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DOS SANTOS, Theotonio.

Com a grande ofensiva neoliberal, que vai alcançar seu auge na década de 80, a empresa privada
se apresentou como um sucedâneo do setor público em nome da eficiência e da eficácia.

Na verdade, após a II Guerra Mundial, a internacionalização da economia passou a ser um fator


muito decisivo e as empresas multinacionais assumiram um papel extremamente dinâmico.

Os Estados nacionais serviram de apoio, muitas vezes, à evolução e ao desenvolvimento dessas


empresas. Por exemplo, nós não podemos entender a expansão das empresas norte-
americanas, em nível mundial, sem o Plano Marshall, com o qual o Estado norte-americano
colocou à disposição dessas empresas recursos gigantescos para a sua entrada massiva na
Europa, no Japão e em outras regiões.

Pensar que essas empresas poderiam ter alcançado o nível de influência que obtiveram sobre o
resto do mundo só pela eficácia econômica é uma ingenuidade que só se impõe no cérebro das
pessoas através da manipulação ideológica.

Não se pode ignorar também o papel do Estado na criação da Revolução Científico-técnica que
se operou no pós-guerra. Nenhuma empresa estava disposta a pagar o risco de financiar a
pesquisa básica, cujo custo é extremamente alto e arriscado. Foi o Estado que, direta ou
indiretamente, fez essas pesquisas ou as financiou nas universidades e, muito raramente, dentro
das empresas.

A década de 80, foi menos a década dos investimentos diretos no mundo e muito mais um
período marcado por um grande crescimento do sistema financeiro mundial. Este sistema
cresceu em tomo do déficit público norte-americano que saltou de 60 bilhões de dólares para
280 a 300 bilhões de dólares ao ano no final da década.

Quer dizer, o Estado norte-americano coloca cada ano um poder de compra no mundo, sob
forma de dívida, igual à metade do que todo o povo brasileiro produz em um ano. Esta dívida se
destinou, sobretudo, ao gasto militar, particularmente à pesquisa militar. O Estado cortou gastos
com os pobres, no setor do bem-estar. Mas, no setor militar, os gastos foram aumentados
drasticamente na década de 1980. Então, o que se chamou de neoliberalismo não foi nenhuma
ação econômica neoliberal. Porque um dos princípios do liberalismo é o equilíbrio das contas
públicas.

A Europa viveu neste período uma forte concentração de poder nas mãos da recém-criada
burocracia continental. Foi um período de aumento vertiginoso da intervenção estatal na
economia e nos mais diversos aspectos da vida, particularmente no plano cultural. Durante esta
década, a Inglaterra da Mrs. Thatcher aumentou o gasto público em mais de 2% da renda
nacional e, ainda assim, a sua foi considerada uma gestão liberal.

Ao mesmo tempo, o êxito econômico, comercial e financeiro do Japão neste período foi
apresentado ao resto do mundo como a mais expressiva vitória do liberalismo. Este êxito
econômico e financeiro durante a década de 80 foi explicado pela eficiência do mercado e pela
supremacia do privado sobre o público, pela hegemonia do modelo empresarial sobre o modelo
estatal. Ora, o Japão é o antimodelo do privatismo. Primeiro, porque as empresas japonesas
estão sob um forte controle do Estado japonês. Um controle que se fortaleceu desde a Segunda
Guerra, sobretudo, porque, como se sabe, a economia japonesa foi reestruturada depois da
guerra sob a ocupação norte-americana, que realizou a reforma agrária e a dissolução dos
grandes monopólios. Neste período, o M.LT.I. — Ministério da Indústria, Tecnologia e Comércio
Internacional — planejou, controlou e organizou todo o sistema empresarial japonês. Este é hoje
um sistema altamente oligopolístico ou até monopólico. Eu acho que a palavra oligopólio é mais
correta, no caso japonês, porque sempre encontramos duas, três grandes firmas competindo.
Mas são duas ou três grandes firmas que controlam o grosso de cada setor econômico. Não é
um modelo de capital privado, de forma nenhuma. Não é um modelo de livre empresa, é um
modelo de empresa oligopólica moderna com forte integração com o Estado.

Há, contudo, um segundo aspecto sobre o qual não se chama a devida atenção. Os princípios
que orientam a organização econômica das empresas japonesas são inaceitáveis e até
impossíveis de serem entendidos pelo pensamento liberal. Os três grandes princípios da vida
econômica do Japão são:

Em primeiro lugar, o princípio da estabilidade do trabalhador na empresa, da fidelidade à


empresa. Despedir alguém numa empresa japonesa é um ato legalmente possível, mas
moralmente inaceitável. E isso vai contra os princípios liberais fundamentais que afirmam a
necessidade de flexibilidade da força de trabalho como condição para a eficiência. As
concepções sobre a flexibilização do trabalho insistem na necessidade de pagar menos direitos
sociais e de tomar a dispensa do trabalhador mais fácil, em diminuir os custos do turnover. Ora,
o Japão é o antiturnover, o Japão é a antiflexibilização do trabalho. No entanto, foi apresentado
como modelo de eficiência capitalista durante toda a década de 1980 e parte de 90.

O segundo princípio é ainda mais incompreensível para o Ocidente: no Japão se paga aos
trabalhadores por idade. Se você tem 20 anos, você ganha 100; se você tem 21 anos, você ganha
103 etc. Para a visão liberal do mundo isso é a coisa mais absurda que pode existir, porque isso
é a antimotivação. Pois se eu ganho por idade, vou ficar mais velho de qualquer jeito, não preciso
de eficiência nenhuma para ficar mais velho, basta viver.

