢ de formacio de identidade. Abre-se uma comunicagdo na qual a dificuldade de dizer nao ¢ minimizada pelo saber ¢ pela argumentacao historica. Com a forga da negagiio, os sujeitas ga- nham dominio sobre si mesmos, oferecendo resisténcia ds tentativas das dominantes culturais de os absorver ¢ de se reforcar com cles. A identidade histérica forma-se como divergéncia, como autocon- trole pela afirmacao de ser diferente. A forga da negatividade es- tabiliza o poder do ser “eu proprio”. Com as formas e os topoi da constituigio critica de sentido, os sujeitos adquirem a especificidade do poder ser “eu” ou “nds”. No debate que envolve a orientagao his- torica de seu presente, os sujeitos tomam partido, conscientemente, rompendo com as posi¢ées preexistentes. Essas posigdes, alias, com freqiiéncia sé aparecem como tais na ocasido dessa contraposigao. O Esclarecimento (Iluminismo) ¢ aqui um exemplo de escol. Ele afastou a pressaio da conformidade ao particularismo dos estados mediante o critério de uma concep¢ao propria de humanidade, cuja universalidade moral abriu o espaco da subjetividade burguesa, no ambito do qual puderam ser formadas identidades individuais e co- letivas inteiramente novas (como, por exemplo, a nacional). A forga de convencimento das formas criticas da linguagem e das figuras de argumentagao vinculadas a prixis depende, é bom lembrar, daquilo contra o que se voltam. Ela se reforca na descons- trugdo de acervos de conhecimento, representagdes do tempo e auto- compreensées preexistentes. Com a dissolugao da forga cultural de um discurso preexistente, dissolve-se igualmente a forga lingilistica de sua desconstrugao. A constituicdo narrativa de sentido ganha, com a estética ¢ a retérica do distanciamento histérico, potencialidades lingiiisticas que podem ser caracterizadas da seguinte forma: 0 tempo, como sentido, torna-se julgdvel. Ao dizer “néio”, 0 sujeito contrapde-se 58 Jorn Risen a seu confinamento nas mudancas temporais. E nessa contraposi- ¢8o que se enuncia o sentido, constituido lingilisticamente, do tem- po interpretado historicamente. No distanciamento dos sentidos da experiéncia previamente dados ¢ na critica 4 pressio da conformi- dade que as mudangas temporais trazem em si, como sinal de sua significacdo, os sujeitos ganham folego para modelar culturalmente seu proprio tempo, da maneira que créem poder ¢ querer, por meio da meméria histérica. Exemplos marcantes desse distanciamento dos modelos hist6- ticos consagrados, no plano da historiografia académica, € a historia das mulheres. Boa parte de sua forga de convencimento decorre de seu rigoroso distanciamento dos esteredtipos de género cultural- mente preexistentes, contra cuja pressaéo por conformidade se bus- ca lograr, por meio da meméria histérica, novas chances e espacos para o feminino.“ Surgem assim novas abordagens da experiéncia histérica, que séo abrangentes (¢ nao isentas de partidarismos), pois a sexualidade ¢ um fator fundamental e altamente inftuente nos pro- cessos de formago da identidade humana. Constituigdo genética de sentido O tipo genético de constituicao narrativa de sentido aparece nas formas e topoi historiograficos que pdem o momento da mudanca temporal no centro do trabalho de interpretagio histérica. Tempo, como mudan¢a, adquire uma qualidade positiva, toma-se qualidade portadora de sentido. De ameaga a ser reelaborada historicamente, o tempo passa a ser percebido como qualidade das formas da vida humana, como chance de superar os padrdes de qualidade de vida alcangados, como abertura de perspectivas de futuro, que vaio qua- litativamente além do horizonte do que se obteve até o momento. A inquietude do tempo nfo é sepultada na etema profundidade de uma determinada forma de vida a ser mantida, nem escamoteada na * Acerca desse debate, ver U. A. J. Becher: J. Rasen (Org.). Weiblichkeit in ges- chichtlicher Perspektive, Fallstudien und Reflexionen zu Grundproblemen der historischen Frauenforschung. Frankfurt, 1988. Historia viva 59 validade supratemporal de sistemas de regras e principios do agir, nem tampouco diluida na negaciio abstrata dos ordenamentos da vida até hoje acumulados. Ela € disposta como motor do ganho da vida, estilizada historiograficamente como grandeza instituidora de formas de vida capazes de consenso, ordenada topicamente A vida pratica como impulso de novas mudangas. No modo da constituigao genética de sentido, a experiéncia his- tOrica adquire uma nova qualidade temporal. Ela passa a ser determi- nada categorialmente pela divergéncia estrutural entre a experiéncia de tudo o que se acumulou até agora e a expectativa do inteiramente diverso. O presente entra no campo tenso da transi¢ao de uma a outra. Esse carater de transigao ¢ destacado nos processos e acontecimentos do passado, historicamente lembrados, como portador de sentido. A concepcao determinante, pela qual o passado dinamizado temporalmente ¢ articulado com a pratica concreta do presente, de modo que o futuro aparega como chance de superagdo, é a da mudan¢a constante, qualitativamente resistente. A plenitude das mudangas temporais, que se rememora, é integrada numa determi- nagdo de sentido (direpao), que remete a um futuro para além do momento presente, ¢ faz aparecerem como transitOrias as circuns- tancias atuais da vida. As expressées lingilisticas utilizadas para ca- tacterizar esse direcionamento temporal, uma vez desvencilhadas das aparéncias de circularidade, provém da experiéncia da nature- za ¢ referem-se a processos de mudanca regrados, por isso mesmo significativos. A mais conhecida dessas expressdes é “desenvolvi- mento”, entrementes promovida ao plano de uma categoria histo- tica altamente eficaz. Ainda mais eficaz culturalmente do que essa categoria ¢ a de progresso, que constitui o exemplo mais marcante da linha de raciocinio dessa representacio do processo temporal.* Outros exemplos do critério de sentido da interpretaciio genética da experiéncia do tempo sao “processo”, “evolupao” e sua aceleracio, “revolugao”, “*Ver J. Risen, Fortschritt, Geschichisdidaktische Uberlegungen zur Fragwitr- digkcit ciner historischen Kategorie. Geschichte lernen, Geschichisunterricht heute, 1, 1987, 9. 1, p. 8-12. 60 Jorn Risen Nas formas e nos fopoi da constitui¢ao genética de sentido o saber histérico tora-se o meio de uma comunicagao na qual o es- pectro da diversidade de seus sujeitos se expande qualitativamente, para além da submissao comum a sistemas de tegras e principios ¢ para além da distingao critica e contraposipao entre eles. Os sujeitos que se comunicam podem perceber em si ¢ nos outros, por intermé- dio da historiografia genética, as qualidades da altcridade, os modos do ser outro e utilizar essa percepg&o como chance de consolida¢i0 da identidade pelo reconhecimento. O movimento, préprio a expe- riéncia histérica no quadro significativo da qualidade do sentido da mudanga temporal, transpde-se para o discurso histérico. Neste, os interlocutores podem comunicar-se sobre historias, de maneira que seus préprios eus e sua percepcao do ser outro dos demais se péem em movimento, A mudanga pode ser afirmada, vivenciada e reconhecida como uma qualidade positiva da subjetividade. As po- sigdes a serem tomadas nao sAo mais reproduzidas mimeticamente, nem meramente subsumidas a sistemas de regras e principios, nem tampouco contrapostas negativamente. Pelo contrario, tornam-se permeaveis comunicativamente, perdem sua estreiteza, sua negati- vidade, seu carater abstrato. Entram em um movimento em que sua diversidade se interrelaciona, tornando-as capazes de consenso, sem ter, em principio, de abandonar sua diversidade. Com outras palavras: o discurso histérico, pela memoria histéri- ca, abre aos sujeitos chances de individuagao. Isso vale nado somente para individues isoladamente, mas também para grupos, sociedades, culturas inteiras. O sentido proprio, que cada sujeito tende a fazer valer em sua interagdo com os outros e que possibilita o surgimento do processo ou fenémeno da comunicagio, reflete-se no sentido pré- prio dos demais ¢ enriquece sua qualidade pelo mecanismo do re- conhecimento miituo. Isso nao significa o desaparecimento da con- corréncia pelo predominio de pretensdes saciais de validade, que se manifesta na realidade cultural como comunicagio. Ela toma apenas novas formas, adota novas estratégias, Nestas, atuam novas quali- dades da subjetividade, nelas sao enunciadas novas e mais elevadas pretensées de vatidade, pois nelas 0 sujeito leva sua individualidade as Ultimas conseqiiéncias. A luta pelo reconhecimento intensifica-se Histéria viva 61 na medida em que as chances de um novo modo de consenso emer- gem ao aumento das perspectivas histéricas de posturas sociais proprias. Trata-se do modo do reconhecimento miutuo da alteridade como chance de ser por si mesmo. A autocompreensdo historica, possibilitada pelas formas histo- riograficas ¢ pelos topei retéricos da constituigéo genética de sen- tido, ganha uma nova temporalidade. Ela responde a experiéncia dinamizada do tempo presente nos saberes histéricos elaborados ge- neticamente. Ela corresponde 4 representago do tempo transversal a todos os acontecimentos, caracterizado pela perspectiva da mu- danga. Enfim, ela leva em conta as chances de individuago tomadas possiveis pelo discurso histérico. Enunciando-se por meio do saber historico, a coeréncia temporal do prdprio eu esta condicionada pela mudanga. Ser por si mesmo ¢ uma determinagdo, uma diretriz da mudanga do que se ¢. Lembrar-se daquilo que era ¢ de como se tor- nou o que é, faz plausivel, para o sujeito, tornar-se outro. O ser por Si consiste yustamente nesse constante tornar-se. Poder-se-ia talar, ironicamente, de uma neurose estrutural da identidade histérica, a que 0 tipo genético da constituigéo narrativa de sentido conduziria. Otenmo classico para designar essa forma tipica da identidade histé- rica, por certo, nao é neurose, mas individuacdo mediante formagio. Um exemplo destacado dessa concepedo da identidade histérica é a representa¢do historicista da identidade nacional, que se teria cons- tituido no curso de um longo processo de formagao cultural de um povo (em contraste com a representacao tradicional da identidade nacional, para a qual as qualidades essenciais de uma nago se man- tm ao longo do tempo ¢, no maximo, se ajustam). Em resumo, 0 tipo da constituigao genética de sentido pode ser caracterizada come uma forma do saber historico, na qual o tempo, como mudanga, tor- na-se o sentido histérico mesmo do passado lembrado. O tempo, como sentido, é temporalizado. Como a historiografia, no processe de sua cientificizacao, desde finais do século XVIII, fez predominar 0 modelo da constituic¢déo genética de sentido, ha inumeros exemplos desse tipo. Isso ¢ assim, malgrado existam apresentacdes da categoria de progresso, em di- versas obras, nas quais o progresso foi transformado cm tradig4o, ou mya i HW Historia viva 63 4 62 Jorn Rasen | i 7 seja: sua dindmica temporal intema foi derrotada pela permanéncia 8 18 g 34 de um mesmo tipo ou de uma mesma qualidade de mudanga. Hoje . 3 . = ye nw 2] 3 g 038 8. ode ¥ em dia, os modelos consagrados de interpretag4o da constituicao ge- : 3 EoD & ; . . - . + . & zB 8 3 ag 3 BS 4 & a 3 : nética de sentido vém sendo submetidos a intensa critica, do que Ba 5 225 25s 258 pode resultar o predominio de formas (pés)modemas de constitui- = e “ o g&o critica de sentido, Trata-se, no entanto, de uma questéio ainda sé 5 z g aberta, saber se com isso esté quebrada de vez a hegemonia cultural 3 38 =e b% 2 z zs 3 da constituigao genética de sentido nas formas mais elaboradas da 2 3 bs S as s 3 ' é se autocompreensao historiografica das sociedades modernas. Hl b/ Sg) 2228 gee Zé i S) 35a) 222% 238 = f £8 efak ate 3 : i ast & : B83 aoe ze Formas e topoi complexos 2 Bi sab s 2 g 88 8 8 A tipologia esbogada acima pode servir para entender a histo- iE : 3 5 3 3 re 5 B22 tiografia a partir dos pontos de vista regulativos, que dizem respcito = goe¢ ¥ BS s were xy linofiict;, We 5 8 8 29 8 Bees 2 al/s88s g especificamente ao histdérico no processo de formatago lingiiistica. 5 E E E 3 E q ee ‘ 5s i 2 g e 2 E certo que também outros pontos de vista funcionam como regras. ° 3 3 BS 3 : BE EE g ge 5 rt Que historiografia no segue, de um jeito ou de outro, paradigmas - - ~ = literdrios e que estilo historiografico ndo estaria, consciente ou in- & ge. Ba ag «2°! conscientemente, influenciado por modelos de escrita origindrios de $ ¢ a E 5 g = é € 5 38 3 outros campos da literatura, que nao o da historiografia? No entanto, 3 q 3 3 é z § & a as 3 g s sempre que 0 processo de formatacao deve corresponder a especifi- =| ba |32.282) $22 [32955 cidade do formatado, vale dizer, ao carater historico do saber histéri- E0588 & a 0 sabe 0 6 5 5 2 ga2 3 5 g é a 22 & 3g co apresentado, encontram-se esses tipos de formatagao e é possivel es 5 S ont | Ee |Sbsees BES 58285 caracterizé-los em detalhe. - ‘| g 2ea Nenhum tipo aparece, todavia, de forma pura. As descrigdes ti- e|3 Es 8 g a a 8 & 5 Ge pologicas isolam, artificialmente, os diversos elementos que atuam, e/2t2 z 5 = gees Se ga no processo de formatagiio, sempre articulados uns aos outros, em g g ge on E Be E gz a a £23 |3 ssa? contextos complexos. Esses contextos obedecem a légica propria, ; 2 as g z 5 & 3 a6 a & g g 3 3 € que requer ser mais detidamente esclarecida.** HA dois modos de Sas feos 2 . . - Sees == cs ee === contexte que se destacam. Os diferentes tipos implicam-se mutua- = g 3 mente, ou seja: um niio pode ser pensado sem os demais. Ademis, ‘il 38 & g az 3 3 sob condigdes determinadas, a passagem de uns aos outros nao se ; 2) 25 23 23 23 “| 22 a4 2% 28 eg 36 sg 23 “Flementos dessa teflexdo podem ser encontrados em J. Risen, Die vier Typen 288 e8 oS Eh (15), p. $63 ss. 64 Jorn Rusen faz de modo arbitrario. O contexto da implicagde significa que os elementos formais dos quatro tipos aparecem conjuntamente em toda formatacao historiografica. Sua ponderagao nao ¢, naturalmen- te, uniforme, mas ddé-se em mesclas varidveis, sem que isso impega reconhecer com clareza que elementos essenciais de um tipo estao relacionados a elementos andlogos dos demais tipos. Essa relacéo constitui o fio condutor da formataciio historiografica, seu “‘autégra- fo”, sua forma interna propria. A relacdo de transcendéncia introduz uma tensao na correlacao dos elementos tipicos, constituindo assim uma espécie de historicidade interna da formatagao historiografica. Essa tensio pode ser descrita, abstratamente, como uma tendén- cia do tipo da constituicdo tradicional de sentido, de transmutar-se em exemplar, e do tipo exemplar, de transmutar-se em genético. O tipo da constitui¢ao critica de sentido funciona como o meio ¢ 0 catalisador da transig&o. Ao longo dessas transmutagSes, aumen- tam o contetido experiencial da historiografia ¢ a compleaidade da interpelacado dos sujeitos, a que interessa diretamente o leor da identidade historica. Essas mudangas ocorrem dentro de uma rede relacional de tipos, por pressfo da experiéncia e pelo esforco dos sujeitos de se fazer valer. O alcance da experiéncia do tempo, que a interpretagdo elabora, ¢ a capacidade diferenciadora da formagao histérica da identidade extendem-se ao longo da transi¢ao da forma de constituigao de sentido tradicional, 4 exemplar e, em seguida, 4 genética, por intermédio da critica. E muito mais do gue um recurso de ultima insténcia, quando se diz ser “dialética” a interrelagao dos quatro tipos, na formatagao historiografica do saber hist6rico. A dialética articula a implicagao e a transcendéncia como relagdo légica. Trata-se de um contexto que reine efetivamente as partes ¢ as coloca ao mesmo tempo em “con- tradi¢ao” — ou seja, contém momentos de negatividade que vivificam © processo da formatacao historiografica com uma tensdo interna entre os elementos tipicos das diversas formas. Essa tens%o confere 4 historiografia uma historicidade interna propria. Com esta, a histo- riografia ganha atratividade propria e a possibilidade de aparecer ao ptblico como algo mais do que um mero modeto pré-fabricado de interpretacfio hist6rica, destinado a absorver novos conhecimentos. Historia viva 65 Esse algo mais consiste justamente em fomentar no prdprio sujeito —¢ é nisso que reside a inovagdo essencial da historiografia — 0 mo- vimento de transformar os modelos recebidos. Essa tipologia permite investigar o processo de formatacao historiografica do saber histérico sob diversos 4ngulos. A tipologia pode ser empregada, inicialmente, como um instrumental analitico da andlise empirica dos fenémenos historiograficos. Nesse ponto, a tipologia exerce a func’o de uma conccituagao teérica. Por meio dela, é possivel estabelecer e¢ interpretar a especificidade da forma- taco historiografica justamente quando se trata da peculiaridade do histérico. A especificidade de um texto historiografico pode ser identificada como uma conjugacdo de clementos tipicos. Isso vale igualmente para a especificidade dos tipos de texto historiografico. Ademais, as apresentagdes ou grupos de apresentacées podem ser comparados sistematicamente entre si. Para tanto, a conceituaco tipolégica serve de parametro. Enfim, a tipologia permite recons- (ruir as mudancas na formataydo de saber historic promovidas por opgées teéricas. Nessa atividade, a tensdo conceitual na rela¢ao sis- teméatica dos quatro tipos ganha significado especial. Com efeito, teforga-se o entendimento tedrico de que a historiografia, sob de- terminadas condig6es, tende a passar de um tipo a outro de modo nao-arbitrario. A tipologia possibilita a construcdo de perspectivas histéricas com respeito ao que ha de especificamente histérico nas formatagdes historiograficas. Ela fornece uma moldura conceitual, com a qual se pode evidenciar ¢ demonstrar como a historiografia produz, ela mesma, no cere da formatagao historiografica, mudan- gas histéricas da vida pratica humana. Além dessa fungéio analitica, a tipologia pode exercer também uma fun¢do pragmatica. Essa fungdo se realiza quando a teoria da historia se toma diretamente um elemento ativo na historiografia. Ela abre, assim, um espago de possibilidades de organizar 0 saber histérico obtide pela pesquisa de maneira que penetre eficazmente no discurso histérico do presente. Nao penso, aqui, em uma nor- matizacdo poetolégica da historiografia, mas remeto apenas ao po- tencial reflexivo do processo mesmo da formatagao historiografica. A questo de saber se ¢ como esse potencial pode ou nfo ser utilizado ' i ll 66 Jorn Rusen Histéria viva 67 nao esta entregue ao arbitrio dos historiadores, quando concorrem pelo prestigio da cientificidade, ou seja, porque escrevem histéria com base na pesquisa. O fundamento na pesquisa é um elemento intrinseco 4 formatagao historiografica e a historiografia é wibutaria dos atos lingitisticos de suas fundamentagées argumentativas. In- cumbe a essas fundamentagdes tornar possivel, para os destinatarios potenciais, o reconhecimento dos pontos de vista determinantes da constituigdo narrativa de sentido e a reflex4o sobre eles.” Winfried Schulze chamou a aten¢ao para um dado notdvel: a historiografia recente caracteriza-se por um grau surpreendente de reflexividade interna.” Eu vejo nisso um indicador da racionalidade especifica da ciéncia. A regulagaio de uma reflexdo desse tipo, sobre os principios organizacionais e formatadores do saber histérico, determinantes da historiografta, ndo esta em contradig&o com a “liberdade artistica” do historiador. Decisivo ¢ que cssa liberdade encontre seu limite nas piclensdes de verdade especificas da ciéncia. Isso quer dizer mais do que a mera regra anti-retérica, que o historiador nao deve afirmar quaisquer fatos que estejam em contradicdo com as infor- magées das fontes. O que se afirma ¢ que a historiografia néo pode produzir a aparéncia de um contexto narrative de sentido que esteja em contradicao com as regras metédicas da interpretagao historica. Por mais tentador que possa ser preencher os déficits de sentido dei- xados em aberto pela fundamentagao da pesquisa histérica, a titulo de compensag4o, com os meios estético-retéricos da historiografia, a funcdo orientadora do saber histérico, para cuja efetivacao se faz pesquisa, nada ganha com isso. No final das contas, os destinaté- tios seriam enganados, pela aparéncia de uma harmonia estética do mundo historico, quanto a realidade em que descjam orientar-se por meio da memoria historica, A tipologia da constitui¢ado narrativa de sentido pode exercer, pois, uma fungao esclarecedora em sua reflexdo sobre os funda- mentos da histéria como ciéncia. Ela pode tornar-se um meio da 4 Ver L, 123 ss. * Ver W. Schulze. Furmen der Prdsentation der Geschichte (14). formatagao historiogrifica, quando esta tenciona dar, reflexiva- mente, informagées sobre seus pontos de vista determinantes. A ti- pologia torna-se assim o 6rganon da racionalidade historiografica. Por seu intermédio é possivel esclarecer com que contetdo argu- mentativo e a que tipo de destinatarios potenciais o saber histérico se dirige, cstética ¢ retoricamente. Alguns podem achar que se trata de um processo em que a vivacidade da escrita da histéria seria debilitada pela secura de pensamento da pesquisa e da reflexdo, e preferir a imediatez pré-reflexiva do apelo estético das imagens da histéria. A faceta dionisiaca da consciéncia histérica, sistematica- mente reprimida na pesquisa pela regulapdo metédica da relagio A experiéncia, poderia entao ser compensada historiograficamente ~ desde que se suponha que existam historiadores que, além de sua competéncia profissional, possuam suficiente talento dionisiaco para escrever. O apelo estético da imagem na histéria encontra-se, contudo, em uma relagdo problematica com a relevancia cognitiva da pesquisa. O discurso hist6rico perderia seu poderio critico, po- deria desenvolver uma dindmica propria, que privaria a conscién- cia histéria efetiva dos frutos da pesquisa histérica. Talvez o perigo inverso seja ainda maior: que a historiografia acene com um gesto de cientificidade, no qual, sob a aparéncia de objetividade, se transmitam contetidos politicos. A relagaio da historiografia com a ciéncia e com a pesquisa tornar-se-ia, assim, uma bolha retérica, um mero encobrimento de intencdes politicas, subtraindo-se a reflex4o critica sobre suas posigdes, reflexdo que & essencial 4 objetividade do pensamente histérico.”* A cientificida- de tornar-se-ia mera aparéncia retérica, transmutada em seu oposto por um modo determinado de formatacao historiografica autorita- ria. Diante dessa possibilidade, a historiografia estaria mais préxi- ma do padrao cientifico se fornecesse informagio refietida sobre a dirego que imprime a formatagao historiogréfica que utiliza para seu saber histérico. O apelo 4 emogao do destinatario nao ignora sua inteligéncia. “ Ver I, 108 ss. 68 Jorn Risen Ciéncia como principio da forma As observagées precedentes sobre a reflexividade interna que a telagao 4 pesquisa confere 4 historiografia j4 introduzem o proble- ma de saber como a historia como ciéncia se realiza na formatagao historiografica do saber histérico. Ja deve ter ficado claro que néo ha tipos separados de constituicZo histérica, especificamente cien- tifica, de sentido, que subsistissem fora dos quatro tipos descritos, ou acima deles. Cigncia é, antes, um modo determinado do pensa- mento histérico, que transparece no formato dos quatro tipos e em suas configuragées. Historiografia, como formatagao do saber his- tdrico, tem de ser vista como um fator relativamente auténomo da matriz disciplinar da ciéncia da historia. Como aparece nesse fator a cientificidade, essa limpidez da consciéncia, essa reflexividade in- terna que a relag&o sistematica & pesquisa confere 4 historiografia? Gostaria de watar dessa quest&o tipologicamente, isto ¢, investigar como a relacdo esclarecedora da historiografia 4 ciéncia aparece nos elementos tipicos que lhe sao essenciais, e em sua articulagao sistematica. Que pontos de vista especificamente cientificos sao utilizades no processo de formatagao historiogrdfica do saber histérico obtido pela pesquisa? Trata-se naturalmente das trés estratégias da garantia de validade da constituigao narrativa de sentido que ja apresentei ao abordar a questio da especificidade cientifica do pensamento his- torico:* um aprofundamento sistematico do contetido experiencial, uma ampliacdo sistematica da perspectiva historica vinculada a pon- tos de vista e um reforgo sistematico da formagio da identidade hu- mana mediante pensamento histérice. Vinculados aos trés principios tacionais do pensamento histérico, os quatro tipos da constituigao de sentido adquirem uma dindmica interna propria, entram numa espécie de inquietag4o argumentativa, que reforga sua tendéncia a transmutat-se em nivcis de maior complexidade. A cientificidade inocula-os com a sofreguidio de subir de nivel, que leva das formas e dos topoi tradicionais as estruturas exemplares, das exemplares 5)'Ver 1, 95 ss. Historia viva oF As genéticas. A forma e o fopos da consituigao critica de sentido funcionam nessa dinamica como meio da transmutagao. Em outras palavras: 0 tipo critico insere-se, via cientificidade do pensamento histérico, nos demais tipos, imprimindo-lhes uma dinaémica de mu- danc¢a formal que tansmuta os elementos tradicionais da constitui- ¢%o de sentido em exemplares, e os exemplares em genéticos. Isso n&o quer dizer, contudo, que os elementos exemplares e genéticos desaparecem nessa dindmica, mas sim que sua posi¢io relativa na configuragao dos elementos tipicos de um se subordinam sucessiva~ mente aos de outros. (a) Acientificidade, nas formas e nos topoi da constitui¢ao tra- dicional de sentido, é fundamentalmente critica da tradigfo. Ela in- troduz, nas orientagdes existenciais marcadas pelas tradigdes, um elemento de critica e de fundamentacdo, que libera os sujeitos ~ a0 menos em tese — da press&o por adaptar-se a ordenamentos prévios da vida. Isso nao significa sempre ¢ em todos os casos negagao da tradigao, mas apcnas que sc ganha uma oportunidade de sc posi- cionar conscientemente com respeito a tradic¢des, eventualmente de assumi-las e de preserva-las. O existir precedentemente, puro ¢ simples, o carater existencial a priori das interpretacdes histéricas, presente nas circunstancias culturais objetivas da vida pratica, é telativizado, posto na dependéncia de fundamentagoes. Isso ocorre igualmente no plano pré-cientifico do trabalho — culturalmente ne- cessario — da memoria, pois as orientacdes historicas tradicionais somente séo eficazes quando apropriadas, ou seja, quando tornadas vivazes na forma de histérias. Nessa vivacidade, a ciéncia introduz o elemento do controle critico e da fundamentagao argumentativa. Ela opera criticamente, sobretudo quanto ao conteiido experiencial das orientagées histéricas tradicionais. Esse contetdo 6 expandido, em principio, pela pesquisa, com o que se rompe a estreiteza do horizonte experiencial das autocompreensdes historicas tradicionais. A for¢a normativa que os fatos do passado, rememorados, exercem sobre o tempo presente, é rompida pelo entendimento de que o pas- sado pode ter sido outro. Fates ¢ normas comegam a desconstituir- se e ingressam em relagdes complexas de troca, Nestas, as tradic¢des nao continuam simplesmente a valer, mas necessitam ser revistas e 70 Jorn Rasen reelaboradas para continuarem a ser eficazes (‘sé dominas 0 que conquistas”). O entendimento crescente da alteridade do passado torna a relac&o ao presente necessaria, se as tradigdes devem seguir valendo, Pode-se considerar, e mesmo lamentar, que o dever de criticar e fundamentar, imposto pela relacdo a ciéncia 4 constituigdo tradi- cional de sentido na formatagio tépica e estética do saber histérico, resulte em um abalo do fundamento sdlido que as tradigdes toma- das como validas representariam. A ciéncia, como meio da memo- ria histérica, aparece entao como uma forga desconstituidora, como parte de uma racionalizagao do mundo humano, que esvaziaria seus potencias de sentido ¢ que no passaria de uma espécie de muscu imaginario do saber histérico elaborado metodicamente, a titulo de compensacdo pela perda de sentido.