O NASCIMENTO DA BIOPOLÍTICA NA
PROVÍNCIA DE MATO GROSSO (1719-
1840)
Cuiabá-MT
2018
CRISTIANO ANTONIO DOS REIS
O NASCIMENTO DA BIOPOLÍTICA NA
PROVÍNCIA DE MATO GROSSO (1719-
1840)
Cuiabá/MT -2018
Dados Internacionais de Catalogação na Fonte.
Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).
RESUMO
A presente tese defende a ideia do nascimento da biopolitica na província de Mato
Grosso, respaldado conceitualmente pelas pesquisas do filósofo Michel Foucault.
Nesse sentido buscou-se demarcar historicamente a passagem, de uma forma de
exercício de poder pautado na soberania assentado entre premissas de bom governo
e de razão de Estado, para uma forma de exercício de poder assentado em bases do
pensamento liberal. Tal enfoque buscou compreender como a problemática da
população se tornou presente nos discursos dos capitães-generais/presidentes da
província de Mato Grosso na gestão da liberdade, que ironicamente, produzia uma
série de dispositivos de controle da população.
ABSTRACT
This thesis defends the idea of the birth of biopolitics in the province of Mato
Grosso, conceptually supported by the researches of the philosopher Michel
Foucault. In this sense, we sought to demarcate historically the passage from a form
of exercise of power based on sovereignty based between premises of good
government and reason of state for a form of exercise of power based on liberal
thinking. his approach sought to understand how the problem of population became
present in the speeches of the presidents of Mato Grosso province in the
management of freedom, which ironically produced a series of population control
devices.
Keywords: Sovereignty, Biopolitics, Population.
AGRADECIMENTOS
Há agora toda uma população que desestabiliza, mexe, busca além dos
vocabulários e das estruturas habituais. É uma... não ouso dizer revolução
cultural, mas por certo uma mobilização cultural.
Michel Foucault (2016)
Lista de Mapas
Essa cena inaugural nos apresenta o que será a relação entre um corpo
do outro em um corpo historiado, ou seja, um corpo que, mesmo carregado dos
signos próprios, como é o caso da América Índia, será circunscrito à escrita do
estrangeiro, do forasteiro2 que traz as “armas europeias de sentido” para interpretar
o que encontra, é uma escrita conquistadora e:
1
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 9.
2
A escrita da história nesse sentido é uma escrita do estrangeiro, que vê os acontecimentos e os
analisa de fora, buscando manter um olhar distanciado dos eventos. Aqui, talvez seja pertinente
lembrar que os historiadores da Grécia clássica eram pessoas que viviam fora de sua pólis de origem,
voluntariamente ou por terem sido exilados: Heródoto, Tucídides, Xenofonte, Ctésias, Teopompo,
Filisto, Timeu, Políbio, Dioniso de Halicarnasso, Posidônio. Cf. CARDOSO, Ciro Flamarion.
Panorama da historiografia Ocidental (até aproximadamente 1930). In: Um historiador fala de
teoria e metodologia: ensaios. Bauru: EdUSC, 2005, p. 121.
10
[...] Utilizará o Novo Mundo como uma página em branco
(selvagem) para nela escrever o querer ocidental. Transforma o
espaço do outro num campo de expansão para um sistema de
produção. A partir de um corte entre um sujeito e um objeto de
operação, entre um querer escrever e um corpo escrito (ou a
escrever) fabrica a história ocidental. A escrita da história é o
estudo da escrita como prática histórica.3
3
CERTEAU, Michel de. Op. cit. p. 9-10.
4
Ibid., p. 10.
11
população” nos discursos e nas práticas governamentais exercidas na
capitania/província de Mato Grosso.
Com isso, talvez não esteja dizendo nada de novo, uma vez que a
temática da população é um objeto de estudo de certo modo até bem trabalhado pela
historiografia, buscando-se elementos de composição étnica e racial de uma
determinada sociedade, região e até mesmo da nação.5
Tais estudos privilegiam um enfoque que os próprios estudiosos
denominam de demografia histórica6 (certamente influenciados por Pierre Chaunu)
e nessa perspectiva a centralidade das questões assumem uma dimensão
quantitativa expressa em quadros e gráficos indicativos dos percentuais com
predominância de um grupo étnico em determinado espaço: quantidade de escravos,
indígenas, portugueses etc., bem como o resultado desses encontros dos diversos
corpos exemplificados na figura do caboclo ou mestiço, do mulato, do cafuzo,
dentre outros.
A população nesse sentido é pensada em termos de composição étnico-
racial de uma sociedade descrevendo o seu perfil: se existiu muita miscigenação, se
ocorreu muitos extermínios de grupos locais, se foram efetivados muitos
relacionamentos ilícitos, enfim, constituem um “corpus coletivo” dos habitantes de
uma determinada área.
Certamente, tais tipos de análises redundaram em interessantes
trabalhos, mas creio, que essas pesquisas, ao darem uma centralidade ao aspecto
“quantitativo”, “étnico e racial” (que, aliás, é de suma importância para
compreender o processo de subjetivação de nossa nacionalidade), não pensaram,
digamos, no aspecto “substantivo e adjetivo” da temática da população.
Com isso, quero dizer duas coisas: a primeira, o aspecto substantivo,
está relacionado com o problema mesmo do conceito de população, o que ele traz
em si mesmo, que tipos de problemas vão ser colocados em relação à prática
governamental, em que momento o sujeito coletivo população ganhou consistência
5
Cf. SILVA, Jovam Vilela. Mistura de cores: Política de povoamento e população na Capitania de
Mato Grosso (século XVIII). Cuiabá: EdUFMT, 1995; SOUSA, Fernando Alberto Pereira de. A
população portuguesa nos inícios do século XIX. Tese (Doutorado em História Moderna e
Contemporânea) – Universidade do Porto, Porto, 1979.
6
Cf. MARCÍLIO, Maria Luiza. A Cidade de São Paulo: povoamento e população (1750-1850). São
Paulo: Pioneira, 1974.
12
e força para ser dito, do “aspecto adjetivo” o conceito de população vai adquirir
certas qualidades, certas formas de ser e de se apresentar em face do Estado (creio
que relação Estado ou Coroa/Súditos/Vassalos não estejam na mesma forma de
enunciação de Estado/população).
É nesse sentido que a problemática da população se insere no nosso
trabalho, como uma biopolítica, ou seja, busco defender a tese do nascimento de
uma forma política que se inscreve na problemática da população, levando em conta
precisamente aqueles dois aspectos de que falava a pouco: “substantivo” e
“qualitativo”.
Tal perspectiva nos coloca diante da tensão que se estabelece entre
governantes e governados, o que visceralmente atrita formas diversas de exercício
de poder, entre uma premissa de regime de soberania para outra premissa de regime
biopolítico, ambas timbradas por formas de violência e de controle próprios em
relação aos corpos.
Parafraseando Plutarco, ao analisar essas tensões (governantes e
governados), o que ele vê é a confluência de “vidas paralelas”7 unidas pela dor,
pelo sofrimento, pela precariedade da sua condição material de existência, mas
também marcadas pelos jogos de omissões e proteção, pelas formas de resistência
e fuga diante de toda uma maquinaria de exercício do poder, seja pautada na
soberania ou na biopolítica, que tentavam controlá-los a sua maneira. Nesse sentido,
a historiadora Arlette Farge apresenta um posicionamento interessante a esse
respeito:
7
Referência de Foucault ao Plutarco. Na segunda metade do século XIX, no momento de
consolidação do IHGB, o historiador João Manuel Pereira da Silva lançou uma série de livros que
aludem à proposta de Plutarco, intitulados O Plutarco brasileiro, e em seguida, retomando essa
dimensão de maneira mais aprofundada, publica Os varões ilustres do Brazil durante os tempos
coloniais, ou seja, materializa uma narrativa que concedia fama e glória aos personagens masculinos.
Invertendo essa proposta e influenciado por Michel Foucault, me aproprio do termo, para dar conta
não somente da coexistência de figuras famosas, mas sim da coexistência também de vidas
cotidianas que se chocaram contra uma estratégia de poder. Cf. ENDERS, Armelle. O Plutarco
Brasileiro: A Produção dos Vultos Nacionais no Segundo Reinado. In: Revista Estudos Históricos.
Rio de Janeiro, n. 25, 2000; FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In: Ditos e Escritos,
vol. IV: Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
13
movimentos religiosos de grande amplitude. A dor política-
desprezo pelo rei, indignação diante da injustiça, revolta diante
das recusas de sacramentos- tem suas palavras e formas de exibir
que conduzem a novos acontecimentos. Os sistemas punitivos do
Antigo Regime que infligem suplícios são um meio de governar;
um dia, no entanto, esse sofrimento exibido provocará a dor
naquele a olha. [...] Pode-se também trabalhar, sobre essa
discreta, e muitas vezes muda, dor das migrações, dos êxodos,
dos deslocamentos de pessoas procurando trabalho em todas as
regiões, longe de toda a sua vida tradicional, e compreender que
através desse sofrimento se tecem novos comportamentos e
outras relações de força8.
8
FARGE, Arlette. Lugares para a história. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte:
Autêntica, 2015, p. 20.
14
a problemática política da vida inserida num jogo de cálculo preciso e que leva em
conta as noções de risco e perigo.
A população não é enunciada da mesma maneira num regime de
soberania e em um regime biopolítico. Diante disso, a nossa perspectiva
historiográfica é de questionar as condições que tornaram possível uma forma de
exercício de poder pautada na grade conceitual de um coletivo singular, que é
justamente a população, com temáticas recorrentes sobre o investimento político no
governo dos vivos.
Logo, temos diante de nós duas questões fundamentais: em que
momento a temática da vida de uma população foi posta enquanto problema das
práticas políticas dos governantes de Mato Grosso? Em que consiste a
Governamentalidade9 na qual o alvo é a população?
Trata-se de uma analítica do poder pensada a partir de uma
arquegenealogia influenciada pelo pensamento de Michel Foucault, o qual pensa a
história em sua descontinuidade, em sua ruptura e dispersão, o que leva a perceber
os deslocamentos, as adesões e imobilidades também em relação à emergência de
determinados saberes que, por sua vez, instituem novas subjetividades.
O que se vislumbra, nesse sentido é uma nova concepção de história
política e uma história do corpo. A corporeidade do exercício de poder tem uma
historicidade matizada por discursos, práticas, usos correntes de determinadas
premissas que fundamentam códigos morais e éticos que normatizam o viver em
sociedade e criam formas diferentes de “enunciados”. Nesse sentido, seguimos a
concepção enunciadora elaborada por Foucault, para ele:
9
Sobre esse conceito cf. FOUCAULT, Michel. Aula de 1º de fevereiro de 1978. In: Segurança,
território, população: cursos do Collège de France (1977-1978). Tradução de Eduardo Brandão.
São Paulo: Martins Fontes, 2008.
15
ato está de acordo com os requisitos e se foi inteiramente
realizado. Não é preciso procurar no enunciado uma unidade
longa ou breve, forte ou debilmente estruturada, mas tomada
como as outras em um nexo lógico, gramatica ou locutório. Mais
que um elemento entre outros, trata-se, antes, de uma função que
se exerce verticalmente, em relação às diversas unidades, e que
permite dizer, a propósito de uma série de signos, se elas estão aí
presentes ou não. O enunciado não é, pois, uma estrutura (isto é,
um conjunto de relações entre elementos variáveis, autorizando
assim um número talvez infinito de modelos concretos); é uma
função de existência que pertence, exclusivamente, aos signos, e
a partir da qual se pode decidir, em seguida, pela análise ou pela
intuição, se eles fazem sentido ou não, segundo que regra se
sucedem ou se justapõem, de que são signos, e que espécie de ato
se encontra realizado por sua formulação (oral ou escrita). Não
há razão para espanto por não ter podido encontrar para o
enunciado critérios estruturais de unidade; é que ele não é em si
mesmo uma unidade, mas sim uma função que cruza um domínio
de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que
apareçam, com conteúdo concretos, no tempo e no espaço10.
10
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 97-98.
11
Ibid., p. 133.
16
outrem, alterada pela percepção desse desnivelamento cultural,
transforma nossa relação conosco mesmos. O chão de nossas
seguranças movimenta-se á medida que se desvela o fato de
deixar de ser possível pensar um pensamento de outrora12.
12
CERTEAU, Michel de. História e Psicanálise: Entre a ciência e a ficção. Tradução de Guilherme
João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica, 2011, p. 140.
17
Qual a pertinência desse conceito numa perspectiva historiográfica? Em
que sentido pode trazer novas questões e novos temas relacionados à história? Em
que medida a análise dessa problemática nos ajuda a compreender os fenômenos
atuais? Enfim, por que trabalhar com Foucault sobre os períodos colonial e império?
A importância de um filósofo como Foucault para pensar questões
atinentes à historiografia se deve ao fato de que, ao lançar a sua visão ao passado,
ele busca compreender o que se passa precisamente em nosso tempo presente, ou
seja, em que medida a incursão nas experiências do passado nos ajuda a pensar a
atualidade.
Contemporaneamente, a problemática da população evidencia como
historicamente essa população foi posta enquanto objeto de discurso político, moral
e até científico na gestão de suas vidas, existências, de suas condutas, mas a própria
população não fala, não movimenta as categorias discursivas, conferindo a estas um
lugar de objeto que legitima formas de sujeições e violências de todas ordem.
Creio que outra contribuição desse filósofo se encontra no seu enfoque
quanto às lutas históricas, evidenciando as insurreições dos saberes sujeitados, o
que confere protagonismo a cada um dos grupos silenciados pelo discurso
legitimador e fundante do saber ocidental.
A lógica organizacional da presente tese, no tocante ao nascimento da
biopolítica na província de Mato Grosso, estabelece uma discussão documental
atinente aos séculos XVIII e XIX, buscando apresentar a visibilidade da população
nos discursos políticos.
Cada capítulo é pontuado por recortes temporais, com a finalidade de
demarcar explicitamente os deslocamentos, as descontinuidades e rupturas, bem
como o jogo de retomadas, de incorporações insuspeitas, de continuidades
aparentes, que aos poucos vão construindo o solo epistêmico do nascimento da
biopolitica, cujo objeto central é a população e suas condutas.
Com isso, gostaria de insistir que há poucos trabalhos historiográficos
que assumiram pensar a problemática da população e da soberania numa
18
perspectiva histórica, onde se apresentam as condições de positividade da
biopolítica.13
Certamente, trata-se de uma discussão bem receptiva, bem
documentada pela crítica enquanto conceitos filosóficos e políticos, mas não
conferindo a historicidade de sua instalação ou de seu nascimento em determinada
sociedade.
O desafio desse trabalho reside no fato de que há poucas referências
que tenham feito essa incursão do ponto de vista da historiografia, o que nos leva a
entrar num campo ainda incerto e indefinido pelos historiadores (para os demais
pesquisadores das ciências humanas e sociais esse tipo de diálogo é mais recorrente,
como na filosofia, sociologia, antropologia etc.).
Explorar essa desconcertante lacuna talvez seja um dos grandes
desafios da tese, pois, ao lançar a problemática da população como objeto de ação
política e que cria mecanismos de gestão e controle da vida, nos faz entrar num
caminho de experimentação conceitual que, necessariamente, precisa ser
readequado epistemologicamente, uma vez que o local de fala de Foucault não
centrava na problemática da história colonial de nosso país.
Nesse sentido, o funcionamento desse dispositivo de soberania numa
perspectiva foucaultiana traz algumas dimensões importantes para pensar o
processo de colonização, suas violências e estratégias de domínios na gestão das
sociedades coloniais.
O dispositivo de soberania que em todo o século XVIII vai permear as
práticas governamentais de Portugal em relação Brasil, pode sofrer um
deslocamento sutil entre “bom governo” [pautado em virtudes até religiosas],
presente com muita visibilidade até o reinado de D. João V, para a incorporação das
premissas da Razão de Estado [pautadas em regras práticas para manter e conservar
o Estado] presentes com muita força no governo ministerial do Marquês de Pombal,
reinado de D. José I.
13
Assunto pouco discutido na historiografia brasileira, no cenário intelectual brasileiro o tema é
frequentemente visitado por filósofos a título de exemplo, cf. DANNER, Fernando. Biopolítica e
Liberalismo: A crítica da racionalidade política em Michel Foucault. Tese (Doutorado em Filosofia)
- Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.
19
Entre Bom Governo e Razão de Estado se constituiu o dispositivo de
soberania, que, em outras palavras, colocou em funcionamento tanto o ideal de
manter e conservar o Estado, mas também o soberano enquanto agente que
ministrava a justiça, configurando uma sociedade de direitos.
Percebe-se, assim, a proposta de descontinuidade, de deslocamento e
ruptura que lentamente se assiste no setecentos em Portugal [como atesta a
historiografia luso-brasileira], assim como a descontinuidade, de um dispositivo de
soberania para um dispositivo biopolítico.
O primeiro capítulo busca exatamente demarcar um paradigma político
circunscrito ao que denominei, de “dispositivo de soberania”. Esse dispositivo, ao
meu ver, permeará todo o século XVIII na relação entre Portugal e Brasil,
demarcando uma rede de relações simbólicas pautadas em pares de compromissos
recíprocos: “coleta/despesa, anterioridade fundadora de um direito, relações
diferenciadoras não isotópicas e direito de produzir a morte”14.
Com relação ao conjunto dos elementos, faz funcionar um exercício de
poder pautado em direitos, Foucault qualificará como “indivíduos de direitos”. O
que leva em conta a pensar no jogo de representações e desdobramentos do poder
régio em várias instâncias da gestão administrativa, multiplicando-se as soberanias
e levando à construção de tensão e confronto entre essas diferentes partes e o rei, o
qual atuava com sua presença física e simbólica enquanto figura arbitral que
aplicava o direito. Nesse sentido, o Código Penal era rigoroso e comportava práticas
que envolviam suplícios e penas de morte, uma vez que, pelo Código Filipino, a
“punição dos maus é a conservação dos bons”15.
Semelhante dispositivo que atuava como forma de manter, de conservar
e defender um direito conquistado ou adquirido, uma forma de exercício de poder
em que a defesa e conservação de tais direitos oferecia visibilidade à problemática
14
FOUCAULT, Michel. O poder psiquiátrico. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 53-54.
15 ALMEIDA, Cândido Mendes de. Codigo Philippino, ou, Ordenações e leis do Reino de Portugal:
recopiladas por mandado d'El-Rey D. Philippe I. Livro I. Rio de Janeiro: Typ. do Instituto
Philomathico, 1870, p. LXXVI. (edição fac símile)
20
da justiça no seu aspecto geral, que iam desde os privilégios e mercês concedidas
pelo rei aos seus súditos/vassalos até a defesa do território.
