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Tradição, transformação e

o espírito militar:
uma entrevista com Celso Castro
por Édison Gastaldo

Celso Castro nasceu no Rio de Janeiro em 1963. Formou-se


Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (1986), Mestre (1989) e Doutor (1995) em
Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ. Desde 1986
é pesquisador do Centro de Pesquisa e Documentação de
História Contemporânea do Brasil (CPDOC), atual Escola de
Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas, do qual é, desde
janeiro de 2005, diretor e, desde março de 2008, professor
titular. Atua no ensino de graduação e pós-graduação da
FGV e dirige a coleção Nova Biblioteca de Ciências Sociais da
editora Zahar. Ceso Castro é um dos principais expoentes na
pesquisa social sobre os militares no Brasil. Sua dissertação
de mestrado, “O Espírito Militar”, publicada em 1990,
foi a primeira pesquisa antropológica realizada por um
pesquisador civil junto à Academia Militar das Agulhas Negras,
sendo até hoje uma referência na antropologia das Forças
Armadas. Além de seu livro de estreia, dedicou várias outras
obras ao estudo dos militares na sociedade brasileira, como
“Os militares e a República” (Zahar, 1995), “A Invenção do
Exército Brasileiro” (Zahar, 2002) e “Exército e Nação” (FGV,
2012). Nesta entrevista, exclusiva para o número inaugural
de SILVA, Celso Castro fala sobre sua formação, influências
acadêmicas, o espírito militar, tradições e ritos institucionais
das Forças Armadas, bem como sobre os caminhos da
pesquisa contemporânea sobre Defesa nas Ciências Sociais
Brasileiras.