*’ Quem considera, porém, que a ciéncia é uma invasdo de racionalidade fatal na vivacidade da orien- tago tradicional da existéncia, desconhece que a propria cientifici- dade repousa sobre tradigéo ¢ pode scr, perfcitamente, um meio de dar vida a ela, mesmo se sob outras formas, diferentes de uma vali- dade incriticAvel sé porque preexistisse e fosse culturalmente eficaz. A ciéncia pode revelar tradi¢des sepultadas, pode ser o meio de um cuidado consciente da tradigio e pode, enfim, obter novos potenciais de sentido da meméria historica. Tudo sé Ihe é possivel, por forga dos principios determinantes de sua argumentacdo racional, de um certo modo: as tradigdes so vinculadas 4 validade de boas razdes ¢ cficazes porque é em seu meio que se da a fundamentacdo. Em sua relago critica 4 validade tradicional prévia, inquestionada, das orientacées histéricas, a cién- cia constitui-se em metatradi¢do. Ela no destroi as tradi¢des, mas eleva-as a um determinado nivel cognitivo. Como ja dito, as orienta- goes histéricas tradicionais precisam ser relativizadas nos processos da constituicao narrativa de sentido da consciéncia histérica, preci- sam ser narradas como histérias para ser eficazes. A cientificidade & um modo dessa relativizaco. Assim entendida, ela pode, certamente, tomnar-se um fator de reforgo das tradic¢ées — reforgo pela densidade * Assim, por exemplo, A. Heuss. Verlust der Geschichte. Gottingen, 1956. Historia viva 7 experiencial ¢ pela superacao critica de horizontes temporais estrei- tos. Afinal, é a forca da expansio experiencial e da ampliagao de ho- rizontes que conduz as formas e os fopoi tradicionais da constituigdo nartativa de sentido a aproximarem-se da exemplar. Com respeito a comunicagdo vinculada aos sopoi histéricos, isso quer dizer que a naturalidade implicita do entendimento, de que todos pertencem aos mesmos ordenamentos tradicionais da vida, ¢ transposta para a linguagem de entendimentos explicitos. O enten- dimento vira compreensao, abre-se 4 forga argumentativa dos prin- cipios e das regras gerais. Em paralelo, no ambito da constituigao nartativa de sentido, alarga-se o processo de formag4o histérica da identidadc. Ela progride, por assim dizer, para o plano consciente do desempenho cognitivo. As chances da liberdade abertas assim aos sujeitos podem ser formuladas, na linguagem da teoria dos pa- péis sociais, da seguinte maneira: 0 assumir papéis (como forma de identidade produzida pela constituigao tradicional de sentido) passa a estar vinculado 4 autocompreensao conscicnte dos sujcitos, € enri- quecido por novos elementos constitutivos desses papéis. Os sujei- tos sdo interpelados pela historiografia para tornar-se, eles mesmos, co-autores conscientes das tradigdes histéricas. (b) A relag&o da formatagao historiografica a ciéncia introduz um elemento critico fundamental também nas formas e nos fopoi da constituigdo exemplar de sentido. A critica dirigia-se agora a supratemporalidade das regras do agir e dos principios da organi- zacgao da vida, apresentados por exemplos historicos. A experiéncia histérica ganha peso proprio, com o qual relativiza, temporaliza, as mesmas regras que aplica. Isso tem conseqiiéncias ambivalentes. De um lado, as regras do agir perdem a forga de convencimento da validade supratcmporal, sio cnvolvidas pela bruma do relativismo. De outro lado, aumenta a poténcia da faculdade historica de julgar. O entendimento da especificidade temporal das regras do agir re- forga seu grau de concretude historica. Simultaneamente, amplia- se, na consciéncia dos sujeitos, a diversidade e a multiplicidade das regulagées da vida humana pratica. Seu agir ganha, mediante sua orientagAo histérica propria, novos espacos e novas chances de inovagao. 72 Jorn Rasen Correspondentemente, cresce também a capacidade comunica- tiva dos sujeitos por meio da meméria histérica. A simples subsun- 80 de casos controvertides a regras, que tornariam incontroverso 9 tratamento desses casos, cede lugar a um debate muito mais amplo ¢ complexo, acerca de que experiéncias convém a que regras, ¢ inversamente. Ademais, coloca-se inevitavelmente a questdo de saber se nfo existem metarregras, com as quais se possa trabalhar cognitivamente a diferenciagio efetuada pela faculdade historica de julgar. A cientificidade do pensamento historico pode entio ser introduzida como essa metarregra e operar eficazmente como ele- mento da formatagao historiografica. Os principios determinantes de sua argumentagio resistem, assim, 4 presto de uma relativiza- go temporal das regras do agir, ao organizarem diretamente a apre- sentagao historiografica dessa relatividade e ao conferir-lhe algum sentido. E certo que essa metatregra da cientificidade permanece abstrata e relativamente vazia de impulsos para agir que requeiram oricntagao histérica. ‘Nas formas € nos topoi da constituigdo exemplar de sentido, a cientificidade abre novas possibilidades de comunicagio. A auto- compreensdo histdrica ganha uma série de pontos de vista, enri- quece-se com as orientagSes regradas do agir ¢ com as experién- cias que lhes correspondem. A relatividade temporal dos sistemas de regras do agir amplia o espago do discurso histérico. Coisas tidas como naturais no plano dos principios e das regras abstratas passam a ser expressas pela linguagem c submetidas ao balanso dos prés ¢ contras de seu contetido experiencial e de sua capaci- dade de generalizacado. Nas mesmas proporgdes, cresce a com- peténcia reguladora dos proprios sujeitos. Eles enriquecem sua identidade histérica com o saber acerca de sistemas divergentes de regras presentes em suas vidas e reforgam sua capacidade de arbitrar essa divergéncia aplicando pontos de vista supra-ordena- dos, ou seja: submeté-la a um sistema de regras estabelecido por eles mesmos. (c) Nas formas ¢ nos topoi da constituicde critica de sentido, a cientificidade opera como a ambivaléncia especifica da atiude critica, com a qual a validade das orientacdes histéricas deve ser Historia viva 73 enfraquecida: ela se volta contra st mesma. Perde a inocéncia de uma alternativa simples e ganha a reflexividade acerca da circunstancia de que a posigdo contréria nado necessariamente tem de estar errada em todos os aspectos. A forca desconstituidora das préprias contra- histérias, contudo, também esta vinculada a regras de fundamenta- gao. Essas regras submetem as experiéncias historicas referidas ao desafio do inteiramente outro do que se tem até agora, ¢ expdem as normas, que conferem significagao histérica a essas experiéncias, a0 desafio do incondicionado. Essas diferenciagies nao enfraquecem necessariamente a capacidade historica de dizer “nao”. No entanto, é certo que elas néo mais admitem a coagiio retérica como alavanca da reorientagdo historica. Por outro lado, conferem a recusa de aderir as perspectivas histéricas orientadoras da praxis e formadoras de iden- tidade a pertinéncia adequada a demonstragao das falhas da funda- mentagéo. O que vale, por exemplo, um titulo de direito, se se baseia em documentos falsificados? Que forga ainda tem uma tradig4o se as expectativas do presente se opdem a seu contetdo empirico? Com a cientificidade, aumenta a capacidade discursiva da constituigdo critica de sentido. Ela desafia o opositor a apresentar argumentos melhores ¢ abre-se, assim, 4 mediago entre posicdes € perspectivas opostas. Entra, enfim, como uma espécie de fermen- to produtivo em um amplo processo de constituicao de sentido, que ndo mais depende daquilo contra o que se volta (com o que somente poderia pretender a meia verdade), mas assume a forca da contraposi¢éo como movimento ampliador e aprofundante do entendimento. A rispidez de um “nao” abrupto, com o qual a identi- dade histérica se afirma como delimitagio e rejeicaio, ameniza-se no sentido proprio que deixa, ao outro, uma chance de ser outro, sem logo sucumbir ao veredicto de nada constituir de essencial. De certa maneira, a constituicao critica de sentido concentra-se nas formas especificamente cientificas: ela nio deixa fora de si aquilo contra o que se volta, mas leva-o consigo para outras formas de constituigdo histérica de sentido, como fator da forga argumentativa especifica da ciéncia. (d) Também nas formas e fopoi da constituigdo genética de sentido a cientificidade opera como critica, aprofundamento da 74 Jorn Rasen relacdo a experiéncia, aumento da complexidade dos significados histéricos, ampliagdo das possibilidades de comunicagao e con- solidag&o da identidade histérica. A experiéncia histérica obtida pela pesquisa critica, em primeiro lugar, representacdes do tempo nas quais a constancia de estados de coisas e de circunstancias da vida desempenham algum papel. As qualidades naturais da vida humana rotineira sao historicizadas (por exemplo, a sexualida- de). A cientificidade, na constituigdo genética de sentido, mede-se pelo grau de temporalizag&o das circunstancias da vida humana. A cientificidade significa também, todavia, um modo novo da pré- pria temporalizacdo. Ela leva a critica das unilateralidades ¢ das coergdes nas representacdes genéticas do processo do tempo. Ela as transpée para as diversidades, divergéncias, mesmo contrapo- sigdes dos processes. Com isso, aumentam 0 espaco, no discurso histérico, das perspectivas divergentes, cujas posigées se podem transformar em orientacdes histéricas. Ao mesmo tempo, amplia a flexibilidade da formagao histérica de identidade mediante a forga hermenéutica de reconhecer o outro em sua alteridade. A diregao temporal que cada um obtém pela orientacao histérica adquire scu perfil proprio, individual, ao articular-se com os tempos dos outros sujeitos, articulacio na qual uns ¢ outros se reconhecem ¢ afirmam mutuamente. Esse aumento de diversidade e divergéncia problematiza, natu- ralmente, a unidade genética do contexto temporal. Em que poderia ainda consistir 0 sentido de uma representag4o abrangente do tempo, como esta, se cada tempo proprio, individuatizado, a confina em um momento limitado dela? Existiria algo como uma metagenética dos processos histéricos, a que conduziria essa fermentagdo das cons- tituigdes genéticas de sentido pela cientificidade? A cientificidade possui, com efeito, os tragos de uma tal metadindmica de proces- sos, na medida em que a propria ciéncia apresenta uma dindmica do conhecimento, que s6 se pode conceber adequadamente como um Pprocesso mantido em movimento por sua racionalidade metddica, Bastaria esse carater processual para garantir o contexto de sentido Historia viva 75 Ciéncia e sentido histérico A regulagdo metédica da pesquisa é formal, sem conteido. A ciéncia tem de ser entendida, afinal, como uma estrutura formal das constituigdes histéricas de sentido, que nao abrange suficien- temente os conteudos que conferem significado 4 historia a ser escrita, como grandeza orientadora da vida humana pratica. Uma tal concepg&o da ciéncia corresponde a experiéncia cotidiana do trabalho cientifico, que se comporta de modo neutro, e de certa ma- neira mesmo contrario, com respeito as expectativas de sentido dos Sujeitos (inclusive dos cientistas). (Assim, por exemplo, a série de comentarios que um texto traz sobre a natureza de sua cientificida- de est4 na proporcdo inversa 4 sua capacidade de absorver 0 saber histérico que enuncia como grandeza significativa para o quadro de orientagao da vida pratica.) Chega-se assim ao problema central da historiografia. De onde provém os pontos de vista que o saber histérico retira seu poder cultural de orientacao existencial? A regulacdo metédica da garantia de validade, sozinha, nao basta, pois possui cardter apenas formal, enquanto o sentido histérico tem de estar sempre ancorado em con- tetidos, acontecimentos, dados, processos, evolugdes, ocorréncias, estruturas. A racionalidade metédica do pensamento histérico é de- terminante para a histéria como ciéncia, cujas formas dela depen- dem. Como se articula essa racionalidade com os contetidos desse peusamento, de modo que surja um construto de sentido capaz de ser aplicado, eficaz para orientar, ou seja, uma boa historia? E facil togo conceber a historiografia como um ato de criacie de sentido, no qual o pensamento histérico supera a formalidade de sua Tegulacao metédica e passa 4 materialidade de uma forma significa- tiva do saber historico. Por longo tempo, a ciéncia da histéria com- Prouve-se com essa competéncia para instituir sentido para a histo- Tiografia. No entanto, nunca conseguiu identificar essa competéncia, irrestritamente, com a especializacao profissional. O entendimento especializado néo conduz automaticamente a criacdo de sentido na historiografia. Pelo contrério! Sua aridez contrasta fortemente com as possibilidades estéticas e retéricas de tornar 0 sentido atrativo. de temporalidades divergentes? 7% Jorn Rusen Com efeito, a argumentacao discursiva propria a hist6ria como cién- cia ndo coincide com o sentido historiograficamente instituido. Mas a historia sé ¢ plenamente ciéncia se, com as formas, articular os con- teudos. A historiografia especificamente cientifica é uma formatacao do saber histérico que esteia a forma discursiva da argumenta- go cientifica nos conteidos da experiéncia historica apresentada. A raz4o cientifica ingressa no significado de uma historia na qual a experiéncia do passado possua sentido para o presente. Ela cola nos fatos. Melhor dizendo: ela se torna o fermento do contexto temporal dos fatos apresentado historiograficamente como his- toria. A historiografia recebe o selo da cientificidade quando, ao narrar uma histéria, narra igualmente o modo como lidou cientifi- camente com ela, e de maneira que esta integre aquela. A razao do pensamento histérico, que a ciéneia da histéria reivindica para si, tem de deixar reconhecer, nos contetidos apresentados, sua cicn- tificidade. De outra maneira, ficando meramente formal-abstrata, permaneceria fora do que interessa aqui, que é a orientagao hist6- rica da vida humana pratica. Ela precisa inserit-se nos conteudos da experiéncia histérica, refletir-se neles ou transparecer neles, de modo a tornar-se efetivamente parte integrante da histéria narrada (e nao ficar entrincheirada no mero aparato das notas, que distraem do texto). Como é isso possivel? Essa questo me permite trazer novamente os quatro tipos da constitui¢o histérica de sentido. Agora, porém, na diregao inversa: da genética pela exemplar, de volta a tradicional (a critica conti- nua sendo tomada como meio necess4rio a esse percurso). O olhar volta-se na diregdo inversa porque a unidade de forma e conteido analisada da-se originalmente na tradig&o. Aqui, sentido ja é coi- sa e coisa ja ¢ sentido. Essa unidade vale sistematicamente como principio da mediacao entre racionalidade metdédica e experiéncia histérica na formatagdo do saber histérico. Nos tipos da consti- tuigdo narrativa de sentido, cla habilita a historiografia a tornar-se metatradi¢ao, metarregra e contexto temporal abrangente. Nao se pensa aqui numa regressdio de construcdes divergentes de tem- pos, vazias de experiéncia, 4 solidez de uma determinada tradigfo, Historia viva 77 altamente particular, 4 qual a universalidade das pretensées cienti- fica de validade deveria ser reduzida. O que eu quero dizer ¢ outra coisa. Na amplitude e na diversidade das possibilidades de apre- sentagao elaboradas de modo especificamente cientifico deve-se encontrar um equivalente a tradigfo. Este deve conter, entretanto, a ampliacdo ¢ 0 aprofundamento sisteméticos da constituigao nar- rativa de sentido em fun¢ao do principio da cientificidade. Trata-se aqui do ponto de vista da universalidade antropolégica, que possui igualmente a aptidio para criar o sentido das tradi¢des. Essa univer- salidade corresponde 4 metatradi¢do, 4 metarregra e 4 metaevolugdo do pensamento histérico. Com a aptidao das tradigdes a constituir sentido, esse pensamento poderia relacionar-se eficazmente a vida pratica, Esse ponto de vista existe? Caso sim, como mostrar sua plausibilidade? Para deixar claro do que se trata aqui, gostaria de refletir sobre o Papel que a constitui¢ao de sentido pode desempenhar na historiogra- fia. Sob o ponto de vista de uma relagiio de principio, da historiografia a ci8ncia, a constituigiio de sentido nao pode significar que o proprio historiador aparega como criador de sentido. Ele sé poderia fazé-lo na forma de uma criagao de sentido estético-artistica, religiosa ou ideolégica. Nos trés casos, a relagdo da historiografia 4 ciéncia se- ria ofuscada, restringida ou até excluida pela arte, pela religifio ou pela ideologia.* O historiador deixaria de ser cientista e tornaria-se artista, “profeta” (no sentido de Max Weber) ou ideélogo. Nesse caso, a racionalidade metédica da ciéncia da histéria seria instru- mentalizada por essa fonte de sentido. Arte, religiio ¢ idcologia distinguem-se da ciéncia da historia ao reivindicar a competéncia para criar sentido. Recorrem a fontes préprias de sentido. Reconhe- cida 4 historiografia uma funcdio constituidora de sentido, importa demonstrar a plausibilidade de como essas outras fontes de sentido podem contribuir para as formas do pensamente histérico, enquanto % Por ideologia entendo uma cosmovisdo conceitual pensada com a pretenstio de valer incondicionalmente para a orientagio da vida pratiea. Diversamente da Teligido, a ideologia recorre exclusivamente a experiéncias profanas, atribuindo 4 cientificidade do pensamento - no mais das vezes— uma capacidade universal de explicagdo e orientagao. 78 Jorn Risen Histéria viva 79 submetidas aos mecanismos da garantia de validade especifica da ciéncia. Levada essa condigSo a sério, arte, religido ¢ ideologia recuam para 0 referido metaplano da constituigdo narrativa de senti- do. Mas como poderiam elas utilizar a forga criadora de sentido, que pretendem possuir, sem submeter-se ao principio da racionalidade metédica? Nao desejo afirmar que a racionalidade metédica da ciéncia da histéria simplesmente descarte as fontes de sentido da arte, da religi&o e da ideologia. Pelo contrario, para poder atuar na vida cul- tural do presente, os saberes histéricos necessitam ser fertilizados com os potencias de sentido estéticos, religiosos ¢ ideolégicos. Mas como? Se o historiador aparece como criador estético de sentido, como instituidor religioso de sentido ou como fornecedor ideolégico de sentido, entao ele seria mais do que um historiador. Sim, quase inevitavelmente sua especializagao profissional seria absorvida pela atitude estética, religiosa e ideolégica. Se essa especializagio, po- rém, deve ser preservada, pois de outra forma perderia a forga de convencimento do saber especificamente cientifico, entéo o historia- dor deve renunciar 4 competéncia de criar sentido em nome de sua ciéncia. Mas no perderia ele assim, por sua vez, inexoravelmente, os potenciais de sentido a que sua ciéncia nao pode renunciar, se nao a0 prego de abandonar sua posi¢éo cultural privilegiada como meio da orientagao histérica da vida pratica? Esse certamente nao € 0 caso, quando os potenciais de sentido da formatacao historiografica so ativados por meio da memoria his- térica, ou seja, quando a consciéncia histérica e suas operagdes de constituigao de sentido encontram sua posig&o cultural especifica. Aqui nao se trata, originalmente, de criar sentido, mas de rememo- rar sentido. A historiografia tornar-se, assim, simultaneamente mais modesta ¢ mais plausivel. Mais modesta pela renuncia 4 criago de sentido; mais plausivel porque recorre ao sentido ja instituido e exis- tente no mundo dos homens. A historiografia nao cuida de criar sentido, mas de rememorar sentido. E o faz de maneira que esse sentido seja tomado apto a contribuir para solucionar os problemas de orientagio da conscién- cia histérica no tempo presente, mediante o arsenal de recursos da garantia cientifica de validade (vale dizer: mediante critica do sen- tido pelo controle da experiéncia, reflexdo sobre as posigées de ori- gens e€ teorizacg4o). O passado é sempre mais do que um acumulo de fatos sem sentido, que teriam de ser articulados posteriormente em um contexto significative (“historico”)}. O passado sempre esta presente como significative nos processes culturais da memoria. O historiador nado pode pretender privilégio algum para o poten- cial de sentido que formula e torna presente pela escrita, pois esse potencial sempre esta presente e manifesto nos tempos respectivos. A umnidade de forma ¢ contetido produzida pela historiografia ja esta pré-formada pela experiéncia histérica. Ameméria histérica preserva do passado apenas 0 que Ihe parece — seja 14 como for — consenténeo com o significado do agir humano. A correlacao entre significado e agir estende-se ao pensamento histdrico ¢ adquirc sua forma eficaz ha historiografia. O metanivel da constituigao de sentido especifica- mente cientifica, nas formas e topoi tradicionais, exemplares e gené- ticos, que se interpenetram dinamicamente por meio da constitui¢ao critica de sentido, situa-se nesse conteiido prévio da memoria his- torica. Esse conteido deve ser elaborado ¢ apresentado nas formas especificamente cientificas do pensamento historico. Naturalmente, os conteados prévios da memoria histérica nado esto imunes 4 maneira pela qual a historiografia enuncia o reme- morado. A cientificidade, como elemento formatador, conduz a uma certa modificagéo. Tendencialmente, ela desenvolve, a partir dos contetidos prévios da memoria histérica (originalmente tradicio- nais), pontos de vista de um significado histérico que consideram a espécie humana, a “humanidade”, como critério empirico ¢ norma- tivo da formagao histérica da identidade. Essa universalizacao para toda a humanidade esta presente j4 na pretensao de racionalidade com que a ciéncia da histéria se engaja no discurso histérico de seu tempo presente, Ela fundamenta essa pretensdo na capacida- de racional de todos os sujeitos interpelados pelos problemas da orientagdo historica. Essa capacidade é suposta como propria a0 homem como ser-espécie e se manifesta em todos os resquicios histéricos do agir e do padecer humanos passados, “falando” assim ao presente. 80 Jorn Riisen Esse Jogos da linguagem 6 articulado pelo pensamento hist6- rico, em sua busca de sentido, com os conteiides prévios de sua teflexdo. O /ogos esta presente em ambos e, na ciéncia, representa uma certa forma de comunicagao marcada pela humanidade, tanto em conformagSo empirica quanto em sua determinacéo normativa. Empiricamente, porque o campo da experiéncia histérica coinci- de fundamentalmente com 0 campo da manifestag¢3o temporal da espécie humana. Normativamente, porque os pontos de vista de seu significado para o presente, determinantes da qualidade histérica do passado humano, atingem diretamente as formas ¢ os contetidos atuais da formagao da identidade histérica, dimensdo relevante para toda a humanidade. (Os direitos do homem e do cidadao, que reco- nhecidamente exprimem essa dimensiio, sio parte integrante desses contetidos historicos formadores de identidade.) E dificil explicitar auniversalidade antropolégica que caracteriza 0 critério historiogra- fico de constituigao de sentido especificamente cientifico, para além das tormatacdes historograficas concretas, ou seja, independente- mente dos contetdos histéricos e das diversas formas de apresenta- Gio. Trata-se de pontos de vista com os quais a historiografia corres- ponde a universalidade antropolégica das categorias historicas. Em cada particularidade transparece o universal-humano, com o qual a historia como ciéncia dirige o saber que produz as caréncias de orientago da vida humana pratica, espelhando-as nesse seu reflexo, mesmo que distorcido. Isso pode acontecer (e acontece) de maneira diferenciada. O sentido da histéria pode assumir formato historiografico na for- ma de uma narrativa, na qual os processos temporais concretos dos acontecimentos sao descritos de modo visivel. O sentido aparece entio no fio condutor narrativo desses acontecimentos, ¢ apresen- tado nos fatos e por meio deles. Esse modo de apresentacao é ha- bitualmente chamado de historiografia “narrativa”. Seus exemplos mais conhecidos se encontram na grande historiografia épica do século XIX. Sentido apresenta-se aqui na consisténcia estética das apresentacées dos acontecimentos como histéricos. Essa forma de apresentagio sempre terd lugar na historiografia, mesmo se apenas como parte de uma forma mais complexa do saber hist6rico. Elaéa Historia viva 8 mais penetrante, talvez a mais original e, no mode de constituigdo de sentido, a mais simples de fazer apreender narrativamente o sentido histdrico, Seu limite esta em seu pressuposto tedrico, de que uma seqiéncia temporal de acontecimentos passados basta para sustentar materialmente as determinagdes de sentido. Aqui o sentido histérico se daria (ou teria-se dado) no 4mbito de mudangas temporais que o historiador somente teria de reproduzir mimeticamente. Tem-se uma forma de apresentagZo totalmente diversa quando os contextos de sentido determinantes de cada apresentagao hist6- rica séo explicitados de maneira peculiar, em textos parciais, que informam com que pontos de vista as respectivas interpretagées fo- yam produzidas. O sentido de uma histéria torna-se assim lingitis- ticamente apreensivel em uma forma teérica abstrata. Exemplos desse tipo aparecem com abundancia na historia social contempora- nea, baseada em teorias. Naturalmente, a apresentagao do sentido Ho se restringe apenas a esses textos parciais, pois afinal trata-se quase sempre de textos em que essas partes estio articuladas com outras, para formar uma argumentacdo ~ ou seja, os textos parciais s6 fazem sentido no texto completo. Nada impede, contudo, que as concepgées tedricas da historiografia possam ser apresentadas sepa- tadamente como textos auténomos. Elas s&o os indicios, no discurso historiografico, do direito préprio da teoria a se formular. O exemplo classico é 0 Representagdo de uma historia universal de Schlézer.