Diante dessa situação, a premissa de defesa foi muito marcante, uma
vez que os litígios que se formavam ou poderiam se formar colocavam em tensão a
figura do rei e seu papel na manutenção de um equilíbrio que garantisse paz e
concórdia, arbitrando qualquer contenda que pudesse existir em seu reino. Esses
elementos que constituem o dispositivo de soberania se fundamentaram
principalmente a partir das pesquisas realizadas por Michel Foucault, o qual
pontuou os aspectos de exercício do poder soberano, dentre eles o curso ministrado
entre 1973 e 1974, O poder psiquiátrico mencionado anteriormente, Vigiar e Punir
e História da Sexualidade 1, publicados em 197616.
Giorgio Agamben17 lembrava que Foucault começou a utilizar o termo
dispositivo a partir da segunda metade da década de 1970, quando o filósofo se
dedicava à problemática da governamentalidade, da biopolítica, do biopoder, ou
seja, a expressão ganhou visibilidade no pensamento do filósofo no curso Em
Defesa da Sociedade (1975-1976)18, ao abordar os dispositivos de dominação, no
livro A História da Sexualidade v. 1: A vontade de saber (de 1976), quando falava
de dispositivo da sexualidade19, no curso Segurança, Território, População (1977-
1978) quando discorreu sobre os dispositivos de segurança20, e no curso
16
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento das prisões. Tradução de Raquel Ramalhete.
Petrópolis: Vozes, 1987, p.09-57; FOUCAULT, Michel. A História da sexualidade, vol. 1: a
vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon de
Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 125-149. Em relação ao seu projeto de uma história da
sexualidade, vale ressaltar que Foucault elaborou inicialmente um projeto da história da sexualidade
em seis volumes e que abandonará. Em vida o filósofo publicou os volumes 2 e 3 da história da
sexualidade sobre os usos do prazer e os cuidados de si onde a ideia de dispositivo foi abandonada
e Foucault adotou um outro vocabulário conceitual como por exemplo, o de estética da existência.
Para a presente pesquisa, a ideia de dispositivo é fundamental, pois articula a produção de
subjetividades históricas imanentes à produção de regimes discursivos distintos e na História da
sexualidade, vol. 1: a vontade de saber, o filósofo apresenta uma maior explicitação desse conceito.
17
AGAMBÉN, Giorgio. O que é um dispositivo? In: O amigo & O que é um dispositivo? Trad.
Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2014. (Grandes Temas)
18
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo:
Martins Fontes, 2005.
19
Ibid, p.73.
20
FOUCAULT, Michel.: Segurança, território, população. Tradução de Eduardo Brandão. São
Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 8.
21
Nascimento da Biopolítica (1978-1979) ao tratar dos dispositivos de
governamentalidade21.
Tais usos em momentos distintos dos finais da década de 1970, nos
lança a seguinte questão: qual é a transversal que atravessa essa ideia de dispositivo
largamente utilizado a partir daquele momento?
Tal situação se apresenta como condição de um pensamento estratégico
atento às disposições dos enunciados que constituem problemas para uma
determinada sociedade e das relações de poder imanentes a tais saberes. Ao nosso
ver, a ideia de dispositivo remete a uma infinidade de disposições de elementos
discursivos e não discursivos, os quais criam as condições de enunciação. Nesse
sentido, o que Foucault entendia por dispositivo pautava-se em três postulados:
21
FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo:
Martins Fontes, 2008, p. 95.
22
a pouco o dispositivo de controle-sujeição da loucura, da doença
mental, da neurose22.
22
FOUCAULT, Michel. O jogo de Michel Foucault. In: Ditos & Escritos, vol. IX: Genealogia da
Ética, Subjetividade e Sexualidade. Tradução de Abner Chiquieri. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2014, p. 45.
23
COURTINE, Jean-Jacques. Decifrar o corpo. Trad. Francisco Morás. Petrópolis: Vozes, 2013, p.
28-29.
23
diferença onde havia repetição e situando a passagem da problemática do
povoamento para a problemática da população24.
O conceito de dispositivo é estratégico por lidar com as diferentes
disposições dos discursos que dão visibilidade, ao mesmo tempo, a uma
inteligibilidade de exercício de poder, pensado enquanto soberania, bem como o
seu gradativo desvanecimento na constituição de um outro exercício de poder, o
que indica o nascimento de uma forma de poder cravado em rituais de soberania,
convivendo com os germes das formas de poder biopolítico.
Ainda sobre o primeiro capítulo, nos deteremos na documentação
referente ao período colonial, tentando evidenciar como os dispositivos de
soberania apresentam tonalidades do saber régio em ministrar a justiça, do corpo
do rei que se dissemina no corpo social e de defesa do território, criando como
primeira necessidade política o povoamento e posse das áreas de limites mal
definidos e a criação da capitania de Mato Grosso consonante a esse projeto.
A criação da capitania de Mato Grosso materializava, entre outras
coisas, a necessidade de governar os grupos nômades que passaram a constituir o
maior número de habitantes da localidade, lembrando que a atividade mineradora
promovia constante deslocamento de pessoas em conformidade com as notícias que
chegavam sobre a descoberta de novos veios auríferos, deslocando, com isso, todo
um grupo de mineiros, comerciantes e aventureiros em busca dessas riquezas, e a
essas mobilizações somava-se o nomadismo indígena e sua fluidez no
deslocamento pelas matas e pelos rios.
Todo esse dispositivo de soberania incorporava também uma série de
medidas econômicas que nomeadamente conhecemos como Mercantilismo, o qual
visava, principalmente, a acumulação de metais preciosos (a centralidade da
24
Sobre esse processo de transição da colônia para a formação do Império brasileiro, entre finais
do século XVIII e início do XIX, apresentando ao mesmo tempo, o paradoxo que assinalava a lenta
penetração das ideias liberais (que entre outras coisas colocava o problema de limitação interna ao
poder monárquico) com a implantação de uma monarquia, cujo monarca regia seu poderio sobre um
imenso império de grandes dimensões territoriais e onde a autonomia concedida às províncias
atendia as pressões de uma elite brasileira conservadora e que assentou as instituições propostas pela
Ilustração europeia, de acordo com os interesses pessoais. Cf. LYRA, Maria de Lourdes Viana. A
utopia do poderoso Império: Portugal e Brasil: bastidores da política (1798-1822). Rio de Janeiro:
Sette Letras. 1994.
24
vigilância aos contrabandos de ouro e diamantes) por meio de medidas
protecionistas, pela concessão de monopólios régios etc.
No segundo capítulo, analisando uma documentação referente a fins do
século XVIII, trabalharei com a ideia de limiar, ou seja, a assinalação de um lento
deslocamento das premissas de “bom governo” para a constituição de uma
governamentalidade circunscrita à Razão de Estado.
Diante disso emergem novos saberes, exemplificados na elaboração de
mapas e de instruções régias aos capitães-generais, os quais começam a enunciar
novos pontos de atuação política em relação ao governo dos homens em suas
relações com as coisas e com a constituição de um Estado de polícia, após o
terremoto de Lisboa, mesmo presa pelas reflexões de Razão de Estado e Governo.
A ideia de limiar também é estratégica, uma vez que, ao demarcamos
os dispositivos de soberania presentes durante o século XVIII, agora tratava-se de
apresentar alguns elementos novos na articulação do exercício de poder,
principalmente entre as reformas ditas pombalinas e marianas.
Ainda em relação ao segundo capítulo, procuro mostrar que toda a
segunda metade do século XVIII se inscreveu numa atmosfera intelectual de zona
cinzenta e de contornos mal definidos, pois, ao mesmo tempo em que se projetava
uma racionalização do Estado e de toda a polêmica que ela suscitava entre Pombal
contra os jesuítas e a nobreza, era mais por conta das premissas de Razão de Estado
do que por princípios iluministas propriamente ditos.
Nesse regime de discursividade, a pauta política era criar formas de
fortalecimento do Estado, do poder régio, de expansão e conservação de suas
possessões territoriais por meio de técnicas de certa maneira arbitrárias, que
previam, inclusive, o golpe.25
Nesse mesmo momento, procuro situar as dimensões desse tipo de
reflexão e de exercício político nos governantes da capitania de Mato Grosso, tendo
por base as instruções régias e as instruções que cada governante deixava para o seu
sucessor, além de explorar um conjunto de mapas descritivos das condições de seus
habitantes e da capacidade de defesa.
25
SENELLART, Michel. As Artes de Governar: do regimen medieval ao conceito de governo.
Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 2006.
25
Tais fontes documentais caracterizavam-se por oferecer diretrizes a
serem seguidas, mas que permitiram, sempre que necessário, uma reformulação
diante das situações contingentes não previstas. Dessa maneira, o capitão-general
individualmente deveria tomar conhecimento de cada elemento da capitania e
estabelecer um plano de ação política diante da situação que apresentada, sem,
contudo, se desviar da proposta de fortalecimento e respectivamente a sua defesa.
A confecção de mapas descritivos cada vez mais elaborados, na
segunda metade do século XVIII, vão dar mostras do controle da capitania por meio
do saber geral sobre os seus habitantes, das receitas e despesas, dos armamentos
etc., ainda presa uma lógica de conservação.
As cartas geográficas vão ganhando cada vez mais importância na
organização das primeiras estatísticas levantadas no território mato-grossense, o
que confere centralidade política à problemática da população, tema a ser explorado
com mais detalhe no capítulo seguinte.
No terceiro capítulo trato das condições de nascimento da biopolítica
na província de Mato Grosso, ou seja, o um conjunto de enunciados, práticas
discursivas e não discursivas que criaram o campo de “visibilidade e dizibilidade”26
quanto à problemática da população e sua regulação. Trata-se de apresentar a
emergência de premissas que vão articular a temática da gestão governamental com
as condições de vitalidade de uma população, junção, portanto, do homem-espécie
com o homem político:
26
DELEUZE, Gilles. Foucault. Tradução de Cláudia Sant’Anna Martins. São Paulo: Brasiliense,
2005.
26
uma média, estabelecer uma espécie de homeostase, assegurar
compensações; em suma de instalar mecanismos de previdência
em tomo desse aleatório que é inerente a uma população de seres
vivos, de otimizar, se vocês preferirem, um estado de vida:
mecanismos, como vocês vêem, como os mecanismos
disciplinares, destinados em suma a maximizar forças e a extraí-
las, mas que passam por caminhos inteiramente diferentes. Pois
aí não se trata, diferentemente das disciplinas, de um treinamento
individual realizado por um trabalho no próprio corpo. Não se
trata absolutamente de ficar ligado a um corpo individual, como
faz a disciplina. Não se trata, por conseguinte, em absoluto, de
considerar o indivíduo no nível do detalhe, mas, pelo contrário,
mediante mecanismos globais, de agir de tal maneira que se
obtenham estados globais de equilíbrio, de regularidade; em
resumo, de levar em conta a vida, os processos biológicos do
homem-espécie e de assegurar sobre eles não uma disciplina, mas
uma regulamentação27.
27
FOUCAULT, Michel. Aula de 17 de março de 1976. In: Em defesa da sociedade. Tradução de
Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 293-294.
27
que, entre outras coisas, materializava o desgaste das premissas de bom governo e
de Razão de Estado, pois com as premissas liberais se apresentariam como
limitação de poder do Estado:
28
FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo:
Martins Fontes, 2008, p. 28.
29
FOUCAULT, Michel. Op. cit., p. 96.
28
Trata-se, nesse sentido do limiar de uma Governamentalidade liberal
como premissa fundamental da biopolítica, cujo alvo é a população, dando
visibilidade a uma forma de exercício de poder que aos poucos assume para si o
papel de controlar a conduta das pessoas e intervir na sua regulação. Diante desse
papel, começava a circular, já nas primeiras décadas do século XIX, a preocupação
em desenvolver uma ciência estatística que atendesse inicialmente ao projeto de
conhecer o próprio país, pois, com o processo de independência, “[...] não havia uma
unidade brasileira; a tradição colonial portuguesa não constituíra um território brasileiro
centralizado. Grandes regiões relacionavam-se diretamente com Lisboa”30.
Diante disso, apresentarei os mecanismos de controle para gerir a vida
de uma população em sua minúcia, atestada pela preocupação com a estatística de
Mato Grosso, levada a cabo por D’Allincourt e sua comissão, descrevendo, por
meio desse trabalho, a província como um todo: seu território e habitantes com seus
gestos, atitudes e comportamentos em relação às condutas.
O saber estatístico esboçado por D’Allincourt criou as bases
fundamentais que permitirão que a problemática da regulação da população ganhe
consistência ainda no período regencial, em meio às guerras civis que fermentavam
pelo país.
A importância do saber estatístico atravessou todo o período regencial,
que, mesmo diante de vários percalços que apontavam para a realização desses
trabalhos estatísticos e das deficiências de seus dados apresentados, ainda assim ele
era tido pelos presidentes de província enquanto ferramenta indispensável na
condução dos negócios públicos e na intervenção sobre a conduta da população, por
isso era uma temática recorrente nos relatórios apresentados por pelos
administradores provinciais.
Por fim, no quarto e último capítulo busco pensar, a partir dessa
biopolítica das populações, a problemática do “medo do Estado” em face a essa
população que se pretendia regular, e do “medo dessa mesma população” em face
das diretrizes governamentais traçadas pelos presidentes de província. Diante dessa
tensão entre governantes e governados se insinua o triedro: instrução, segurança e
30
SENRA, Nelson de Castro. Uma breve História das estatísticas brasileiras (1822-2002). Rio de
Janeiro: IBGE, Centro de Documentação e Disseminação de Informações, 2009.
29
saúde enquanto estratégia da biopolítica, condição que certamente colocava tensões
e receios aos administradores privinciais e aos seus habitantes, tornada ainda mais
latente com o evento que se convencionou a chamar, pela historiografia mato-
grossense, de “Rusga”, e que, ao nosso ver, assume nessa historiografia uma
“tonalidade branda” de desavença política, em contraposição aos movimentos
regenciais que ocorreram basicamente no mesmo período (Cabanagem, Sabinada,
Balaiada, Farroupilha, Revolta dos Malês31), não levando em consideração o clima
de apreensão e preocupação expresso nos discursos dos presidentes de província,
os quais apresentavam em seus relatórios adjetivações muito fortes em relação a
esse evento, como “sediosos, facinorosos, anarquistas” etc.
Além disso, trata-se de dar visibilidade aos modos de vida assumidos
pelos habitantes da província de Mato Grosso que, em muitas ocasiões, teimavam
em não se adequar às premissas governamentais estabelecidas pelos presidentes de
província, situação que materializava, talvez, certa desconfiança nas ações
administrativas destes em relação às suas vidas, mesmo diante da criação do novo
código Penal do Império, de 1831, que se apresentava como moderno e buscava até
certo ponto suprimir algumas formas de castigo previstas pelas Ordenações
Filipinas.
Se por um lado o novo código penal do império representava em certo
sentido uma novidade em relação às punições contra os ilegalismos32, comportava
outras formas de sujeição, que a população não tardaria a perceber.
“Vidas paralelas” que criavam, na imanência de suas vidas e na
contingência de seus sofrimentos, estratégias de produção do medo enquanto
“efeito de poder”33, cujos desdobramentos se fizeram sentir no acontecimento de
maio de 1834 (Rusga).
Enfim, conclui-se o capítulo discutindo a relação entre guerra civil e a
tensão que ela produziu na população, enquanto elemento catalisador de medo e
31
Cf. BASILE, Marcelo. O laboratório da Nação: a era regencial (1830-1841). In: O Brasil Imperial
vol. II (1831-1889). Keila Grinberg; Ricardo Salles (Org.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2009.
32
Cf. MACHADO FILHO, Oswaldo. Ilegalismos e jogos de poder: um crime célebre em Cuiabá
(1872) suas verdades jurídicas e outras histórias policiais. Cuiabá: EdUFMT, 2006.
33
MACHADO FILHO, Oswaldo. Rusga: o medo como efeito de poder. In: Rusga: uma rebelião no
sertão: Mato Grosso no Período Regencial (1831-1840). Ernesto Cerveira de Sena; Maria Adenir
Peraro (Org.). Cuiabá: EdUFMT, 2014.
30
coragem, pois é no confronto das vidas que o risco de morte se assenta, quando a
soberania do rei em produzir paulatinamente a morte passa a ser assumida por
outros personagens.
Dito isso, trata-se de situar os primeiros contatos portugueses no
território de Cuiabá e Mato Grosso e suas formas de atuação governamental nessas
áreas, ocasião em que tem início um projeto de sedentarização e um processo
coloniza(dor) [as dores que impunham aos povos nativos e as dores e os sofrimentos
que estes passavam na tentativa de domínio), de que por muitas vezes foram alvo
de restrições e acomodamentos com as condições locais e com as premissas de
soberania e bom governo.
No decorrer do século XIX, assiste-se lentamente à penetração das
premissas liberais de governo e a constituição do gabarito de inteligibilidade da
biopolítica na gestão da população tomada enquanto sujeito coletivo e objeto de
investimento governamental, criando-se as condições de vitalidade do Estado
(período conturbado entre as várias guerras civis: Balaida / Sabinada / Farroupilha
/ Cabanagem / Guerra dos Malês / Rusga), o que criava um clima de instabilidade
política com insatisfações populares que vão ser estancadas somente com o golpe
da maioridade, em 1840.
Novos problemas emergiram em relação aos governados, em relação à
punição de contracondutas/ilegalismos (sedições por exemplo), aos investimentos
no corpo produtivo, às atenuações das penas (paradoxo do convívio do sistema
escravista de produção) embasados nas premissas do pensamento liberal.34
Transvestidas de um discurso liberal e civilizatório, as primeiras
experiências governamentais desenvolvidas na capitania de Mato Grosso vão
assumir o discurso que arroga gerir a liberdade para melhor interferir nos corpos da
população, em suas vidas e condutas.
No projeto de afirmação da identidade nacional e do crescente
investimento na construção de cidadania é patente que alguns grupos, algumas
34
Sobre a paradoxal e desconcertante fundamentação epistêmica e prática de violências físicas e
simbólicas com conotações raciais cometidas por representantes do liberalismo anglo-americano, ou
seja, entre duas nações consideradas os maiores representantes do liberalismo. Cf. LOSURDO,
Domenico. Contra-história do Liberalismo. Tradução de Giovanni Semeraro. Aparecida-SP: Ideias
e Letras, 2006.
31
pessoas, algumas categoriais sociais sejam deliberadamente esquecidas de tais
ações políticas.