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Centro de Estudos de Pessoal e Forte Duque de Caxias, Ano I, Número 1, Março de 2017
SILVA – Prof. Celso, pode nos falar um das Forças Armadas no Brasil, pelo
pouco sobre sua formação e principais pioneirismo, relevância e densidade de
influências intelectuais, entre professores sua análise. Como o senhor vê o universo
e autores? simbólico do espírito militar nos dias
CELSO CASTRO – Nasci no Rio de Janeiro de hoje, passados 25 anos daquela
em 1963. Meu pai era oficial do Exército, e pesquisa?
por esse motivo morei em várias cidades CELSO CASTRO – Creio que, em linhas
e estudei em diferentes tipos de colégios. gerais, o que descrevi no livro continua
Fiz graduação em Ciências Sociais no presente na formação do oficial
IFCS da UFRJ entre 1981 e 1985. Entrei do Exército. O elemento básico da
em 1983 como estagiário para o Centro construção da identidade do militar é
de Pesquisa e Documentação de História sua diferenciação simbólica em relação
Contemporânea do Brasil (CPDOC), hoje ao “mundo civil” e o pertencimento a
Escola de Ciências Sociais da Fundação um “mundo militar”. Isso se torna tão
Getulio Vargas, onde trabalho desde forte e naturalizado que os militares
então. Paralelamente, fiz mestrado e passam a realmente acreditar num
doutorado em Antropologia Social no mundo dividido em “civil” e “militar”,
Museu Nacional (1987-1995), sob a quando o que ocorre é um processo de
orientação de Gilberto Velho. Minha invenção de uma identidade “civil” com
influência intelectual mais direta está a qual se contrasta a do “militar”. Nesse
ligada não apenas à obra do Gilberto, sentido, costumo dizer que o “civil” é
mas também à convivência intelectual uma invenção militar. Essa identidade,
que mantivemos não só na pós- no entanto, é construída num contexto
graduação, mas para além dela, até sua histórico e cultural mais amplo que está
morte. Como professor e orientador, sempre em mutação, que se altera ao
ele sempre nos estimulava a buscar uma longo do tempo.
perspectiva inter e multidisciplinar. Seus
cursos, por exemplo, incluíam trabalhos SILVA – A partir dos anos 1990, uma
de áreas como história e literatura. série de transformações importantes
Dentre os autores clássicos das Ciências aconteceram no Exército Brasileiro.
Sociais, destacaria Georg Simmel, Não apenas mudaram as fardas e o
cuja obra riquíssima me influenciou armamento, como o país passou a
de diferentes modos. Em termos de intensificar sua presença internacional
produção intelectual, considero-me em missões de paz da ONU, foram criadas
tanto antropólogo quanto historiador, e a carreira do Quadro Complementar de
essa dupla identidade me agrada muito. Oficiais e regulamentada a participação
de mulheres na Força, entre outras
SILVA – Sua pesquisa “O Espírito Militar”, medidas. Como o senhor avalia o impacto
realizada no final da década de 1980, dessas modificações na cultura militar
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se tornou um clássico na antropologia brasileira?
Centro de Estudos de Pessoal e Forte Duque de Caxias, Ano I, Número 1, Março de 2017
CELSO CASTRO – Esses exemplos livro que você mencionou acompanho a
encaixam-se exatamente dentro do transformação das principais tradições
que mencionei há pouco, a respeito numa longa duração temporal. Aí sim,
do contexto que se transforma. Alguns podemos perceber como algumas
elementos outrora importantes ficaram tradições nascem, outras morrem, outras
menos relevantes, adaptações tiveram se transformam.
que ser feitas, e houve uma maior
convergência com os valores dominantes SILVA – Prof. Celso, como o senhor avalia
na sociedade brasileira. Ainda assim, o  desenvolvimento atual do campo de
creio que os elementos identitários que estudos sobre Defesa e Forças Armadas
descrevi em o espírito militar continuam no cenário acadêmico das Ciências
basicamente os mesmos. Sociais do Brasil?
CELSO CASTRO – O tema ainda é pouco
SILVA – Em “A Invenção do Exército tratado no Brasil. Durante o regime
Brasileiro”, o senhor se dedica a explorar militar, havia naturalmente dificuldades
a invenção de algumas das tradições para se fazer pesquisa por motivos óbvios.
que compõem os ritos institucionais do Tivemos alguns poucos “pioneiros” nas
Exército Brasileiro, como o culto a Caxias, décadas de 1970 e 80, cuja trajetória
as comemorações do aniversário da está reconstituída no livro “Pesquisando
Intentona Comunista e a mitificação da os militares brasileiros: experiências
Batalha dos Guararapes. De que maneira de cientistas sociais”, que publiquei em
essas releituras institucionalizadas de co-autoria com a professora Adriana
momentos da História do Brasil afetam o Marques (UFRJ) este ano, pela Editora
contingente da tropa e a imagem pública Prismas, de Curitiba. Mesmo após a
do Exército, e como elas se relacionam transição, o tema continuou periférico
com a historiografia nacional?  em relação ao mainstream das Ciências
CELSO CASTRO – Toda instituição busca Sociais. Creio que, em parte, isso ocorreu
estabelecer rituais e símbolos que por causa de estranhamentos – senão
passam a ser vistos como “tradicionais” e mesmo preconceito – no próprio mundo
que servem para fortalecer a identidade acadêmico. Da parte dos militares,
coletiva através da construção de uma apesar do discurso de aproximação
memória comum. O Exército é uma com o “meio civil” ser já antigo, ainda
instituição explicita e conscientemente é formal em vários aspectos. Acredito
“conservadora” em relação a esse que essa situação possa se modificar
aspecto, e tem no “culto às tradições” um positivamente, em parte ajudada pela
elemento importante de seu cotidiano. atuação da ABED (Associação Brasileira
Como pesquisador, no entanto, acho de Estudos de Defesa), criada em 2005,
interessante observar que essas tradições em parte pelo recente movimento das
se transformam ao longo do tempo. Isso escolas militares em direção a programas
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não é perceptível no curto prazo. Nesse de pós-graduação validados pela CAPES.
Centro de Estudos de Pessoal e Forte Duque de Caxias, Ano I, Número 1, Março de 2017

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