* N§o faltam, contudo, na historiografia contemporanea, textos dessa natureza.* Tais formas siio requeridas sempre que a historiografia ¢ tributaria do importante ponto de vista metédico da teorizagdo para Tealizar sua pesquisa histérica. As duas formas mencionadas, de certa maneira, equivalem-se. Apresentam o contexto histérico de sentido que organiza o saber do passado como uma grandeza integral, como algo claramente apre- sentavel. Diferenciam-se, no cntanto, no mode de apresentar essa completude do sentido histérico: implicitamente, de um lado, ¢ por ® Por exemplo H.-U. Wehler. Deutsche Gesellschafisgeschichte. 4 vols., Mimnchen, 1987 ss. As referéncias dizem respeito a introduc (v. 1, p. 6-31). “A. L. Schlézer. Forstellung einer Universathistorie. Gottingen, 1772. 5 Por exemplo J. Kocka. Lohnarbeit und Klassenbildung. Arbeiter und Arbeiterbil- dung in Deutschland 1800-1875. Berlin, 1983. a Jorn Rusen isso pouco aberta a discursividade; explicitamente, de outro, e com isso controlavel criticamente e modificavel argumentativamente. O sentido historico pode ainda ser apresentado de outro modo: o do complicado intercdémbio entre texto ¢ leitor. Trata-se aqui de uma “forma aberta” de formatacdo historiografica, que inclui expressamente o leitor como co-autor potencial da historia narrada. A historiografia — nas palavras de Francis Bacon que descrevem o modo especificamente cientifico de apresentagdo — convidaria os ho- mens tanto a ponderar o que foi encontrado quanto a acrescentar ¢ completar (“invite men, both to ponder that which was invented, and to add and supply”*") o leitor “implicito”, que todo texto admite como principio de formatagiio, torna-se explicito na propria forma de apre- sentacao, elevado ao mesmo plano do autor. Uma forma de texto assim abre possibilidades de comunicagao, no ler ou no apreender (sobretu- do se se tratar de “textos visuais”, como os filmes), de natureza toda particular, que inclui as duas outras formas de apresentagaio, Com cfcito, todo Icitor é co-autor potencial de sentido no ate de let, inas essa co-autoria € enfatizada no terceiro tipo de apresentacio. Nao 8&0 poucos os habites de consumo dos interessados a serem pertur- bados nesse processo. A formatagio historiografica fica incompleta, fragmentada ¢ mesmo enigmatica. Fica claro assim come é dificil, qui¢é impossivel, recuperar sem alteragdes o passado rememorado em contextos temporais consistentes (“‘auto-evidentes” ou “teorica- mente concludentes”). Exemplos reconhecidos desse tipo de representado historio- grafica sio raros. Remeto a livros didaticos, fortemente marcados pela metodologia do aprendizado programado,® e a Geschichie und Ligensinn (Histéria e sentido proprio) de Oskar Negt e Alexander * Acerca da distingdo entre formas abertas e formas fechadas, ver V. Klotz. Ges- chlossene und offene Formen im Drama. 4 ed. Milnchen, 1969. © The Works of Francis Bacon, edit. por Spedding, et alii, v. 3, reimpr. Stuttgart, 1963, p. 498. Ver também W. Krohn. Francis Bacon. Munchen, 1987, p. 173. SW. Iser. Der implizite Leser. Kommunikationsformen des Romans von Bunyan bis Beckett. 2. ad, Miinchen, 1979. * Ver sabretudo H.-D. Schmid (E4.). Fragen an die Geschichte. 4 vols., Frankfurt, 1974. Historia viva 83 Kluge,” cujo imenso sucesso de publico é totalmente desproporcio- nal a sua ressonancia entre os historiadores. Nao resta divida de que esse tipo € 0 mais moderno, o mais proximo ao questionamento das representagdes de sentido completas e fechadas, claramente pratica- do pela arte moderna. A plausibilidade dessa forma depende direta- mente de seus destinatdrios niio ficarem desorientados ou reagirem arbitrariamente com juizos quaisquer. Pelo contrario, eles devem ser interpelados pelo texto a ativarem intensamente sua capacidade de teflexdo e sua autopercepcdo como destinatarios. Assim, a auséncia de um sentido claramente perceptivel pode possuir o significado de evitar o falso conforto das formas simplistas e de engendrar a moti- vacao para resistir ao lastro provocador da experiéncia histérica da falta de sentido. 0. Negt; A. Kinge. Geschichte und Eigensinn. Frankfurt, 1981. Capitulo 2 Didatica - funcdes do saber histérico Para que servem, em minha faina cotidiana, suas histérias universais de outrora, cobertas de mofo? Raabe.! Também o presente é incompreensivel sem o passada ¢ sem uma bea dose de (formagdo, um preenchimento com os melhores produtos do melhor de seu tempo e do passado, além de uma boa digestae, da quail advem o othar projéitco dos homens ... Novalis? Neste capitulo nao é minha intencdo esbocar o esquema de uma didatica da historia. Desejo apenas elaborar ¢ destacar aqueles pon- tos de vista da diddtica da histéria que s&io relevantes para a teoria da histéria, sem afirmar, com isso, que a primeira, como disciplina especializada, dependa da segunda ou decorra dela. Nas reflexdes a seguir nao me detenho nas intimeras aplicagdes priticas do saber histérico na vida pratica, mas sim no fato, algo abstrato, de que o proceso de conhecimento da ciéncia da histéria esté sempre deter- minado, pela relaggo 4 aplicacao pratica, do saber histérico elabo- rado pela pesquisa e formatado pela historiografia. A praxis como fator determinante da ciéncia — cis meu tema. + W. Raabe. Das Odfeld. In: Samiliche Werke, ed. por K. Hoppe. Gottingen, 1960 88, ¥. 17, p. 28, 2 Novalis. Fragment 1515. In: Werke, Briefe, Dokumente, od, por W. Wasmuth, v. 2, Fragmente 1. Heidelberg, 1957, p. 402. 86 Jorn Risen O efeito sobre a vida pratica (mediado seja como for) é sem- pre um fator do processo de conhecimento histérico, de tipo funda- mental, ¢ deve scr considerado parte integrante da matriz disciplinar da ciéncia da historia. Esse efeito pode estar baseado em intencdes Mais ou menos conscientes dos historiadores, mas o esta também nas expectativas, desafios e incitamentos que experimentam no con- texto social de seu trabalho. Com scu trabalho cientifico, os histo- tiadores podem ¢ querem produzir efeitos, Por vezes escamoteiam esse poder e querer, e aparentam a face ingénua de um interesse “meramente” cientifico, por outras, relatam expressamente essas intengdes, Em ambos os casos, ndo é clara a relagéo entre a inteng3o de produzir efeito ¢ a pretensao de validade cientifica.? Como, por principio, nao existe uma neutralidade valorativa do conhecimento cientifico, o trabalho do historiador sempre esté permeado e deter- minado pelas relagSes 4 pritica, essas relagdes devem ser geridas com consciéncia, longe da atitude equivocada da neutralidade ou da atitude irrefletida quanto a relagao a pratica. Isso por certo nao quer dizer que a ciéncia da histéria devesse escancarar as portas da argumentagao especializada a fins politicos. Em hipdtese alguma. Pelo contrario, a teoria da historia preocupa-se cm colocar a rela- ¢ao do conhecimento histérico 4 pratica, de maneira que se possa reconhecer nela a possibilidade dos procedimentos especificamen- te cientificos e dos pontos de vista reguladores que se lhe aplicam, A ciéncia da histéria deve poder prescrvar esses pontos de vista do abuso politico e também sustentar a autoridade que Ihe ¢ (por vezes) reconhecida no debate politico em tomo das orientagdes histéricas. + O assim chamado “Historikerstreit” (polémica dos historiadores) demonstra isso com clareza metidiana. Suas tenses decorrem, afinal, de que parece nao existi- rem regras do discurso cientifico especializado, que abranjam os pressupostos, as implicagées ¢ as possibilidades de aplicagfio do conhecimento histérico (ou de suas pretensdes de ter conhecido). A indignagao quanto a critica politica de historiadores que no querem refletir ou admitir 0 conteddo politico de suas inter- Pretagées, nao pode ser entendida sem esse déficit. A liberdade da ciéncia é menos uma blindagem contra a reflexdo politica das proposigées histéricas do que um modo da prépria reflexdo. Isso significa, ao mesmo tempo, que esse modo nfo é primariamente politico, mas submetido a regras que compensem as cocrgdes do poder e vinculem-se 20 entendimento. Historia viva 87 Naturalmente, esse saber ¢ irrenunciavel, se a ciéncia da historia faz uso responsdvel dessa autoridade ¢ joga seu peso, como especialida- de, na balanga das decisdes politicas. Tampouco é minha intengdo inventariar 0 amplo campo das ptiticas, sobre as quais o saber histérico pode surtir efeito. No pla- no bastante abstrato da argumentagio do “esbogo de uma teoria da histéria”, s6 cabe tratar das regras gcrais da relagdo do saber his- t6rico a pratica. Quero watar da “praxis” como fun¢ao especifica e exclusiva do saber histérico na vida humana. Isso se dé quando, em sua vida em sociedade, os sujeitos tam de se orientar historica- mente ¢ tém que formar sua identidade para viver — melhor: para poder agir intencionalmente. Orientagdo histérica da vida huma- na para dentro (identidade) e para fora (praxis) ~ afinal é esse 0 interesse de qualquer pensamento histérico. Ela se torna a logica (narrativa) prépria desse pensamento, a dindmica de sua realizagio e, enfim, também suas formas e regulacao especificamente cienti- fica. Como o pensamento histdrico pode reatizar essa sua inten¢ao na vida pratica, e por forga de sua constituicao cientifica, é a ques- tao central da “didatica” como parte sistematica integrante da teo- ria da hisidria. O termo “didatica” indica que a fungio pratica do conhecimento histérico produz efeitos nos processos de aprendizado. O que se entende aqui por processos de aprendizado vai bem além dos recursos pedagégicos do ensino de escolar de historia (quase sempre conotado com o temo “didatica”). “Aprender” significa, antes, uma forma elementar da vida, um modo fundamental da cul- tura, no qual a ciéncia se conforma, que se realiza por ela e que a in- fluencia de forma marcante. O que se pode aleangar, aqui, por inter- meédio da ciéncia, ¢ enunciado pela expressdo classica “formaciio”. Gostaria de abordar a questo da formacdo histérica sob dois aspectos: um horizontal e um transversal. © corte transversal revela © saber histérico como sintese de experiéncia com interpretacdo. Com isso, a diversidade ¢ a correlagao dessas duas dimensdes sio articuladas com a terceira, a dimensdo de orientacdo da vida pratica, de modo a deixar claro como e quanto o pensamento historico, espe- cificamente cientifico, surte efeitos praticos. O corte horizontal trata da formagao como processo de socializagiio e de individuagao, trata da 88 Jorn Risen dinamica evolutiva interna da formagdo da identidade histdrica e, naturalmente também, se ¢ como essa dindmica pode ¢ deve ser in- fluenciada pela ciéncia. Teoria da histéria e didatica “Didatica” é um conceito altamente controvertido no campo do pensamento histérico. Por um lado, goza de uma veneravel tradigao. Antes de sua transformacao em ciéncia, a histéria refletia sobre seus fundamentos de um modo ao qual s¢ aplica ainda hoje o conceito de “didatico”. Tratava-se de ensinar e de aprender a histéria, de saber como escrevé-la a fim de que seus destinatarios aprendessem alguma coisa para a vida.* “Método” — conceito-chave da racionalidade— foi sempre visto pelos historiadores, até fins do século XVIII, como uma questao didatica. A relag&o a pratica do saber historico valia como critério decisivo da formatacao historiografica, caracterizando desse modo tanto a interpretagao histérica como o pensamento histérico.5 Na fase em que a histéria jé tinha atingido seu estatuto cientifico proprio ¢ sc fundado pela reflexdo da teoria da historia, 0 conceito de didatica conservou seu prestigio. Ninguém menos do que Johann Gustav Droysen considerava ser “didatica” a forma mais elevada de historiografia. A esta, interessariam o todo, a dimensao universal da histéria da autocompreensdo humana, a forma mais clevada da identidade historica e, conseqientemente, o ceme e a intencao fun- damental do conhecimento histérico cientifico: Do interesse didatico exsurge a caréncia dessa forma historica uni- versal, na qual somente se justifica a ciéncia histérica como tal. Pois € somente nessa forma que ela se realiza plenamente, constituindo-se na totalidade que Ihe é concedida.£ * Ver breve sintese em H. W. Blanke (nota 2) e em H. J. Pandel. Historik und Di- daktik (16) * Asse respeito, visio de conjunto em J, Risen; W. Schulze. Historische Methode (10). 5 JG. Droysen, Historik, ed. por P. Leyh (4), p. 253 ss. Histéria viva 89 Em contraste grosseiro com essa terminologia esta a difundi- da nogao atual (¢ nao ¢ de hoje), aparentemente indestronavel, de que a didatica ¢ alguma coisa completamente externa a histéria como ciéncia. Ela se ocuparia da aplicacao e da intermediag’io do saber histérico, produzido pela histéria como ciéncia, em setores do aprendizado historico fora da ciéncia. Os didaticos scriam transpor- tadores, tradutores, encarregados de fornecer ao cliente ou a cliente ~- comumente chamado de “aluno” ou “aluna” — os produtos cien- tificos. A didatica relacionaria-se com o saber histérico produzido cientificamente como o marketing se relaciona com a producdo de mercadorias. Essa concepcio dominante, que corresponde mais a uma men- talidade e raramente é explicitada ou mesmo fundamentada, atri- bui também a didatica, contudo, com o assim chamado aspecto de “mediagao”, certa autonomia cognitiva e pragmatica. Sua utilizagao desemboca, afinal, de certa forma, em seu desaparecimento. A maior parte dos historiadores considera que essa mediacfo nada mais tema fazer do que assumir, inalterados, os conteudos e formas produzidos pela historia como ciéncia. A unica adaptagdo aceita ¢ a que depende da capacidade de absorgao gradual ou reduzida dos destinatarios, que nao sido historiadores profissionais e que tampouco tencionam sé-lo. Essa mentalidade, difundida sobretudo entre professores do ensino fundamental ¢ médio, ¢ conhecida, na linguagem atual, como “didatica da copia”. (Ela teria a vantagem eventual de manter nessa didatica, vista como meio de transporte do saber historico cientifico para os setores niio-cientificos, a consciéncia das simplificagdes de linguagem que se faz ao ler as cépias, tio comuns hoje, com a “cul- tura da fotocépia”...) Aextemalizacao ea funcionalizagao da didatica sao o reflexo de uma concep¢ao estreita da ciéncia, por parte dos historiadores pro- fissionais. Na medida em que a cientificidade for identificada exclu- sivamente com os procedimentos adotados pela pesquisa e com os tipos de saber por ela produzidos, sao, de certa forma, “‘banidos da ciéncia” os demais fatores determinantes do processo cognitive da historia: a geragao de problemas histéricos a partir das caréncias de oricntagao da vida pratica, a relacfio da formatacao historiogréfica 0 Jorn Riisen 20 pliblico e, sobretudo, as fungo de orientagio pratica do saber his- torico (como ponto de vista que surte efeito sobre a produg&o mesma desse saber).’ Eles poderiam ser eximidos da responsabilidade da ciéncia e atribuidos a outras instancias. A didatica é o exemplo mais destacado de uma instancia de exilio de um fator do conhecimento histérico que n&o ¢ de somenos importancia. (Um outro exemplo é a migraco da historiografia do dominio da especializacao reflexiva para a poética e a lingitistica, nas quais de imediato ¢ pensada de forma a perder sua cientificidade.) Ha naturalmente uma boa raziio para distinguir as considera- gdes diddticas da reflexao sobre os fundamentos da ciéncia da his- toria, O ensino de historia nas escolas exige dos professores uma competéncia que nao coincide com sua especializacdo em historia. A didatica ¢ a disciplina em que essa competéncia especifica para a sala de aula, para cnsinar, ¢ formulada ¢ refletida. As experiéncias, investigacées, conhecimentos ¢ testes necessarios para isso possuem peso e ldgica préprios, nao coincidentes com 0 que a histéria como ciéncia pode produzir e produz. A didatica da historia leva sistemati- camente em conta, em suas autonomia e independéncia disciplinares telativas, as diferengas entre o trabalho cognitive da ciéncia da his- toria e a atividade do aprendizado de histéria na sala de aula. O problema nio esta na autonomia e na diferenga didatica da histéria, mas em sua relagio com a ciéncia da histdria, sobretudo em seu estatuto nessa relagde. Todo professor tem de conciliar pelo menos duas vocag6es em seu coragio: a da especializagio, que adquire (com nao pouco esfor¢o) durante seus estudos, e a de ensinar, a pedagégica, sem a qual (pode-se supor) néo conseguird ter sucesso no ensino de sua especialidade. A formac&o concentra-se manifesta- mente — levado em conta o curriculo — no campo da especializagao Profissional. Dai que se considere a profissionalizagaio pedagdgica como a mera obtencio de competéncia técnica em sala de aula, com © que os termos “aplicacdo” ¢ “mediacdo” fazem sentido. A didatica da histéria nao passaria ent4o de um método de ensino, totalmente 7 Ver J. Riisen. Aufklarung und Historismus — Historische Prémissen und Optionen der Geschichtsdidaktik (16). Histéria viva g1 indiferente 20s mecanismos especificos do trabalho cognitive da his- toria. Assim, a teoria da historia nada teria a dizer sobre a didatica, Uma neutralidade bonachona dessas disciplinas s6 pode ser defendida ao preco do abandono de questdes essenciais de ambas. O ensino de histéria em sala de aula é uma fungfio do aprendiza- do histérico das criangas ¢ dos jovens. Isso significa que criangas ¢ jovens aprenderem historia é uma questo central da didatica da hist6- tia, a que a mera tecnologia de ensino nao responde satisfatoriamen- te. Ademais, cada método pedagégico tem uma resposta diferente a essa questio. O aprendizado da historia transforma a consciéncia histérica cm tema da didatica da histéria.* Vale lembrar que os pro- cessos de aprendizado histérico nado ocorrem apenas no ensino de histéria, mas nos mais diversos e complexos contextos da vida con- creta dos aprendizes, nos quais a consciéncia histérica desempenha um papel. Abre-se assim o objeto do pensamento histérico para o vasto campo da consciéncia histérica, e a didatica da histéria caiv nas malhas da teoria da historia.’ Inversamente, a teoria da historia aproxima-se forgosamente da didatica da histéria. Quando as caréncias de orientagao, que emer- gem das situagdes extremas da vida concreta no tempo, sao transfor- madas em motivos para a obtencfio de conhecimento hist6rico, nao se pode evitar que essas caréncias possam (devam) ser entendidas também como caréncias de aprendizado, como ocorre, por exemplo, nas diretrizes curriculares e nos programas de ensino escolar. Algo semelhante acontece na investigacdo do fator disciplinar “formas da apresentac4o”: a relag%o do saber historico a seus destinatdrios consiste sempre numa relagao a processos de aprendizado no meio social da ciéncia da histéria. A ciéncia da hist6ria nao tem como dispensar-se, em sua espe- cializa¢o, dos impulsos advindos do ensino e do aprendizado de historia. A didatica ocorre nela permanentcmente. Isso fica mais do que suficientemente claro em uma teoria da histéria que nfo limite sua reflexdo sobre as caréncias de orientagao, as formas de * Dois estudos so pioneiros nessa area: R. Schérken. Geschichtsdidaktik und Ges- chichisbewusstsein (16) ¢ Didakttk der Geschichte (16). * Ver J. Riisen, Didactics of history (16). 92 Jorn Risen apresentagiio ¢ as fungées de orientagfio existencial. Ela passa 4 di- datica, sem restrigées, ao tratar desses trés fatores da matriz discipli- nar no contexto do aprendizado. E isso 6 sempre e necessariamente © caso, pois aprender é um ato elementar da vida pratica, do qual decorre o conhecimento histérico e no qual este desempenha (ou pode desempenhar) seu papel préprio, correspondente a cientifici- dade. Inversamente, a didética da histéria passa conseqiiente e for- cosamente a teoria da histéria, sempre que pergunte o que significa para o aprendizado histérico a cientificidade do conhecimento histé- tico.'* Histéria pode ser aprendida dos mais diversos modos ¢ com. os mais diversos contetidos, Naturalmente, a ciéncia da historia ¢, para a didética da historia, uma instancia que tem de ser consultada se importa ponderar as diversas formas ¢ os diferentes contetdos do aprendizado histérico. Essa imbricacfo reciproca da teoria da historia ¢ da didatica tem 14 seus problemas, pois ha o risco de subordinacdo ¢ de fun- cionalizacao. A didatica da copia, no mais das vezes camuflada, mas néo menos eficaz, consiste numa tentativa de deduzir uma concepgae do aprendizado histérico os mecanismos dos processos cognitivos especificos da histéria como ciéncia, ou seja: fundir a didatica com a teoria da histéria. Mesmo as concepgées de didatica da historia que recusem a proposta de uma didatica da copia nao deixam de formular para si diretrizes do pensamento histérico como uma espécie de teoria da histéria. Essa teoria estipula o que deve ser aprendido como histéria, e sua racionalidade metédica decide, como instancia critica, que modos do pensamento histérico devem ser aprendidos.'' Negligencia-sc ai, com freq@éncia, que a ciéncia repousa, por sua parte, sobre um fundamento existencial, do qual lhe vém as mesmas questdes e os mesmos problemas praticos da © Regra geral, as didaticas da historia comegam sempre, sistematicamente, por uma teoria da historia, Assim J. Rohlfes. Geschichte und thre Didakrik (16). Isso tem [4 seus problemas, pois a dimens&o origindria fundamental, na qual se realiza © aprendizedo histérico, é deixada de lado depressa demais. A dedugdo de sua especificidade e fungao é feita, também depressa demais, a partir da forma cienti- fica do conhecimento histérico. Ver minha critica em Juste milieu — geschichtsdi- daktisch. Geschichte lernen, 1, 19880. 2, p. 6-7. “Ver J. Rohlfes, Geschichte und thre Didaktik (16). Historia viva 93 vida que interessam 4 didatica como constituintes de seu interesse ¢ de sua pesquisa no campo do pensamento histérico. Ha também argumentos que indicam a diregao de uma funcio- nalizag4o inversa. Seriam os pontos de vista didaticos que a ciéncia da hist6ria teria de assumir, se tenciona ser levada a sério. Com isso ela perderia, de certa maneira, sua autonomia. Teria no minimo que aceitar a critica de ser supérflua, se ndo assumisse (por uma teoria da hist6ria) os requisitos indispensaveis do aprendizado histérico. Essas cobrangas mutuas da teoria da historia e da didatica s4o improdutivas. Elas impedem entender a especificidade de cada estado de coisas abordado (histéria como ciéncia ¢ aprendizado histérico) e causam uma redu¢do do outro campo. Essas unilatera- lidades podem ser evitadas se ficar claro que a teoria da histéria e a didatica possuem o mesmo ponto de partida, mas se desenvolvem em direcSes cognitivas diferentes ¢ com interesses cognitivos di- versos. Tanto a historia como ciéncia quanto o aprendizado hist6- Tico estéo fundados nas operagSes ¢ nos processos existenciais da consciéncia histérica: a teoria da histéria e a didatica convergem, assim, ness¢ tema. Elaboram-no, contudo, de maneiras distintas. A teoria da histéria pergunta pelas chances racionais do conhe- cimento histérico e a didatica pelas chances de aprendizado da consciéncia historica. Ambas est&o intimamente interligadas, mas n&o sao idénticas. A tcoria da histéria cuida das questdes did4- ticas na medida exata em que sdo necessdrias ao esclarecimento do processo cientifico de conhecimento. E isso é evidentemente © caso quando as fungées praticas do saber histérico atuam como fatores determinantes do préprio conhecimento histérico, sempre que se verifiquem, no processo do conhecimento, relagdes com a organizacao da vida pratica estabelecidas mediante o saber hist6- rico — relagdes essas que podem ser estabelecidas de modo espe- cificamente cientffico. A ciéncia torna-se, assim, relevante como fator influente sobre a vida pratica. A razio cientifica € posta em funcionamento como razio pratica — seja ao ser utilizada pelos historiadores na pratica, seja porque a pratica o exige da ciéncia. A teoria da histéria reflete sobre a ciéncia como uma forma de vida, como principio cultural da realidade social, sob 0 ponto-de 4 Jorn Risen vista de descobrir se e como ela realiza efetivamente suas preten- sdes de racionalidade. O espectro dessas pretensdes ou interpelacdes da competéncia cientifica € amplo. Sempre que a consciéncia historica desempe- nha um papel ptiblico, nao faltam historiadores dispostos e aptos a fazé-lo, inteira ou parcialmente. Pretendem, assim, estar investidos de uma autoridade fundada na pretensao racional da historia como ciéncia, E se o pretendem com razio, ent&o a racionalidade propria 4 histéria como ciéncia, em particular na lida pratica com o saber historico, tem de ficar patente. Esse patenteamento é 0 que faz a didatica na teoria da histéria. “Didatica” € um conceito controvertido, pois hoje designa somente um campo determinado da pedagogia, o que se ocupa do ensino em sala de aula.!? Com a mencionada ampliagao do objeto da reflexdo da didatica da histéria ao vasto campo das atividades e¢ fungdes da consciéncia histérica, cssc confinamento foi, cm tesc, superado. Mesmo quando se deseja evitar o risco da onisciéncia da didatica na ampliddo imprecisa do que seja a “consciéncia histori- ca” e, a0 invés, se queira caracterizar a didatica, com mais exatidio, como a ciéncia do aprendizado histérico," “aprender” continua a significar o objeto da didatica, na teoria da historia. Se “aprender” for entendido, fundamental e genericamente, como processo no qual as experiéncias e as competéncias sdo refletidas interpretativamente, esse conceito de aprendizado diz respeito ao que se discute aqui: a contribuigao da ciéncia da historia para o desenvolvimento daque- las competéncias da consciéncia histérica que sao necessdrias para resolver problemas praticos de orientagdo com o auxilio do saber histérico. Na tradigdio do pensamento histdrico-didatico, hoje mal conhecida ¢ pouco levada em conta pelas priticas especializadas da ciéncia da historia. Ver H.