Trata-se uma experiência temporal que denota uma mutação epistêmica
sob o governo de dois impérios: o primeiro, o Reino de Portugal em relação à sua
colônia e, o segundo, a formação do Estado Nação brasileiro e os problemas
específicos que essa realidade comportava, entre eles aqueles suscitados pelas
guerras civis que se assistiram entre o reinado de D. Pedro I e D. Pedro II.
Diante disso, tornou-se essencial situar a instabilidade política do
Império no primeiro reinado e nas regências, e como Mato Grosso se posicionou
em relação a esse clima de “convulsões políticas” que poderiam colocar em xeque
a recém-emancipada nação brasileira.
Assumindo a proposta foucaultiana de uma história das
problematizações, buscamos pensar a problemática da população tendo por base a
seguinte premissa: a partir de que momento a população aparece como problema
central para os governantes mato-grossenses? Nesse sentido, busca-se, a partir de
um procedimento arquegenealógico35, datar o momento em que a população se
constitui enquanto problema político em relação às formas de governar ao que
comumente chamamos de estado de Mato Grosso, e que exercícios de poder são
imanentes desse processo.
Nas considerações finais traço o panorama geral da pesquisa e, na
medida do possível, trago alguns ecos sobre as formas de dominação biopolítica
atuais, onde as reformas trabalhistas, da previdência e os golpes que convivem no
cenário de segredo de Estado, que se escancara cotidianamente com delações. Tal
premissa se sustenta no efeito de superfície que a Arqueologia do Saber nos lança
a fazer o diagnóstico da atualidade em relação àquilo que nos constituiu
historicamente para aquilo que estamos deixando de ser, suscitando uma reflexão e
ação a partir de nós mesmos.
A documentação pesquisada em relação ao período colonial se
fundamentou principalmente em cartas, ofícios, regulamentos, instruções régias,
as Odernações Filipinas, os Anais do Senado de Cuiabá e de Vila Bela, bem como
os mapas criados nesse período, enquanto que o corpo documental consultado em
35
Cf. FOUCAULT, Michel. Op. cit.
32
relação à formação do Estado Nacional brasileiro foi constituído principalmente da
Constituição do Império de 1824, de leis e decretos imperiais e provinciais,
discursos e relatórios dos presidentes de província etc., com objetivo de perceber
a emergência da problemática da população em Mato Grosso.
Diante disso, o filósofo Michel Foucalt representou para mim uma
possiblidade teórica, medológica e política interessante para a análise da
problemática da população, visto assinalar uma escolha pessoal de pesquisa
construída afetivamente no interior da minha formação acadêmica.
Comecei a estudar o filósofo Michel Foucault na graduação de história,
na Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), ainda no primeiro
semestre, sob a regência do Prof. Ms. Odemar Leotti36. Lembro-me do poderoso
afeto que as suas aulas me deixavam, pois pela primeira vez vi uma concepção de
história que pensava sob o prisma da descontinuidade, da ruptura e da dispersão,
mas o que mais chamou a atenção nesse período foi o conceito de desconstrução.
Atinava-se para a preocupação historiográfica de que os
acontecimentos são construções históricas, datadas, circunstanciadas motivadas por
diferentes jogos de interesses e de poder, que aos poucos foi me seduzindo, pois
oferecia novas possibilidades de ver o mundo e de pensar as relações entre as
pessoas.
A minha leitura de Foucault no decorrer da minha formação iria se
aprofundar com as aulas ministradas pelo Prof. Ms. Clementino Nogueira de Sousa,
também meu professor na UNEMAT, cuja elegância, solicitude e paciência nos
contemplou com seu conhecimento sobre o filósofo, seus conceitos e nos incentivou
a pensar com o ele, o que resultou na minha monografia de graduação, intitulada
“Corpos decadentes: o nascimento do asilo Lar Santa Rita de Cássia em São José
dos Quatro Marcos-MT (1984-1999)”, apresentada em 2005 e sob a orientação do
professor Adson de Arruda.
O filósofo Michel Foucault também foi o meu principal referencial na
dissertação de mestrado, em Estudos de Cultura Contemporânea sobre o escritor
36
Hoje, o professor Odemar Leotti é doutor e professor da Universidade Federal de Mato Grosso
(Campus de Rondonópolis).
33
italiano Primo Levi37 e suas experiências no campo de concentração de Auschwitz,
em relação à problemática ao exercício do biopoder que produz uma vida nua e a
escrita enquanto forma de resistência, de luta e cuidado de si diante um mundo que
constantemente atualiza dispositivos fascistas.
A problemática da população surgiu no ano de 2014, no contexto do
processo de reeleição da presidenta Dilma Rousseff, e acompanhou todos os
percalços, as tramas e intrigas políticas que levaram ao seu impeachment.
Semelhante situação colocava em cena a força, pujança e atualidade dos “Golpes
de Estado”, em pleno século XXI, com a ativação de um dispositivo de controle
histórico, cujo nascimento data da formação das grandes monarquias
administrativas do século XVII e de um regime “biopolítico” de regulação das
populações.
Diante desse cenário, ao meu ver, trata-se do pensador mais importante
para se pensar a história, primeiro, por pensa-la em sua descontinuidade, e, segundo,
por ajudar a pensar as diferentes relações de poder e formas de controle históricos
e, por fim, por movimentar categorias de pensamento histórico que nos ajudam
refletir sobre a nossa atualidade: no caso específico, a problemática da população
nas formas sutis de controle atuais, bem como a disseminação de um contradiscurso
do poder, quando a própria população estabelece suas próprias demandas e pautas
políticas.
A densidade histórica da problemática da população é assumida como
objeto e sujeito de ação governamental, num período histórico que data da
passagem da condição de colônia, de fronteira mineira da capitania de Mato Grosso,
para a formação de uma unidade territorial organizada em províncias, a partir do
processo de independência do Brasil.
37
Dissertação intitulada: “Primo Levi: por uma vida não fascista” sob a orientação valiosa da
professora Dra. Ludmila de Lima Brandão. Cf. REIS, Cristiano Antonio dos Reis. Primo Levi: por
uma vida não fascista. Dissertação (Mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea) –
Universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá, 2010.
34
CAPÍTULO 1
Meu projeto de discurso é um projeto de presbita. Gostaria de fazer aparecer o que está próximo
demais de nosso olhar para que possamos ver o que está aí bem perto de nós, mas que nosso olhar
atravessa para ver outra coisa.
Michel Foucault (O belo perigo, 2016)
38
VOLPATO, Luiza Rios Ricci. A Conquista da terra no universo da pobreza: a formação da
fronteira Oeste do Brasil. São Paulo; Brasília: Hucitec; INI, 1987.
39
MEIRELES, Denise Maldi. Guardiães da fronteira: Rio Guaporé, século XVIII. Petrópolis:
Vozes,1989.
35
Tal dispositivo, ainda seguindo as pistas de Michel Foucault,
apresentava quatro características principais: a relação coleta/despesa,
anterioridade fundadora de um direito, relação diferenciadora não isotópica40,
fazer morrer e deixar viver41.
Trata-se de demarcar conceitualmente o campo de inteligibilidade
histórica, a que, numa ressonância do pensamento foucaultiano, chamo de
dispositivo de soberania e que imbrica dois elementos fundamentais para a
organização da monarquia portuguesa e o controle da conduta das pessoas que
fazem parte dessa sociedade, ou seja, busca-se pensar inicialmente nas relações
estabelecidas a partir de um Código Civil, que criara condições de funcionamento
dos rituais de exercício de poder régio e dos privilégios da corte (nobres e clero)
administrar mercês, honrarias, fiscos e almas, o que condiz com os quatro primeiros
livros das Ordenações Filipinas, mas há um segundo elemento, que são as relações
estabelecidas a partir do Código Penal, nesse caso, o Livro V das Ordenações
Filipinas, em que o poder régio “como fonte de justiça” é sempre afrontado quando
alguém infringe seus códigos.42
Dessa maneira, nas reflexões a seguir trago algumas considerações
conceituais sobre o “dispositivo de soberania” enquanto um operador de
inteligibilidade histórica sobre as práticas governamentais exercidas em Cuiabá e
Mato Grosso no século XVIII, e os campos de domínio que elas recobriam, a que
40
Cf. FOUCAULT, Michel. O poder psiquiátrico. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.
41
FOUCAULT, Michel. A História da sexualidade, vol. 1: a vontade de saber. Tradução de Maria
Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon de Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1988, p. 125-149.
42
Havia nesses códigos filipinos uma série de relações que afirmavam uma forma de governo
circunscrita à relação do soberano com seus súditos e sua corte, cada qual com seus direitos e
compromissos. Nesse sentido, as Ordenações Filipinas traziam as ressonâncias de uma prática
escriturária, que, entre os séculos XVI e XVII, já demarcava os signos de distanciamento entre uma
nobreza e os demais súditos, exemplo desse tipo de distanciamento é assinalado pelo historiador
Fernando Bouza, no livro Corre Manuscrito, onde desenvolve uma reflexão sobre as práticas de
escritas desenvolvidas pelos cortesãos entre os séculos XVI e XVII, como uma espécie de
necessidade de se afirmarem com um grupo singular no universo cultural dos letrados, na criação de
um ethos aristocrático e impedindo que outras pessoas comuns tivessem acesso a esse tipo de cultura.
Tratava-se de afirmação de um código nobiliárquico e de corte expressas em escritos como cartas,
avisos, testamentos etc. em relação a outras formas de escrita, que tecnicamente estavam disponíveis
a um grupo maior. Cf. BOUZA, Fernando. Corre Manuscrito: Una historia cultural del siglo del
Oro. Madrid: Marcial Pons, 2006.
36
urgências respondiam, as preocupações elas apontavam e quais personagens
estavam envolvidos nessas relações de soberania.
1.1- Coleta/Despesa
43
FOUCAULT, Michel. O poder psiquiátrico. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 53.
37
fornecimento de gado para Cuiabá, em troca da abertura de caminhos que ligasse a
região sul com as vilas de Cuiabá:
44
JESUS, Nauk Maria de. O governo local na fronteira oeste: a rivalidade entre Cuiabá e Vila Bela
no século XVIII. Dourados: EdUFGD, 2011, p. 111.
45
Ibid., p. 149.
38
na relação social pautada em valores nobiliárquicos, no que diz respeito ao aspecto
político do rei e sua corte, e no aspecto econômico através do funcionamento da
política mercantilista.
O domínio da prática política do mercantilismo lida com a problemática
das riquezas, o que, certamente, é diferente da reflexão que se tornará latente sobre
a produção pelo desenvolvimento da economia política e da arte liberal de governo.
A esse respeito, Foucault, em As Palavras e as Coisas, afirma que:
46
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo:
Martins Fontes, 1999, p. 239-240.
39
entre a moeda e a riqueza se estabelecem sob a forma da
circulação e das trocas47.
47
Ibid.
48
Ibid., p. 246.
40
depois de ocorrer o levante de Vila Rica, em 1720, cuja liderança do movimento foi
atribuída a Felipe dos Santos49.
Tal situação pode ser exemplificada por uma certidão elaborada pelo
Fr. João de Assumpção Prior, superior da Companhia de Nossa Senhora de Monte
Carmo, e demais conventuais da cidade de São Paulo sobre as ações de Rodrigo
Cézar de Menezes:
49
Revolta ocorrida no ano de 1720, momento em que a atividade aurífera da região das Minas Gerais
alcançava o seu apogeu. Essa situação impôs aos colonos mecanismos fiscais cada vez mais
sofisticados para captar o ouro minerado. Dentre tais medidas estava a criação das Casas de Fundição
nas quais todo o ouro produzido era transformado em barra e retirado o quinto, além disso proibiu a
circulação do ouro em pó, o que gerou o descontentamento dos colonos que lutavam contra o fim
das casas de fundição, a redução de vários impostos e tributos, bem como, fim dos monopólios do
fumo, sal, aguardente e gado. Os ecos desse movimento provavelmente influenciaram a
Inconfidência Mineira de 1772. Cf. Discurso Histórico e Político Sobre A Sublevação Que Nas
Minas Houve No Ano De 1720. (Estudo Crítico Estabelecimento do Texto e Notas Laura De Mello
e Souza). Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1994.
50
MF.02, Doc. 28, AHU. 4a fila-12o doc. In: Coletânea de Documentos Raros do Período Colonial
(1727-1746), vol. V. Eliane Maria Oliveira Morgado... [et.al.] (Org.). Cuiabá: Entrelinhas;
EdUFMT, 2007, p. 97. (Série transcrição: legislação e notoriado)
41
Ou seja, essa relação dissimétrica que punha de um lado a coleta e de
outro a despesa, criava uma tensão entre o monarca e seus súditos, pois, se de um
lado a coleta prevalecia sobre a despesa, o rei, enquanto soberano, tinha que deter
muita sabedoria para ministrar simetricamente e sob a forma de direito o que cabia
a cada um de seus súditos. Assim sendo,
51
MOTTA, Manoel Barros da. Crítica da razão punitiva: Nascimento da prisão no Brasil. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2011, p. 20.
52A historiadora Fernanda Olival lembra que a liberalidade era um gesto de dar que, na cultura
política do Antigo Regime, era uma virtude própria dos reis, quer em Portugal, quer no resto da
Europa Ocidental, enfim, será essa liberalidade relacionada a uma virtude dadivosa dos reis que aos
poucos foi subsituida pelas premissas do liberalismo político no século XIX. Cf. OLIVAL,
Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno: honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-
1789). Lisboa: Estar, 2001; HESPANHA, Antonio Manuel. A constituição do Império português:
revisão de alguns enviesamentos correntes. In: O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial
portuguesa (séculos XVI-XVIII). João Fragoso, Maria Fernanda Bicalho, Maria de Fátima Gouveia
(Orgs.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
42
sobretudo hábitos de Cristo a gente tão vaidosa como os paulistas
que só se lembrava de honras, desprezando conveniências53.
53
DOCUMENTOS INTERESSANTES PARA A HISTÓRIA E COSTUMES DE SÃO PAULO.
Archivo do Estado de São Paulo. Publicação Official, 1885, vol. XII, p. 41.
54
SILVA, Jovam Vilela. Mistura de cores (Política de povoamento e população na Capitania de
Mato Grosso – Século XVIII). Cuiabá: EdUFMT, 1995, p. 41.
55
MF-34 doc.276. Correspondência de Antonio da Silva Caldeira Pimentel à Corte/ 1740.
AHU/NDIHR/UFMT. Cuiabá-MT.
56
MF-216 doc.2483. Relatório de Luiz Pinto de Souza Coutinho a Martinho de Melo e Castro. Maio
de 1770. AHU/NDIHR/UFMT. Cuiabá-MT.
43
Dentre tais incentivos da Coroa portuguesa, Vilela Silva lembrava que
as ordens régias estabeleciam a isenção “[...] de pagamento de ‘fintas, talhas, e
qualquer tributo ainda o das entradas, e isto por tempo de dês anos’, a partir do
princípio da fundação da dita vila para o povoamento da Vila e de seu distrito”57.
Nesse sentido, já em 1769, quando Mato Grosso já se constituía em
capitania independente de São Paulo, Luís Pinto de Sousa Coutinho solicitava ao
rei, em tom de súplica, a prorrogação da mercê de isenção da meia capitação por
mais dez anos, como consignado na correspondência:
[...] pois não é para crer; nem para imaginar que um Monarca tão
justificado, e tão magnânimo, com plena advertência houvesse
de revogar subitamente, sem causa, uma mercê feita em
remuneração de serviços; maiormente sendo esta revogação em
detrimento desta fronteira58.
57
SILVA, Jovam Vilela. Op. cit. p. 51.
58
MF-191-doc. 2194. Carta do Presidente e Oficiais da Câmara de Villa Bela ao Rei. Assina
Manoel Cardoso da Cunha. AHU/NDIHR/UFMT. Cuiabá-MT.
59
DOCUMENTOS INTERESSANTES PARA A HISTÓRIA E COSTUMES DE SÃO PAULO.
Archivo do Estado de São Paulo. Publicação Official, 1885, vol. XII, p.50.
44
Tal situação demonstrava a necessidade de a Coroa portuguesa
conceder privilégios aos paulistas na ocupação das áreas onde se acharam novas
jazidas de ouro, e não consentir com o ocultamento oficial de sua descoberta. Dessa
maneira, para o paradigma político do período, cobrava-se do rei a administração
da justiça, à mercê de possíveis ressentimentos, e, por meio de sua intervenção
garantir a paz e a concórdia já expressas pelas Ordenações Filipinas, sobretudo
diante da problemática do povoamento, defesa e conservação do território.
É preciso esclarecer que a extensão do império português, construída
historicamente por meio das Grandes Navegações desde, pelo menos, o século XIV,
durante o comércio com as Índias e pelas rotas inventadas que contornavam o
continente africano, estabeleceu um domínio territorial grandioso e que envolvia
em suas teias povos de línguas e culturas diversificadas, o que certamente criava
constantes ameaças às suas possessões. Assim, a “[...] expansão portuguesa se deu
pela espada e pela cruz”, como bem mostrou o historiador João Marinho dos Santos:
60
SANTOS, João Marinho dos. A expansão pela espada e pela cruz. In: A descoberta do homem e
do mundo. Adauto Novaes (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.161.
45
da Republica e do Estado Real, a qual aos Reis convém como
virtude principal, e sobre todas as outras mais excelente, e em à
qual, como em verdadeiro espelho, se devem elas sempre rever e
esmerar; porque assim como a Justiça consiste em igualdade, e
com justa balança dar o seu a cada um, assim o bom Rei deve ser
sempre um e igual a todos em retribuir e a premiar cada um
segundo seus merecimentos61.
E assim como a Justiça é virtude, não para si, mas para outrem,
por aproveitar somente aqueles á que se faz, dando-se lhes o seu,
e fazendo-os bem Viver, aos bons como prêmios, e aos maus com
temor das penas, d'onde resulta paz e sossego na República
(porque o castigo dos maus é conservação dos bons ); assim deve
fazer o bom Rei, pois por Deus foi dado principalmente, não para
si nem para seu particular proveito, mas para bem governar seus
Povos e aproveitar a seus súditos como a próprios filhos; e como
quer que a Republica consista e se sustente em duas cousas;
principalmente nas armas e nas Leis, e uma haja mister á outra;
porque assim como as Leis com a força das armas se mantêm,
assim a arte militar com a ajuda das Leis é segura64.
61
(ORDENAÇÕES FILIPINAS, LIVRO I: P. LXXVIII). Lei de 5 de junho de 1595. Manda fazer huma
nova compilação das ordenações d'El-Rey D. Manoel, o da Legislação posterior.
62
Cf. ARAÚJO, Emanuel. O teatro dos vícios: Transgressão e transigência na sociedade urbana
colonial. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.