Terceiro princípio: o sindicalismo por empresa. Este é um princípio fundamental do milagre


japonês. É impressionante a intervenção da organização sindical na empresa japonesa. É um
processo de gestão em que o trabalhador participa de todos os aspectos dela. A pessoa que tem
a função gerencial abaixa a cabeça para o mais eficiente no contexto concreto. Não há essa visão
ocidental de que a hierarquia tem de ver com a ação. A hierarquia é outra coisa, é uma questão
de respeito mútuo entre as pessoas, é uma forma de relações humanas.

Apresentar o Japão, que foi colocado na ordem do dia na década de 80, como expressão do
liberalismo, é, pois, uma proposta totalmente falsa. Não corresponde a nenhuma realidade. O
grande fator de eficácia do Japão vem de uma ordem social altamente participativa. A sociedade
japonesa é organizada fundamentalmente no nível local, do bairro e da rua. As ruas têm suas
associações e seus dirigentes. No Japão a noção de cooperação comunitária é impressionante.

Na Alemanha, o sistema de co-gestão é extremamente forte. Os trabalhadores alemães


participam na direção das empresas, por votação, o que se deve ao caráter de luta de classe
historicamente definido. Mas a intervenção dos trabalhadores alemães não se restringe aos
problemas dos trabalhadores. Os trabalhadores alemães participam nas decisões fundamentais
da empresa como tal, como realidade empresarial, como fenômeno de capital e decisões de
investimento. Os trabalhadores desenvolvem não só na organização do sistema produtivo, mas
também no sistema econômico em seu conjunto.

Como se vê, estamos muito distantes desse mundo que querem nos pintar para o Japão ou a
Alemanha como se fossem o mundo da eficácia tecnocrática, como se a eficácia fosse um
produto de uma mente fora do processo social concreto, da ação das pessoas.
Todos nós sabemos da importância do mercado no sistema produtivo e de distribuição, mas
entregar ao mercado os ajustes da sociedade moderna é uma temeridade. Está aí a década de
80, quando o liberalismo teve o papel hegemônico: o desemprego brutal, 22 milhões de
desempregados mostram que a sociedade não pode deixar de intervir no planejamento, na
organização da vida social em seu conjunto e na vida econômica etc. E, portanto, o modelo que
nos querem impingir de um processo de decisão tecnocrática, que ignora os processos globais,
que ignora os interesses sociais em seu conjunto, que ignora a necessidade do planejamento,
que ignora a necessidade do comunitário, do coletivo, está nesse momento em plena crise.

Na verdade, a década de 80 nos apresentou uma realidade totalmente diferente. Os Estados


Unidos de Reagan mergulharam o seu Estado num endividamento colossal e crescente, cuja
superação não se pode ver no horizonte.

Durante os anos 80, em cujo final se instalou uma crise muito grave e uma situação de recessão,
retomou-se, apesar do discurso contra o Estado, o aumento dos gastos do Estado norte-
americano, através de um déficit brutal, das contas públicas que permitiu à economia recuperar-
se. O comércio mundial também se recuperou porque os gastos gerados pelo Estado na
economia americana não foram empregados em produtos norte-americanos, foram gastos com
a importação de produtos de todo o mundo. Um dos maiores beneficiários foi o Japão, o grande
exportador para os EUA nesse período. A Alemanha, outra grande exportadora, e outros países,
como o Brasil, aumentaram suas exportações nesse período formando, assim, um superávit
muito importante na década de 80.

A diferença entre o Brasil, o Japão e a Alemanha foi o destino do superávit da década de 80. Ele
serviu para os japoneses se converterem na maior potência financeira do mundo — porque
esses bilhões de dólares se converteram num poder financeiro brutal. Os alemães, da mesma
maneira, usaram este superávit comercial para fortalecer sua moeda e a Unidade Européia que,
a partir desta base, ergueu o euro no século XXI. Mas o Brasil não pôde se aproveitar de seus
superávits porque estes 16 a 20 bilhões de dólares por ano foram todos entregues sob forma de
pagamento de juros de uma dívida bastante duvidosa, a taxas de juros elevadíssimas.

Gostaria de chamar a atenção não tanto sobre o aspecto econômico, mas sim sobre o aspecto
ideológico e político. Ideologicamente, tudo isso era apresentado em nome do neoliberalismo,
em nome da retirada do estado da economia. Ora, ocorria exatamente o contrário.

Esse aumento de produtividade do Japão e essa capacidade de resposta revelada pela economia
japonesa não podem ser atribuídos simplesmente ao funcionamento das leis do mercado. Elas
têm que ver com uma política industrial que vem sendo implantada no Japão desde a II Guerra
Mundial. Têm que ver com um sistema educacional e de treinamento, que viabilizou a resposta
japonesa aos de safios globais. Têm que ver com uma distribuição de renda, com uma
organização comunitária, um sentido de unidade nacional, que estão interligados entre si sob a
gestão de um Estado nacional extremamente eficaz e legitimado socialmente.

A extensão das tarefas do Estado e a expectativa crescente da sociedade em sua intervenção


geraram a sua crise contemporânea, ao contrário do que afirmam os neoliberais. Cabe-nos
libertar o Estado das tutelas exercidas pelos poderes privados e colocá-lo cada vez mais a serviço
do interesse público, tomá-lo mais ético e eficaz e orientá-lo para a implantação de políticas que
sirvam aos interesses das maiorias oprimidas da população.

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