-J. Pande. Historik und Didaktik Das Problem der Distribution historiographisch erzeug- ten Wissens in der deutschen Geschichtswissenschaft von der Spataufkldrung zum Frithhistorismus (1765-1830) (16). Ver J. Riisen, Ansdize zu ciner Theorie des historischen Lernens, 1 (16), esp. p. 249 ss. Historia viva 35 O que é formacao histérica? “Formagao” ¢ uma categoria didatica, que abrange a compe- téncia de que se falou logo acima. A categoria da formagao articula as competéncias com niveis cognitivos e, inversamente, articula as formas ¢ os contetidos cientificos 4s dimensdes de seu uso pratico. Essas dimensées da praxis, por pressionarem as ciéncias com a ansia de especializago e de diferenciagaio, representam para elas o risco constante de as desviar. Torna-se necessario, por conseguinte, uma reflexdo propria para assegurar que o uso pritico do saber pro- duzido pelas ciéncias permanega um ponto de vista sob controle da ciéncia, da produgao de seu saber ¢ da apresentacdo desse saber. “Formagao” significa o conjunto das competéncias de interpre- tagéo do mundo e de si proprio, que articula o maximo de orien- tacdo do agir com o maximo de autoconhecimento, possibilitando assim 0 méximo de auto-realizagdo ou de reforgo identitdrio. Tra- ta-se de competéncias simultaneamente relacionadas ao saber, 4 praxis € 4 subjetividade. Em que consistem essas relagdes e como avaliar seu éxito ou fracasso? Formagio opde-se criticamente a uni- lateralidade, a cspecializacao restritiva e ao afastamento da pratica ¢ do sujcito. Ela pressupde a capacidade de apreender os contextos abrangentes — e de refletir sobre eles —, nos quais se formam e aplicam capacidades especiais. A categoria da formagio refere-se a vinculagio entre saber ¢ agir exigida pela caréncia de orienta- ao do sujeito agente, pois insere-se na representacao do todo que Constitui a sitiagdo em que o agente deve lidar com seus proble- mas. Formagao leva muito a sério esse direcionamento 4 caréncia de orientagiio. Ela o contrapde a fragmentacdo do saber cientifico nhecessariamente decorrente da especializagao da ciéncia. Com isso, ela coloca 4 frente a caréncia do sujeito agente, de fazer-se valer como pessoa, no uso do saber para fins de orientagao de sua pré- pria vida pratica, de afirmar-se como instancia de legitimagdo des modos praticos de viver, Ela contrapde essa exigéncia também a colocacio da subjetividade em fungao da pressio objetiva do saber empirico e de sua aplicabilidade técnica. Enfim, sempre que teoria € pratica, saber e agir se sobrepdem, a formago sustenta o ponto %6 Jarn Risen de vista da relevincia pragmatica e da dignidade moral do saber cientificamente produzido. Tais pontos de vista surgem sempre que se recorre 4 ciéncia para compreender as situagdes praticas ¢ para lidar com elas. Formag4o organiza os acervos de saber de trés maneiras, for- gosamente decorrentes da determinagiio de sentido do agir humano. Ela mantém a representacao de'um todo de mundo a ser apreendido, pelo saber, em todas as situagdes da vida. Ela sustenta que o saber é um elemento essencial do quadro de referéncias de orientagao da vida pratica e que deve, pois, possuir uma relagio direta com esta. Ela defende que o saber 6 0 meio em que se dé a orientagiio do agir, em que a subjetividade, o ser proprio e, melhor dizendo, a vonta- de de auto-afirmagao dos agentes se efetivam no processo do agi. Essas trés maneiras opetam de modo distinto diante da manifesta diferenciacao dos saberes cientificos, do afastamento da praxis na produgdo do saber ¢ da suspensio da legitima pretenso de auto- afirmagao dos sujeitos. Para simplificar bem, pode-se chamar esses modos de compensatério e de complementar. A formagio é compensatéria quando, acriticamente, de fora da producie cientifica do saber ou contra ela, deixa-a ao sabor de suas proprias regras, separa da racionalidade intrinseca ao saber cienti- fico as caréncias de orientago voltadas ao todo, 4 relapdo 4 vida ¢ a subjetividade, enfim, satisfaz essas caréncias com meios n3o- cientificos. Nesse caso, é a arte a mais utilizada, comprometendo irreversivelmente a dimensdo cognitiva da compreensdo humana do mundo e a auto-interpretagio dos homens. Formagiio pode dar-se ainda de modo complemeniar. Trata-se de fazer adotar scus préprios pontos de vista nos saberes cientifi- cos € em sua producae pelas ciéncias. Isso sé € possivel median- te a reflexo sobre as regras e os principios com que as ciéncias organizam categorialmente sua relagdo 4 experiéncia, a praxis e a subjetividade. Essas reflexes colocam em evidéncia o universal no particular dos saberes, a praxis na teoria € a subjetividade na disciplinagao metédica do pensamento. Elas instituem, para os su- jeitos envolvidos na produgao e na utilizagao dos saberes, uma pos- sibilidade de comunicag&o, na qual as diversas competéncias para Historia viva 97 produzir entendimento sobre as interpretagdes e o manejo dos pro- blemas comuns sao adquiridas. Nesse trabalho de entendimento siio afastados os limites do saber, saberes sao integrados, possibilidades de orientagdo cognitiva da praxis adquiridas e testadas, subjetivida- de para o autoconhecimento e entendimento mituo fortalecida. No modo de relagiio complementar 4 totalidade, a praxis e 4 sub- jetividade, formagao é um processo dindmico. A orientagdo ¢ a forga da identidade so obtidas pela agdo comunicativa dos sujeitos parti- cipantes. Interpretapao do mundo e autocompreensao deixam de ser grandezas estiticas (dogmaticas), que se refletem em bens de consu- ‘mo da formacdo, c passam a ser movimentos dinamicos das formas e dos contetidos do saber, nos quais e pelos quais a vida pratica ¢ culturalmente determinada. Formagao complementar contrapée-se a especializagdo exces- siva, abstinéncia pratica ¢ subjetividade enfraquecida. Ele se eleva contra irés propriedades que, em conjunto, caracterizam o “mun- do dos especialistas”, que Max Weber fustigou energicamente em sua visdo apocaliptica de uma massificacdo generalizada da cultura ocidental, com racionalizag&o ¢ burocratizagao crescentes.!* Como mera compensacdo, a formagao reforga a ignorancia do geral por parte do especialista, 0 temor da responsabilidade de ir além do funcionamento técnico da aplicagao pratica do saber, e a debilida- de dos sujeitos, que se sentem apenas como executores funcionais, como engrenagens do maquindrio, como integrantes da “raga dos andes azafamados”, “que podem ser atrelados a qualquer fim”. Aconcep¢ao complementar da formacZo rompe com a especializa- go excessiva ao dirigir seu olhar para as implicagdes tedricas dos saberes especializados, que os articula com os demais saberes. Com seu olhar para os fundamentos existenciais do saber, ela apreende sua relag4o interna 4 praxis. Com a reflexio sobre os pressupostos ¢ 4M. Weber. Parlament und Regierung im neugcordneten Deutschland. In: M. We- ber. Zur Politik im Weltkrieg. Schriften und Redon 1914-1918. W. J. Mommsen (Ed.). Obras completas de Max Weber, 1/15. Tilbingen, 1984, p. 449 s. Ediglo brasileira: Textos selecionados. S40 Paulo: Nova Cultural, 1997. ™ B. Brecht. Leben des Galilei. Cena 14. In: B. Brecht. Werke, Grosse Berliner und Frankfurter Ausgabe, v. 5. Berlim ¢ Weimar, Frankfurt, 1988, p. 284 s. 38 Jorn Risen os principios da racionalidade metédica, ela pode esclarecer a sub- jetividade como vontade de verdade e, assim, esclarecer também o saber como dimensdo da experiéncia humana de si. No sentido de uma concepgio reflexivo-complementar da for- magao, 0 pensamento histérico esta entio “formado” quando se re- laciona diretamente ao todo, ao agir e ao eu de seus sujeitos. As trés telagSes nio est&o suficientemente dadas ¢ efetivadas no processo cognitivo especifico das ciéncias. Pelo contrario. Como em qualquer ciéncia, a totalidade do saber histérico fragmenta-se, na ciéncia da historia, em uma miriade de saberes, cujos limites cada vez mais estreitos sé conseguem ser vislumbrados pelos especialistas. Com a crescente racionalidade metédica da pesquisa histérica ¢ com o surgimento de uma multiplicidade de diversas técnicas de pesquisa, o saber histérico obtido pela pesquisa afasta-se cada vez mais das preocupagées da vida cotidiana. Alguma coisa de subjetividade sé sobrevive a duras penas, dentro de limites estreitos ¢ sob a forte pressao da disciplina da racionalidade metédica, dentro da “maqui- na’ da praxis cientifica institucionalizada. Nao obstante, cabe lembrar que a formatacio historiografica do saber histérico obtido pela pesquisa faz valer os pontos de vista da coeréncia ¢ da accitac¢#o, que tém a ver com a totalidade, com a rela- cdo 4 praxis e com a subjetividade. JA que esses pontos de vista nao so externos ou estranhos ao saber histérico produzido pela histéria como ciéncia, o trabalho reflexivo da teoria da histéria sobre os fun- damentos da ciéncia da historia pode ser apresentado em pormenor. Como parte integrante dessa reflexao sobre fundamentos, a didatica tem por tarefa expor os trés modos determinantes do saber histérico produzido pela historia como ciéncia. Como tal, a didética nio é uma reflexado sobre o todo, a praxis ¢ a subjetividade no processo cientifico de producao de saber. Ela explicita os pontos de vista e as estratégias de uma tal reflexdo, constituindo-se numa espécie de érganon da formacao histérica. Ela a torna possivel, sem porém tea- jiza-la diretamente. Sua efetivagaio depende da elaboracio cognitiva propriamente dita. Se essa elaboragao nao quiser ficar cega para seus proprios fatores fundamentais, tem de incorporar integralmente os modos tipicos da formacao. Histéria viva 9 Como se da a fungo pratica do saber historico, como ponto de vista, no processo cognitive da ciéucia da historia? Ha como iden- tificar procedimentos, especificamente cientificos, que definam o modo coma o saber histérico produzido pela ciéncia, sem perder sua cientificidade, pode ser utilizado na pratica? “Formagéio histérica” & a resposta a essa quest4o. A formacao pde a cientificidade como uma propriedade do saber histérico. Ela a poe de modo que sua utilidade para fins de orientacdo, como “sentido formativo” desse saber, como relacfo intima a totalidade, 4 praxis e a subjetividade. Como pensar essa rela¢do intima, como se manifesta, como se realiza explicita- mente? “Totalidade” é uma qualidade do uso do saber, que corresponde a um determinado direcionamento da orientagio do agir. O agir é oricntado quando os agentes dominam o contexte de suas circuns- tancias e condigées. O agir realiza-se entdo em um “horizonte” de interpretacdes, nas quais os agentes podem formular os problemas com que lidam no agir, abordar as possibilidades de sua solugio, es- timar as chances de éxito ¢ se entender sobre suas relagdes miituas. Pertencem a esse horizonte a apreensio abrangente da situacio, a interpretagdo do mundo e a autocompreensio dos agentes, além da linguagem com que lidam com as circunstdncias do mundo, consigo mesmos e com os demais. A apreensdo mencionada é de cunho radi- cal, pois de outra forma nao se poderia pensar um agir significative ou mesmo a vida humana. Nos processos cognitivos do pensamento historico especifica- mente cientifico tem-se o equivalente dessa apreensio radical. Tra- ta-se das categorias histéricas, a rede de universais histéricos, com a qual se captura, no amplo campo das experiéncias do tempo, o Ambito particular da experiéncia do histérico e as possibilidades de sua apropriacdo cognitiva.'’ A teorizacdo das categorias historicas — ou seja: a elaborag3o de uma antropologia histérica tedrica — confere ao saber histérico, por principio, seu carater formativo. A reflexdo categorial é condic¢ao necessaria do valor formativo do saber histori- co, Formas categoriais de pensamento sao o universal no particular © Ver Il, 63 ss. 100 Jorn Risen do pensamento histérico, vale dizer: a historia nas muitas histérias. As categorias fomecem os fios condutores para a integragdo do sa- ber histérico obtido pela pesquisa em saberes histéricos relevantes para a prixis e eficazes para a orientagao. (E dbvio que os esquemas categoriais ordenadores intemnos passam por modificagées ao longo do processo da pesquisa do individual e do particular. Eles so parte da dinamica do progresso do conhecimento.) E preciso dizer que as categorias historicas que instituema tota- lidade s&o de natureza meta-histérica. Elas nao dao ainda, ao saber histérico, sua estrutura interna, com a qual pode exercer a funcdo formativa da relagao a pratica. Isso s6 ocorre na passagem das cate- gorias meta-histéricas (que apreendem, ordenadamente, todo o cam- po da experiéncia histérica) 4s concepgdes tedricas de cada historia, que deslindam cognitivamente os processos temporais empiricos.'” Todo conhecimento histérico est4 marcado por uma relacao ao pre- sente, na interpretacao de cada passado revisitado, relacao que pode ser explicitada teoricamente (por exemplo, no caso das periodiza- gSes). Com essa relacio, o saber histérico organiza-se em diregao 4 fung&o formativa da relago 4 pratica, Enelae com ela que fica clara e discutivel a posi¢ao daqueles a que se dirige (historiograficamen- te) o saber histérico. A identidade desses destinatarios é¢ interpelada pela perspectiva assumida pelo saber histérico, mediante a relagdo ao presente, que expressa a dependéncia da interpretagao histérica com respeito a posigées prévias. Os sujeitos interpelados pelo saber histérico pensam a dimensio temporal de sua propria vida pratica na perspectiva de tempo consolidada empiricamente mediante as informagdes das fontes obtidas pelo conhecimento. Demonstra-se com isso também a relacdo da formacdo aos sujeitos na organizacao categorial interna do saber histérico. A subjetividade ingressa, desse modo, na amplitude de um olhar histérico apto a identificar, nos fenémenos do passado, qualidades humanas de alcance universal. Fortalece-se, assim, na forma de uma identidade histérica, constitu{- da por sua vez pelos critérios desse significado universal, presentes na interpretacfo de seu proprio ponto de partida. "Ver Il, 73 ss, Historia viva lot Os principios e as formas do pensamento histérico, determinan- tes da histéria como ciéncia, sfio os mesmos que direcionam o saber historico 4 formagao, que lhe conferem um valor formativo. Isso n&o quer dizer, cntretanto, que a fum¢do formativa do sa- ber histérico ja esteja plenamente realizada em sua produgao pela pesquisa e em sua apresentagao na historiografia. Formacdo ¢ um modo de recepcionar esse saber, de lidar com ele, de tomar posi- gio quanto a ele, de utilizd-lo. Trata-se de uma utilizago que ndo est4 necessariamente restrita 4 profissionalizagdo, ao “mundo dos especialistas” dos historiadores. Ela é caracteristica de todos os que desejam ou precisam efetivar sua compreensdo do mundo e de si, na orientagio da vida pratica, em um determinado nivel cognitivo. Esse nivel ndo é 0 mesmo do grau de especializagio da competéncia pro- fissional, tinica a possibilitar o desempenho cognitive da pesquisa. O nivel cognitivo da utilizagao do saber, que caracteriza a forma- gio, mede-se, antes, pelo grau de transparéncia do saber produzido cientificamente (ou scja: especializada c profissionalmente), por sua universalidade intrinseca, por sua relagao interna a pratica e a sub- jetividade, tal como ocorre na perspectiva tipica do saber histérico conformado teoricamente. Formagdo nfo é, por conseguinte, poder dispor de saberes, mas de formas de saber, de principios cognitivos, que determinam a aplicagao dos saberes aos problemas de orien- tacao. Ela é uma questéo de competéncia cognitiva na perspectiva temporal da vida pratica, da relago de cada sujeito consigo mesmo ¢ do contexto comunicativo com os demais. Naturaimente, essas competéncias dependem dos contetidos do saber. Elas ndo podem estar vazias da experiéncia do tempo passa- do, elaborada e interpretada cognitivamente. Essas competéncias se adquirem na interpretago das experiéncias do tempo e sao utiliza- das quando se necessita argumentar historicamente para manejar 08 problemas da vida pratica. A formagdo histérica ¢ um modo dessa argumentagao. Esse modo é caracterizado por fazer valer os po- tenciais racionais do pensamento histérico, consolidado na histéria como ciéncia, como modes argumentativos na vida pratica. A cién- cia, assim, “vive” de certo modo. A formagao histérica organiza sua autocompreensdo mediante a memoria hist6rica; engaja a definic¢Zo voz Jorn Rusen histérica de seu prdéprio ponto de partida na vida social presente; vincula o direcionamento da vida pratica 4s representagSes de pro- cessos temporais significativos; projeta as perspectivas do agir futu- ro pelas formas discursivas que vivern do espirito da ciéncia. Para caracterizar esse tema, Karl-Ernst Jeismann utilizou a fe- liz expressio “engajamento ponderado”.'* “Engajamento” significa vida pratica, realizag4o da propria existéncia na luta social pelo re- conhecimento, na adogdo e na defesa das préprias convicgdes, na efetivagio das pretensdes subjetivas de validade, no exercicio do poder ou na insergio nele, na participagio nos processos culturais que determinam 0 proprio eu, a relac&o aos demais, o lugar da na- tureza, em tudo, enfim, a que se refere o termo “praxis”. Trata-se do lécus da existéncia humana, no qual os sujeitos tém de agir e padecer para poder viver e no qual, sobretudo, estic envolvidos até as camadas mais profundas de seu eu nos processos temporais, nas mudancas de seu mundo e de si préprios. “Ponderado” significa um modo de manejo reflexivo dessa imbrica¢do, a atualizagaio dos potenciais racionais (possibilidades de argumentagdo dirigida ao entendimento mituo) na efetivagdo da praxis, nesse engajamento em seu prépric tempo, na propria realidade social temporalmente dimensionada. O sentido formativo que o saber histérico produ- zido cientificamente, ou seja, que a histéria como ciéncia em seu conjunto possui em suas funcées praticas, consiste em tomar pos- sivel essa ponderag&o no engajamento existencial. Isso ocorre da maneira como ele é buscado e produzido pela ciéncia. A ciéncia da histéria pode perfeitamente cunhar os potenciais racionais de que dispdem, cientificamente, como modos de uma “pondera¢4o” cons- tante do pensamento histérico no engajamento da vida pratica. Ela pode dar noticia da estruturacio teérica interna do saber histérico, de sua universalidade interna, de sua relacdo fundamental a praxis e das representacées da identidade historica que funcionam como seus prineipios cognitivos. Com outras palayras, o sentido formative da ciéncia da his- téria consiste em nao velar a luz de seus principios universais € ¥K_-E. Jeismann. Didaktik der Geschichte (16), p. 63. Historia viva 103 fundamentais da razio com o véu do “mundo dos especialistas” e sim deixa-ta brilhar nos saberes e em suas formas, que as conectam com a especialidade ¢ com a profissionalizacao. Isso requer certa- mente que todos os participantes — ou seja: todos os pesquisadores que produzem saber, todos os historiadores que formatam saber, to- dos os que tencionam utilizar o saber para orientar suas vidas prati- cas — compartilhem a mesma representagao dessa razdo. Todos de- vem estar, em principio, de acordo (ou, ao menos, ser capazes de se entender} sobre o que faz o saber historico téo racional em sua cien- tificidade, que leve 4 ponderagio no engajamento na vida pratica, humanizando assim a praxis. Esse acordo se faz acerca dos princi- Pios racionais que caracterizam o pensamento hist6rico, que atuam sempre como forgas existenciais de garantia de validade da narrativa das histérias.!” E sobre eles que se fundam, em ultima instdncia, as pretenses de racionalidade reivindicadas pela historia como cién- cia, assim como as exigéncias que se faz 4 ciéncia com respeito a sua fun¢do orientadora. E sua contemporaneidade, seu interesse em “participar da comunidade dos homens de cultura”” com e por sua ciéncia, que vinculam o trabalho cognitive dos especialistas 4 carén- cia de orientagao de seu tempo. Por outro lado, a contemporaneidade vincula a utilizagdo do saber produzido profissionalmente também as pretensdes formativas, ou seja, aos niveis ¢ competéncias cogni- tivas de todos os que querem servir-se dele. As trés dimensées de aprendizado da formacio histérica Com suas pretensées de racionalidade, a ciéncia da historia ¢ eficaz na pratica como formagio histérica. Sua eficdcia diz res- peito a um conjunto de competéncias para orientar historicamente a vida pratica, que pode ser descrito como a “competéncia narra- tiva” da consciéncia histdérica. Ela é a capacidade das pessoas de constituir sentido histérico, com a qual organizam temporalmente Ver I, 84 ss. 2M. Weber. Gescanmelte Aufsdtce za Wissenschaftslehre (4), p. 600. Ciéncia politica, duas vocagdes. Sio Paulo: Cultrix, 1972. 104 Jorn Rasen o 4mbito cultural da orientagdo de sua vida pratica ¢ da interpretacao de seu mundo e de si mesmas. Essa competéncia de orientacdo tem- poral no presente, mediante a meméria consciente, é o resultado de um processo de aprendizado, Formagao baseia-se no aprendizado ¢ é, simultaneamente, um modo do proprio aprendizado. A formacao historica nfio pode ser pensada, por conseguinte, como um compo- nente fixo das orientagdes temporais, que se pode adquirir e, em seguida, “possuir” (como um certificado de conclusdo do ensino médio, um diploma ou as obras completas de algum historiador, en- cadernadas em couro e com lombada dourada, na estante} como um objeto (como uma espécie de selo de qualidade da posigao social). A fonmac&o historica ¢, antes, a capacidade de uma determinada constitui¢ao narrativa de sentido. Sua qualidade especifica consiste em (re)elaborar continuamente, e sempre de novo, as experiéncias correntes que a vida pratica faz do passar do tempo, clevando-as ao nivel cognitivo da ciéncia da histéria, e inserindo-as continuamente, e sempre de novo (ou seja: produtivamente), na orientagao histérica dessa mesma vida. Aprender é a elaboraciio da experiéncia na com- peténcia interpretativa e ativa, e a formacdo historica nada mais é do que uma capacidade de aprendizado especialmente desenvolvida. Essa capacidade do aprendizado historico precisa, por sua vez, ser aprendida. Como? Busco responder a essa pergunta ao descrever o aprendizado histérico como um modo do processo de constituigao de sentido na consciéncia histérica. Tomo esse modo, em seguida, para examinar como surgem nele as competéncias que constituem a formagao his- térica. (Como essas possibilidades sao apreendidas, ¢ efetivadas por um processo de aprendizado a isso destinado e didaticamente apto, j4 nao mais constitui uma questdo da didatica da teoria da histéria, mas ¢ assunto da didatica da historia como uma disciplina da ciéncia da historia relativamente independente da teoria da histéria.