63
Essa premissa é importante, pois apresenta a dimensão da soberania naquilo que Foucault chamava
de relações diferenciadoras não isotópicas, a serem desenvolvidas com mais acuidade a seguir.
64
ORDENAÇÕES FILIPINAS, LIVRO I: Op. cit., p. LXXVIII.
46
A relação coleta/despesa, nesse sentido, configura-se como uma das
práticas dos regimes de soberania, onde cada um recebia o que, por merecimento,
lhe era devido. O que nos chama a atenção é a centralidade dada ao exercício de
punir, visto que, por semelhante lógica, o castigo dos maus era a conservação dos
bons.
Note-se que, no citado preâmbulo das Ordenações Filipinas, a virtude
do rei se assentava justamente na sua qualidade de ministrar a justiça, a fim de que
o sistema de coleta e despesa funcionasse articulando as múltiplas soberanias, seja
em território luso, seja em seus domínios de além-mar.
Outra dimensão importante nos fragmentos trazidos do Livro I das
Ordenações Filipinas foi a ideia de bom governo, a metáfora dos espelhos, a relação
das armas e das leis enquanto condição para um exercício de soberania que
garantisse a conservação, seja da República enquanto comunidade, seja do Estado
Real.
O que se vislumbra nesse discurso é que no momento em que as
ordenações começaram a ser recopiladas, a ideia de governo ainda não estava
relacionada a uma técnica de exercício político pautada em meios imanentes ao
fortalecimento do Estado. O efeito dissuasivo das Ordenações implicava em um
ideal de conservação e manutenção do funcionamento da soberania, primeiramente
por um aspecto desse dispositivo específico, justamente a coleta e a despesa.
Eis que, no ano de 1732, o então Conde de Sarzedas, assim como o fez
Rodrigo Cezar de Menezes anteriormente, solicitou ao rei de Portugal, D. João V
que, no uso de suas funções de administrar a justiça concedesse a restituição de um
pagamento efetuado sem dever:
65
Onça era uma unidade de medida utilizada entre os séculos XVIII e XIX pelos portugueses, e que
equivalia a 28,800g. Em sua História Econômica do Brasil o historiador Roberto Simonsen
apresentou um quadro geral sobre as unidades de medidas e moedas utilizadas pelos portugueses.
Cf. SIMONSEN, Roberto C. História econômica do Brasil 1500-1820. Brasília: Senado Federal,
2005. (col. Edições do Senado Federal v. 34).
47
outavas, q. junto ao rendimento das minas importa tudo doze
arrobas, cinco marcos, duas onças e seis outavas e meia, e não
seria esta remessa inferior a do ano passado, se não fizesse a
restituição de [...] arrobas, cinquenta e um m.cos, cinco onças, seis
outavas, e sessenta e nove grãos, q. se entregarão aos q. vierão o
ano de mil setecentos e vinte e outo das Minas do Cuyabá e o
haviam pago sem o dever, ao q. atendeu a real piedade de V.
Mag.e mandando lhes restituir. Deus guarde a real pessoa de V.
Mag.e.
São Paulo, 4 de setembro de 1732
O Conde de Sarzedas66.
A questão, aqui, não era se o rei devolveu ou não a quantia que foi paga
a mais, mas sim a prerrogativa da cobrança indevida, creditada à esfera de justiça.
A cobrança indevida, nesse caso, figuraria um ato que descredenciaria a figura do
rei enquanto árbitro de justa medida. Diante disso, uma passagem dos Anais do
Senado de Cuiabá é esclarecedora a esse respeito, ao se tratar de Pascoal Moreira
Cabral:
Até este tempo não houve mais justiça nestas minas que o
guarda-mor Paschoal Moreira Cabral, que as administrou na
forma do assinado que lhe fizeram e já fica copiado. Repartia as
lavras, acomodava as contendas que por elas havia, fazia pagar
dívidas, julgava as contendas e demandas que se moviam, tudo
verbalmente, sem que houvesse forma alguma de processo, com
tanta prudência, acordo e agrado das partes, que todas lhe
ficavam obrigados, tanto os vencedores como os vencidos. Era
paulista dos bons, homem chão, sem letras, pouco polido, de
agudo entendimento, sem maldade, sincero, caritativo por
extremo, servia e remediava a todos com o que tinha e no que
podia, esperto na milícia dos sertões e no exercício de minerar
pelo ter já exercitado nas Minas Gerais, valoroso e constante no
trabalho; faleceu nesta vila e jaz sepultado na igreja matriz dela
e deixou um filho do mesmo nome, que depois da morte do pai
veio a estas minas e voltou para povoado67.
66
MF. 20, Doc.875, AHU. 2ª fila-9º doc. In: Coletânea de Documentos Raros do Período Colonial
(1727-1746), vol. I. Eliane Maria Oliveira Morgado... [et.al.] (Org.). Cuiabá: Entrelinhas; EdUFMT,
2007, p. 97. (Série transcrição: correspondência)
67
ANNAES DO SENNADO DA CAMARA DO CUYABÁ: 1719-1830. Transcrição e organização
Yumiko Takamoto Suzuki. Cuiabá: Entrelinhas; Arquivo Público de Mato Grosso, 2007, p. 50.
48
“sinceridade, caridade, prestativo, conciliador, prudente, bondoso etc.,” as quais
faziam com que qualquer contenda fosse resolvida positivamente entre as partes
conflitivas.
Enfim, esse aspecto da coleta/despesa produziu ressonâncias ao
estabelecer uma espécie de balança de virtudes, as quais qualificariam o que seria
um bom governo, muito provavelmente pelo debate travado entre os jesuítas desde
o século XVII em reação à Reforma Protestante e à nascente Razão de Estado, mas
também quanto à influência que esse grupo exercia sobre a corte portuguesa até o
final do século XVIII, mesmo que o limiar de ruptura tenha se iniciado com as
reformas pombalinas, cujos impactos serão discutidos no próximo capítulo.
68
FOUCAULT, Michel. O poder psiquiátrico. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 53.
49
extraordinariamente refinada para as posturas, a fala e o comportamento que
convém ou não a um indivíduo segundo sua posição e seu valor na sociedade”69.
Essa sensibilidade ou sentimento de ascendência sobre outros grupos
sociais foi produzido por meio de um conjunto de códigos simbólicos que
fundamentaram privilégios sociais, políticos e econômicos marcados “por um ato
ou gesto fundador inquestionável” que naturaliza como verdade absoluta um
direito.
Na colônia, por exemplo, esse processo constituiu gradativamente “uma
nobreza da terra”. À guisa de exemplo, o historiador João Fragoso, ao trabalhar com
a constituição de uma elite senhorial no Rio de Janeiro, entre os séculos XVI e
XVII, apontava três características dessa nobreza:
69
ELIAS, Nobert. A sociedade de corte: Investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia
de corte. Tradução de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 77. Essa dimensão
da anterioridade fundadora em relação aos privilégios de sangue e de nome pode ser visualizada,
por exemplo, no livro O nome e o Sangue, escrito por Evaldo Cabral de Melo. Cf. MELO, Evaldo
Cabral de. O nome e o Sangue: uma parábola da genealógica do Pernambuco colonial. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
70
FRAGOSO, João. A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite
senhorial (séculos XVI e XVII). In: O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa
(séculos XVI-XVIII). João Fragoso, Maria Fernanda Baptista Bicalho e Maria de Fátima Silva
Gouvêa (Org.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 52.
50
semelhante nobreza. Os Anais de Vila Bela nos trazem o seguinte exemplo de
formação dessa nobreza:
71
AMADO, Janaína; ANZAI, Leny Caselli (Orgs.). Anais de Vila Bela – 1734-1789. Cuiabá: Carlini
&Caniato; EdUFMT, 2006, p. 80.
72
ANNAES DO SENNADO DA CAMARA DO CUYABÁ: 1719-1830. Op. cit., p. 95.
51
Reforçando essa ideia de “nobreza da terra”, a organização do governo
local nas minas de Cuiabá e de Mato Grosso, mas também a de outros espaços
auríferos descobertos posteriormente constituiu-se enquanto direito fundador
sustentado pelos serviços prestados à Coroa portuguesa, como expressou uma carta
de Rodrigo Cézar de Menezes:
[...] Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá teve sua origem a
partir da descoberta do ouro nas lavras do Coxipó-Mirim, em
1719, tendo à frente de tal investida paulistas e reinóis. Várias
medidas foram adotadas pela Coroa para garantir a permanência
e evitar o descontentamento desses homens no local, como, por
exemplo, a elevação do arraial do Senhor Bom Jesus do Cuiabá
à condição de vila, no ano de 1727. Esta passaria a contar com
sua câmara municipal, criada em dezembro de 1726, e os
poderosos locais teriam um espaço institucional para representar
os seus interesses. A vila, na primeira metade dos setecentos,
pertencia à jurisdição da capitania de São Paulo74.
73
MF.12, Doc. 732, AHU. 3ª fila- 3º doc. - anexo 5. In: Coletânea de Documentos Raros do Período
Colonial (1727-1746), vol. I. Eliane Maria Oliveira Morgado... [et.al.] (Org.). Cuiabá: Entrelinhas;
EdUFMT, 2007, p. 52. (Série transcrição: correspondência)
74
JESUS, Nauk Maria de. Op. Cit., p. 17.
52
Essa gênese embasada na filiação dos bandeirantes paulistas, se
produziu no emaranhado discursivo onde os nós dessa teia se encontravam, dando
visibilidade a uma ideia de glória, honra e domínio dos paulistas que, a custa de
suas ações, “[...] contribuíram para o aumento da fazenda real, onde foram
destacadas as conquistas no interior do território e a descoberta de ouro”75.
Tal filiação aos paulistas é perceptível, por exemplo, na crônica
Relação das Povoações de Cuiabá e Mato Grosso dos seus princípios até o
presentes tempos, escritos por José Barbosa de Sá, a qual iniciou com a
identificação dos bandeirantes paulistas, seguida das ações de catequização trazidas
por Anchieta em São Paulo e a expansão das conquistas territoriais pelas
navegações dos rios. Assim Barbosa de Sá inicia sua crônica:
75
Ibid., p. 152.
76
SÁ, Joseph Barbosa de. Relaçaó das povoaçoens do Cuyabá e Mato Grosso de seos princípios
thé os presentes tempos. Cuiabá: EdUFMT, 1975, p. 9.
53
[...] Subindo o rio Pardo tomando a barra do Anhandohy e
Anhangohy que são dois rios nascidos de uma madre, navegando
estes acima até as vertentes que caem para o Paraguai que formão
o rio Matetéu e outros; acharão seis povoações de gente
castelhana brancos índios e mestiços com Igrejas Casas de talha
oficinas criações de bois cavalos e carneiros a quem os nossos
famosos capitães como fieis portugueses fizeram guerra por
repetidas vezes até que pondo em fuga os brancos recolherão
muitos índios destruirão e queimarão as feitorias vendo
pertencerem àqueles lugares ao domínio de Portugal, aonde se
acha por memoria algum gado vacum, chamados hoje as
vacarias, o que causou tanto espanto e temor as povoações da
província do Paraguai que ali mais não tornarão e ao não ser isso
seriam hoje do domínio da Espanha todos os nossos lugares até
São Paulo Minas Gerais Goiás e Cuiabá77.
77
SÁ, Joseph Barbosa de. Op. cit., p. 10.
78
ANNAES DO SENNADO DA CAMARA DO CUYABÁ: 1719-1830. Op. cit., p. 47.
54
[...] Aranzel, em que qualquer dicionário, é discurso prolixo e
enfadonho; lengalenga [Aurélio], significação que vinha do
século dezesseis, quando a palavra chegou ao português,
proveniente do árabe, através do espanhol.
Mas, ao tempo da penetração a Mato Grosso, o vocábulo também
designava antiga tarifa alfandegária, e ainda FORMULARIO,
REGULAMENTO ou REGIMENTO. Nesta última acepção é
que o cronista Barbosa de Sá usou o termo que é também
conhecido como ATA de fundação de Cuiabá79.
79
ANTONIO NETO, João. História do Poder Judiciário de Mato Grosso. Cuiabá: s/ed. 1985, p.
82.
55
de Góes – José Fernandes – Antonio Moreira – Ignacio Pedroso
– Manoel Rodrigues Moreira – José da Silva Paes80.
80
ATA de Fundação de Cuiabá. In: Annaes do Sennado da Camara do Cuyabá: 1719-1830. Op.
cit. p. 42.
81
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Tradução de Cláudia de Moraes
Rego. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2011, p. 22. Nesse mesmo sentido, à luz do historiador
Michel de Certeau, os lugares de poder ao mesmo tempo que autorizam um lugar de fala, promovem
também a sua interdição. Cf. CERTEAU, Michel. A Operação historiográfica. In: A Escrita da
História. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
82
Ibid.
56
Joseph de Sá e nos Anais do Senado da Câmara de Cuiabá (ambos elaborados a
partir do final do século XVIII).
Em relação a esse ponto, é digno de nota a análise de Carlos Alberto
Rosa, na introdução aos Anais do Senado de Cuiabá, salientando que é a partir de
1786 que a Câmara passou a produzir esse documento, seguindo o modelo dos
Anais de Vila Bela. Tal situação leva a pensar que a confecção dos anais em relação
aos anos anteriores teve por base registros anteriores, assim sendo, Carlos Alberto
Rosa lembra que eles foram estabelecidos em dois momentos distintos:
83
ANNAES DO SENNADO DA CAMARA DO CUYABÁ: 1719-1830. Op. cit., p. 30.
57
No século XVIII o poder soberano revestiu-se de legalidade; o
rei exerce o poder por direito, inicialmente direito divino, em
seguida por direito consuetudinário. Foi esse modelo que povoou
o imaginário da filosofia política moderna, em torno de nomes
como Bodin, Maquiavel, Hobbes e Locke, contribuindo para
disseminar a identidade entre lei e poder, entre direito e justiça,
entre soberania e juridicidade84.
84
ADORNO, Sérgio. Direito, violência e controle social. In: O legado de Foucault. L. Scavone; M.
C. Alvarez; R. Miskolci (Org.). São Paulo: Ed. UNESP, 2006. p. 209.
85
Nesse sentido, é pertinente a análise de Jean-Jacques Chevallier sobre pensadores como:
Maquiavel, Bodin, Hobbes como teóricos que estabeleceram tais premissas de soberania. Cf.
CHEVALLIER, Jean-Jacques. As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias. Tradução de
Lydia Cristina. Rio de Janeiro: Agir, 1999.
86
MOTTA, Manoel Barros da. Crítica da razão punitiva: Nascimento da prisão no Brasil. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2011, p. 22.
58
ouro de Cuiabá e em seguida as de Mato Grosso. Vejamos outro exemplo, agora,
de ordem régia:
[...] Dom João por graça de Deus Rey de Portugal e dos Algarves
daquém e dalém mar em África Senhor da Guiné etc. Faço saber
aos oficiais da Câmara da Villa Real do Bom Jesus do Cuyabâ
que se viu a conta que me destes em carta de dez de Abril do ano
passado sobre as ‘mortes e insultos’ que nos fazia o gentio
Payaguá e guerra que muitos moradores intentarão fazer-lhe para
o que novamente se ficarão aprestando a sua custa dando-lhes
[...] para melhor segurança as duas pesas de artilharia que se
acham nessas minas pertencentes a minha fazenda e o mais
necessário de pólvora e balas canoa para transporte e mais
petrechos87.
87
MF.08, Doc.105, AHU. In: Coletânea de Documentos Raros do Período Colonial (1727-1746),
vol. I. Eliane Maria Oliveira Morgado...[et.al.] (Org.). Cuiabá: Entrelinhas; EdUFMT, 2007, p.97.
(Série transcrição: correspondência)
59
missa cantada e sermão pregado pelo padre José Angola,
religioso franciscano. As manifestações profanas foram
compostas por representações de duas comédias, banquetes e
fogos de artifício, que duraram quatro dias, por conta das
“pessoas principais” da vila88.
88
SILVA, Gilian Evaristo França. Festas e celebrações em Vila Bela da Santíssima Trindade no
século XVIII. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá,
2008, p. 68.
89
Ibid., p.30.
60
Em outras palavras, as relações de soberania são perpétuas
relações de diferenciação, mas não são relações de classificação;
elas não constituem um quadro hierárquico unitário com
elementos subordinados, elementos superordenados. O fato de
serem não -isotópicos quer dizer, em primeiro lugar, que não têm
medida comum, são heterogêneas umas em relação às outras.
Vocês têm, por exemplo, a relação de soberania que encontramos
entre o servo e o senhor; vocês têm outra relação de soberania,
que é absolutamente insuperponível àquela e que é a relação entre
detentor do feudo e suserano; vocês têm a relação de soberania
exercida pelo padre em relação ao leigo. Todas essas relações não
podem ser integradas no interior de um sistema verdadeiramente
único. Além disso- é também o que marca a não-isotopia da
relação de soberania-, os elementos que ela implica, que ela põe
em jogo, não são equivalentes: uma relação de soberania pode
perfeitamente dizer respeito á relação entre um soberano pode
perfeitamente dizer respeito à relação entre um soberano ou um
suserano- não faço diferença em uma análise tão esquemática
como esta- e uma família, uma coletividade, os habitantes de uma
paróquia, de uma região; mas a soberania pode ter por objeto
uma terra, uma estrada, um instrumento de produção (um moinho
por exemplo), os usuários- as pessoas que passam por um
pedágio, uma estrada, caem sob a relação de soberania90.
90
FOUCAULT, Michel. O poder psiquiátrico. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 54-55.
91
Ibid.
61
isso quer dizer, por exemplo, que um capitão-general, como Rodrigo Cezar de
Menezes, quando da descoberta aurífera nas proximidades do rio Coxipó, ao
controlar as entradas e saídas das pessoas, cobrando-lhes passaporte, fazia
exatamente funcionar o regime de soberania:
Por me constar que das Minas Gerais vem algumas, pessoas para
esta cidade com sentido de se passarem as Minas do Cuiabá,
deixando aquelas dívidas, e trazendo negros alheios..., ordeno
aos Capitães Mores...ponham todo o cuidado em não deixar
passar pessoa alguma, sem que apresente passaporte de quem
Governar as Minas Gerais92.
92
DOCUMENTOS INTERESSANTES PARA A HISTÓRIA E COSTUMES DE SÃO PAULO.
Archivo do Estado de São Paulo. Publicação Official, 1885, vol. XIII, p. 44.
62
de S. Jeronimo; tomou posse da igreja e entrou a exercer o seu
pastoral oficio93.
93
ANNAES DO SENNADO DA CAMARA DO CUYABÁ: 1719-1830. Op. cit., p. 44.