} Aconsciéncia histérica é constitui¢do de sentido sobre a expe- riéncia do tempo, no modo de uma mem6ria que vai além dos limi- tes de sua propria vida pratica. A capacidade de constituir sentido necessita ser aprendida, e o € no proprio processo dessa constituigao de sentido. Que outras qualidades se encontrariam nas operagdes Histéria viva 105 tipicas da consciéncia histérica, que néo a memoria histérica ¢ 0 processo da constitui¢ao narrativa de sentido da experiéncia do tem- po, que valem como orientac4o existencial ¢ assim so o proprio aprendizado histérico? Para nao me perder nos meandros da psicologia do aprendiza- do, prefiro recorrer aqui a um exemplo simples (talvez até simples demais). Aprender a nadar ¢ nadar para valer podem ser distin- guidos como dois processos, embora ocorram como movimentos semelhantes, na agua. No aprender a nadar, nada-se (mesmo se ainda nfo “certo”), e no nadar, ndo efetuado com o objetivo de aprendizado, ainda se pode aprender algo. Bem. Com a histéria, as coisas passam de maneira um pouco mais complicada do que com a natacdo. Nao é nada facil apontar as capacidades exatas que se adquiriu pelo aprendizado da histéria. Curiosamente, a didatica da histéria ainda nao debateu seriamente em que comportamento de uma pessoa se poderia identificar que ela adquiriu uma consciéncia hist6rica desenvolvida, enfim, que ela aprendeu histéria. Sera que acontece na histéria algo como a experiéncia do salto (como na na- tagdo), em que pode exclamar: “Agora eu sei!” Que ocupagao com 0 passado nao é um processo de aprendizado? Como aprender tam- bém pode significar a obtengao de novo saber, é possivel considerar como aprendizado um programa de televisdio, que aborde tematica histérica € que transmita informagées (objetivamente corretas), na medida em que essas infotmagdes sao apreendidas e armazenadas de algum modo na consciéncia histérica. Uma mera repetigao do que ja se sabe n&o seria um processo de aprendizado. Operagdes da consciéncia histérica ou outras maneiras de ocupar-se da historia podem ser distinguidas, ponderadas e ordenadas segundo intensi- dades diversas de aprendizado. Que critério de qualidade de apren- dizado fundamenta essa distingdo, ponderagao e ordenagao? Essa questo é crucial para a didatica da histéria. Sem resposta aela nao se pode estabelecer em que consiste a competéncia narrati- va da formagao histérica. O que é especifico, nos processos mentais da consciéncia histérica, ao aprendizado? Com que critérios se pode estabelecer e avaiiar sua importancia para o aprendizado? Para res- ponder a essas perguntas lango mao da distingo cntre dois pontos 106 Jorn Risen de referéncia e trés niveis ou dimensdes nos quais se da o aprendi- zado historico. Aprender é um processo dindmico, ao longo do qual o sujeito aprendiz passa por mudangas, Ele adquire alguma coisa, apropria-se de algo: um entendimento, uma capacidade au um misto dos dois. No aprendizado histérico dé-se a apropriagio da “historia”: um dado objetivo, um acontecimento, que ocorreu no tempo passado, torna-se uma realidade da consciéncia, tomna-se subjetive. Passa, as- sim, a desempenhar um papel no ordenamento interno do sujeito. © aprendizado histético ¢ um processo da consciéneia que se di entre os dois pontos de referéncia seguintes. De um lado, um dado objetivo da mudanga temporal do homem e de seu mundo no passa- do. De outro, um sujeito determinado, uma autocompreensio e uma orientacdo da vida no tempo, O aprendizado histérico caracteriza-se, pois, como um movimento duplo: algo objetivo torna-se subjetivo, um conteido da experiéncia de ocorréncias temporais é apropria- do; simultaneamente, um sujeito confronta-se com essa experiéncia, que se objetiva nele. Isso n&io quer dizer, no entanto, que a histéria aprendida seja um estado de coisas estatico € definitivo, previamen- te dado, que a consciéncia apenas reproduziria, como mum espe- lho. Tampouco quer dizer que o sujeito aprendiz deva estar restrito exclusivamente ao aprendizado da histéria. Uma concepgiio desse tipo, erroneamente, subestimaria o papel produtivo do sujeito ¢ coi- sificaria a “historia”.” De outro lado, a histéria é mais do que um Mero construto subjetivo da consciéncia histérica, “Objetivamente”, a histéria esta dada de dupla mancira. De uma parte, como sedimento quase-coisificado das mudangas no tempo, nas circunsténcias concretas da vida presente (toda pessoa nasce na histéria, em um passado que se transpée para o presente). De outra parte, nos diversos estados de coisas (como documentos, monumentos ¢ semelhantes), que informam sobre o que, quando e por que foi 0 caso. A pressdo da experiéncia do primeiro sentido, da “historia” como dado, é a press4o por adequar-se, muito mais forte *' Constato esse ditecionamento em H. Jung ¢ G. von Staebr. Historisches Lernen, 2v. Koin, 1983 e 1985. : Historia viva 107 do que a pressao do segundo, de que é qualitativamente diversa. A apropriaco histérica do préprio presente exige do sujeito, contu- do, que passe de uma a outra experiéncia. Isso vai além de uma ta- refa meramente escolar. Essa passagem sempre ocorreu nas circuns- tancias reais da vida dos sujeitos que aprendem. A histéria sempre se prescreve antes de qualquer tentativa de aprendizado. Essa pré- escrita ndo diz apenas que as condigées atuais da vida se tornaram © que sao. Se for o caso somente de destacar o cardter de “dadas”, dessas condi¢ées, poder-se-ia simplesmente esquecer sua mudanga e transformagao no tempo. Estar pré-escritas, para as histérias, sig- nifica que elas fazem parte, na forma de meméria consciente e de passado interpretado, da vida real presente, na qual se deve apren- der como lidar com ela. Histérias sio, por exemplo, parte da cultu- Ta politica, ou elemento das composigées identitarias efetivas das pessoas, como as nacionais ou de género. As histérias cristalizadas na vida humana, como realidade por si (ou seja: “objetivamentc”, como monumentos, exposi¢des historicas, ditcuizes currivulares para o ensino de histéria), langam uma ponte, dos dados histéricos presentes nas circunstancias da vida conereta, para o dado documen- tado das experiéncias historicas. Uma ponte, da histéria que vale, antes de qualquer meméria, como conjunto das condigdes da vida pratica, para a historia “escavada” dos arquivos da memoria e tor- nada conteldo da consciéncia mediante o aprendizado. A apropria¢fo da histéria “objetiva” pelo aprendizado histérico &, pois, uma flexibilizagio (narrativa) das condigdes temporais das circunstancias presentes da vida. Seu ponto de partida sao as his- térias que integram culturalmente a propria realidade social dessas circunstancias. O sujeito nao se constituiria somente se aprendesse a histéria objetiva. Ele nem precisa disso, pois j4 esté constituido nela previamente (concretamente: todo sujeito nasce na histéria e cresce nela). O que o sujeito precisa é assenhorear-se de si a partir dela. Ele necessita, por uma apropriagdo mais ou menos consciente dessa histéria, construir sua subjetividade e torn4-la a forma de sua identidade hist6rica, Em outras palavras: precisa aprendé-la, ou seja, aprender a si mesmo. Nesse processo, o sujeito afirma a si proprio, Ao aprender, firma a dimens4o temporal de sua prépria identidade e assenhoreia-se de 108 Jom Rusen si, de seu tempo. Isso no quer dizer que o sujeito possa dispor dos dados histéricos de sua existéncia ao bel-prazer de seus interesses, desejos, esperangas, aspiragdes ou temores. E certo que tais inten- ges sempre atuam, mas nao bastam para uma apropriagao efetiva da histéria objetiva ou para elaborar suficientemente a autocom- precnsao histérica que sirva 4 orientagio. Antes, os interesses, as expectativas e as pretensdes devem ser confrontados com o conte- tido experiencial da histéria objetiva, modificados por ele e entdéo concretizados, com o que podem vir a ser eficazes. Esse duplo movimento de aprendizado, de passagem do dado objetivo 4 apropriagdo subjetiva, e da busca subjetiva de afirmacdo ao entendimento objetivo, alcanga o nivel ou a qualidade da forma- gao quando consegue efetivar a articulagio entre objetividade e sub- jetividade do pensamento histérico, caracteristica da histéria como ciéncia. Isso significa que o processo de aprendizado assume os tra- gos de um certo estranhamento, na passagem do carater prévio dos dados do passado, tornados parte das circunsténcias da vida pratica do presente, 4 consideragao de suas fontes na tradig&’o. No passado, apreende-se a qualidade temporal como um outro préprio, cuja alte- tidade especificamente historica se torna um desafio intelectual para as representagdes do tempo que orientam o agir, a ser levado a sério. Formacio é a capacidade de se contrapor a alteridade do passado, de levantar o véu da familiaridade que se tem com o passado camuflado na vida pratica presente e de reconhecer o estranho, assim descober- to, como préprio. Formacao ¢ uma intensificagac dos pressupostos da subjetividade no manejo cognitive do passado. Isso diz respeito, em primeiro lugar, ao passado que encontrou seu lugar nas circunstincias da prépria vida. Sua apropriag&o pon- derada como algo de préprio estende-se ao velado, ao recalcado, ao omitido, que continuam atuando. Como causam dor, sio esca- moteados e esquecidos pelos sujeitos aprendizes nos mecanismos culturais disponiveis 4 meméria histérica. A formagio histérica obedece ao aforisme “audiator et altera pars” (“ouga-se sempre a outra parte”), sempre que a “outra parte” signifique dissensao com respeito as tradigdes e representag6es preferidas. A formac¢Zo abre @ consciéncia historica a possibilidade de dissentir, no 4mbito das Histéria viva 109 B circunstancias da propria vida em que se encontra concretamen- te 0 sujeito em formagao. Afinal, essas circunstancias devem ser superadas por ele mesmo, almeja-se apropriar-se intelectualmente da histéria de que ¢ resultado. A formagio historica, no movimento de aprendizado da obje- tividade para a subjetividade, significa também uma flexibilizacio fundamental dos préprios pontos de vista do sujeito, uma deter- minada forma de posic4o propria do sujeito ao apropriar-se inter- pretativamente da experiéncia do passado. Posicées originalmente s6 afirmadas, com suas percepcdes seletivas, rigidos modelos de interpretagiio ¢ hirtas pretensdes de validade, sdo capacitadas a transformar-se pela argumentagao aberta. Isso requer o aumento da capacidade de empatia e a disposi¢ao para perceber a particula- ridade de sua propria identidade histérica, dentro de cujos limites, porém, haja espago para a alteridade dos demais sujcitos, com os quais ¢ contra os quais as afirmagdes de cada um, nas orientagdes histéricas, tém de lidar e manter-se. O autoconhecimento no espe- Tho do passado esta formado quando inclua a autocritica como apti- dio para perceber os limites que separam sua propria identidade da alteridade dos demais. Nessa percep¢ao, devem estar presentes tan- to o entendimento como a aceitagdo do ser outro. Autocritica como chance de reconhecimento. Eis 0 correspondente subjetivo do lado objetivo do aprendizado histérico, em que o recalcado tem de ser lembrado, para evitar que se repita no processo das transformacées das circunstancias da propria vida. Com a aptiddo para expandir 0 limite de tolerancia da experiéncia histérica, a formag&o histérica abre ademais uma chance de liberdade. Liberdade como supera- ¢4o dos recalques forgados e de suas conseqiiéncias, da constante tepeticdo do recalcado, A formag&o histérica libera a superacio das coergdes que levam ao recalcamento, oriundas dos dados culturais prévios da memoria histérica presentes nos sujeitos em formacao. A formagao histérica supera os limites da experiéncia ainda de uma segunda forma. Ela amplia a orientaciio histérica por recurso a fatos passados que n&o se encontram sedimentados nas circuns- tancias da vida pratica atual. Ela abre o olhar histérico para a uma amplidao temporal em que o presente ¢ a historia inserida nele sio 10 Jora Risen relativizados em contraste com outras historias. Essas outras his- térias mostram ser possivel existirem outros homens diversos do sujeito particular. Com isso, a particularidade da realidade histérica de cada sujeito é posta sob uma luz que ndo mais admite a redu- cdo de tudo 4 histéria propria de cada um. Mediante a apropriagao intelectual dos passados, a subjetividade dos sujeitos em formagao ganha novos espacos internos, insuspeitados. Ela situa seu ser pré- prio em meio 4 diversidade dos modos de ser homem, expandindo seu horizonte de autocompreensao para a humanidade, como o todo das mais diversas formas de existir do género humano. A forma- go incrementa a consciéncia da prépria relatividade histérica e, com isso, a dindmica temporal interna da identidade histérica. Ela abandona a limitacdo do historicamente garantido e ébvio, ganhan- do, com a instabilidade da contingéncia, a liberdade de reconhecer, come justificado, o ser outro de todos os outros. A formagao histéri- ca significa, igualmente, uma consciéncia mais profunda do sentido proprio do eu. Essa duplo processo de aprendizado e apropriagao da expe- riéncia histérica, ¢ de auto-afirmacao histérica, da-se em principio por meio de trés operagdes. Pode-se distingui-las (artificialmente) em experiéncia, interpretagdo e orientacao, e analisd-las em rela- do aos diferentes niveis ou dimensdes do aprendizado histérico. A atividade da consciéncia histérica pode ser considerada como aprendizado histérico quando produza ampliagao da experiéncia do passado humano, aumento da competéncia para a interpretaco his- térica dessa experiéncia ¢ reforgo da capacidade de inserir e utilizar interpretagdes histéricas no quadro de orientag4o da vida pratica” % Essa distingdo corresponde a composicao das operagées da consciéncia histérica que K.-E. Jeismann propés, em sua didatica do ensino de histéria, como ope- rages essenciais do aprendizado: andlise, juizo objetivo, valorago. Creio que “experiéncia, interpretago e orientago” sio mais abrangentes e fundamentais, sem ficarem restritas ao campo cognilivo da ciéncia da historia, que parece ser 0 Unico a interessar Jeismann. Ver K.-E. Jeismann. Grundfragen der Geschichtsun- teichts. In: G. C. Behnnann/ K-E. Jeisumann/Hans Siissinuth. Geschichte und Politik. Didaktische Grundlegung eines kooperativen Unterrichts. Paderborn, 1978, p. 76-107, esp. p. 76 ss. Ver também K.-E. Jeismann. Geschichte als Hori- zont der Gegenwart (16) p. 61 ss. Histéria viva mM aN distingao desses trés niveis ou dimensées possui a vantagem de F. deixar ver os campos de atuagdo da consciéncia histérica, que es- F capam amitde a observacao. Ademais, ela permite entender qual é * 9 interesse do aprendizado histérico ¢ da formacao histérica: nao é s6 uma capacidade que vem ao caso, mas sua multiplicidade e sua articulacao equilibrada. E freqiiente que se negligencie a competén- cia de interpretacdo e orientacfo em beneficio dos componentes do saber empirico. Quase sempre se deixa de lado que o saber histérico é um produto da experiéncia ¢ da interpretagao, resultado, pois, de sintese, e néo um mero contetido pronto a ser decorado. Ocorrem, com freqiiéncia, desequilibrios na relagdo dos trés componentes. O que adianta, por cxemplo, um amplo saber histérico que sé se sabe de cor, sem nenhum tipo de valor de orientac4o? De outro lado, 0 que adianta a capacidade de reflexdo e critica de projetos praticos, se ela esta vazia de experiéncia? Gostaria de csbogar os trés componentes do aprendizado his- torico, um a um, para em seguida caracterizar a relagdo entre eles e, por fim, refletir como cada um e seu conjunto devem ser especi- ficamente tratados, se o aprendizado histérico deve desembocar na formacao histérica, (a) O aprendizado historico corresponde ao aumento da expe- riéncia no quadro de orientagao da vida pratica. As operagdes da consciéncia histérica podem ser consideradas como processos de aprendizado, quando se concentram no aumento dos saberes sobre © que foi 0 caso no passado. Para isso, é necessdrio que a conscién- cia se abra a novas experiéncias. O aprendizado histérico depende da disposi¢ao de se confrontar com experiéncias que possuam um carater especificamente histérico. Que experiéncias so essas, e do que se necessita para fazé-las? Nao se trata apenas da apreensiio de que algo foi o caso no passado. Nada é histérico 6 porque ocor- teu, O carater histérico de algo consiste numa determinada quali- dade temporal. A experiéncia de que se fala aqui é a da distingao qualitativa entre passado e presente, que o passado é qualitativa- mente um outro tempo do que o presente. Trata-se disso ¢ de que 9 tempo ¢ passado com relacdo ao tempo presente e que de algum modo permanece, como passado, neste. Baseada nessa distingao, a ng Jorn Risen experiéncia histérica é entéo também uma apreensao das diferengas e mudancas qualitativas do tempo no passado. A experiéncia historica é, pois, fundamentalmente, experiéncia da diferenga e da mudanga no tempo. A experiéncia da diferenga temporal (uma velba igreja ao lado de uma modemissima agéncia bancaria, um prédio barroco junto a um edificio de apartamentos, uma casa colonial cercada de prédios de escritérios) tem seu atra- tivo — um fascinio que pertence aos impulsos mais importantes de aprender histéria. A fascinagfo suscitada por esse objeto da expe- riéncia nao é suficiente, porém, para mobilizar uma atengdo cons- ciente e ativa a essa experiéncia, com a intengo de se apropriar dela mediante uma interpretacdo prépria. Para tanto, necessita-se de um outro impulso, decorrente dos problemas de orientagao do proprio presente. Assim, por exemplo, as divergéncias entre as experiéncias do presente e as expectativas de futuro, com as quais se deve lidar no agir, dirigem seu olhar para o passado, com a intencao de construir delas uma imagem realista e de cogitar como superd-las. A alterida- de do passado, experimentada, abre o potencial de futuro do préprio presente, Para tanto, importa relaciond-la interpretativamente ao presente, ou seja, inseri-la intelectualmente no quadro de orientagao da propria vida pratica. O aprendizado histérico, inserido na dimens&o da experiéncia, torna-se um processo de formagiio, sempre que se tenha constituido determinada competéncia experiencial. Essa competéncia consiste em que as experiéncias histéricas sio conscientes, ou seja, que o movimento de busca do conteudo empirico do saber histérico nasce do proprio sujeito, de sua curiosidade empirica. Ela nao advém mais da apropriagdo, adogao e elaboragao dos saberes disponiveis sob a pressio de experiéncias externas do tempo. A formacao é uma trans- formacéio estrutural da experiéncia. A experiéncia sempre tem um lado ativo ¢ um lado passivo. Algo se impde, de fora, & consciéncia, mas é esta que, ao registra-lo, 0 processa com recursos interpreta- tivos préprios, fazendo-o perceptivel e cognoscivel. O processo de transformagao da experiéncia, no qual o aprendizado se toma for- magao, é uma transferéncia da nfase do lade passive para o ative. O sujeito transcende seus préprios limites e os do saber histérico que Histdria viva n3 Ibe é dado ¢ pde-se a busca de novas experiéncias histéricas. Nesse : movimento, ele agrega a si novas dimensdes da experiéncia histd- rica, correspondentes a seus proprios interesses, aspiraydes e espe- rancas. O sujeito desenvolve um sentido para a alteridade temporal © para 0s processos temporais, que o conduz do outro experimentado ao eu vivenciado, tomando esse cu muito mais consciente e confe- tindo-lhe uma dinaémica temporal interna muito mais elaborada. Esses movimentos de busca da experiéncia da formacio histéri- ca somente so possiveis em situagdes relativamente livres de pres- sfio. No tempo presente, a pressdo da experiéncia temporal tem de ser compensada, para que o sujeito ganhe espaco de auto-afirmacio e de responsabilidade, de modo a poder agir para além do tipo dado de experiéncia do tempo. A compensac&o das coergdes para agir, no campo da formagao histdrica, leva com freqiiéncia a uma relacdo estética abstrata com a experiéncia da alteridade do passado. Ela se refugia numa espécie de descompromisso com respeito as exigén- cias pragmaticas do presente. A experiéncia da alteridade histérica, apropriada ao longo da formacio, pode perder-se na compensacio estética das coergées a agir. Com isso, a formagao degenera para algo de deslocado no quadro de orientagio da vida pratica. A liber- dade da experiéncia historica propria pode conduzir a desvinculacdo estética do mundo, como se um véu encobrisse o olhar histérico que buscasse perscrutar a temporalidade intrinseca as circunstancias atuais da vida. Diante de uma formagdo historica esvaziada de sua relagdo ao mundo, deve-se recordar a relagao a pratica constitutiva do saber histérico, que Ihe confere seu caréter formativo. Naturalmente os campos da experiéncia historica da alteridade, acessiveis pela for- Macao, nado podem ser relacionados diretamente ao agir atual para orienta-lo, (E nesse ponto que aparecem as muitas simplificages correntes da contribuigdo da histéria para a formagio politica.) Por outro lado, o olhar historico formado, voltado para a alteridade do passado, pode sensibilizar a consciéncia para a especificidade de seu tempo presente. Ele pode aprofundar a consciéncia de que os dias de hoje se passam de outra forma do que no passado, porque as con- digdes da vida pratica de cada um sao historicamente especificas. na jor Risen E numa consciéncia assim que vive um agudo “sentido da realidade” (Humboldt) do préprio tempo, ¢ um sentido desses sempre resulta em beneficio da competéncia dos sujeitos para agir. (b) O aprendizado histérico resulta em aumento da competéncia interpretativa. Nessa dimensio do aprendizado histérico, o aumen- to da experiéncia ¢ do saber transforma-se numa mudanca produti- va dos modelos de interpretagao em que vem sucessivamente a ser inserido. Tais modelos de interpretacao, integram os diversos sabe- Tes e conteiidos experienciais, referentes ao passado humano, em um assim chamado “quadro histérico”. Eles conferem a esses saberes um “sentido histérico”, Estipulam significados e possibilitam dis- tingdes em funcao de critérios de importancia. Atribuem aquilo que é sabido, empiricamente, uma determinada posico nas representa- gGes dos processos. Aparecem come modos de ver, como perspecti- vas, & possuem um estatuto semelhante 4 teoria, para a consciéncia histérica. Isso nfio quer dizer que aparegam sempre e necessaria- mente como teorias, em formas explicitas, distintas dos clementos empiricos do saber histérico. No mais das vezes, funcionam como modelos inconscientes de apreensdo e como esquemas implicitos de ordenamento, que fazem, da experiéncia, saber (ou seja: contextos experienciais complexos). Afinal, séo esses modelos de interpreta- go que decidem 0 que é especificamente “histérico” na experiéncia eno saber histéricos, em que consiste seu estatuto temporal peculiar, com 0 qual 0 especificamente histérico se tora o contetido das his- térias. O que significa aumento da competéncia interpretativa no pro- cesso histérico de aprendizagem? Os modelos de interpretagao, utilizados no processamento da experiéncia ¢ na organizagio do saber, péem-se em movimento, tornam-se flexiveis, expandem-se e diferenciam-se, enfim, tornam-se conscientemente refletidos ¢ argumentativamente utilizaveis. Em seu movimento em diregao a uma maior complexidade, esses modelos se modificam também qua- litativamente. Os modelos tradicionais de interpretag4o tormam-se exemplares, os exemplares, criticos, e os criticos, genéticos. Au- mentos qualitativos das possibilidades de interpretagdo sfio demons- trdveis igualmente no interior dessas formas basicas da constituigao Historia viva ns. histérica de sentido.” Esses diversos niveis precisam fluir, no pro- cesso de aprendizado, em direcao 4 formagao. Sao sobretudo as dissonancias cognitivas e afetivas entre as experiéncias do tempo e os modelos de interpretacZo que possibilitam o aumento da com- peténcia interpretativa ¢ conduzem a novas formas ¢ a novos con- tetidos do saber histérico. O processo mesmo de aprendizado pode ser descrito como passagem de um dogmatismo quase-natural das posigdes histéricas (minha histéria ~ ou talvez também: a histéria do professor — é a dnica possivel e verdadeira) 4 colocagao do saber hist6rico em perspectiva, na qual a propria perspectiva pode ser demonstrada e até modificada argumentativamente. O aprendizado, como aumento da competéncia interpretativa, torna-se formag&o quando os modelos de constituig’e de sentido, determinantes da interpretagdo histérica, sio conscientes @ temati- zados como objeto do conhecimento. A formagao histérica adquire assim um halo filoséfico que paira sobre todos os individuos for- mados. Eles esto assim em condicao de lidar com as “filosofias da historia” presentes na elaboracao interpretativa da experiéncia his- térica e na apropriagiio dos saberes historicos. Eles podem enuncia- las - como modelos de interpretac4o, como quadro interpretativo, como sistema de universais histéricos, como determinagGes antro- poldgicas fundamentais da historicidade humana, ou seja 14 como for — ¢ utilizd-las produtivamente no manejo das experiéncias e dos saberes. Com as novas experiéncias ¢ com os novos saberes, eles podem, sobretudo, problematizar e modificar os modelos habituais de interpretagdo. Essa competéncia reflexiva da formagio histérica, de lidar com os modelos de interpretagaio (que, nos processos de aprendizado histérico, pode, alias, ser exercida desde cedo™), pode 3HL-G, Schmidt é um dos que enuncia e descreve assim os trés niveis do exem- plar. Ver Exemplarisches historisches Erzihlen. Geschichtsdidaktik, 10, 1985, p. 279-287. Ver também seu primeito relatério sobre as pesquisas empiricas das constituig6es narrativas de sentido de criangas ¢ jovens: “Eine Geschichte zum Nachdcaken”. Erzihltypologic, natrative Kempetenz und Geschichtsbewusst- sein: Bericht ber einen Versuch der empirischen Erforschung des Geschichts- bewusstseing von Schiilem der Sekundarstufe I (Unter- und Mittelstufe). Geschi- chtsdidaktik, 12, 1987, p. 28-35. * Vor a proposta de I, Risen, “Das Gute bleibt — wie schin!” Historische Deunun- 6 Jorn Rusen ser descrita como um fator essencial da “eterna juventude” que caracteriza, segundo Max Weber, as ciéncias da cultura. Trata-se da capacidade, de todos os que tém interesse na historia, de trans- por sua contemporaneidade para novos pontos de vista e novas Perspectivas, nas quais e com as quais podem fazer e interpretar as experiéncias histéricas. (c) O aprendizado histérico acarreta aumento da competéncia de orientacdo. Essa competéncia diz respeito 4 fungao pratica das experiéncias histéricas interpretadas e ao uso dos saberes histori- cos, ordenados por modelos abrangentes de interpretacio, com o fito de organizar a vida pratica, com sentido, em meio aos processos temporais, a0 longe dos quais os homens ¢ seu mundo se modifi- cam. A interpretagio humana do mundo e de si possuem sempre elementos histéricos especificos. Esses elementos ceferem-se aos aspectos diacrénicos internos ¢ extemnos da vida pratica, ao quadro de orientacdo do agir e A identidade dos sujeitos, © modo de onentar a propria existéncia no tempo, interna ¢ externamente, tem de ser aprendido. Ele jd esta presente no legado da competéncia interpretativa. Os modelos de interpretagao que se trabalha, no aprendizado, j4 contém determinados categoriais (de sentido) dos processos temporais que abrangem o passado, o pre- sente e o futuro, A compcténcia histérica de orientagdo é a capa- cidade dos sujeitos de correlacionar os modelos de interpretagdo, prenhes de experiéncia ¢ saber, com seu préprio presente com sua propria vida, de utiliz4-los para refletir e firmar posi¢ao propria na vida concreta no prescnte. A posisao propria, que esta, naturalmen- te, “objetivada” (pelo género, idade, posi¢ao social, lingua materna, etc.), ganha assim um direcionamento temporal subjetivado. Passa a estar inserida no movimento do tempo ¢ sua qualidade subjetiva a toma também, em principio, modificavel: esta submetida (ao me- hos em parte) 4 competéncia refiexiva e ativa dos sujeitos. Dados gsmuster in der Werbung. Geschichte lernen, 1, 1987, 9. 1, p. 27-36. *M. Weber. Die*Objektivitat’ sozialwissenschaftiicher und sozialpolitischer Er- kenntnis (1904), In: M. Weber, Gesammelte Aufsitze zur Wissenschaftslehre. 3. ed. Titbingen, 1968, p. 146-214. A objetividade do conhecimento nas ciéncias sociais. S40 Paulo: Atica, 2006 Historia viva 7 ; quase-naturais da vida e da identidade prépria sio potenciados pela forca das interpretacdes histéricas empiricamente preenchidas. Por meio da argumentacio historica, eles sao fiexibilizados em perspec- tivas e, com isso, tornam-se modificaveis. No aprendizado histérico, os quadros de orientagdo da vida pratica modificam-se. Sao historicizados e, por isso, enriquecidos com um “senso de realidade” (Wilhelm von Humboldt). Esse senso pode ser descrito como a capacidade de perceber a historicidade do proprio eu e de seu mundo, ¢ de reconhecer as chances de formagao existentes em si e em seu agir. Também essa modificagdo possui uma determinada qualidade, um direcionamento preciso. Ela leva, da coergao dos dados prévios impostos as posigdes e 4 vida, 4 liber- dade de refletir sobre as posigdes e de escolher as perspectivas his- toricamente fundamentadas. an Nesse direcionamento evolutivo, o aprendizado histérico torna-se formagdo histérica como metacompeténcia do aprender, como aprender o aprender. As posigées préprias sio carregadas, nele, com temporalidade. O ser proprio dos sujeitos, sua identidade histérica torna-se processo e, por isso mesmo, vinculada as compe- téncias cognitivas que a formacio histérica, como capacidade de Tefletir sobre os modelos de interpretago da experiéncia historica, coloca 4 disposic¢ao da autocompreensio dos sujeitos. Com essa temporalizagiio interna, relativiza-se fortemente tanto as relages dos formados consigo mesmos quanto sua posi¢éo na vida social do presente. Poder-se-ia considerar isso como perder o pé no chao, como vulnerabilidade do agir formativo, se nao se tratasse de um processo de desdogmatizagio dessas relagdes subjetivas ¢ da estima- tiva da propria posigao na sociedade, que abre espaco a liberdade. A temporalizacao da identidade significa um ganho no ser-prdprio e na seguranca da posigdo social, que compensam sua inseguranca interna, sua temporalidade intrinseca. A relativizagiio histérica da relacdo para consigo € para com as posigdes disponiveis significa que se diluem as naturalidades que parecem caracterizar as orienta- ges do agir e as atitudes que se tomam no fluxo temporal da propria vida. Essas obvicdades so substituidas pela consciéncia crescente da contingéncia, a que se subtraem a certeza (falsa, de qualquer 18 Jom Rusen modo) de que nada de essencial muda, mas com a qual se abrem perspectivas de futuro, nas quais se situam as chances do agir c a qualidade da propria vida. Isso diz respeito também a naturalidade com que a vida pratica opera com a idéia de progresso, assim como 4 naturalidade contraria, de que tudo ha de culminar em catdstro- fe.?° Diante das possibilidades de entendimento da contingéncia da vida, mediadas pela formagdo histérica, essas naturalidades esto aquém do estagio da formagao. Com outras palavras: ambas care- cem de esclarecimento pela formagio. (d) As trés dimensdes do aprendizado histérico esbogadas ¢ suas qualidades formativas estao obviamente intimamente interligadas. Nao hd experiéncia histérica livre de interpretapao, nem orientagdo historica livre de experiéncia, Todo modelo de interpretagao é rela- cionado simultaneamente a cxperiéncia e 4 orientag4o. Sua correla- ¢&o intrinseca representa a complexidade do aprendizado histérico, sua dupla polaridade entre a apropriapao da experiéncia ¢ a auto- afirma¢ao nos processos mentais da consciéncia histérica. Seria equivocado definir a unidade do aprendizado histori- co, com a qual este se distingue claramente da multiplicidade dos demais processos de aprendizado, somente pelo lado objetivo. Ela seria entio determinada pela histéria, apropriada culturalmente no aprendizado como contetdo experiencial dominante, e supra-orde- nada aos processos de interpretagdo com o fim de orientar 0 agir. E ainda muito comum a identificag#o da qualidade formativa do aprendizado histérico com o volume de informagdes disponiveis, motivo pelo qual os processos de aprendizagem para a obtencao da Tespectiva formagao so, por sua vez, concentrados na aquisigiio desses saberes. Essa concepgiio do aprendizado e da formacdo supde uma determinada didatica da histéria (no mais das vezes, implici- ta), que tem por finalidade vincular o sujeito aprendiz a um canone dado de objetos histéricos. Formagio, aqui, seria apenas um modo inteligente dessa vinculago ¢ equivaleria a fazer entrar o sujeito em. sua pratica de dominagao. O decisivo, na formagio ~ a dinamica da “Ver J, Riisen. Fortschritt. Geschichsdidaktische Uberlegungen zur Fragwardi- gkeit einer historischen Kategorie. Geschichte lernen, 1, 1987, n. 1, p. 8-12. Historia viva ug subjetividade no aprendizado do aprender -, petrificar-se-ia em um determinado saber histérico. Este, apropriado de modo apenas pas- sivo, mais impediria do que fomentaria a capacidade de interpreta- g4o das experiéncias historicas e sua utilizagao com a finalidade de orientar. As interpretagdes nele cristalizadas passariam desaperce- bidas como tais (ou seja, em sua fung4o fundamental na organiza- do do saber) e deixariam de suscitar novas experiéncias histéricas, por parte do sujeito aprendiz como fonte de questionamento. O saber histérico aprendido (apropriado) estaria, dessa maneira, ainda me- nos apto a ser relacionado aos problemas de orientagao da vida pratica. Em nome de uma pretensa objetividade, o saber histérico perderia sua fungdo cultural de orientagao, para a qual, todavia, é produzido. Inversamente, é também equivocado conceber os processes his- toricos de aprendizado, na didatica, somente a partir do interesse subjetivo do aprendiz, de forma que o momento da experiéncia e do saber da consciéncia histérica nao passasse de um desvairio em que se confinaria sua subjetividade. Nesse caso, a formacdo seria uma subjetividade exagerada, quando nao exacerbada. A experién- cia histérica ¢ o saber histérico saturado de experiéncia perderiam sua capacidade de resisténcia a pressdo impositiva do achar, desejar, esperar e temer. Subtrair-se-ia aos aprendizes a chance de elabo- rar sua subjetividade em contraste com a experiéncia, de modo a tecuperd-la, reforcada, de sua exteriorizacdo na “coisa”, As carén- cias de orientagdo e os pontos de vista subjetivos podem ser levados didaticamente em conta, promovendo-se a passagem do aprendiza- do 4 formagio, na medida em que a consciéncia historica se toma resistente a saberes ¢ experiéncias provocativas. Em um processo de aprendizado desses, o interesse subjetivo conduziria exclusivamen- te 4 fixagio ideolégica das orientagdes e sua correspondente forma dogmiatica de identidade histérica. Os aprendizes veriam frustrado seu “sentido de realidade”, que obtém pelo trabalho de interpretacao da experiéncia histérica. Suas interpretag6es ¢ orientagdes estariam pobres de experiéncia. Ambas unilateralidades podem ser evitadas se o aprendizado histérico for considerado como um processo no qual os aprendizes 120 Jorn Risen adquirem a capacidade de estabelecer um equilibrio argumentativo entre rela a experiéncia e relagdo ao sujeito. Por meio da argu- mentacao, ¢ dificil que a experiéncia historica se esvaia em saberes fracos cm interpretagio e orientacao. A argumentacao assegura, ade- mais, que 0 modelo de interpretaco e o quadro de orientagdio perma- negam abertos @ experiéncia e flexiveis. As operagdes da consciéncia histrica devem ser consideradas, organizadas e influenciadas, como aprendizado historico, primeiramente sob 0 ponto de vista da aqui- sigdo da competéncia argumentativa. Essa competéncia deve incluir as trés dimensées, experiéncia ou saber, interpretagdo ¢ orientagao, Trata-se de introduzir ¢ de manter, em equilibrio, as duas grandezas relacionadas: a hist6ria como dado objetivo nas circunstancias da vida atuai e a histéria como construte subjetivo da orientagao prati- ca movida pelos interesses, Esse equilibrio esté “formado” quando, em principio, corresponda ao nivel argumentativo da historia como clencia, Nao se pensa aqui no profissionalismo dos historiadores, mas no nivel cognitive requerido para o uso de principios e modos do pensamento histérico ¢ para a reflexio sobre eles. Trata-se da raz3o que a historia como ciéneia pode introduzir e desenvolver, sempre que nao se diferencie e especialize come racionalidade metédica da pesquisa histérica. Nesse caso, ela se afastaria inevitavelmente da vida pratica ¢ das formas ¢ contetidos apropriados e necess4rios a orientagao racional no tempo. Pelo contrario, aqui se trata de uma razio adequada 4 praxis do pensamento histérico. Ela se encontra nos modos fundamentais ¢ universais da garantia de validade da nar- rativa historica, dos quais emerge a histéria como ciéncia em seu relativo distanciamento das preocupagées e caréncias da vida pra- tica.”’ Nao obstante, ela sempre deve se referir a essa vida pratica, sob pena de perder sua vivacidade. Formacdo € 0 modo no qual a historia como ciéncia efetua essa referéncia. O que pode ela aqui, no que tem de mais proprio como raziio, trazer 4 vida pratica? "Ver I, 95 ss. Histéria viva 121 A forca cognitiva da cultura histérica Gostaria de definir como “cultura histérica”, 0 campo em que os potenciais de racionalidade do pensamento histérico atuam na vida pratica. Essa expressdo quer deixar claro que o especificamente historico possui um lugar proprio e peculiar no quadro cultural de orientagdo da vida humana pratica. Seria equivocado atribuir os pro- blemas especificos de orientacdo histérica da vida humana pratica exclusiva ou principalmente ao campo da cultura politica, embora arelacao pratica interna do pensamento histérico aparega sobretudo como politica. Assim, os historiadores polemizam sempre ~ ¢ no é de hoje” — dentro dessa relagdo politica do saber histérico, sobre ela ecom ela.” A cultura histérica € também mais do que 0 dominio do conhecimento manejado pela ciéncia da histéria na aplicagao pratica do saber histérico, e diferente dele. Assim, a historiografia, como fator necessario do processo histérico de conhecimento, ja contém fatores estéticos e retéricos, que habilitam o saber, como construto cognitivo, a aplicar-se praticamente. A cultura hist6rica nada mais ¢, de inicio, do que o campo da interpretago do mundo e de si mesmo, pelo ser humano, no qual devem efetivar-se as operagées de constituicgao de sentido da expe- riéncia do tempo, determinantes da consciéncia histérica humana. E nesse campo que os sujeitos agentes ¢ padecentes logram orien- tar-se em meio as mudangas temporais de si préprios e de seu mun- do. Para caracterizar 0 papel especifico que a ciéncia da historia pode desempenhar, como potencial de racionalidade dessas ope- tages, € necessario distinguir (artificialmente) 0 campo cogniti- vo coberto por esse potencial do néo-cognitivo. De outra maneira % Lembro-me, por exemplo, da polémica do anti-semmitismo em Berlim (Ver W. Boehlich (Org). Der Berliner Antisemitismussireit. 2. ed. Frankfurt, 1988) ea discussao em torno do juizo histérico de Gervinus sobre a fundagéo do Impé- io, Ver W. Boehlich (Org.). Der Hochverratsprozess gegen Gervinus. Frankfurt’ Meno, 1967. Ver também J. Risen. Gervinus” Kritik an der Reichsgriindung. Eine Fallstudie zor Logik des historischon Urteils. In: H. Berding et alii (Org,). Kom Staat des Ancien Régime zum modernen Parteienstaat. Fesischvift fiir Theodor Schieder, Misnchen, 1978, p. 313-329. » Ver nota 3. 122 Jorn Rusen nao se conseguiria deixar claro de que racionalidade as pretensdes histéricas de formagcio carecem, e coma qual a ciéncia da histéria apresenta seus saberes a vida pratica. Na orientagdo histérica da vida Ppratica existe nfo apenas a caréncia de uma razdo operante no de- sempenho cognitivo da ciéncia da histéria, mas igualmente outras. caréncias, a que o saber histérico tem de responder. Essas outras caréncias sao sobretudo politicas ¢ estéticas. (Deixo aqui de lado as religiosas, para simplificar 0 tratamento da questo. As caréncias. ideolégicas” so uma variante das cognitivas.) E trivial afirmar que o saber histérico atinge a dimensio estética ca dimensao politica da orientaydo pratica da vida. O que precisa de esclarecimento é como esse saber responde, aos pontos de vista especificamente estéticos e politicos da orientago pratica, com a pretensio de racionalidade cognitiva propria a historia como cién- cia. Sem esse esclarecimento, a formacao histérica, como conjunto de competéncias culturais, ficaria solta no ar. Onde e como poderiam e deveriam atuar essas competéncias? A expresso “cultura histérica” articula sistematicamente o aspecto cognitivo da elaboragdo da memoéria histérica, cultivado pela ciéncia, com 0 aspecto politico e estético dessa mesma elabo- rack. Um aspecto nfo pode ser pensado sem 0 outro, pois a relagao entre cles j4 € uma questo propria a razio, na aplicacdo pratica do saber histérico. Ciéncia, politica e arte podem instrumentalizar-se mutuamente no campo da consciéncia histérica (como fator cultu- ral da orientagiio existencial), abreviando ou mutilando a dimensio do saber histérico por elas adotada. Isso acontece quase sempre, quando as diversas dimensdes da cultura histérica nio sio distin- guidas e, com ingénua naturatidade, utiliza-se uma sem levar em conta as demais ¢ suas respectivas relagdes. Elas podem, todavia, compensar essa tendéncia, ao completarem-se reciprocamente em seus potenciais de racionalidade e, em conjunto, os incrementa- rem. Essa argumentaco pode parecer surpreendente, pois até agora 86 se falou da raz&o que constitui a histéria como ciéncia, ou seja, Vee p. 77 ss. Historia viva 123 sé se falou dos principios que asseguram a validade do conhecimen- to historico. Haveria ent&o uma outra razio? Faz sentido falar de uma 1az4o especificamente politica ou de uma razdo especificamen- te estética? Essa fala sé parece sem sentido aqueles que jd estejam previamente convencidos de que somente a ciéncia pode pretender dispor da razZo humana. Um olhar nao enviesado sobre essa questo revela onde e como se encontra a razio na vida humana pratica, ao se reconhecer que se pode chamar de “racional” tudo o que ocorre “por boas razées”. Nessa perspectiva entende-se nao ser sem sentido falar de uma raz4o politica e de uma razio estética. Assim como raz4o, na dimensdo cognitiva da consciéncia his- torica, significa uma determinada maneira de assegurar sua vali- dade, pode-se falar da razdo politica, quando se trata da manei- ta de assegurar a validade de dominagiio e poder, de garantir sua legitimidade. Assim como so os principios da racionalidade meté- dica que, na dimensdo cognitiva, definem a razio como garantia cognitiva de validade, na dimensao politica da consciéncia hist6- rica (que exerce um papel importante na legitimagao do poder), os principios da garantia juridica e do controle do poder devem ser considerados como a raz4o politica da legitimacdo. Assim como a racionalidade metédica do conhecimento histérico pode ser deta- lhada nas regras do método historico e sua aplicagdo na pesquisa demonstrada, o principio da legitimagao juridica do poder pode ser detalhado como sistema de direitos do homem e do cidadao e demonstrado na pratica da critica e da legitimagao do poder e de sua organizaco social. Pontes de vista analogos de uma razdo especificamente esté- tica podem ser explicitados e¢ fundamentados. $40 os principios da apresentacdo formal, que fazem dos saberes histéricos fatores to eficazes da orientagio histérica, em que o poder se enraiza e © pensamento aparece como meio do entendimento mituo. A ana- Jogia que corresponde aos principios da racionalidade metédica e a racionalidade juridica esta na autonomia da formatacao estética como fator constitutivo do sentido narrativo. Também se pode falar em razfio com respeito a relacdo das trés dimensdes da cultura hist6rica entre si. Ela se refere ao reconhecimento 124 Jorn Riisen teciproco da respectiva autonomia e, a0 mesmo tempo, ao reconhe- cimento da dependéncia mutua. Isso implica, em primeiro lugar, renunciar 4 instrumentalizagao matua e significa, ademais, que os principios da garantia de validade e da coeréncia formal devem ser formulados de maneira a se reforgarem uns aos outros. Isso deve ser pensado de trés maneiras: que o entendimento histérico é estimula- do pelo sentido estético da perceppao histérica, que o desempenho cognitivo reforca o enquadramento juridico da vontade de poder e que a vontade politica de poder serve 4 descoberta da verdade (0 que no pode ser excluido a priori). No trabalho de meméria da consciéncia histérica, razio é mais do que um mero conjunto de principios formais de verdade, poder e beleza (para designar as trés dimensécs com essas categorias tra- dicionais). Racionais sao, naturalmente, também os contetidos da memiria historica, utilizados para a orientacdo no presente e para © auto-entendimento, seja refletidos cognitivamente, empregados politicamente ou formatados esteticamente. Essas qualidades ra- cionais dos conteidos podem ser descobertas. Elas consistem em todos os processos do passado que venham a ser qualificados como humanizacao: a supresso da necessidade, do sofrimento, da dor, da opressiio ¢ da exploragao; a libertagiio dos sujeitos para a autonomia; a elaboragao de padres racionais de argumentacao; a liberacaio das relacdes dos homens entre si e no mundo no jogo das caréncias dos sentidos, e muito mais. So racionais as memorias histéricas que Preservam esses processos ou evidenciam suas faltas e falhas no passado. Trata-se agora de demonstrar e explicitar esses pontos de vis- ta formais e materiais da razdo histérica na relagdo pratica de um determinado saber histérico como formagao. Como atua, politica e esteticamente, a forca cognitiva da formacao histérica? Nao tenho a intenedo de fazer o inventario do imenso cipoal do agir politico ¢ estético, para mostrar o que a formagao histérica pode ter produzido nele. Prefiro abordar o campo mais restrito da cultura histérica e perguntar como suas dimensdes politica e estéti- ca se articulam com a cognitiva. Assim como a formagio histérica foi explicitada nos pardgrafos anteriores, deve ter ficado claro que Histéria viva 125 ela encerra em si elementos politicos ¢ estéticos. Desejo descrever esses elementos, acompanhando a questo central de como seus po- tenciais especificos de racionalidade podem vir a ser influenciados positivamente pelo desempenho cognitivo da formago histérica. Arclag&o do aspecto cognitive ao aspecto politico da cultura hist6érica pode ser discutida tanto no plano forma! como no ma- terial. No plano formal aborda-se a maneira como se relacionam a argumentagdo racional-cientifica e a politica e como podem ser influenciadas pela formagdo histérica produzida cientificamente. No plano material, trata-se de saber se ¢ como os potenciais racio- nais, introduzidos na cultura hist6rica pela hist6ria como ciéncia, podem atuar produtivamente na dimensdo especificamente politica da cultura historica. Existe, na relagdo entre ciéncia e politica, uma tendéncia espon- ténea 4 instrumentalizag&o mdtua. Ela aparece com freqiiéncia na forma da subsung&o de argumentos politicos aos cientificos, de sua absorgao pelos cientificos e vice-versa. Em ambos os casos ddo-se simplificagées e alteracdes da cultura histérica. Se a ciéncia subsu- me 0 lado politico da cultura histérica, as questées do poder traves- tem-se com o manto dos problemas da verdade, ¢ 0 resultado é um dogmatismo das interpretagdes historicas com fungdes de orientagaio impositivas. Questées de poder inoculam os problemas da verdade, ea verdade transforma-se em ideologia. Um exemplo bem conheci- do é o marxismo-leninismo ortodoxo, no qual as decisdes politicas, ao final de contas (ideologicamente), deveriam estar baseadas em entendimentos verdadeiros. Nesse caso, desaparecem a abertura e a diversidade das experiéncias historicas ¢, por fim, o carater discur- sivo de suas interpretagdes. Inversamente, se for a politica a absor- ver a ciéncia, os critérios de sentido determinantes do pensamento histérico perdem sua aptidéo 4 verdade e passam a ser vistos como mera expressdo de jogos de interesse e ambigdes de poder. Isso leva necessariamente ao decisionismo. O poder perde a perspectiva da verdade, toma-se cego, obtuso, fechado sobre sua propria vontade. A ciéncia toma-se relativista, envolvendo, com o véu da aparente fidelidade aos fates, as legitimagdes histéricas almejadas politica- mente. Os pontos de vista decisivos para 0 pensamento histérico, 26 Jorn Risen sentido e significado, que sao atribuides ao passado como contetdo experiencial do presente e do futuro, passam a ser vistos primaria- mente como questio politica e somente racionalizados secundaria- mente como ciéncia. Para isso nem sempre é necessiria pressio politica sobre a ciéncia - nado raro sfo os proprios historiadores profissionais que adotam os pontos de vista politicos tipicos de seu tempo, utilizam-nos como pardmetros cientificos da interpretacdo histérica, defendem-nes no espa¢o publico com a autoridade de seu prestigio cultural, obtendo assim poder politico. Essas tendéncias naturais da instrumentalizacéo miitua da ciéncia ¢ da politica na cultura politica podem ser superadas siste- maticamente pela formacao histérica. Os interesses politicos ¢ as pretensdes cientificas de verdade nao se excluem nem se absorvem. mutuamente, mas mantém-se em uma relacdo complexa, na qual os interesses constituem a nervura da ciéncia e, inversamente, a ciéncia se tora a instancia critica das ambigdes politicas de poder®! Me- diante a formaciio, a ciéncia introduz, na luta politica pela formata- g4o cultural da meméria histérica, o meio pacifico da comunicacao conceitual, argumentativa, metodicamente regulada. Como motor de uma inquietagao discursiva, a comunicag&o nao reforga o poder, idcologicamente, com a verdade, tornando-o ainda mais poderoso, totalitario mesmo. Pelo contrario, ela abre o discurso do poder a todos os participantes, ao recorrer a uma razio que tem de ser atri- buida a todos os que se encontram envolvidos pelas circunstancias do poder e da dominagao. E com essa razdo que se pode e deve criticar a legitimidade dessas circunstancias. A ciéncia é capaz disso na medida em que trabalha, em seus procedimentos cognitivos, com questées, pontos de vista e perspectivas das fontes, nas quais os interesses politicos se encontram encarnados cognitivamente. “Ora, a politica! Mas quem pode viver sem ela?” A politica esta inserida nos procedimentos metddicos do conhecimento cientifico na medida em que sua vontade de poder, 3! Ver 1, 126 ss. *“T. Mommsen. Carta de 8 de marco de 1896, citada em A. Wucher. Theador Mommsen. Geschichisschreibung und Politik. 2. ed. Gottingen, 1968, p. 50. Historia viva 27 determinante do comportamento existencial, é sistematicamente rompida pela vontade de verdade, determinante do sentido existen- cial da ciéncia. A ciéncia impée 4 politica a otica da verdade, a fim de que aqueles que tém de conviver em meio ao poder se enten- dam mutuamente, sem necessariamente tender a ¢liminar-se uns aos outros. A fragilidade de uma tal moderagao cognitiva da forga de vontade politica é evidente. Perguntar se ela nao passaria de mera aparéncia ou de uma esperanga justificada no é um problema ape- nas formal, mas sim substantivo. Na perspectiva substantiva, tet-se-ia um arranjo ruim quanto ao potencial de racionalidade da formagao histérica na dimensio politica da cultura histérica, se o agir politico 4 busca de poder ¢ dominac%o nao dependesse de algo como a razio, pela qual se obte- Tia o assentimento dos atingidos por essa busca. “Legitimidade” é a categoria que exprime essa raz4o interna do politico, na qual a forca cognitiva da formacio histérica se afirma, no ambito da cultura his- térica. Aqui, saber historico é essencial ¢ necessario. Nao é possivel pensar nenhum tipo de dominagao cuja legitimagao nao recorra aos saberes histéricos. Os participantes do poder e da dominagao esti- pulam suas rclagdes muituas ao longo do tempo com argumentos histéricos, € as internalizam sob a forma de identidade histérica. A conseqiiéncia pratica da formagao historica consiste, nesse caso, na flexibilizagio comunicativa dos argumentos histéricos legitima- dores. Assim, por principio, todos os participantes tem de poder argumentar. (Se eles, de fato, 0 podem, é uma questao de reforcar politicamente a formagao histérica.) A legitimidade histérica perde, assim, sua tendéncia politica demasiado natural ao forgar a constru- ¢ao de consenso (inclusive a internalizacdo das coergées a juntar-se em comunidade sob o peso das formas dominantes da identidade historica), Essa coergao é rompida (em tese) e transformada (em tese) na liberdade de adesdo mediante a memoria histérica construi- da por si mesma. A dominagao, na cultura historica, racionaliza-se (sem que, com isso, os que se atribuem a racionalidade por compe- téncia cientifica, logo se alcem a dominadores). Com os principios centrais da moderna legitimagio da domi- nagao politica — os direitos do homem e do cidadao -, pode-se 128 Jorn Risen demonstrar, em pormenor, o que significa a flexibilizagao.* Os direi- tos do homem e do cidadao ganham, com ela, uma dimensao histoni- ca prdpria, uma dinamica temporal intemma, que permite constatar, de um lado, que seu potencial de humanizagao da dominagao politica de longe ainda nao esté esgotado e, de outro, que pode provocar as necessarias mudangas politicas. Essa historicizagao seria o contrario da relativizagdo da validade. Pele contrario, ¢ ela que pode levar ao reconhecimento sistematico da diversidade das culturas no univer- salismo de sua validade. O efeito politico do saber histérico pode ser demonstrado igualmente pelo exemplo da identidade nacional. Sem as forgas cognitivas da formacao histérica, a identidade nacio- nal tende a se tornar uma relago mental intema ¢ extema dotada de potencial agressivo nada negligencidvel, que, sob determinadas circunstancias, liberaria energia destrutiva. Com sua competéncia expericncial, interpretativa ¢ de orientagiio, a formagio histérica pode modificar a negatividade dessa forma bruta da identidade na- cional. Esta pode ser transformada pelas formas complexas do pen- samento histérico exemplar, critico e genético e expandir, assim, 0 alcance e a intensidade da experiéncia histérica. Ao final de um tal processo de transformagao da formaciio, ter-sc-ia uma auto-afirma- ¢4o nacional que compteende a alteridade das outras nagdes como desafio para reforcar sua propria identidade pelo reconhecimento dessa alteridade. Ranke pensava nesse tipo “formado” de nacio- nalismo, ao escrever “que na passagem das diversas nagdes ¢ dos diversos individuos a idéia de humanidade e¢ de cultura ... [tem-se] um progresso efetivo”.