94
INSTRUÇÃO DA RAINHA D. MARIANA DE ÁUSTRIA PARA D. ANTÔNIO ROLIM DE
MOURA. LISBOA, 19 DE JANEIRO DE 1749. In: INSTRUÇÕES AOS CAPITÃES-GENERAIS.
Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso (publicações avulsas) n. 27, Cuiabá: IHGMT, 2001,
p. 12.
63
Tratava-se de uma preocupação inicial de povoar para constituir uma
população numerosa, tendo como fins a defesa e a conservação do território, e para
isso o alvo das ações governamentais era dirigida aos seus reais vassalos, os quais
haviam desempenhado seus ofícios em Portugal ou nas colônias, exercendo, nessa
medida, parcela de soberania:
95
INSTRUÇÃO DA RAINHA D. MARIANA DE ÁUSTRIA PARA D. ANTÔNIO ROLIM DE
MOURA. Op. cit., p. 18.
64
desta Vila, não só se devem tratar todos os seus moradores e do
distrito de Mato Grosso, com bom modo, mas devem patrocinar-
se com tal benignidade e favor, em tudo que não ofender a justiça,
que claramente se manifeste a diferença que deles se faz aos mais
súditos da Capitania, afim de que isso convide aos homens a
virem buscar essas terras e os faça tolerar com mais sofrimento o
muito que nelas se padece96.
96
INSTRUÇÃO DO CONDE DE AZAMBUJA PARA D. JOÃO PEDRO DA CÂMARA. PARÁ,
8 DE JANEIRO DE 1749. In: INSTRUÇÕES AOS CAPITÃES-GENERAIS. Instituto Histórico e
Geográfico de Mato Grosso (publicações avulsas) n. 27, Cuiabá: IHGMT, 2001, p. 22.
97
Interessante trabalho em que descreve a força da burocracia lusa, que, mesmo diante de uma série
de empecilhos, conseguiu se interiorizar. Trabalho fundamental para compreender as ações
geopolíticas da Coroa Portuguesa em Cuiabá no período colonial. Nesse sentido, certamente, todo
aparato estatal e institucional garantia exercícios de poder; a nossa divergência, se pauta na
consideração de que houve formas de apropriações e desvios provocados por outros agentes
históricos, que, não necessariamente, estava ligado ao poder metropolitano. Cf. CANAVARROS,
Otávio. O poder metropolitano em Cuiabá (1727-1752). Cuiabá: EdUFMT, 2004.
65
Coroa (Corregedoria, Ouvidoria, Provedoria, Governadoria,
etc.), formando um conjunto único, organicamente identificável
nas Ordenações do Reino como jurisdições dependentes de
nomeações ou confirmações reais, diretas ou delegadas98.
98
Ibid., p. 15.
99
Ibid., p. 106.
100
Cf. PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2006.
101
NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São
Paulo: Hucitec, 1995.
66
institucionalização da estrutura política da metrópole em Cuiabá está relacionada
com a estabilidade do povoamento e manutenção da área conquistada. Com esse
último ponto estamos de acordo, mas, ao nosso ver, não é somente isso, pois há que
se considerar a dimensão prática do exercício do poder que escapa a tais
estruturações.
Podemos considerar que o exercício da soberania implicava, do ponto
de vista de uma “relação diferenciadora não isotópica”, à disseminação de uma
multiplicação de soberanias ainda mais atrelada à busca de um processo de
sedentarização de grupos nômades, fossem eles nativos, ou de aventureiros, os
quais que se estabeleceram em Cuiabá e Mato Grosso por conta das notícias da
descoberta aurífera.
Ilegalismos, como concubinato, contrabando, práticas de feitiçaria,
negligência com as desobrigas por parte dos senhores, incitava o Estado e a Igreja
a atuar no processo de sedentarização dessas existências fugazes, numa tentativa de
frear a mobilidade desses grupos e lhes prender à terra. Nesse cenário, Nauk Maria
de Jesus afirma que:
102
JESUS, Nauk Maria de. Op. cit., p. 152.
67
casava”103, situação que, diante da tensão da necessidade de fixação populacional
no território, é bem provável que esse tipo de ilegalismo, mesmo tido como
“escandaloso” e de “conhecimento público”, era amplamente praticado e, de certo
modo, aceito, não sendo exclusividade das classes mais pobres enquanto meio tático
de sobrevivência.
Diante dessas existências fluídas, móveis e instáveis na colônia, um
controle jurídico foi ali instalado com o fim de frear essas pulsões e punir os
possíveis desvios, analisadas principalmente no plano jurídico por parte dos
Tribunais Inquisitoriais que, desde o século XVII, lidavam com situações
paradoxais de experiências humanas apresentadas por esse tipo de discurso moral,
enquanto “escandalosas e nefandas”, e os jogos de verdade que incentivavam
qualquer indivíduo a depor.
Nesse cenário de constituição do universo colonial, talvez as relações
sexuais tenham sido o campo da existência humana onde a tensão entre condutas e
jogos de verdade acerca do corpo e do desejo tenham se manifestado com maior
contundência, situando cumplicidades inauditas, além de invejas e ciúmes
intempestivos.
Dentre essas experiências consideradas vergonhosas “para pessoas de
bem”, podemos situar, a título de exemplo, a questão da sodomia feminina, que já
era prevista no Código Filipino e trabalhada de maneira magistral pelo historiador
Ronaldo Vainfas, no artigo Homoerotismo feminino e o Santo Ofício, publicado na
coletânea História das Mulheres no Brasil, organizada por Mary del Priori.104
Como criar uma punição cabível a tais práticas consideradas “nefandas
e horrendas” às mulheres? Que critérios seriam utilizados para provar uma sodomia
perfeita, já que ela se consumava com o derramamento de sêmen no vaso traseiro?
Enfim, as relações homoeróticas femininas passavam a ser objeto de um discurso
misógino do inquisidor do Santo Ofício, o qual inquiria sobre as experiências
sexuais femininas a partir dos desejos masculinos, ou seja,
103
SILVA, Jovam Vilela. Op. cit., p. 171.
104 104
Cf. VAINFAS, Ronaldo. Homoerotismo feminino e o Santo Ofício. In: História das mulheres
no Brasil. Mary del Priore (Org.). São Paulo: Contexto, 2004.
68
[...] Não conseguiam pensar no assunto senão a partir da cópula
heterossexual e do ‘modelo ejaculatório’.
Não é de estranhar, portanto, que a maioria dos inquisidores que
discutiram o assunto em Évora fosse da opinião de que somente
se uma mulher introduzisse o ‘sêmen’ no ‘vaso posterior’ de
outra é que ficaria plenamente configurado o ato de sodomia
entre fêmeas. Os pressupostos deste juízo assentavam, em
primeiro lugar, na firme convicção de que a vagina era imprópria
para a efetuação do ‘dito crime’, que para ser perfeito
pressupunha a penetração anal; em segundo lugar, davam
margem à especulação a respeito da eventual incapacidade do
instrumento utilizado - se esse fosse o caso - para “comunicar
semen agentis no vasopreposteruní'. Em outras palavras, a
maioria dos inquisidores insistia na idéia do coito anal como o
autêntico ato sodomítico, mas conjecturavam ainda o uso de
instrumentos caracterizando uma ocorrência perfeita do ‘pecado
nefando’. Nisso seguiam a tradição escolástica, que penalizava
as mulheres pelo uso de instrumentos de ‘vidro, madeira, couro
ou qualquer outra matéria” na execução de semelhantes cópulas
umas com as outra105.
105
Ibid., p. 122.
106
Ibid., p.125
69
Nesse sentido, Vainfas apresenta experiências de carícias, afetos e atos
sexuais, a despeito de todo um código moral vigente de uma valoração do feminino,
em torno da virgindade e, da masculinidade, em torno da virilidade. Em relação às
relações femininas, a ação inquisidora de Heitor Furtado de Mendonça iria mostrar:
107
Ibid., p.126.
108
CRIVELENTE, Maria Amélia Assis Alves. Uma devassa nas Minas: imigração e moralidade na
fronteira mais remota da colônia: Mato Grosso 1785. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2006, p. 60-61.
70
públicas; exploração do trabalho escravo nos domingos e dias
santos; prostituição consentida pela família, revelando talvez
uma necessidade de sobrevivência ou mesmo uma escolha;
incestos e abusos de poder, resistências pelos senhores de
engenho ao pagamento das desobrigas relativas aos sacramentos
dos escravos e, a mais corriqueira em toda a documentação, como
não poderia deixar de ser, o concubinato em seus mais diversos
aspectos109.
109
CRIVELENTE, Maria Amélia Assis Alves. Op. cit., p. 77-78.
110
Cf. GOLDSCHMIDT, Eliana Maria Rea. Convivendo com o pecado na sociedade colonial
paulista (1719-1822). São Paulo: Annablume, 1998.
111
Situação semelhante sobre as lettres de cachet estudadas por Foucault e Arlete Farge, em que
bastava apenas uma carta de um familiar, conhecido, ou vizinho sobre um possível incômodo
causado por determinadas pessoas, para que estas fossem recolhidas na Bastilha, ou seja, poderes
anônimos que independiam da vontade régia. Infelizmente, não temos em mãos a tradução da obra
de Foucault e Arlete Farge em português. Cf. FARGE, Arlette; FOUCAULT, Michel, Le désordre
des familles. Lettres de cachet des Archives de la Bastille. Paris: Gallimard, 1982.
112
FARGE, Arlette. Famílias, honra e sigilo. In: História da Vida Privada 3: da Renascença às
Luzes. Roger Chartier (Org.). Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2009,
p. 574.
71
O que nos chama a atenção nas lettres de cachet é que elas inicialmente
exemplificavam um exercício de poder régio que se desdobrou na instância familiar
diante de algum ato considerado desonroso e vergonhoso, praticado por algum de
seus membros, redundando, muitas vezes, na possibilidade de prisão mantida em
sigilo, uma vez que se preservava o nome da família, no entanto, semelhante prática
foi se transformando em:
113
Ibid., p. 558.
72
Na nossa visão, o poder não pode ser visto exclusivamente como algo
institucionalizado, mas como exercício, enquanto forma imanente à produção de
relações de força e de interesses, a qual era exercida pelo soberano quando chamado
a exercê-lo, uma vez que as cartas a ele remetidas exigiam um posicionamento,
pois, nesse regime de soberania e diante de relações heterotópicas, em algum
momento alguém deveria arbitrar os litígios.
Dessa maneira, ao nosso ver, uma decisão sobre a administração
colonial não era exclusivamente dada a priori por uma estrutura administrativa
encabeçada pelo rei, uma vez que as estruturas administrativas, nas suas relações
contingentes de exercícios de poder, configuravam diversos posicionamentos em
relação às formas de administrar a colônia:
114
JESUS, Nauk Maria de. Op. cit., p. 43.
73
mando nas ordenanças. Repare-se que estes serviços consistiram
na preservação da defesa e mando (governança) da república
[grifos do autor], leia-se, dos municípios e demais comunidades
sob a tutela da monarquia115.
115
FRAGOSO, João. Op. cit., p. 128-129.
116
Ibid
74
Assim, o dispositivo de soberania pensado na presente pesquisa articula
uma materialidade documental que expressa a relação de exercício do poder
soberano pautado em: “coleta/ despesa, anterioridade fundadora, relação
diferenciadora não isotópica” e, por fim, a constituição de um exercício de “poder
que se assenta na premissa de fazer morrer e deixar viver”117.
O exercício dessa modalidade de poder régio opera um corte expresso
na decisão definidora da morte e da vida de seus súditos. O poder de morte,
prerrogativa do rei, estava atrelado a um jogo de representações que associava a
figura do rei à do pai e, por consequência, à do “Pai Maior, DEUS”.
Tais representações condiziam também com as balizas teóricas das
Ordenações Filipinas, em que a “punição dos maus é a conservação dos bons”,
atrelada à manutenção da justa balança e da justa medida. A punição exemplar era
a forma mais gloriosa de exercício do poder real, era o momento em que ele aparecia
pleno em seu brilho e esplendor, decidindo pela execução ou pela clemência.
Mesmo em pleno início do povoamento das áreas conhecidas hoje por
Mato Grosso, havia uma preocupação em castigar severamente as pessoas pelos
seus delitos e, em 1731, o ouvidor de Cuiabá, José de Burgos Vila Lobos, enviou
uma carta ao até então rei de Portugal, D. João V, sobre os crimes e desacatos
impetrados por presos fugitivos, pedindo que fosse constituída uma Junta, composta
pela Câmara, o guarda-mor, o regente e ele, os quais teriam alçada para punir
crimes, inclusive até os de pena de morte:
117
Cf. FOUCAULT, Michel. A História da sexualidade, vol. 1: a vontade de saber. Tradução de
Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon de Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1988.
118
CTA-AHU- MATO-GROSSO-DOC. 36, CX. 01; CT-AHU-ACL-CU-010- DOC. 45, CX. 01.
75
Há nessa prática como que uma visão da potência de causar a morte,
ocasião em que o soberano era consultado, inclusive para conceder a prerrogativa
de morte ou vida, a qual poderia ser executada por uma Junta contra aos prisioneiros
fugitivos que atentavam contra os plebeus da vila de Cuiabá.
Tais enunciados se fundamentam no pressuposto de que a problemática
da população não era central, pois a prerrogativa de “fazer morrer e deixar viver”
foi posta por uma prática política, pelo menos ao que tudo indica, fundamentada na
ideia de que governar era administrar a justiça, distribuir o que cabia a cada um por
merecimento, na relação do monarca com seus súditos. Nesse sentido, como temos
visto até agora, os princípios de exercício de soberania implicavam uma relação
belicosa e conservadora: conservar o status conquistado por mercês ou graças
reais119, ou ainda conservar o território que nunca deixava de ser ameaçado, tanto
internamente, pelos ataques indígenas, como pelas tensões desenvolvidas com os
espanhóis.
Agora, nos deteremos com mais acuidade nessa premissa última do
exercício do poder soberano, que foi cunhada pelo filósofo Michel Foucault e
referenciada anteriormente, que é justamente a ideia de fazer “morrer e deixar
viver”, ou seja, um investimento no poder de causar a morte.
Curiosamente, essa prerrogativa do rei, na atribuição do seu poderio e
de sua presença, era uma das questões fundamentais, pois assinalava, como
apresentaremos a seguir, uma ação direta da vontade do rei em sancionar as formas
de punição enquanto mecanismo de ministrar a justiça, lembrando que, já o Livro I
das Ordenações determinava que a “punição dos maus é a conservação dos bons”.
Nesse sentido, as ações do rei em relação aos seus súditos e vassalos
lhe atribuia a possibilidade máxima de decidir sobre a morte ou vida das pessoas
que formavam a sua corte. Talvez seja este o princípio maior da presença do
exercício régio de poder, uma vez que ela perpassou todo o século XVIII e conferiu
ao soberano essa decisão aterradora sobre a existência das pessoas, pois:
119
Tais características baseadas nesses privilégios começam a perder força sob a ação do ministro
português Sebastião José de Carvalho e Melo, o futuro Marquês de Pombal.
76
[...] todo crime na panóplia punitiva do Antigo Regime atingia a
pessoa do rei, que era fons justiae [grifos do autor]. Todos
continham, em si, um elemento de lesa-majestade. Dessa
maneira, na sua fórmula própria, esse crime era o alfa e o ômega
do sistema penal, que submetia à ‘morte natural cruelmente’ os
que atentavam diretamente contra o soberano. Havia, ainda,
outras modalidades de morte, como a ‘morte natural’, a ‘morte
natural para sempre’ e ‘a morte pelo fogo’.
[...] a morte natural implicava, em geral, o uso do veneno, de
instrumentos de ferro ou mesmo o fogo. A morte natural para
sempre, a que se aditava na forca, era executada em forca fora da
cidade, ficando o cadáver do condenado exposto até o dia dos
mortos, em novembro, quando era sepultado. A morte natural
cruelmente submetia o réu do crime de lesa-majestade ao
suplício: com uso de tenazes120.
[...] o escravo, ora seja cristão ora não seja, que matar seu senhor
ou filho de seu senhor, seja atenazado e lhe sejam decepadas as
mãos, e morra morte natural na forca para sempre; e se ferir seu
senhor sem matar, morra morte natural. E se arrancar alguma
arma contra seu senhor, posto que o não fira, seja açoitado
publicamente com baraço e pregão pela vila, e seja-lhe decepada
uma mão.
1. E o filho ou filha que ferir seu pai ou mãe com intenção de os
matar, posto que não morram das tais feridas, morra morte
natural121.
Esse exemplo pode ser situado entre uma das quatro táticas punitivas
descritas por Foucault no curso A Sociedade Punitiva (1972-1973), que é
exatamente a tática de marcar, no corpo do sentenciado, a natureza de seu crime,
ou seja:
120
MOTTA, Manoel Barros da. Crítica da razão punitiva: Nascimento da prisão no Brasil. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2011, p. 28.
121
ORDENAÇÕES FILIPINAS. LIVRO V. Silvia H. Lara (Org.). São Paulo: Companhia das Letras,
1999, p. 158.
77
simbólica a seu nome, humilhar o seu personagem, reduzir seu
status122.
122
O filósofo reconhece quatro táticas punitivas: a primeira, excluir (predominante na Grécia
Arcaica e Clássica), a segunda, organizar um ressarcimento ou impor uma compensação
(predominante no direito medieval), a terceira tática, marcar (predominante desde o fim da Idade
Média até o século XVIII) e a quarta tática, encarcerar (predominante na virada do século XVIII
para o XIX). No caso específico das Ordenações Filipinas, creio que a característica predominante
seja a marcação, o que não quer dizer que as outras não existissem. Cf. FOUCAULT, Michel. A
sociedade punitiva: curso no Collège de France (1972-1973). Tradução de Ivone C. Benedetti. São
Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 8.
123
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento das prisões. Tradução de Raquel Ramalhete.
Petrópolis: Vozes, 1987, p. 32.
78
apresentado acima, bastaria a tentativa, por parte dos filhos, de ferir seus pais com
o intuito de assassiná-los, prescrendo-se a morte natural enquanto forma de punição,
no entanto, a mesma mão que punia era a mão que oferecia clemência:
124
BRAGA, Paulo Drumond. Criminalidade feminina e perdão régio em Portugal na época moderna.
In: As mulheres perante os tribunais do Antigo Regime na Península Ibérica. Isabel M. R. Mendes
Drumond Braga; Margarita Torremocha Hernández (Coord.). Coimbra: Imprensa da Universidade
de Coimbra, p. 117.
125
Situação que está em consonância em grande medida pelas premissas intelectuais de Thomas
Hobbes e Jacques Bossuet sobre a fundamentação do poder régio. Cf. HOBBES, Thomas. Leviatã.