** Essa idéia (historicista) da multiplicidade na unidade reforga, na cultura histérica, as posigdes e as energias mentais que véem a alteridade dos outros no como ameaga ao pré- prio eu, mas como sua confirma¢ao (pelo reconhecimento miituo). No que diz respeito ao papel da formacao historica na dimen- sdo esiética da cultura histérica, tem-se também aspectos formais ** Ver alguns argumentos nesse sentido em J. Riise. Menschenrechte fur alte? Uber die Universalitit und Kulturabhangigkeit der Monschenrechte, Perspehtiven. Zeitschrift fir Wissenschaft, Kultur und Praxis, 2, 1986, 0.7, p. 5-9. *L. Von Ranke. Uber die Epochen der neueren Geschichte. Historisch-kritische Ausgabe, edit. por T. Schieder/H. Berding (Werk und Nachlass, v. 2), Miinchen, 1971, p. 80. Historia viva 129 ¢ materiais. Assim como na relaciio entre dimensiio cognitiva e di- mensio politica, também na relagao entre a dimensio cognitiva ¢ a dimensao estética dao-se tendéncias naturais 4 instramentalizagio nnitua. Os historiadores partilham quase naturalmente a tese de que a estética, no Ambito do pensamento histérico, s6 tem uma fungio legitima: a de “transpor” ou “intermediar” conteddos cognitivos para formas esteticamente agradaveis. Com isso, a estética é torna- da uma didatica a priori, desprovida de seu peso proprio na cultu- ta histérica. A arte retrata o que os politicos querem ¢ os cientistas pensam. A instrumentaliza¢ao, todavia, deixa totalmente de fora a qualidade estética da consciéncia histérica. O que sobra é um resto nfio-instrumentalizdvel. Quanto mais a arte é colocada a servigo dos conhecimentos cientificos ou da legitimaeao politica, tanto mais cla desenvolve seu sentido estético proprio e o contrapée a toda ins- trumentalizaciio. A arte defende, dessa maneira, o peso préprio da percepcao sensivel contra seu aproveitamento cognitivo e politico. No processo dessa defesa, a dimensdo estética da memoria historica pode vir a desvincular-se, na cultura histérica, de modo certamente prejudicial, de seus fatores cognitivo e politico. O meio da percepgdo sensivel pode acabar sendo a tinica mensagem da historia, que se tor- naria independente dos contetdos cientificos ¢ politicos, auto-repre- sentando-se e instrumentalizando os conteudos, ou seja, as histérias a serem narradas, como mero meio para o fim do sentido estético. A forma estética transforma-se, ela propria, em conteddo histéri- co, tomando secundarios e, em certo extremo, vazios mesmo, os aspectos politico-praticos e cientifico-cognitivos das apresentagdes histéricas. Essas tendéncias podem ser evidenciadas nas tentativas de apresentar a historia nas exposigdes. Por mais que as montagens e sua dramaturgia sejam necessarias, quando se tenciona aumentar a qualidade sensivel das experiéncias e das interpretacdes histéricas (ou seja: expor a histéria aos sentidos), no resta ditvida de que elas, sozinhas, bastem para apresentar o que ha de especificamente hist6- rico na experiéncia e em sua interpretacao formatadora* 35 Sobre o conjunto dessa problematica, ver J. Risen; W. Emst; T, Griitter (Org). Geschichte sehen. Beitrdge zur Asthetik historischer Museen (Geschichtsdidaktik. Studien, Materialien NF, v. 1). Pfaffenweiler, 1988. Um exemplo especialmente 130 Jorn Riisen Se o meio da percepeao sensivel se libera de sua instrumentali- zagao pela ciéncia ¢ pela politica, liberam-se entdo também as possi- bilidades de formatacao que se constituem nele, assim como se abre um espaco genuino de experiéncia e significacdo da histéria, mas a um alto prego. O poder das imagens tende a extrapolar o pensamento eacamuflar as ambigées politicas de poder. Ao se opor 4 ciéncia e 4 politica, 0 sentido estético proprio da cultura histérica acarreta a irracionalidade e a despolitizagdo da consciéncia histérica nos gru- pos sociais em que esta constituido esteticamente. A fascinacdo sensivel da experiéncia histérica nao admitiria mais esclarecimento algum politico ou cientifico-racional. As conseqiténcias de uma estética que, subversivamente, se opée as pretensdes da ciéncia ¢ da politica sao problematicas. Sem- pre que a identidade hist6rica se forma ou se enraiza nos sentimen- tos profundos dos sujeitos, perde disposig¢des essenciais 4 orienta- go politica e a refiexdo racional. O mesmo vale para a capacidade ¢ aptidio dos sujeitos para a experiéncia historica. A alteridade do tempo toma-se ocasifio de fascinio estético ou de uma fruigdo sem conseqiiéncias para uma orientagdo realista da propria vida prati- ca. Pelo contrario, priva o quadro de orientagio da vida pratica de elementos essenciais da experiéncia histérica e da constituicfo de sentido. No minimo, a experiéncia histérica — introduzida por meio da percepedo sensivel auténoma no quadro histérico de orientacgdo da vida pratica ¢ agregada aos processos de constituigao da identi- dade histérica — ¢ desviada dos setores da vida humana pessoal e coletiva, nos quais as relagdes de poder e a argumentagao racional desempenham algum papel, Em suas Consideragdes de um apolitico, marcante de uma estética dissociada ds historia ¢ 0 filme de H.-J, Syberberg sobre Hitler. O aplauso que esse filme recebeu da critica artistica se deve 2 maneira como recupera a especificidade estética da arficulagao e significagio da experiéncia historica. Por outro lado, nao se pode deixar de chamar a atencado para o fascinio estético exercido pela forga incontida das imagens no processo de tomar presentes as experiéncias historicas — em meio a um relag3o tortuosa com 08 conteiidos cognitivos ¢ politicos que, de tode modo, sfio co-mediados ¢ co-transmitidos. Ver também Saul Friedliinder. Kitsch und Tod. Der Widerschein des Nazismus. Mimchen, 1984; A. Kaes. Deutschlandbilder. Die Wiederkehr der Geschichte als Film. Miinchen, 1987. Histéria viva BI Thomas Mann descreve a tipica atitude alem& de uma intimidade protegida pelo poder, um bom exemplo do que pode causar uma tal rejeic¢do mutua da formagiio estética, da politica ¢ da ciéncia, no Ambito da cultura politica.** Uma estética fraturada da experiéncia histérica pode provocar um verdadeiro bloqueio quando se trata de processar discursivamen- te as experiéncias atuais de crise ¢ de as transpor, mediante a mem6- ria histérica, em estratégias de ago politica. A aparéncia sedutora pode desvirtuar a visao da realidade. A histéria, que poderia servir de contetido da argumentagio racional e da orientagio politica, per- de em sua forma estética justamente a forga orientadora, cujo uso seria necessario para enfrentar os desafios do presente. Inversamente, ela funcionaria como uma contribuigao decisiva para uma estrutura cultural na qual se poderia sobreviver bem, na beira do abismo pds- moderno. Seria naturalmente equivocado tentar evitar essas conseqlién- cias nefastas da estética de uma consciéncia hist6rica que se subtrai ao controle da instrumentalizacao politica ¢ cientifica, ao tornar esse controle ainda mais rigido. Isso sé reforgaria o carater subversive da estética na cultura histérica. A dimensio estética ndo se deixa redu- zir as fungdes de efetivagiio dos interesses politicos e das interpreta- des cientificas. Como meio proprio ¢ peculiar da experiéncia e da interpretagao histérica, ela se caracteriza por um manejo especifico da histéria. As tentativas, ininterruptas desde Platio, de transformar os artistas em desenhistas das mensagens cognitivas e politicas e de os exilar, em caso de recusa, da memoria publica, fracassam em trés aspectos: no carater de principio, do de originalidade e no de indis- pensabilidade da arte como meio da interpretag¢4o humana de si e do mundo, assim como da articulagfio de suas caréncias. A formagac histérica assume, na cultura historica, a importante tarefa de reconhecer e valorizar o peso proprio dos fatores estéticos nO manejo interpretativo da experiéncia historica. Deve-se deixar es- paco 4 faculdade representativa de lidar livremente com a experiéncia do passado. Essa liberdade deve estar relacionada as coergdes das %°T, Mann. Beirachtungen eines Unpolitischen. Frankfurt/Meno, 1956. 132 Jorn Risen ambi¢des politicas de poder ¢ ao rigor racional da meméria histérica. Dessa maneira, amplia-se o livre manejo das experiéncias histéricas ¢ das interpretacées que orientam o agir. A estética filosdfica sempre teve razao em alertar que esse manejo pela faculdade representativa é um fator essencial da liberdade humana. A arte confere a elabora- gao da memoria pela consciéncia histérica um potencial de sentido que pettence 4 vivacidade de toda cultura histérica.?’ Isso certamente no quer dizer que a arte possuiria a competén- cia originaria da constituicdo de sentido na cultura histérica.® Uma competéncia dessas ja € problematica desde 0 inicio, e nao s6 para o campo restrito da consciéncia historica. Com a autonomia da arte no processo da modernizagiio, da-se a problematizag4o constante dessa competéncia, de maneira que a propria arte teria de se acusar de mentirosa, se a reclamasse exclusivamente para si. Esse limi- te de principio da atribuigfo estética de sentido ao significado da experiéncia histérica abre a dimensio estética da cultura histérica a uma relago produtiva as dimensGes cognitiva e politica. O sentido histérico sé é articulével numa relaco mitua aberta, na qual a vida pratica dependa de orientagao histérica. A formagdo histérica, pos- sibilitada pela historia como ciéncia, pode assegurar essa abertura da relac4o mitua das trés dimensées da cultura histérica. Quais os limites dessa abertura? Essa questio tem a ver com © fato de que os sentidos constituidos pela arte dependem de uma imaginac&o produtiva, cujo estatuto e cujo papel na cultura histéri- ¢a sdo controvertidos. Dever-se-ia pensar que estaria claro que os potenciais de racionalidade introduzidos pela ciéncia da histéria na cultura histérica encontram seus limites absolutos na circunstancia de que a constitui¢éo de sentido dependeria da ultrapassagem dos limites experienciais do pensamento histérico. A arte é uma articula- ¢40 do supervit intencional proprio 4 vida humana pratica, que vai além da facticidade das circunstancias da vida ¢ do que mera- meate ocorreu. Ela abrange espagos de articulacado de caréncias ¢ de constituigao de sentido que vio além do horizonte experiencial » Ver J. Rasen. Asthetik und Geschichte (15). * Ver p. 77 ss. Historia viva 133 da consciéncia histérica. Isso tem algo em comum com a religiao. Arte e religio, como fontes de sentido, viabilizam o salto para 0 meta-histérico. Pertencem, por certo, ao contetdo da constituig4o historica de sentido, jé que sao parte integrante da experiéncia his- torica, e como tal atuam também, na cultura histérica, vinculadas ao meio da experiéncia e da interpretagio histérica. Elas surgem como experiéncias, cuja interpretagio histérica aparece como sepa- rada de suas fontes peculiares de constituig3o de sentido. Por que isso? Porque a constituicdo histérica de sentido, de que o potencial de racionalidade da ciéncia da historia se apropria, nfo se da por forga da pretensdo salvifica religiosa nem pela imaginagfio especi- ficamente artistica. A consciéneia histérica, entéo, com os potenciais de racionali- dade da cultura histérica, nao viria a limitar a vida da arte e da reli- gido, como fontes de sentido, a mera lembranga do passado, sabendo que isso nao é suficiente para sustentar a for¢a que esse passado teve quando ocorreu? A cultura historica, afinal, nao seria apenas um reino de sombras, em comparacdo com os processos de inovagiio cultural, nos quais o tempo renasce, a vida humana renova-se no que nunca se previu historicamente, a memoria é sempre superada? Enfim, a capacidade de inovag4o da cultura histérica nao dependeria dessas constituigdes de sentido meta-histéricas, que reduz racional- mente ao discurso argumentativo, mas que jamais consegue substi- tuir pela razio? Essas questdes apontam para um limite fundamental da razio, que a ciéncia da historia traz para a cultura histérica de seu tempo. Simultaneamente ela remete a algo de muito essencial para a razdo: a capacidade de inovagdo da propria cultura histérica, sua vivaci- dadc, pois, depende desses mesmos potenciais de sentido, de que a formasao histérica nado € senhora. Quer isso dizer que a historia sé & viva enquanto absorver fontes de sentido meta-historicas? Deve competir a uma teoria da histéria, que trata da capacidade racional do pensamento histérico como processo cognitivo e como fator da vida pratica, incluir o meta-historico em seu olhar sobre os limites da razio. Conclusdo Utopia, alteridade, kairos - 0 futuro do passado A sabedoria ndo ¢ 0 tiltimo irunfo da sabedoria. Pato Donald! wu $0 08 que assim cantam ou beijam mais do que os sabios conhecam ... Novalis? A formagav historica aumenta as chanecs de racionalidade da cultura historica pela abertura 4 experiéncia, pela sensibilidade estética, pela reflexdo politica e pelas fundamentagées discursi- vas. Ela depende, nesse processo, dos potenciais de sentido que a memoria histérica conserva e renova em seus contciidos. A pre- tensiio de racionalidade da formacao histérica articula-se sempre com o fato de o sentido histérico ter sido instituido na experiéncia histérica. A formagao histérica, contudo, nao se satisfaz em ape- nas continuar a reproduzir esse sentido jd disponivel. Isso somente poderia acorrer ao elevado prego do descarte, altamente restritivo, da experiéncia atual do tempo, que problematiza as circunstancias e as ordens dadas da vida. Os critérios de sentido que orientam 0 agir, objetivamente inseridos nas circunstincias da vida, carecem de reelaborago ativa e produtiva na meméria historica, na qual se refletem as provocadoras experiéncias do tempo atual, Sera possi- vel que essa reelaboracdo produtiva dos critérios de sentido ocorra por intermédio da prépria consciéncia histérica, ou esté ela sermpre ' Mickey Mouse n. 43, p. 24, outubro de 1978. 2 Novalis. Wenn nicht mehr Zahlen und Figuren. In: Novalis. Werke, Briefe, Doku- mente (ver nota 2, Cap. 2), v. 1: Die Dichtungen. Heidelberg, 1957, p. 461 136 Jorn Rasen presa ao sentido que Ihe é dado pelo passado que relembra? Estaria 0 trabalho de memédria da consciéncia histérica desconectado das fontes especificas de sentido a que os homens recorrem, quando Superam as circunsténcias e condigGes impostas a seu agir, a fim de abrir possibilidades de algo inteiramente diverso? Estariam a meméria historia e seus potenciais de sentido em contradigao com a expectativa de sentido do futuro, que ultrapassa tudo o que se teve até agora? Como se relaciona a constituigdo de sentido da conscién- cia histérica com o futuro, como dimensfo temporal da vida pratica atual, que justamente no se reduz ao significado do passado para a orientagéio no presente? A constituigdo de sentido da consciéncia humana, aplicada ao tempo, nao se esgota na meméria, Dio-se saltos utdpicos para 0 futuro, que superam sempre 0 contetido factual do passado. E nessa ultrapassagem que reside seu sentido proprio: esses saltos vivificam a csperanga ¢ a nostalgia como impulsos importantes da autocom- preensdo humana ¢ do agir humano transformador do mundo. Eles fazem desses saltos fatores de orientagio existencial, que a cons- ciéncia histérica sozinha nfo conseguiria gerar. Os saltos utépicos para o inteiramente outro com respeito as circunstancias dadas da vida permitem identificar, exemplarmente, os limites racionais da cultura histérica e sua dependéncia das constituigdes meta-histori- cas de sentido. O inédito, no trabalho de constituigao de sentido da consciéncia humana, consiste justamente em que nela pode ocorrer um ato de transcendéncia de tudo o que ¢ dado. E nesse ato que refulge a possibilidade do inteiramente outro, a qual se insere, como elemento conformador, na organizacSo cultural das circunstancias dadas da vida. Uma forma comum ¢ corriqueira desse inteiramente outro é a utopia. Entendo por utopia, aqui, nao 0 género literdrio especifico do romance oficial do inicio do periodo modemo e seus desdobra- mentos até hoje. Para mim ha algo mais fundamental: um modo do manejo interpretative da interpretacZo de circunstancias dadas da vida? O pensamento utépico define-se pela negagao da realidade > Sobre 0 aleance do utdpico, ver W. Vosskamp (Ed.). Utopieforschung. Inter- disziplindre Studien zur neuzeitlichen Utopie. 2. ed. Stuttgart, 1982; Frankfurt, Historia viva 137 das circunstancias dadas da vida. Ele articula caréncias, na expec- tativa de circunstancias de vida nas quais desaparecessem as restri- ges a satisfacdo dessas caréncias. A constituigAo utépica de sentido pressupde que as condigées atuais do agir sdo irreais e que ¢ pos- sivel imaginar outras condigdes totalmente diversas. A suposigao da irrealidade das experiéncias atuais relevantes para o agir tem @ inten¢ao de considerar tais experiéncias como fatores de perturba- ¢&o de uma pratica ou vida desejada, suscitando assim um agit que descarte seus contetidos como restrigdes reais 4s oportunidades de agit. Ao neutralizar, ficticiamente, as circunstaéncias reais da vida, © pensamento utépice abre uma via para a orientac’o da existéncia humana, na qual representagdes de outras circunstancias de vida apareccm como expresso de caréncias de mudanca do mundo, mo- tivadoras do agir. Isso também se aplica 4s utopias “negativas”, embora essas parecam, a primeira vista, apontar para outro tipo de experiéncia. Elas chamam a ateng%o para um potencial de desenvolvimento das circunstancias e das condigSes empiricas da vida atual, nao ac neu- tralizar sistematicamente as experiéncias atuais, mas ao atribuir-lhes um forte peso na negagdo de possibilidades do agir. Mesmo assim, essas utopias sao representagdes que se tomnam plaus{veis ao abstrair sistematicamente da experiéncia. Essas representagdes consistem em extrapolagées de fatores do mundo da experiéncia artificialmen- te isolados. Assim, so plausiveis na medida cm que abstraem de outros fatores desse mesmo mundo da experiéncia. Elas enunciam o que seria o caso, se tal ou qual tendéncia evolutiva das circunstan- cias da vida atual se impusesse a outra, contraria ou restritiva, O pensamento utépico constréi, como orientagao do agir, repre- sentacdes da realidade social que nao esto mediadas como condi- cdo desse agir na experiéncia da realidade social. E nessa auséncia de mediag4o, nessa oposigéio mesmo entre orientagéio ¢ experiéncia, que esta o caracteristico do utépico. Ele habilita 4 critica das cir- cunstancias atuais da vida e a projetos de alternativas desejaveis, 1986. 2 v, Meu capitulo nessa obra (Geschichte und Utopie, v. 1, p. 356-374) éa base das reflexdes aqui apresentadas. 138 Jorn Risen que abrem um espago especifico de liberdade. Utopias so, por principio, exageradas. Articulam caréncias que reforgam sua dese- jabilidade pela superacao abstrata dos espacos de agdo previamente dados. Enunciam mais caréncias do que se poderia satisfazer sob as condigdes dadas. Por isso aparecem como ricas, em contraste com a pobreza da satisfacdo efetiva das caréncias. Sao constituidas de esperangas que vao além do factivel aqui e agora, sem que se ponha em cheque a factibilidade dessas esperangas. A plausibilidade de suas representagdes exageradas do que deveria ser, ou seu temor exagerado do que poderia vir a ser, baseia-se em duas razées. De um lado, a utopia enuncia caréncias e temores que os destinatarios reconhecem como seus. De outro lado, ela faz esperar a satisfac¢ao dessas caréncias (ou o afastamento dos medas ¢ temores) sob condi- ges que ndo pode indicar como contetidos da experiéncia real, mas que apresenta como possiveis. O recurso a condigdes possiveis do agir, que neutralizam a experiéncia vivida, fazem as constituigdes utopicas de sentido serem tanto exageradamente ricas quanto exageradamente pobres — pobres diante da riqueza da experiéncia do que o homem é e foi. (Nessa pobreza reside também o carater totalitario de determinadas formas de utopia, sempre manifesto quando a neutraliza¢ao ficcional-repre- sentativa da experiéncia de condigdes dadas do agir resulta no risco de uma pratica politica.) A consciéncia utépica baseia-se num superavit de caréncias com respeito aos meios dados de sua satisfacao. Ela possui a funcao vital de orientar a existéncia humana por representacdes que vio, por principio, além do que é, empiricamente, o caso. Utopias fun- cionam como sonhos da consciéncia histérica sempre que se trata de articular conscientemente (despertas), como orientadoras do agir, representagdes de circunstancias de vida desejaveis. As utopias sio, pois, os sonhos que os homens tém de sonhar com toda a forga de seu espirito, para conviver consigo mesmos ¢ com seu mundo, sob a condig&o da experiéncia radical da limitagdo da vida. Por serem exa- gerados, e destrutivos quando transpostos sem mais para a pratica ou quando transformam a liberdade de critica as restrigées 4 realiza- g4o dos desejos cm coergao institucional para realizar determinados Historia viva 139 desejos, esses sonhos sao por vezes proibidos. Quem os proiba por essas raz6es priva a vida do necessario exagero da esperanga. Sem tais sonhos os homens degenerariam. Impedi-los faria secar uma fonte vital das motivagées do agir. Como o agir humano nao pode ser pensado sem o superavit intencional de seus sujeitos, para além das circunstancias e condigdes de seu agit, importa afirmar que nada existe de mais irreal do que uma limitagao anti-utdpica das intengdes da vida humana quanto 4 sua reatidade. Por outra parte, esse superavit intencional, efetivado pela cons- ciéncia utépica, se perdcria numa cspécie de terra de ninguém para além das condi¢des concretas do agir, ou seja, deixaria de poder funcionar como intengao do agir, 0 que negaria a si mesmo, se — no plano utépico de sua auséncia de mediagiio — ainda continuasse pre- so as condi¢des empiricas do agir humano. A consciéncia utdépica, por forga da realizagao de sua funcdo originaria de orientagio exis- tencial, tem de ser criticada justamente por ser utépica. Com isso, 0 pensamento histérico entra no jogo. Por definigao, ele € critico da utopia, pois conecta o superavit intencional do agir humano as experiéncias acumuladas do que esse agit causou ou nao ao longo do tempo. As esperangas exageradas, com as quais as uto- pias sonham com o reino da liberdade, sdo por ele submetidas ao re- gime da necessidade, imposto pela forca domesticadora da memoria, que recorda o que foi o caso. Ele modera as constituigdes utépicas de sentido, a fim de fornecer uma base sdlida as representagdes do que teria sido o caso, sem a qual estas ndo seriam fatores da orientaciio do agir. A consciéncia histérica introduz, no quadro de orientagao da praxis humana, a experiéncia que o pensamento utdépico aban- dona e¢ neutraliza, em nome da esperanga. A consciéncia histérica ameniza, pois, o superavit de expectativas presente nas intengdes do agit. Conseqiientemente, os historiadores sio pouco apreciados por aqueles que tendem, em nome do futuro do inteiramente outro, a esquecer quo diferente foi o passado desse outro. O pensamento histérico opée © principio da realidade da experiéncia ao principio do prazer das articulagSes utépicas, exageradas, das caréncias. Esse * Ver 1,79. 140 Jorn Risen Pensamento contrapGe, 4 atracao das representagdes dos mundos desejaveis, prejudicadas pela pouca chance de realizagdo, o rigor da experiéncia, no qual as intenges prevalentes do agir da vida pratica atual, contrastadas com os exemplos do passado, tém de caber. Serd que, com isso tudo, nao sobrou nenhum elemento utdopi- co na constituico de sentido, no Ambito do quadro especificamen- te histérico de orientag’o da vida pratica atual? Essa quest&io nao inquieta aqueles que mantém suas caréncias, mediante rigido con- trole das articulagdes, dentro dos estritos limites das chances dadas de efetivago (embora seus sonhos lhes pudessem abrir caminhos melhores). Se a consciéncia histérica exilasse de si os potenciais de sentido das articulagdes exageradas das caréncias, privaria a vida humana pratica de um elemento de futuro, sem o qual ela afinal se tornaria desumana. O que seria da orientagiio do saber histérico sem © superavit de expectativa da relagao do homem com o tempo, ele- mento constitutivo de qualquer pensamento utépico? Se a historia Pudesse conformar-se em lidar com a utopia tio criticamente quanto na psicandlise freudiana se relacionam os principios da realidade e do prazer, teria de tratar da seguinte questo: o que seria ainda um ser humano, que perdesse seu prazer na existéncia por causa do principio de realidade da orientagio histérica dessa existéncia? A questo est4, pois, cm saber se a histéria nao vive também, em suas constituigdes de sentido, do superavit de expectativa que critica na utopia. Essa questdo nao pode ser descartada, pois 0 pen- samento histérico tampouco deixa intocada, como aparenta, a reali- dade das condigécs ¢ circunstancias dadas da vida. Afinal de contas, ela insere essa realidade no movimento de uma histéria. A histéria vai, para além das circunstancias presentes da vida, as passadas. Ela faz o presente dissoiver-se no passado, sempre constante naquele, mesmo se n&o como passado.’ Ela faz isso para poder interpretar as experiéncias do presente, as intengdes do agir e as expectativas do futuro, que esto de través com respeito ao ordenamento intencional do agir humano no fluxo do tempo, de mancira que as experiéncias ¢ as intengdes combinem. As circunst4ncias empiricas do agir, que 5 Ver 1,81 ss. Historia viva 141 a utopia negligencia como efetivas, em beneficio de outras possi- veis, sio inseridas pelo pensamento histérico no movimento de uma representacdo do fluxo do tempo que recupera o passado ¢ antecipa o futuro. Esse movimento engaja as condigdes dadas do agir em um fluxo do tempo, no qual o agir, suscitado pela caréncia e intencional, vai além do que é realmente o caso. O impulso para esse movimento no provém, naturalmente, das circunstancias do agir, mas das intengdes € expectativas que vio além do que é 0 caso, em direc ao que deve ser. Nessa medida, a historia é impulsionada, em sua fungdo orientadora, pelos mesmos superavits de intencionalidade que funcionam na utopia. A partir do superavit das intencdes do agir com relagdo as suas condigdes, e das caréncias com respeito aos meios de sua satisfagao, a historia nao faz faiscar, como a utopia, a esperanga de um inteiramente outro, mas provoca apenas a fagulha histérica da meméria de que tudo foi diferente, outrora. Isso nao quer dizer que a historia nao passe de utopia invertida, voltada para o passado. Uma concepgao dessas destruiria a relagaio constitutiva do pensamento histérico 4 memoria, como depésito da experiéncia. O outro da meméria, para o qual se volta o pensamento histérico, movido pela mesma forga de transcendéncia da intencio- nalidade que orienta o agir, como no caso da utopia, no é 0 outro de uma possibilidade vazia de experiéncia, preenchida aleatoriamente com nostalgia, medo, esperanga ou seja 14 o que for. O outro da his- tria ¢ a propria realidade, tal como tornado presente, pela meméria, como tendo sido passado. A critica 4 utopia, pelo pensamento histérico, nao se da pelo menosprezo do superavit da esperanca para além das condigdes restritivas, sob as quais ela se poderia realizar-se concretamente, em circunsténcias dadas. Antes, 0 pensamento hist6rico dirige esse superavit sob a forma de quest4o 4 meméria, de maneira a inter- pretar essas circunstancias dadas, com respeito 4 sua mobilidade no fluxo do tempo, a partir de seu potencial experiencial. Ademais, © pensamento hist6rico interpreta o presente 4 luz do passado de forma que as condigées dadas do agir de hoje, como temporalmente mutaveis, sejam inseridas no processo de sua superagao por um agit 142 Jorn Risen intencional ¢ esperangoso. Ei certo que, nesse proceso, 0 superavit de esperanca existente nas intengdes e expectativas, que orientam o agir, sofre restric¢des. Sua articulago utépica é qualificada por um “depende”. Nao desaparece, no entanto, intciramente, pois interpre- ta as circunstancias restritivas, no 4mbito da consciéncia histérica, como mutaveis. O superavit de esperanga ganha o lastro da mem6-~ tia plena de experiéncia. A histéria pode tomar a esperanca paciente e persistente. Ela transforma o superavit da utopia no das expectati- vas € intengdes, proprio 4 riqueza experiencial do passado. O trabalho de constitui¢io de sentido pela consciéncia histé- rica carece igualmente de utopias. O trabalho de interpretagio da experiéncia do passado precisa do impulse que provém do superavit intencional do agit bumano para além de seu horizonte experiencial. Esta presente, nos critérios determinantes de sentido, com os quais a consciéncia histérica interpreta a experiéncia do passado, algo do espirito que igualmente anima a utopia. Também o pensamento histérico encontra-se orientado pelas representacdes de um ordena- mento da vida humana no tempo, que ultrapassa as respectivas con- digdes atuais do agir. Por outro lado, distingue-se ele da utopia por nao ficcionalizar a realidade das condi¢des atuais da vida, mas por historiciza-las. A diferen¢a entre ambos consiste em que a historici- za¢ao faz com que a vontade humana de querer ser outro, ao longo do tempo, aparega como possivel, vale dizer, esperdvel. Aqui esta uma diferenca fundamental entre os critérios histéricos do sentido de uma representa¢ao universal do processo temporal e a utopia do inteiramente outro. Na consciéncia histérica empalidecem as imagens de um ser outro desejavel, tal como pintadas pela utopia. Pois a histéria, ao criticar a utopia, contrasta com o passado o impulso para ser outro, a fim de obter representagdes dos processos temporais compativeis com as circunstancias do presente ¢ cuja articulagdo com expecta- tivas e intencGes seja realista. Nisso tudo a representaco do outro, alimentada pelo superavit intencional da vida humana, obviamen- te nio desaparece. Ela apenas altera qualitativamente seu perfil: a utopia vazia de experiéncia torna-se uma alteridade plena de ex- periéncia. As condicées empiricas dadas do agir nfo s4o ignoradas, Historia viva 143 mas transformadas no outro de si mesmas mediante o passado nelas presente. O pensamento histérico deixa transparecer, por forga da me- moéria, no status quo das condigbes ¢ circunstancias dadas da vida, uma imagem de sua transformagdo no passado, com a qual se rompe a trilha do seu set-assim-e-ndo-de-outro-jeito. A pressio da factici- dade das circunsténcias atuais, na medida em que trava o agir com ancutralizagdo do superavit intencional, ¢ captada pelo pensamento histérico e canalizada pela memoria para as representacées do ser- outro, no tempo, que possibilitam o agir. O pensamento histérico faz do presente um outro de seu passado, em cujo reflexo aparece um possivel futuro, que nado poderia ser esperado ou buscado sem a hegagao exagerada das condigGes dadas do agir. Alteridade ¢ a melodia do passado, tocada pela consciéncia histérica para as circunsténcias presentes da vida, a fim de as pér para dancar. Elas precisam ser postas para dan¢ar, para que seus mo- vimentos sejam reconhecidos pelos participantes justamente como seus proprios, aqueles mesmos para além dos quais desejam ir, Elas precisam aparecer como algo que foi outro, para poderem ser avalia- das como algo que se torna outro. A alteridade da consciéncia histé- tica é, por assim dizer, o arranque cultural que os homens precisam dar, para conseguir ir além das condigdes dadas de seu agir, como o gostariam de fazer utopicamente, mas nao legram, pois a neutra- lizagao da utopia ocorre apenas ficticiamente, meramente negada em pensamento, sem que alcancem sua absorgdio ou supressiio total. A constituigdo de sentido efetivada pela consciéncia historica alte- ta (ne sentido de modificar ¢ de tornar outro) as circunstancias da vida presente ao projeta-las em seu proprio passado. A consciéncia supera essas circunstincias ao constatar que foram outras, antes de se terem tornado o que so no presente. E no movimento proprio ao fluxo do tempo que elas aparecem superam-se continuamente e tor- nam plausivel sua superagao também no futuro. Gostaria de exem- plificar esse processo. A Histéria cultural da Grécia, de Burckhardt, apresenta a antiguidade grega como uma criagao cultural universal. Burckhardt altera, assim, as circunstancias presentes de seu presen- te, a0 experimenté-las como uma ruptura cultural profunda, como o 144 Jorn Risen fim mesmo da cultura. Essa alteragéio aparece como a investigagao das origens do que esta em jogo no (seu) tempo atual, de maneira a tomar historicamente plausivel a esperanga de uma renovacio cul- tural universal.* Regra geral nfo sio os historiadores que enunciam o anscio pelo outro, que afinal possibilitam, mediante a experiéncia especifi- ca da alteridade do passado, chances realistas de agir. So os gran- des historiadores, com efeito, que se distinguem por uma determi- nada sensibilidade para cssc anseio ¢ para as mudangas no horizonte experiencial de seu tempo, mas se caracterizam sobretudo por sua capacidade de interpretar essas mudangas por contraposigdo ao pas- sado. E nessa transposigao das expectativas ¢ intengdes quanto ao futuro para a experiéncia do passado que consiste, afinal, a fungio orientadora da histéria. Para tanto sdo necessarios, todavia, modelos de interpretaco da experiéncia do tempo, que o pensamento histé- rico ndo tem como extrair somente das expectativas ¢ intengdcs do tempo presente, ao qual reage. Isso mostra mais do que suficiente- menite sua fungdo de critica da utopia. Tais modelos de interpreta- ¢4o tém de ser construidos no seio dos complicados processos de constituigao historica de sentido. E nesses processos que atua argu- mentagdo racional, forma constitutiva, por sua vez, da histéria como ciéncia. A razao é inserida, pois, como idéia reguiativa de uma for- ma de relacionamento humano, nas perspectivas orientadoras que fazem do passado uma historia orientadora da praxis ¢ constituinte de identidade. Com essa idéia a ciéncia da histéria refina seu olhar histérico sobre os processos temporais do passado, que podem ser interpretados como manifestagdes dessa razio. Ao mesmo tempo, porem, eles estéo sobrecarregados pelo lastro experiencial da des- 1az4o, que thes impdem esperancas e anseios orientadores do agir, contrarios as utopias. Pesa ainda mais a desraz4o que se tenha pro- duzido em nome da raziio. * Ver J. Riisen, Die Uhr, der die Stunde schlagt, Geschichte als Prozess der Kul- tur bei Jacob Burckhardt. In: K.~G. Faber/C. Meier (Org,). Historische Prozesse (Theorie der Geschichte, Beitrage zur Historik, v. 2). Miinchen, 1978. Ver ade- mais a investigagao profunda e cuidadosa de E. Flaig. Angeschaute Geschichte. 2u Jacob Burckhard's, Griechische Kulturgeschichte’. Rheinfelden, 1987. Histéria viva 145 Na idéia da racionalidade humana, determinante da histéria como ciéncia ¢ da formagdo histérica, encontra-se ainda uma utopia: arepresentagao de que a sociedade humana se efetiva mediante 0 re- conhecimento mutuo universal operado pela argumentagao racional. Expresso na forma de uma intengdo alteradora, 0 carater utopico des- $a representaco ¢ neutralizado. Ela se transforma no movimento da busca de si do pensamento histérico relacionado 4 experiéncia. Sera essa neutralizagao da utopia da razao a inica forma de a formacgado historica introduzir a razio como potencial de sentido no trabalho de memoria da consciéncia histérica? Sera o fim da utopia a Ultima palavra de um conhecimento histérico guiado pela idéia regulativa do uso da razio humana? Sera que isso implica também renunciar as formas utépicas de significagdo da ficcionalidade de uma eventual constituigao de sentido da experiéncia do tempo? A esse respeito cabem diividas. Sera que basta a idéia regulativa da histéria como universalizag3o do reconhecimento,’ ao longo do tempo, para produzir a alteragao (mudanga e¢ instituigdo da alteri- dade) da meméria histérica? A fungdo do pensamento histérico, de orientar no tempo, decorre da divergéncia entre experiéncia e expec- tativa, propria ao homem como ser-espécie, da constante inquieta- go do coracao humano, como diria Santo Agostinho. O impulso da alteridade pelo pensamento histérico depende do tipo e da medida do superavit de expectativas, ao qual reage criticamente quando este se exprime de maneira utépica. Ora, a formulagiio utdépica ¢ a ficcio- nalidade nela contida da representago do tempo so precisamente a forga desse superavit. Ao superar a experiéncia das restricées do agir, a utopia leva as expectativas as ltimas conseqiiéncias. Diante disso, a historia parece mais fraca do que o potencial de experiéncia da memoria que libera, com a critica 4 utopia. Ela subtrai 4s expec- tativas seu extremo utdépico, na medida em que seus cultores jamais tiram os pés do chao da realidade. No entanto — se é preciso andar (para manter a comparacao), ou seja, suprimir as restricdes do agir pelo préprio agir, de modo a poder satisfazer caréncias superavita- rias, é imperativo levantar os pés do chao. 7 Ver I, 125 ss. 46 Jorn Rusen Com outras palavras: a hist6ria necessita, por sua parte, a uto- Pia, a fim de poder produzir seu equivalente a utopia, sua alteragiio da experiéncia do tempo, ¢ cumprir eficientemente sua fungio de orientagdo existencial. Superdvits de expectativa s6 se consolidara como prdprias desse mundo pelas representacdes utépicas de um outro mundo. Seu excesso abre a histéria o direito de critica 4 utopia @ permite apreender novos campos de experiéncia sob novas pers- pectivas de interpretagdo. O potencial de alteragdo da historia atro- faria-se sem o desafio das utopias positivas e negativas. O que podem oferecer, porém, a histéria como ciéncia e€ a formagiio histérica como reforgo utopico da meméria histérica? A rigor, somente um principio da razao sob a forma de comunica- ¢40 conceitualmente articulada, relacionada 4 experiéncia, regulada metodicamente, impulsionada argumentativamente e direcionada ao consenso. Referida a vida pratica, uma idéia regulativa € fraca para reforgar a memoria histérica ¢ fazer dela elemento e fator da orienta- gao existencial e da tormagdo da identidade que determinam o agit. Essa fraqueza pode ser superada ¢ reforgar a memoria ao se tornar vivaz nas imagens dos acontecimentos passados, ao se concretizar (como principio universal) nos contetidos particulares da experién- cia da razio concreta, ou seja, ao se constituir em histéria. Da idéia regulativa (a-histérica, de principio) da razao humana conereta podem ser abduzidas perspectivas histéricas para a inter- pretacao do passado. Elas iniciam com a questio: quo racional se tornou o homem ao longo do tempo? Ou melhor: O que fez ele de sua 1az4o a0 longo do tempo? Essas perspectivas sao abstratas. Elas precisam ser concretizadas pela experiéncia histérica em historias racionais particulares. As perspectivas parciais necessérias a isso advém ao pensamento histérico de cada caréncia interpretativa do respectivo presente, Essas perspectivas parciais remetem a perspecti- va genérica da idéia regulativa a um segundo plano, de modo que ela tem pouca influéncia historiografica pratica. A idéia geral de razéio tem de ser, pois, constantemente remetida ao particular que venha a suscitar. O que seria mais apropriado a isso do que uma expectativa superadora da experiéncia, formulada como utopia’? Pois esta ima- gina, com efcito, a satisfagao das expectativas, que nfio poderia ser Historia viva 147 imaginada sem 0 recurso as condigées particulares dessa satisfagao, pensadas como possiveis. De ponto de vista objetivo, toda utopia representa uma critica a historia, pois ela concebe a relagio desta 4 experiéncia como uma Testrigao da constituigao de sentido e, assim, a supera. A critica tem a seu favor, de inicio, as boas razdes do superavit intencional, com as quais os homens lidam com os fatos dados nas circunstancias de suas vidas. No entanto, para além disso, sao cles levados indireta- mente, pela busca da alteridade presente na consciéncia historica, Aqueles extremos que a histéria excluiu do exagero da utopia. Ao se alforriar do constrangimento da relagdo a experiéncia, a utopia remete o pensamente histérico a extremos de alteridade ¢ experién- cia. Como historia, a histéria nao tem como efetuar essa critica a si mesma e socorrer a alteridade evanescente de sua meméria com as cores vivas do exagero utépico acerca das experiéncias do tempo passado, Ela sé € sensibilizada pelos impulsos da alteridade que decorram do exagero utépico dentro do horizonte de expectativas de seu presente. Entre utopia ¢ histéria, entre a constitui¢ao do sentido da expe- riéncia do tempo (que se serve dos potenciais de sentido da ficciona- lizagdo que ultrapassa a experiéncia) e a constituigao de sentido que captura a ficcionalidade no contetido experiencial das representagdes temporais ¢ a reelabora, subsiste a tens8o estrutural do desafio ¢ da critica mituos. Necessitam uma da outra para realizar suas préprias intengdes e exercem sua fungdo respectiva de orientacio no tempo pela distingao critica uma da outra. Sera possivel superar essa con- tradi¢do entre sua dependéncia mutua e sua distancia critica? Existe ‘uma sintese entre excesso e experiéncia no movimento temporal da existéncia humana, que supere a oposi¢o entre utopia e histéria em uma unidade abrangente? Seria necessario que uma tal sintese con- sistisse em um fendmeno temporal no qual a experiéncia de deter- minadas circunstAncias da vida transcendesse a propria experiéncia. As condigées restritivas do agir tm de admitir o olhar para outras situagées, passiveis de efetivaciio. Com relagao a utopia, a presenga do outro deve ser possivel no que ¢ proprio, na expectativa ¢ na inten¢4o que contivessem em si sua propria realizagao, de modo que v8 Jorn Rasen nao necessitassem a negacéio das condigées efetivas do agir para po- der tomar plausiveis outras possibilidades desse mesmo agir. Com relacdo a hist6ria, é necessdrio que ocorra uma experiéncia do tempo que inclua a alteridade do passado como um impulso atual, voltado pare o futuro, — um movimento intencional que sc transpde para além das condigées dadas do agir no presente e, simultaneamente, efetive a experiéncia histérica. ‘Uma experiéncia do tempo assim, que ultrapassa os préprios limites da experiéncia, ¢ um kairos. Kairos significa tempo pleno.* Tem-se um excelente exemplo de que tempo se trata, na descrig&o que Robert Musil faz, do relacionamento entre duas pessoas, em seu conto A consumagdo do amor: As coisas 4 volta prenderam a respiracdo, a luz na parede cristalizou~ se em pontas douradas ... Tudo calou e esperou, tudo estava ali por causa dela; .., 0 tempo, que atravessa o mundo como um fio brilhante © que parecia cruzar o quarto, pareceu subitamente parar e enrijecer- se, totalmente rijo, placido e brilhante, ... e as coisas aproximaram-se um pouquinho umas das outras. Foi essa placidez e suave declinar, como quando as camadas repentinamente se organizam ¢ um cristal se forma ... Em torno dessas duas pessoas, por cujo meio se insinua € que véem e revéerm esse félego retido, essa arqueadura, esse envol- vimento como através de mil ¢ uma superficies espelhadas, como se vissem pela primeira vez ... 2 Tais momentos ocorrem também além da experiéncia amorosa de cada pessoa, Eles também acontecem de forma “histérica” como periodos de tempo especialmente destacades, nos quais o sentido © o significado das mudan¢as temporais sao cristalizados como ® Ver P, Tillich. Kairos und Utopie. In: P. Tillich. Auf der Grenze. Aus dem Le- benswerk Paul Tillichs. Manchen, 1962, p. 120-128. Do mesmo autor: Die po- litische Bedeutung der Utopie, em Fiir und wider den Sozialismus. Minchen, 1969, p. 135-184, E ainda Kairos und Logos, Eine Untersuchung zur Metaphysik des Erkennens. In: P. Tillich (Ed.). Kairos. Zur Geisteslage und Geisteswendung. Darmstadt, 1926, p. 23-76, * Em R. Musil. Sdmtliche Erzdhlungen. Hamburgo, 1968, p. 175. * N.T. Citasdo livremente traduzida para o portugues. Historia viva 149 momentos intratemporais. “Um” tempo preenche-se com o sentido “do” ou de “todo” o tempo. Em um instante do agir de uma geragaio consolida-se o destino de muitas geragdes, Uma tal experiéncia do tempo € apresentada, por exemplo, por Thomas Paine. Ele experi- menta a revolugdo americana como kairos da historia universal e a descreve, correspondentemente, com a forga de sua retérica: No presente é um tempo especial, que se apresenta a uma nac4o uma nica vez, 0 tempo de se dar um governo .... Temos a possibilidade e todas as boas razées de elaborar a mais nobre e pura constituigao deste mundo. Esté em nossas mos recomegar 0 mundo.!* O tempo de um kairos se faz “pleno” com passade ¢ futuro. Ele é experimentado como a realizago de uma promessa do pas- sado com respeito a um futuro bem-sucedido e como satisfacao de esperangas projetadas no futuro. Trata-se de um tempo no qual o agir ¢ o padecer humanos se realizam com o pathos do sentido de toda a humanidade. A formatagdo das circunstancias da vida nesse tempo vale paradigmaticamente para todo o tempo. Nele, as diferen- gas fundamentais entre o “ndo mais” do passado ¢ o “ainda nao” do futuro superam-se na experiéncia elementar do “aqui e agora”. Cada cultura, cada movimento, cada individuo mesmo, tem es- ses tempos “cairéticos”. Karl Jaspers considerava encontrar esse kairos de toda a humanidade no “tempo axial”. Para os protestan- tes, € a fase de formagae da Reforma, para os marxistas a Comuna de Paris e, naturalmente, a Revolugado de Outubro. A representacdo mental do kdiros, como categoria da constituigao historica de sen- tido, foi formada no cristianismo primitivo. O kairos cristo é a encarna¢ao de Deus na Terra, definida temporalmente. Os trés anos, durante os quais Jesus de Nazaré pregou a chegada do reino de Deus ¢ 0 realizou por seu ministério, abrangem, em seu significado para os cristos, todo o tempo deste mundo. Seu sentido histéri- co é tornado visivel intratemporalmente, como o tempo préprio do ‘°T. Paine. Common Sense. In: A. € W. P, Adams (Ed.). Die Amerikanische Revolu- tion und die Verfassung 1754-1791. Miinchen, 1987, p. 235. 150 Jor Rusen Kairos." Essa representagao do kairos é cléssica, na medida em que demonstra de modo particularmente marcante a supratemporalidade intratemporal de um momento histérico, ao articular utopia e alteri- dade em um constrato abrangente de sentido do tempo. Uma narrativa historiografica, que toma presente a experiéncia do tempo de um kairos, reunc, pois, a alteridade histérica ea utopia que transcende a historia. Ela as amealha na unidade de um momen- to histérico dotado de duas propriedades: de um lado, pode ser reme- morado como experiéncia real do tempo, lastreado pelas condigdes do agir que a historia evidencia na critica da utopia. De outro lado, cle vai além desse horizonte experiencial da memoria histérica, pois nele se realizam, sob as condigdes particulares do agir, intengdes que as ultrapassam. Nesse superdvit de sua efetiva realizagdio, as intengdes atuam historicamente ¢ orientam o agir atual como pers- pectivas de futuro a realizar. Existem histérias que destacam e rememoram tais momentos como “cairéticos”. Todas as histérias que, no mais das vezes narra- das tradicionalmente, descrevem a efetivacio de ordens e Tegras da vida, que induzem o agir atual a modificar as condigdes sob cuja res- trigdo se encontra. O potencial de sentido da tradig&io opera, nessas historias, come transcendéncia das circunstancias da vida em que, culturalmente, as tradigdes esto inseridas. Um bom exemplo pode- tia ser a historia dos direitos humanos e do cidado, que lembraria um kairos: ela poderia narrar como, em um momento da histéria universal (finais do século XVII), elementos da razdo tornaram-se uma realidade politica reconhecida como irteversivel, com efeitos normativos sobre a perspectiva de futuro da praxis atual. Determina- bes de dever, a que ninguém em s consciéncia se poderia subtrair. Tais histrias apresentam os momentos histéricos como experién- cias historicas com praxis racional. Interpretam essas experiéncias, enfim, como constituidas pela idéia regulativa da praxis da razio humana. " Ver O. Cutlmann. Christus und die Zeit. Die urchrisiliche Zeit- und Geschichis- auffassung. Zolikon/Zurique, 1946. Bibliografia A numeragio das partes da bibliografia teve inicio no primeiro volume (Razdo histérica), continuou no segundo (Reconstrugdo do passado) e segue agora neste volume. 14. Historiografia em geral BARTHES, R. Die Historie und ihr Diskurs. 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B., 24 Categorias hist6ricas, 80, 99, 100 Coeréncia, 36, 61, 98, 124 — estética, 29, 32, 36-38 — formal (ver também Rele- vancia), 34 — retérica, 29, 36, 38 Compensagio estética, 113 Competéncia histérica, 12, 43, 94, 95, 101, 103 — argumentativa, 120 ~ de oricntagio, 104, 116, 128 — experiencial, 112, 114, 128 — interpretativa, 95,104, 110- 111, 114-116, 128 — reflexiva, 115 Competéncia ~ cognitiva, 95, 101, 103, 115, 117, 122 — cultural, 122 — narrativa, 103, 105 Comunicagao, 29, 37, 45-47, 49- 50, 52-53, 55, 57, 60, 62, 71- 72, 74, 80, 82, 96, 126, 146 Consciéncia histérica (ver também Experiéncia, interpretagao, orientagao), 101, 109-111, 117- AL8, 128 Contingéncia, 45, 110, 117-118 Continuidade, 44, 49, 52, 56, 62 Cultura historica, 121-133, 135, 136 Cultura, ciéncias da, 116 Decisionismo, 125 Dialética, dialético, 64 Didatica e Teoria da Historia, 37, 88-94 Didatica, 8, 11, 13, 82, 85-94, 98, 104, 105, 110, 118-119, 129 Direitos humanos e do cidadio, 80, 123, 127-128, 150 Discurso, discursivo (ver também Validade, garantia de), 14, 28- 29, 30-31, 35-36, 41, 44, 46, 48-49, 54, 56-57, 60-62, 65, 67, 72, 74, 79, 81, 86, 126, 133 Dissonancia, 115 Dogmatismo, 53, 115, 125 Dominagdo (ver também Validade, garantia de), 12, 51, 118, 123, 127-128 Ensino escolar, 91 Entendimento, 31-32, 38, 42, 97, 102 158 Jorn Risen Esclarecimento (Muminismo), 42, 43, 57 Esperanga, 127, 136 Estética e retérica, 28-38, 42, 67 Estética — classica, 31 — filosdfica, 23, 132 Estético, 22, 29-32, 33, 42, 121- 122, 124-125, 129-130 Evolugao, 59 Experiéncia, interpretagda, orien- tacdo, 101, 104, 109-111, 117- 118, 128 Facticidade e ficcionalidade, 22-23, 26-27, 33 Fascinio, fascinagiio estética, 130 Filosofia da histétia, 115 Formagio histérica, 7, 64, 71, 74, 19, 87, 95-120, 122, 124-128, 132-133, 135, 145-146 Foucault, M,, $7 Futuro (ver também Utopia), 112, 116, 118, 126, 135-136 Guicciardini, F., 19, 41 Hegel, G. W. F, 31 Herder, J. G., 33 Histéria como ciéncia, 10, 13-16, 108, 120-122 Historia, representagao da, 102 Historicizagao, 128, 142 Horacio, 36 Humanizagao, 124 Humboldt, W. von, 114 Mdentidade, 35-36, 42, 44, 46-47, 49-50, 53, 57, 60, 62, 68, 73, 87, 97, 100, 107, 116-117, 144, 146 — hist6rica, 39-40, 52, 56-57, 61, 64, 71-72, 74, 79-80, 88, 100, 102, 107, 109-110, 117, 119, 127, 130 — nacional, 61, 128 = sexual, 49, 58, 74 Ideologia, 77-78, 125 Implicaco, contexto de, 64 Individualidade, 60 Instrumentalizacdo, 124-125, 129- 131 Jaspers, K., 149 Jeismann, K.-E., 48, 102 Jesus de Nazaré, 149 Kairos, 135, 148-150 Kant, L., 31 Kluge, A., 83 Lamprecht, K., 9 Liberdade, 31, 34, 37-38, 109-110, | 127, 131-132 Logos, 80 ' Maan, G., 24 ' Marxismo-leninismo, 125 Modernizacao, 57, 132 Mulheres, histéria das, $8 Musil, R., 148 Narrativa historica (ver também Narrativa), 120 Narrativa, 14-15, 19, 21, 24-28, 34, 43-48, 68, 103-105, 107, 115, 120, 150 Negatividade, critica da (ver zam- bém Narrativa), 57, 64, 128 Negt, O., 82 New Economic History, 24 Novalis (Friedrich von Harden- berg), 85, 135 Outro, ser (ver também Tempo, expcriéncia do), 109, 110, 142 Paine, T., 149 Pato Donald, 135 Pesquisa, 21-28, 39 Poder, vontade de, 43, 124, 126 Histéria viva 159 Politica, cultura politica, 107, 121, 126, 131 Posigdo, tomar, 12, 42, 101, 116 Positivismo, positivista, 26-27 Pés-modernismo, 56, 63, 131 Praxis, 15, 17, 42, 85, 95-103, 120 Processo, 19, 59 Processo temporal, representagdio do (ver também Continuidade), 44, 49, 52, 59, 142 Profissionalismo, 120 Progresso, 57, 59, 64 Pablico, 94 Raabe, W., 85 Racionalidade, 9, 13, 18, 20, 24- 25, 42 Ranke, L. von, 18, 19, 20, 23, 29, 38, 41, 128 Razdo, 14, 42, 93, 103, 120, 122- 124, 126-127, 133, 144-146, 150 Realidade, 27 Relevancia — cognitiva, 28, 30, 38, 40-44, 7 — comunicativa (ver também Coeséncia), 28, 34-38, 41 Retérica, retérico, 34-36 Revolugio, 59 Schiller, F., 17, 31 Schulze, W,, 66 Sentido de realidade, 119 Sentido historico, 25, 56, 61, 75- 83, 103, 114, 132, 135, 149 Sex proprio (ver também Identida- de), 96, 110, 117 Stone, L., 24 Subjetividade, 30-32, 34, 49, 57, 60, 95-99, 107-110, 119 Superdvit intencional, 132, 139, 142-143, 147 Tempo, experiéneia do, 101-105 - alteridade, diferenga tempo- ral, 108-109, 112-113, 128, 130, 135-150 — experiéncia do presente, re- lagio ao futuro, 112, 116, 126 Temporalizagao, 74, 117 Teoria da Histéria, 9-17, 19, 38, 65, 85-88, 95, 104, 133 Teorias, 114 Tipologia — fungdes (analitica, ca), 63, 65-67 Topos, topica, 35, 37, 40-41, 45-47 Transcendéncia, relagao de, 64, 136, 141, 150 Trevelyan, G. M., 24 Utopia, 135-150 Utopia, critica a, 139 Validade, garantia de (ver também Narrativa, Razio),10-12, 14, 18, 20, 42-43, 52-53, 59-60, 62, 68, 70-72, 75, 77-79, 86, 102- 103, 109, 120, 123-124, 128 Verdade, vontade de, 127 Vida pratica, mundo da vida, 95, 97, 101-104 Voltaire, 56 Weber, M., 77, 97, 103, 116 ‘Wehler, H.-U., 24 White, H., 25 pragmati-

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