Tradução de João Paulo Monteiro, Maria Beatriz Nizza da Silva e Cláudia Berliner. São Paulo:
Martins Fontes, 2003; CHEVALLIER, JEAN-JACQUES. As grandes obras políticas de Maquiavel
a nossos dias. Tradução de Lydia Cristina. Rio de Janeiro: Agir, 1999.
126
SENTENÇA DE18 DE AGOSTO DE 1615. Fl.55. In: MOREIRA, Antonio Joaquim. Op. cit., fl.
55 Coleção de Sentenças que julgarão os réos dos crimes mais graves e atrozes, cometidos em
Portugal e em seus domínios: Portugal, 1863. Disponível em: http://purl.pt/15141/4/cod-851/cod-
851_item4/cod-851_PDF/cod-851_PDF_24-C-R0150/cod-851_0000_capa-capa_t24-C-
R0150.pdf. Acessado em 29/1/2016.
127
Coleção constituída, sobretudo, por sentenças e documentos jurídico-administrativos compilados
por António Joaquim Moreira relativos aos mais diferentes crimes ocorridos entre 1320 e 1864.
Contém além das sentenças, pastorais, relatos de crimes e de punições, bulas, correspondência,
editais, representações, proclamações, listas, notícias de jornais, processos judiciais, autos, relações,
relatórios, petições, alguns textos satíricos de carácter político, e diversa legislação, sobretudo do
período das invasões francesas. Os crimes são variados, conspirações contra o rei, motins e revoltas,
roubo, calúnia, assassínio, sodomia, bigamia, emissão de moeda falsa, perjúrio, sacrilégio, heresia,
contrabando, evasão fiscal etc. Os documentos encontram-se ordenados cronologicamente em nove
79
Em 28 de fevereiro de 1621, temos a sentença de morte por
enforcamento de Luiz Alvares Castelo, por declarar bancarrota de forma
fraudulenta128, ou seja, na tentativa de enganar os seus credores.
A historiadora Maria Antónia Lopes nos traz, ainda no século XVII129,
a condenação de uma mulher de nome Joana Baptista na Ribeira, no ano 1694, a
qual matara seu marido, recebendo como castigo o enforcamento, tendo sua cabeça
cortada e exposta publicamente. A citada autora também lembra, por exemplo, do
caso de mulheres que escaparam da pena capital, ou porque fugiram ou por conta
de influências não explicitadas nos processos, conseguindo comutação de penas,
além, é claro, dos casos de imputabilidade penal, quando ficou comprovado que a
mulher em questão não se apresentava de posse das suas faculdades mentais.
Temos, por exemplo, o caso Cecília Rodrigues que matou o marido e,
condenada à morte, teve a comutação desta pena para o de degredo em Angola, no
ano de 1694, mesmo ano, portanto, em que Joana Batista havia sido condenada.
Em 1713, temos também o caso de Brita Gomes, que matou a filha e,
sendo condenada à morte, teve a pena suspensa, sob a alegação de loucura130,
mesmo caso de Maria Gonçalves que, em 1732, conseguiu o perdão régio após
matar a filha, embora não constasse menção de loucura.
A maior parte das mulheres condenadas era por conta do homicídio
perpetrado contra os maridos, escravas contra senhores, de mães contra os filhos, e,
no caso da sedição de 1757, em reação ao monopólio concedido pelo Marquês de
Pombal à Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, em 1756:
volumes, não sendo essa a sua organização original (cf. COD. 851, f. 1). O décimo volume é um
índice muito incompleto da coleção. Grande parte dos documentos são impressos.
Disponível:https://bdlb.bn.gov.br//acervo/handle/1234556789/7696. Acessado em 29/1/2016.
128
SENTENÇA DE 28 DE FEVEREIRO DE 1621. In: MOREIRA, Antonio Joaquim. Op. cit.
129
LOPES, Maria Antónia. Mulheres condenadas à morte em Portugal: de 1693 à abolição da pena
última. Op. cit.
130
Vale ressaltar que o século XVIII é o momento em que emerge o saber médico sobre a loucura.
Cf. FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. Tradução de José Teiexeira
Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva, 2005; MACHADO, Roberto et.al. Danação da norma: a
medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978.
80
viam afastados dos negócios dos vinhos. Foi de imediato
constituído um tribunal especial no Porto que atuou com uma
dureza invulgar39. Compareceram perante a Alçada do Porto 478
réus, sendo 424 homens e 54 mulheres. Por sentença proferida a
12 de outubro e executada a 14, foram condenados à morte 21
homens e cinco mulheres considerados criminosos “de Leza
Magestade de primeira cabeça131.
131
Ibid., p.138
132
Tais procedimentos, por exemplo, são perceptíveis no processo do padre Gabriel Malagrida e no
processo dos Távoras que serão analisados detidamente no capítulo 2.
133
SENTENÇA DE 05 DE MAIO DE 1624. In: MOREIRA, Antonio Joaquim. Op. cit., fl.55.
81
Curiosamente, as poucas menções que o Livro V das Ordenações
Filipinas fez em relação aos cristãos novos diziam respeito à obrigação destes
portarem sinais que os caracterizassem, no caso dos judeus, os quais deveriam usar
carapuça ou chapéu amarelo e, no caso de mouros, deviam-se usar “uma lua de pano
vermelho de quatro dedos, cozido no ombro direito, na capa e no pelote.”134
Semelhante situação preconizava enquanto punição a prisão e o pagamento de mil
réis, se fosse a primeira vez, de dois mil, no caso da segunda e na terceira o
confisco135.
A outra menção que o Livro V das Ordenações Filipinas faz menção,
no Título 111 “[...] sobre os cristãos novos e mouros e cristãos mouriscos que se
vão para a terra de mouros ou para as partes de África e dos que os levam”, e nesse
caso específico, estabelecia que se:
[...] a pessoa que for provado que os levou para a terra de mouros,
morra por isso de morte natural e perca toda sua fazenda.
E se provar que os queria levar para a terra dos mouros, perca sua
fazenda e seja degredado quatro anos na África. [...]
E os navios em que os levar se perderá isso mesmo, posto que
não seja seu.
E se os levar para qualquer outra parte, que não seja terra de
mouros, perderá o dito navio em que os levou ou queria levar,
posto que não seja seu, e toda a sua fazenda e será degredado
quatro anos na África136.
134
ORDENAÇÕES FILIPINAS. LIVRO V. Silvia H. Lara (Org.). Op. cit. p. 300.
135
Ibid.
136
Ibid., p. 345.
137
Ibid., p. 57.
82
E outro sim se mostra, q. sendo o Réu Letrado, Sacerdote, e das
mais qualidades referidas, e como tal obrigado a viver limpa e
honestamente, sendo de sua vida e costume bom exemplo, ele o
fez pelo contrário, e de muito tempo a esta parte, esquecido de
sua obrigação, com muito atrevimento em grande dano e prejuízo
de sua alma, cometeu o horrendo e abominável pecado de
sodomia contra naturam, por respeito da qual a ira de Deus veio
sobre as cidades infames de Sodoma e Gomorra, exercitando-o e
consumando-o por muitas vezes com diversas pessoas de ( sexo
masculino)138.
138
SENTENÇA DE 05 DE MAIO DE 1624. In: MOREIRA, Antonio Joaquim. Op. cit., fl.90.
139
O Livro V das Ordenações Filipinas nos traz a informação de que os crimes de heresia e de
apostasia eram atos que cabiam aos tribunais eclesiásticos a organização do processo e do
julgamento. Em nota de rodapé, a edição organizada pela Companhia das Letras, do Livro V das
Ordenações, constava que os mencionados crimes de heresia e apostasia só deixariam de ser crimes
com a criação da Constituição do Império, e em 1830, com código criminal do Império punia quem
zombasse ou ofendesse de qualquer culto religioso. Cf. ORDENAÇÕES FILIPINAS. LIVRO V.
Silvia H. Lara (Org.). Op. cit., p. 55.
140
SENTENÇA DE 5 DE MAIO 1624. In: MOREIRA, Antonio Joaquim. Op. cit., fl.91.
83
Antonio Homem foi sentenciado a perder seus bens, as funções, sendo
condenado ao degredo e a queimar e salgar o local onde se realizavam as cerimônias
judaicas, e por fim:
141
Ibid.
142
Esse mesmo tratava também sobre o pecado de alimária, ou seja, relação sexual com animais,
tenham sido praticados por homem ou mulher, tendo os seus corpos queimados e feitos em pó. Cf.
ORDENAÇÕES FILIPINAS. LIVRO V. Silvia H. Lara (Org.). Op. cit., p. 91.
84
O que se percebe nesse caso foi um malabarismo jurídico que acoplou
duas punições previstas pelas Ordenações Filipinas, apesar da pronúncia da
sentença contra a prática de heresia e apostasia, imputando também uma punição
que envolvia a sodomia.
O caso de Antonio Homem, assim como os personagens de
Menocchio143 e Rivière144, foi mais um entre tantos outros, “criminoso da
palavra”145, demonstrando todo o seu conhecimento em condutas que contrariavam
as premissas eclesiásticas (seja de professar o judaísmo ou uso indevido de seu
corpo). A maneira zombeteira com a qual se dirigia às autoridades representou para
elas o sinal de nenhum arrependimento e, portanto, tratar-se de alguém indigno de
merecimento ou perdão.
O que diferentemente aconteceu num caso de sodomia praticado em
Mato Grosso, por volta do ano de 1736, apresentado pelo historiador Luiz Mott, em
que um frade “[...] da Ordem de Nossa Senhora das Mercês, Frei Antonio de
Madureira, que, após dois anos missionando no Mato Grosso, ao retornar a Lisboa
apresentou-se perante o tribunal do Santo Ofício confessando suas incontinências
homoeróticas”146 e descrevendo estrategicamente a condição social de personagem
envolvido (obviamente, tentando desqualificar as testemunhas):
143
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. Tradução de José Paulo Paes. São Paulo: Companhia
das Letras, 2006.
144
FOUCAULT, Michel. Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão: Um
caso de parricídio do século XIX apresentado por Michel Foucault. Tradução de Denize Lezan de
Almeida. Rio de Janeiro: Graal, 1977.
145
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Mencchio e Riviére: criminosos da palavra, poetas
do silêncio. In: História: a arte de inventar o passado. Bauru: EdUSC, 2007.
146
MOTT, Luiz. A Inquisição nas minas do Cuiabá. Revista Ñanduty, Dourados/MS, vol. 2, n. 2,
jan./jun. 2014, p. 9.
85
com dois pardos e um índio pagão, jovens desclassificados,
estava praticamente imune a eventuais denúncias pois
dificilmente vozes tão distantes e subalternas chegariam ao
tribunal da santa inquisição. Entre os cúmplices do frade
sodomita, um único reinol: o lisboeta, Francisco Xavier, piloto
de canoas, também da raia miúda, ‘sem domicilio certo porque
anda sempre nas canoas’, certamente já vindo do reino com essa
mesma especialização náutica tão importante na nova colônia
onde a canoagem era vital meio de transporte e comunicação147.
147
Ibid. p. 11.
148
Ibid.
86
confissão de seis relações sexuais, mas que a sodomia perfeita só havia acontecido
uma vez, de modo que a Inquisição não pudesse lhe aplicar a penalidade máxima
para esse tipo de pecado, uma vez a exigência para a condenação requeria dois casos
deliberadamente comprovados.
Diante disso, diferentemente do que aconteceu com Antonio Homem
no século XVII, o frade acabou sendo perdoado, o que indica também que esse
malabarismo jurídico149 foi montado meticulosamente na descrição das
testemunhas e na sua preocupação em provar que a sodomia perfeita não fora
praticada com dupla reincidência.
Esse exemplo apresentado constitui-se de fato num modelo de justiça,
cujos elementos religiosos e laicos se misturaram. É certo que havia um código
eclesiástico, mas as execuções estavam a cargo do poder soberano. Além disso,
expostos a um código penal que tinha como uma das características impor a marca
corporal ou simbólica, e necessária se fazia a utilização de tática sutil para escapar
da punição.
Há um caso interessante a esse respeito, transcorrido no ano de 1784,
constante nos Anais do Senado da Câmara de Cuiabá. Trata-se de uma tentativa de
assassinato do doutor Juiz de Fora Antonio Rodrigues Gayozo, quando do início
dos os trabalhos de conserto da capela-mor da Matriz de Santana do Sacramento,
ocasionado pelos estragos provocados pelas fortes chuvas que derrubaram boa parte
de sua estrutura, quando:
149
Cf. VAINFAS, Ronaldo. Op. cit.
150
ANNAES DO SENNADO DA CAMARA DO CUYABÁ: 1719-1830. Op. cit., p. 126.
87
Tal fato fez com que se instituísse devassa sobre o ocorrido para
identificar o agressor e lhe aplicar as penalidades previstas. Incialmente, incidiam-
se as suspeitas aos indígenas, numa clara alusão preconceituosa “[...] atribuindo-
lhes o maleficio, por serem desconfiados e vadios, e haverem sido algumas vezes
repreendidos pelo dito Ministro por ocasião do serviço”151 de conserto da referida
Igreja.
Finalizada a devassa, chegou-se ao mandante e ao mandatário do delito.
O mandante tratava-se de um tal Pedro Marques Henriques, natural do Reino de
Portugal e que vivia naquela vila de sua taberna, enquanto o mandatário era um
mameluco de nome Pedro Jozé dos Passos, natural de Araritaguaba, capitania de
São Paulo, cujo delito foi motivado porque:
Ou seja, mandante do crime já intuía a sua futura prisão por conta de ter
cometido excesso nos castigos físicos cometidos contra o escravo de um senhor de
quem ele era praticamente amigo, porém a rede de alianças fez com que conseguisse
escapar e chegar à atual vila e ali ficar oculto em meio aos membros da Igreja
Matriz.
O mameluco se encontrava preso no presídio de Coimbra a Nova,
acusado de ter sido o responsável pelo atentado ao referido ministro, e com ordens
precisas de enviar, ambos, à vila para serem julgados e executados. No translado
ele conseguiu ludibriar os guardas, que acabaram sendo punidos, enquanto o
mandante foi preso na cadeia de São Paulo. Peço licença para transcrever essa longa
151
Ibid.
152
Ibid.
88
passagem, em que o referido mameluco Pedro Jozé dos Passos conseguiu escapar
para os lados do Rio Grande do Sul:
153
ANNAES DO SENNADO DA CAMARA DO CUYABÁ: 1719-1830. Op. cit., p. 127-128.
89
A citação expressa a habilidade do mameluco em ludibriar os soldados
que o acompanhavam, reputado por tolo ou piedoso, não levando em consideração
a esperteza do criminoso. Tudo ocorreu quando os soldados lhes ofereceram um
alívio, retirando os grilhões e, em seguida, devido à súplica deste para descer em
terra para fazer as suas necessidades (provavelmente a desculpa das necessidades
fisiológicas), fora acompanhado de apenas uma sentinela. Nessa oportunidade, o
mameluco deixou as correntes e fugiu. Percebendo que o dito mestiço demorava,
os soldados foram averiguar e se deram conta de que ele havia escapado, se
embrenhando pelos matos. O fato é que o tal soldado, por um “descuido” ou
subestimação do mestiço, fosse punido com mais de dois anos de cadeia, por
supostamente ter facilitado a sua fuga, além do desapontamento das autoridades
locais em não concretizar uma “vontade de vingança” do referido ministro. Já o
mandante não teve a mesma sorte.
Os casos até aqui apresentados creio que dão conta da premissa do
poder soberano de causar a morte, de produzir dor, de fornecer exemplos insidiosos
da força esmagadora da justiça, punindo os maus de maneira exemplar e premiando
os bons.
O Livro V das Ordenações Filipinas trata apenas do primeiro aspecto,
ou seja, dos castigos exemplares, dos suplícios e das torturas como forma de
extração da verdade, enfim, toda uma série de contracondutas passaram ser
penalizadas de acordo com uma “decisão soberana” que operava um corte entre
vida e morte.
Diante desse aparato em que se premissas religiosas e laicas criavam
um campo de penalidades caracterizadas principalmente pela função de imprimir
marcas, é bem visível:
154
FOUCAULT, Michel. Op. cit., p. 11.
90
É nesse sentido que as ordenações prescreveram, em muitos casos, uma
forma de punição e de estabelecimento de justiça que instituía a infâmia como um
processo indefinido e interminável de produção de culpa. E não é à toa que o Código
Filipino incorporasse premissas religiosas sobre a conduta das pessoas, como: “[...]
dos hereges e apóstatas, dos que arrenegam ou blasfemam de Deus ou dos Santos,
dos Feiticeiros, dos que benzem cães ou bichos sem autoridade del rei ou dos
prelados”155, convivendo com os crimes de lesa-majestade que recaíam na pena
capital de morte. Enfim, uma série de discursos que apelavam para a necessidade
de determinada conduta servir de modelo a ser seguido, expressando nas
contracondutas uma marca que deveria atingir o corpo do sentenciado e a memória
dos expectadores.
E eis que o século XVIII, que marcou o momento da ilustração, das
luzes, do conhecimento, da claridade, enfim, envolto em um conjunto de metáforas
que produziam enunciações e anunciações de uma nova perspectiva de mundo
pautada na racionalidade, tenha enquanto foco uma racionalidade de Estado, seja
no campo científico, fomentando e fermentando por toda a Europa o uso da
violência física e de seus rituais simbólicos, os quais continuaram a ser uma tônica
do poder soberano.
As reformas de Pombal, a partir da segunda metade do século XVIII,
começaram a instaurar um limiar de ruptura com a tradição, como veremos mais
detidamente no próximo capítulo: a expulsão dos jesuítas, a criação da escola de
comércio, o fim da distinção entre cristãos novos e cristãos velhos, a criação da
Academia de Ciências de Lisboa etc., mas tudo isso irá conviver com formas
tradicionais de se ministrar a justiça:
155
Cf. ORDENAÇÕES FILIPINAS. LIVRO V. Silvia H. Lara (Org.). Op. cit. Há também uma
análise minuciosa realizada por Barros da Mota em: MOTTA, Manoel Barros da. Crítica da razão
punitiva: Nascimento da prisão no Brasil. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 2011.
91
quem os cometessem deixava áridas e secas as suas linhas para
sucessão dos morgados. Outra, de 27 de maio de 1773,
estabelecia que as pessoas que cometem ficam inábeis e infames
com seus filhos e netos. E também os filhos e netos dos hereges
passam a ter a pena de infâmia, pela lei de 25 de maio de 1773.
Um alvará de 5 de maio de 1772 determinara, também, quais
eram os crimes atrocíssimos156.
156
MOTTA, Manoel Barros da. Op. cit., p.27.
92
CAPÍTULO 2
ZONA CINZENTA:
RAZÃO DE ESTADO E GOVERNO EM PORTUGAL
NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII
93
Pretendemos mostrar, assim, que esse limiar de que se está falando, se
insinua numa atmosfera mista, complexa e que anunciava o rompimento de uma
nova experiência de um tempo157 por vir: um tempo marcado gradativamente pela
secularização das ideias, pelo desenvolvimento técnico, pela ascensão social e
cultural de outros grupos, mas, igualmente marcado pela presença de um regime de
poder soberano, expresso anteriormente pela relação coleta/despesa, pela
anterioridade fundadora, fundamentado nas relações diferenciadoras não
isotópicas, pelo direito de fazer morrer e deixar viver.
Entre a passagem do século XVIII para o XIX, emergiram outras
formas de pensar o tempo histórico e a relação com seus fenômenos, assim, saía-se
de uma modelo de história edificante e exemplar (muito frequente no século XVIII)
para uma concepção de história lançada por Hegel, segundo a qual a história é
pensada numa perspectiva dialética em direção ao progresso158.
Tal como a aurora de nossas existências cotidianas, as práticas políticas
começavam a se insinuar em zonas de claridade e de sombreamento, constituindo
um dispositivo misto de exercício de poder: trata-se de uma genealogia da
governamentalidade.
Essa perspectiva genealógica possibilitava a questão dos começos
confusos, de suas proveniências aparentemente dispersas, uma vez que seus pontos
de apoio e dispersão se conectavam na formação de um regime político que estava
entrando em processo de erosão, para se assentar em outro solo epistêmico. Sobre
a genealogia, Foucault, remetendo ao filósofo Frederich Nietzsche, lembrava que:
157
Sobre essa problemática da experiência de tempo na construção da identidade nacional brasileira.
Cf: ARAÚJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo: modernidade e historicização no Império
do Brasil (1813-1845). São Paulo: Hucitec, 2008.
158
Cf. HARTMAN, Robert S. A Razão Histórica: Uma Introdução Geral à Filosofia da História
Hegel. Tradução de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2001.
94
a visão altiva e profunda do filósofo ao olhar de toupeira do
cientista; ela se opõe, ao contrário, ao desdobramento
meta−histórico das significações ideais e das indefinidas
teleologias. Ela se opõe à pesquisa da ‘origem’ [...]159
159
FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: Microfísica do Poder. Tradução
de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
95
de como deveria ser o governo nessas áreas de limites duvidosos e de constantes
contendas entre portugueses e espanhóis na consolidação de seus domínios.
Entre as reformas ditas pombalinas e as reformas marianas, Portugal
estava inserido em um ambiente cultural do século XVIII, em que o continente
europeu se via por:
160
SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Inventando a nação: Intelectuais e estadistas luso-brasileiros na
crise do Antigo Regime Português (1750-1822). São Paulo: Hucitec; Fapesp, 2006, p. 29.
96
cultivaram no estrangeiro, que se não entenderam com os
patrícios, e que combateram sem resultado a mentalidade do seu
país. Para Ribeiro Sanches, no século XVIII, Portugal é o ‘Reino
Cadaveroso’; e um satírico inteligente chama-nos ‘o Reino da
Estupidez’. [...] Não nos iluda a existência de portugueses
excepcionais, que se educaram nos laboratórios e nas leituras dos
estrangeiros. Somos o ‘Reino Cadaveroso’; somos o ‘Reino da
Estupidez’161.
[...] Se este Tratado não desempenhar o título, que lhe pus, pelo
menos espero que o intento de ser útil àqueles a quem estão
encarregados os Povos, desculpará a temeridade de escrevê-lo.
Nele pretendo mostrar a necessidade que tem cada Estado de leis,
e de regramentos para preservar-se de muitas doenças, e
conservar a Saúde dos súbditos; se estas faltarem toda a Ciência
da Medicina será de pouca utilidade: porque será impossível aos
Médicos, e aos Cirurgiões, ainda doutos, e experimentados, curar
uma Epidemia, ou outra qualquer doença, numa cidade, onde o
Ar for corrupto, e o seu terreno alagado. Nem a boa dieta, nem
os mais acertados conhecimentos nestas artes produzirão os
efeitos desejados; sem primeiro emendar-se a malignidade da
atmosfera, e impedir os seus estragos. Somente os Magistrados,
os Capitães Generais nos seus exércitos, e os Capitães de mar e
guerra, serão aqueles que pelo vigor das leis decretadas poderão
remediar em semelhantes ocorrências a destruição daqueles, que
estiverem a seu cargo162 [...]
161
SÉRGIO, António. O Reino Cadaveroso ou o problema da cultura em Portugal. In: Obras
Completas Ensaios, tomo II. Livraria Sá da Costa Editora: Lisboa, 1972, p. 27-28.
162
SANCHES, Antonio Ribeiro. Tratado da Conservação da Saúde dos Povos. Universidade da
Beira Interior Covilhã: Portugal, 2003, p.02.
97
Com o objetivo de escrever um tratado para conservar a saúde e a vida
dos povos, tal obra foi direcionada àqueles que ocupavam cargos políticos e
posições de mando na sociedade portuguesa de meados do XVIII, “[...] obra útil e,
igualmente, necessária aos Magistrados, Capitães Generais, Capitães de Mar e
Guerra, Prelados, Abadessas, Médicos e Pais de Famílias”.163
Embora o Tratado da Conservação da Saúde dos Povos antecipasse
muitos aspectos da estratégia biopolítica no investimento político na vida e saúde
dos povos, parece que ela foi eclipsada pela tradição cultural portuguesa do período,
uma vez que,
163
Ibid.
164
EDLER, Flávio Coelho; FREITAS, Ricado Cabral de. O ‘imperscrutável vínculo’ corpo e alma
na medicina lusitana setecentista. In: Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 29, nº 50, p.435-452,
mai/ago 2013, p. 441.
98
abdicava do regime de soberania, por outro lado ocorriam alguns deslocamentos e
a incorporação de novos problemas assumidos pela prática governamental.
Esse tipo de situação indicava não a ruptura abrupta de uma forma de
governar para outra, mas sim uma lenta maturação de ideias e práticas responsáveis
pela sedimentação de solo embrionário para o nascimento de uma nova prática
política: uma governamentalização do Estado, materializada, nesse caso, com a
criação de mecanismos estatais cada vez mais eficazes de fortalecimento e
conservação do Estado.
O que já se antecipava, sob o reinado de D. José I, era o diagnóstico de
uma crise e a percepção de que o sistema de retribuição de “graças e mercês”, por
exemplo, e toda uma série de compromissos que o soberano assumia em relação à
sua corte, tornava o funcionamento dos dispositivos de soberania oneroso ao
Estado, conduzindo à problemática necessidade de se proceder a reformas.
Curiosamente, se analisadas as sutilezas desse termo conceitual das
reformas, o que se verifica é um limiar de transformação que buscava criar novos
instrumentos e meios dessa soberania funcionar na conservação e manutenção do
Estado, fazendo com que ocorresse o desbloqueio de duas barreiras importantes de
resistência em face ao programa de reformas que pretendia realizar o ministro
Sebastião José de Carvalho e Melo.
Como se deu esse desbloqueio? Que aparelhagem nova traziam as
práticas governamentais? Quais as suas ressonâncias e desdobramentos na capitania
de Mato Grosso? Com quais objetos se preocupavam? Que formas de
assujeitamentos produziam?
Diante de tais questões, como demonstraremos com mais acuidade no
presente capítulo, o referido desbloqueio das barreiras que dificultavam o plano das
reformas políticas se deu como a emergência de um “estado de polícia”, após o
terremoto de Lisboa: evento traumático para a sociedade portuguesa do período que
colocava insidiosamente o problema da reconstrução da cidade e do enfrentamento
das misérias materiais assistidas após o sismo.
A problemática das reformas políticas propostas por Pombal atingiu os
jesuítas no plano da instrução geral e na formação das condutas luso-brasileiras,
99
mas também e igualmente uma parcela significativa da nobreza, que viram seus
privilégios reduzidos.
Curiosamente, acenava-se para a possibilidade de um novo programa
educacional e científico com a reforma da Universidade de Coimbra (1772) e pela
criação da Academia de Ciências de Lisboa (1779-1808)165, como forma de
instrumentalizar homens capazes de gerir os negócios públicos, mas convivendo
com uma prática marcadamente mercantilista de economia.
O que se assiste é um limiar de governamentalização do Estado envolto
em uma zona cinzenta, na qual os enunciados sobre as ações governamentais ainda
estavam misturados, ou seja, tratava-se de um dispositivo misto que, ao mesmo
tempo, assinalava um processo importante na constituição de novos elementos na
prática de governar e na gestão do Estado, mas convivendo com premissas
conservadoras de governo.
Esse limiar é importante, pois, embora, não tire a primazia do regime
de soberania em detrimento do regime de biopolítica, já apontava para um
deslocamento importante, ao colocar a necessidade do Estado em gerir homens e
coisas em suas minúcias. Começava a se criar as condições para o aparecimento da
problemática da população, postulado com maior visibilidade com a lenta
penetração do pensamento liberal, no decorrer da primeira metade do século
XIX166.
Com as reformas pombalinas verificou-se a incorporação das reflexões
sobre Razão de Estado, cujo campo de debate já havia sido fortemente trabalhado
por teóricos do século XVII e início do XVIII, como: Clapmar, Nudé e Chemitiz,
os quais colocavam em cena questões de segredo, estratagema, golpe de Estado167,
que foram amplamente utilizadas pelo referido ministro de D. José I.
165
As memórias econômicas publicadas pela Academia de Ciências e que materializam o tom das
discussões intelectuais e científicas, situam-se entre os anos de 1779-1808, já sob o reinado de D.
Maria I, quando apontava a necessidade de se formar políticos, aptos a gerir, os negócios do Estado,
em sintonia com outras manifestações do pensamento econômico, pautados pela escola fisiocrática
e utilitarista em rompimento com as doutrinas mercantilistas adotadas pelo marquês de Pombal.
Sobre esse assunto cf.: SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Op. cit.
166
Cf. LYRA, Maria de Lourdes. A utopia do poderoso império. Portugal e Brasil: bastidores da
política (1798- 1822). Rio de Janeiro: Sette Letras. 1994.
167
Cf. SENELLART, Michel. As artes de governar: do regimen medieval ao conceito de governo.
Trad. Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 2006.
100
Nesse sentido, os termos de reformismo ilustrado168, aplicado ao
ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, chegou a ser contraditório diante das
premissas adotadas em seu governo, bem como a viradeira, no reinado de D. Maria
I, expressão adotada comumente pela historiografia portuguesa e brasileira.
Sobre essa configuração epistêmica de governo, no decorrer da segunda
metade do século XVIII se vê nascer as condições de uma analítica da finitude e de
uma experiência de tempo começando a se desprender da representação da
eternidade e da escatalogia, onde alguns paradigmas sofreram profundas alterações,
pois passou-se das condições de produção de riquezas, e não uma analítica das
riquezas, o aparecimento do homem-espécie no campo das problematizações das
ações governamentais como membro de um corpo coletivo constituído de uma
população, pois o campo do saber ocidental só se efetivou no decorrer do século
XIX, com a constituição das ciências humanas: filologia, economia política e
biologia169.
Sendo assim, a premissa de que sempre se governa demais, que o
governo se encontra sob a égide de um poder que comete excessos em seus
exercícios, de que o campo de ações do soberano deve ser limitado por leis naturais,
científicas, racionais, sintoma de um racionalismo político proposto pelo
liberalismo que só será possível quando o mesmo se assentasse sob a constituição
de um mundo português cada vez mais aburguesado, o que, de fato, em pleno século
XVIII, a burguesia ainda não se constituía na força política da sociedade
portuguesa, que continuava marcada pelos jogos de alianças estabelecidos pelo
168
Situação que nos lança ao cuidado de não adjetivar esse período, pois a complexidade de uma
tentativa de racionalização nem sempre estava circunscrita a toda uma vaga de secularização que
por ventura começava a ganhar vulto na Europa do século XVIII, mas convém lembrar que a
velocidade com que chegavam e sua recepção não era sentida e pensada da mesma maneira em todo
cenário europeu. Assim, os termos, Reformismo Ilustrado e Viradeira dão conta apenas de um dos
aspectos dos fenômenos relacionados à transição do governo de D. José I e D. Maria I, ou seja, o
campo de ações que levam a valorizar em demasia por um lado, a secularização das ideias e
enfraquecimento da nobreza e dos jesuítas, e, por outro lado, a retomada dessas posições num
ambiente mais intelectual e científico, mas que trouxe para si a aproximação das pessoas
consideradas inimigas de Pombal e que representavam os grupos de famílias tradicionais da corte
portuguesa. Cf. SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Op. cit.
169
Campos do conhecimento que ainda não estavam postos nas memórias Econômicas da
Academias de Ciências de Lisboa, mesmo em fins do século XVIII. Sobre a constituição dessas
ciências no saber ocidental, ver: FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia
das ciências humanas. Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2007. (Col.
Tópicos)
101
soberano em relação aos seus vassalos e súditos, mas não em relação à vida de uma
população.
170
Cf. MAXUEL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1996.
102
como Inglaterra, Áustria, e sempre retornando a Portugal. Certamente, em contato
com esses países é bem possível que tenha absorvido os príncípios da Razão de
Estado com diferentes pensadores.
Diante do exposto, a indagação que se coloca é: em que sentido as
premissas de Razão de Estado (discutidas desde o século XVII como reação ao
pensamento de Maquiavel algumas vezes, e outras nele se apoiando) entraram na
pauta epistêmica de organização do saber político de Portugal?
Gostaria de encetar a discussão sobre a razão de Estado e de governo,
para demonstrar, no campo da historicidade, a constituição de uma
“governamentalização do Estado português”, cujas ressonâncias atingirão os
territórios que ficaram conhecidos como os “seus domínios”.
Essa produção de Governamentalidade do Estado, na qual Foucault
traça a sua genealogia, se desenvolve a partir de uma problemática geral de governo,
na confluência de dois acontecimentos importantes no continente europeu desde o
século XVI:
171
MACHADO FILHO, Oswaldo. Cartografia de vidas infames: nomadismo e biopolítica na
província de Mato Grosso. In: Política e identidades em região de fronteira (séculos XIX e XX).
Ernesto Cerveira de Sena; Cláudio Pereira Elmir; Oswaldo Machado Filho (Org.). Cuiabá:
EdUFMT, 2012, p. 48.
103
[...] Finalmente, os teóricos da Contra-Reforma se mostram
capazes de reagir à mais insidiosa e perigosa ameaça que[...]
haviam detectado nas obras de Maquiavel, especialmente na
sugestão de que, ao indagar se deve ou não agir com justiça, o
príncipe deve decidir pela linha de ação que pareça ter mais
probabilidade de ‘manter seu estado’. O equívoco que
fundamenta esse conselho ímpio, dizem mais uma vez aqueles
autores, é o mesmo erro básico dos luteranos. Como Possevino
afirma com arrogância em Um juízo sobre os escritos de Jean
Bodin, Philippe Momay e Nicolau Maquiavel, tanto quanto os
outros principais hereges da época, Maquiavel não percebe que
‘a mente dos sábios é imbuída de uma luz divina e natural
enviada por Deus’, a qual nos permite ver que temos o dever e a
capacidade ‘de estar certos de agir apenas com a mais elevada
probidade’. Ribadeneyra apresenta o mesmo argumento em seu
tratado antimaquiavélico A religião e as virtudes do príncipe
cristão: contra Maquiavel. Segundo ele, quando nos dizem ‘para
adotar como regra o que escrevem autores como Maquiavel’, o
que nos pedem é que ‘nos afastemos do caminho direto e reto que
a própria razão natural nos mostra, que Deus nos ensina, que o
abençoadíssimo filho [de Deus] nos revelou’). E Suárez reitera
essa ideia no capítulo especial que destina a Maquiavel no
Tratado das leis e de Deus legislador: Maquiavel esteve cego ante
o fato - crucial - de que ‘o direito civil somente pode ser
elaborado com material honesto’ e deve ser ‘limitado pelas
exigências da justiça’, jamais pelas meras pretensões da
conveniência política172.
172
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. Tradução de Renato Janine
Ribeiro e Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 447-448.
104
meios “ímpios”, como causa última do soberano. No intermeio desses embates, ao
nosso ver, irá se constituir um limiar de Governamentalidade em Portugal, cujas
ressonâncias atingirão suas colônias.
Retomando a obra O espelho político, de La Perriere, o que temos é
uma “forma de governo dos homens” que irá atribuir uma natureza diferente à
gestão política, o que não significava propriamente ministrar justiça. Tratava-se de
pensar uma forma de gestão das pessoas a partir de suas relações com as coisas, era
nisso que consistia essa arte de governar proposta por La Perriere e que, ao nosso
ver, ressoava em algumas dimensões da administração pombalina, mas que, em
outros aspectos dela se distanciava, como teremos a oportunidade de ver mais
adiante.
A tônica da política pombalina, nesse sentido, assumia a necessidade de
uma gestão que contemplasse “uma disposição dos homens com as coisas, à
maneira” como Foucault via a Governamentalidade de La Perriere, em sua obra O
espelho político, que, embora ainda circunscrita à tradição dos Espelhos dos
Príncipes173, trazia uma novidade em relação ao exercício de poder. Isso
significava, dentre outras coisas:
173
Temos nesse sentido a publicação, em 1749, de Damiam Antonio de Lemos Faria e Castro, em 6
volumes a obra: Política, Moral, e Civil, Aula da Nobreza Lusitana e que tinha por finalidade a
direção dos príncipes e demais políticos, não é à toa que ela é dedicada ao príncipe D. José I. A
natureza das reflexões ainda está sob um conjunto de saberes ainda sob a perspectiva de uma
formalização de um bom governo, atinado em conhecimentos das virtudes e vícios que podem
comprometer as ações dos governantes, mas que, curiosamente, já atinavam para questões referentes
às causas em que os Estados se conservam, diminuem ou aumentam. Cf. CASTRO, Damiam
Antonio de Lemos Faria e. Política, Moral, e Civil, Aula da Nobreza Lusitana. Oficina de Francisco
Luiz Ameno. Impressor da Congregação Cameraria da Santa Igreja de Lisboa. Lisboa, 1749. (6
vol.).
105
os acidentes ou as calamidades como a fome, as epidemias, a
morte174.
174
FOUCAULT, Michel. Aula de 1º de fevereiro de 1978. In: Segurança, território, população.
Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, p. 128-129.
175
A precocidade acontecimental desse texto indica que algo de novo estava surgindo na gestão
governamental, mas que como premissa geral de governo ela vai, no mínimo, ser eclipsada por
outras formas de exercício de poder, o que Foucault chamou de bloqueio dessa arte de governar e
que em Portugal, na nossa ótica, ainda está atrelada a premissas gerais do mercantilismo e da Razão
de Estado. Seguindo as pistas de Foucault, acreditamos que esse desbloqueio se dará com a
positividade da problemática da população, em consonância com a penetração de enunciados
liberais/utilitaristas que anunciam um novo paradigma de sociedade civil tanto para Portugal como
para o Brasil. Os detalhes desse processo serão analisados com maior acuidade no capítulo 3 da
presente tese. Cf. FOUCAULT, Michel. Op. cit.
176
Cf. Sobre a noção de contraconduta cf. FOUCAULT, Michel. Aula de 1º de março de 1978. Op.
cit., p. 266.
177
Tratado que marcará o fim da Guerra dos 30 anos (1638-648) que foi um conflito ao mesmo
tempo motivado por questões religiosas (católicos/protestantes), mas também representou o conflito
entre as potências da época, motivadas por interesses dinásticos além de envolver as desavenças
políticas locais dos príncipes alemães em relação ao imperador do Sacro Império Romano
Germânico. Sobre esse assunto, cf. o interessante artigo: MOITA, Luís. Uma releitura crítica do
consenso em torno do ‘sistema vestefaliano’. JANUS.NET e-journal of International Relations.
Universidade Autónoma de Lisboa/Lisboa.vol. 3, n. 2, outono 2012. Consultado [online] em
1/3/2017, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol3_n2_art2
106
relações de força dos Estados Europeus, ensejando plenas condições para o
nascimento da Razão de Estado.
Esta se situa no momento preciso em que a problemática do equilíbrio
europeu era posta em causa diante da fragilização do poder pastoral, pautado na
unidade do Império (a época Império Romano Germânico do Ocidente)178 e da
centralidade em que os próprios Estados colocarão a si mesmos, tendo em vista a
necessidade de manter o equilíbrio, o que, de certa forma, estava em consonância
com a problemática da balança enquanto prerrogativa do “bom governo” em
ministrar justiça, mas que nessa situação representava um controle das forças num
momento de rivalidades dinásticas.
Nessa situação, à questão das rivalidades e da diplomacia emergiu um
campo de tensão política, no qual cada Estado europeu deveria, necessariamente,
conhecer as suas forças e utilizá-las de modo mais eficiente para sua manutenção.
Diante disso é que, ao nosso ver, seguiu paralelamente a dispersão de táticas para a
conservação e posse das áreas coloniais, entre Portugal e Espanha.
O Tratado de Madri e as ações diplomáticas de Alexandre de Gusmão
são consonantes nesse sentido, pois colocava em evidência a tensão entre lusos e
hispânicos na busca da manutenção do equilíbrio entre essas duas nações. Tal
intento redundou na abolição do Tratado de Tordesilhas e de outros pactos,
delimitando as fronteiras de acordo com marcos naturais conhecidos, tendo por base
a aplicação do princípio jurídico do uti possidetis, que garantia a posse a quem de
fato ocupasse os espaços.179
Temos, assim, o emaranhado de problemas levantados sobre o governo
em geral, com ênfase no modo como tais reflexões vão adquirindo conotações cada
vez mais prezas aos mecanismos estatais, configurando o momento da passagem de
um Estado de Justiça para um Estado Administrativo:
178
Cf. FOUCAULT, Michel. Aula de 22 de março de 1978. Op. cit., p. 407.
179
Cf. RIO-BRANCO, Miguel Paranhos de. Alexandre Gusmão e o Tratado de 1750. In: Alexandre
Gusmão e o Tratado de 1750/ A Tormentosa Nomeação do Jovem Rio Branco para o Itamaraty.
Brasília. FUNAG, 2010.
107
com fundamento em regras deduzidas da lei natural ou divina
(razão do direito)180.
180
ARAÚJO, Danielle Regina Wobeto de. A Governamentalidade do Império Oceânico português
no período colonial português. In: História do Direito. Orides Mezzaroba; Raymundo Juliano Rego
Feitosa; Vladmir Oliveira da Silveira (Org.). Curitiba: Editora Clássica, 2014, p. 26.
181 As reflexões de Giovane Botero, Nudé e Bacon situam a problemática da Razão de Estado como
elemento constitutivo do próprio Estado, ou seja, toda uma reflexão sobre como manter e conservar
o Estado. Nesse sentido, seguindo as pistas deixadas por Foucault, percebe-se que essa Razão de
Estado vai desenhando o rompimento com uma temporalidade teleológica de cunho religioso e
produzindo um discurso cada vez mais atado a uma concepção temporal presa aos objetivos mais
próximos, mais diretos da manutenção do Estado. Coadnua-se com esse pensamento um vocabulário
político que usa Golpes de Estado, de Segredos de Estado, intrigas, investimento na opinião popular
etc. e percebemos muitas dimensões dessas características no ministério pombalino na segunda
metade do século XVIII. Sobre Razão de Estado, ver: FOUCAULT, Michel. Segurança, Território,
População. Op. cit.; SENNERLAT, Michel. As Artes de Governar. Op. cit.; ROMANO, Roberto.
Razao de Estado e outros Estados da Razão. São Paulo: Perspectiva, 2014.
182
Ibid., p.32
108
constituindo uma nova Governamentalidade que começava a se desprender de suas
bases teológicas e das amarras do direito:
183
ALCADIPANI, Rafael. Dinâmicas de poder nas organizações: A contribuição da
Governamentalidade. In: Revista Comportamento organizacional e gestão. Lisboa, vol. 14, n. 1,
2008, p. 101.
184
O historiador português Pedro Cardim exemplifica essa situação ao trabalhar com os conceitos
usados por Vieira, no século XVII: política e governo, trazendo as diferentes nuances desse conceito
na prática e atuação de Vieira junto ao Soberano. Cf. CARDIM, Pedro. Governo e política no
Portugal de seiscentos: o olhar do jesuíta António Vieira. In: Revista Penélope, (s/l) Lisboa, n. 28,
2003.
109
da existência humana. Basta lembrar que no dicionário organizado pelo padre
jesuíta Rafael Bluteau, no início do século XVIII, tal noção fazia remissão a uma
polissemia de significados, como:
185
BLUTEAU, Rafael. Vocábulo Português Latino, Áulico, Anatômico, Bélico, Botânico etc. vol.
4. Dedicados a D. João V. Coimbra: Real Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1713, p. 103-
105.
110
política não é a prosperidade temporal dos Estados, mas a
glória de Deus, na administração da justiça, & observância
das Leis. [grifos meus], Política. A ciência de governar um
Estado, uma República186.
186
Idem. Vocábulo Português Latino, Áulico, Anatômico, Bélico, Botânico etc. vol.06. Dedicados a
D. João V. Real Colégio das Artes da Companhia de Jesus: Coimbra, 1720, p. 576-577.
187
Ibid.
111
conselheiros que, obviamente, eram convocados para lhe prestar auxílio em
assuntos de política. Semelhantes referências encontramos também em Damian
Antonio de Lemos Faria L. Castro, na obra intitulada Política Moral e Civil: Aula
da Nobreza Lusitana, dedicada ao até então príncipe de Portugal D. José I, vejamos
algumas delas.
A tonalidade do escrito de Damian Antonio de Lemos Faria L. Castro
estava ainda muito ligada a uma escrita da história “edificante e exemplar”188,
buscando os fundamentos do governo político a ser exercido pelos príncipes, tanto
pela imitação dos exemplos daquilo que foi glorioso no passado, como pelas
infâmias que o príncipe deveria evitar:
188
Os escritos de Damian Antonio de Lemos Faria L. Castro, nesse sentido, representaram uma
permanência de um modelo de narrativa histórica na qual a história seria mestra da vida, história
magistral vitae, uma tradição narrativa proposta pelos romanos e que permanecerá como gênero
literário por todo o século XVIII, antes de ser preterida por uma história dita científica (Geschite)
no século XIX, à maneira de Ranke, Hegel, Marx etc. Cf. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado:
contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução de César Benjamin. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2006.
189
CASTRO, Damian Antonio de Lemos Faria L. Proêmio. In: Política Moral e Civil: Aula da
Nobreza Lusitana. Tomo I. Lisboa: Oficina de Francisco Luiz Ameno impressor da Congregação
Camerária da Santa Igreja de Lisboa, 1749, p. XII-XIII.
112
também muitos homens sábios”190 e, obviamente, o príncipe deveria ocupar esse
lugar central entre os sábios, ou seja, a ação do soberano deveria sempre estar em
consonância com a dos seus conselheiros ou ministros:
190
Ibid.
191
CASTRO, Damian Antonio de Lemos Faria L. Liv. III. Da Prudência. Cap. III. Op. cit. p. 124-
125.
113
respeita as coisas, que se hão de obrar, e dá medida as leis, e lei
às virtudes todas. A Justiça modera a vontade, inclinando-a às
coisas justas, que pertencem ao bem alheio192.
192
Ibid., p. 45-46.
193
O fato de o dicionário ter sido elaborado por um padre jesuíta e que teve sua formação intelectual
nos muros da Igreja, ajuda a entender a concepção de governo ligada a virtude, por esse grupo
eclesiástico, no entanto, quando o mesmo vai perdendo influência, essa significação perde o seu
lugar. Sobre a relação significante e significado como símbolos que explicam um determinado
acontecimento, cf. DARTON, Robert. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. Tradução
de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
194
BLUTEAU, Rafael; SILVA, Antonio de Moraes. Dicionário da Lingua Portugueza composto
pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado e accrescentado por Antonio de Moraes Silva. Tomo I (A
a K). Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789, p. 664.
114
maneira, fazem ressoar alguns posicionamentos estabelecidos por Rousseau, em seu
Discurso sobre a Economia Política, quando afirma:
195
ROSSEAU, Jean Jacques. Discurso sobre Economia Política. Tradução de Maria Constança
Peres Pissarra. Petrópolis: Vozes, 2017, p. 35-36 (Vozes de Bolso).
196
BLUTEAU, Rafael; SILVA, Antonio de Moraes. Op. cit., p. 664.
115
2.2- Estado de polícia e razão de Estado: entre o sismo natural e a cisma
política
197
HESPANHA, António Manuel; SUBTIL, José Manuel. Corporativismo e Estado de polícia como
modelos das sociedades euro-americanas do Antigo Regime. In: O Brasil Colonial (1443-1580),
vol. 1. João Fragoso; Maria de Fátima Gôuveia (Org.) Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
198
Ibid., p. 148.
116
Essa governamentalização do Estado português, segundo os
mencionados historiadores, revelam, entre outras coisas, o surgimento de um estado
de polícia, que se constituiu após o terremoto de Lisboa, no ano de 1755,
acontecimento199 que abalou as diretrizes tradicionais do poder político e lançou
aos governantes uma nova maneira de gerir a relação entre súditos e soberano, o
qual terá diante de si novas urgências.
A necessidade da reconstrução de Lisboa após o terremoto lançou novas
problemáticas de gestão governamental diante de uma cidade em ruínas, destroçada
e cheia de escombros. Semelhante evento, certamente deixou graves sofrimentos
materiais e psíquicos, marcados por ações de banditismo diante da miséria que se
via após o terremoto. Em Nova, e fiel relação do terremoto que experimentou
Lisboa, e todo Portugal no 1º de novembro de 1755 com algumas observações
curiosas, e a explicação das suas causas, de autoria de Miguel Tibério Pedegache
e publicada em 1756, oferece um pouco da dimensão do efeito destrutivo daquele
sinistro e o sofrimento impingido aos portugueses, em particular, aos lisboetas:
199
Aqui, o conceito de acontecimento é pensado sob a égide de Michel Foucault e assinala um limiar
de descontinuidade, de ruptura e de positividade atravessado por produções discursivas e não
discursivas, capazes de estabelecer novos dispositivos de poder em Portugal e nas colônias. Sobre
uma análise dessa perspectiva de acontecimento em Michel Foucault, ver: DOSSE, François.
Renascimento do Acontecimento: um desafio para o historiador - entre Esfinge e Fênix. Tradução
de Constancia Morel. São Paulo: EdUNESP, 2013.
117
Mas que tristes objetos se oferecerão aos olhos! Mulheres quase
nuas, crianças ensanguentadas, velhos cobertos de poeira
correndo de uma para outra parte, corpos desfigurados pela morte
espalhados em todas as ruas; Religiosos com cruzes e Imagens
devotas nas mãos excitando o povo atemorizado às lágrimas de
uma sincera penitência, Templos derribados, Palácios
arruinados, e número de infelizes sepultado nas ruínas sem
esperança de socorro200.
200
PEDEGACHE, Miguel Tibério. Nova, e fiel relaçaõ do terremoto que experimentou Lisboa, e
todo Portugal no 1º de Novembro de 1755 com algumas observaçoens curiosas, e a explicaçaõ das
suas causas. Lisboa: na Officina de Manoel Soares, 1756, p. 3-4. Disponível em:
http://purl.pt/21921/4/422376_PDF/422376_PDF_24-C-R0150/422376_0000_rosto-24_t24-C-
R0150.pdf. Acessado em 10/8/2017
201
PEDEGACHE, Miguel Tibério. Op. cit., p. 5-6.
118
armadas asseguraram a neutralização de tais elementos. Muitos
foram presos, submetidos a juízo e executados na forca202.
202
ANTUNES, M. Telles; CARDOSO, João Luís. Testemunhos do terremoto de 1755: novos
elementos obtidos em escavações na Academia das Ciências de Lisboa (notícia preliminar). Olisipo.
Lisboa, Vol. 2, nº 22/23, p. 79, jan./dez. 2005.
203
Sobre essas conotações do termo polícia em Portugal do início do século XVIII, cf.: BLUTEAU,
Rafael. Op. cit., p. 573.
119
Providência IX: Darem-se comodidades precisas para
alojamento interino do povo;
Providência X: Restabelecer o exercício dos Ofícios Divinos nas
poucas Igrejas, que se haviam salvado, ou em decentes
acomodações interinas;
Providência XI: Recolher as religiosas, que vagavam dispersas,
e dar-lhes a possível clausura;
Providência XII: Socorrer a diversas necessidades, em que estava
o povo, as quais por várias, e avulsas, se reduzem a uma classe
separada;
Providência XIII: Atos de Religião em S. Majestade para aplacar
a ira Divina, e agradecer ao Senhor tantos benefícios;
Providência XIV: Dão-se os meios mais conducentes para a
reedificação da Cidade204.
204
LISBOA, Amador Patrício de. Memórias das Principais Providências, Que se Derão no
Terremoto que padeceo a Corte de Lisboa no anno de 1755, ordenadas, e oferecidas a’ Magestade
Fidelissima de El’Rey D. José I. 1758. Disponível em: http://purl.pt/6695/6/hg-8302-a_PDF/hg-
8302-a_PDF_24-C-R0150/hg-8302-a_0000_capa-capa_t24-C-R0150.pdf. Acessado em: 3/8/2017.
205
Cf. FOUCAULT, Michel. Aula de 29 de março de 1978. In: Segurança, território, população.
Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
120
o segundo problema a ser levado pela polícia foi relativo à vida, ou seja, às
condições que garantissem àquela população sua subsistência (roupa, comida,
abrigo etc.). A providência II procurou evitar a fome, a III curar os feridos e
desamparados na rua, a VII remediar as necessidades do Reino de Algarves e
Setúbal e os portos da Índia e América, a IX oferecer alojamento ao povo, e a XII
socorrer as diversas necessidades do povo, o que se prestou a ilustrar o segundo
objetivo da polícia. Já o terceiro objeto tratou da questão da saúde enquanto
condição necessária para que as pessoas exercessem alguma atividade útil ao Estado
(nesse propósito, é exemplo desse objetivo as providências I - evitar a peste e II -
curar os feridos e doentes). A IV preocupação da polícia tratou efetivamente do
trabalho, evitando a ociosidade (nesse caso as providências V- evitar os roubos e
castigar os ladrões, VIII - mandar vir tropas do Reino para auxiliar na reconstrução
da cidade e na manutenção da paz e sossego, materializam esse quarto objetivo) e,
por fim, a V preocupação dizia respeito à circulação de mercadorias, ou seja, das
condições materiais que o Estado deveria se ocupar para garantir tal circulação, daí
se depreende a preocupação com as estradas, com a navegabilidade dos rios e mares
etc. (as providências VI que versam sobre as rondas sobre os rios e mares para evitar
a saída de produtos roubados, uma vez que a quantidade de víveres estava
comprometida não somente por conta de não haver gente para produzi-la, como
também pelo fato de que grande quantidade de armazéns e outras propriedades
foram destruídas pelo terremoto.
Essas medidas de polícia ainda contavam com a necessidade de
restabelecer os cultos religiosos nas acomodações que resistiram ao terremoto,
recolhendo as religiosas que, por conta do acontecimento, estivessem sem moradia.
Tratava-se de agir em duas frentes: uma na reconstrução material da cidade e a outra
no conforto espiritual de tanta gente que sofreu em seus corpos a força destrutiva
do terremoto, ou seja, a situação colocava em cena duas forças em visibilidade: a
ação governamental do ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, de um lado, e
ação espiritual pelo padre Gabriel Malagrida, duas maneiras de conduzir o povo
com suas misérias no palco de uma Lisboa destruída.
Essas dimensões de polícia, com semelhantes conotações estavam, em
de certa medida, em consonância com algumas premissas enunciadas anteriormente
121
por Gillaume de La Perriere, quando colocava a questão de se governar as relações
dos homens com as coisas, inserindo também as premissas da Razão de Estado
nessa concepção de polícia, uma vez que todos os objetos de que se ocupava a
polícia naquele momento visavam o fortalecimento e a manutenção do Estado.
A essa ideia de polícia associada a prática governamental de Portugal,
nessa segunda metade do século XVIII, apontou também para a necessidade da
utilização de mecanismos mais eficazes de gestão dos homens na sua relação com
as coisas, o que significava a introdução, na pauta política do soberano português,
de um padrão de racionalidade que buscasse o fortalecimento e prosperidade desse
Estado:
206
HESPANHA, António Manuel; SUBTIL, José Manuel. Op. cit., p. 151.
207
Em referência aos sistemas de mercês, graças e outras retribuições régias concedidas segundo os
compromissos estabelecidos com o soberano e seus súditos. Tal sistema começou a enfraquecer,
contribuído pela necessidade de estancar a sangria de recursos que eram concedidos sob o título de
graças e mercês, tendo em vista a necessidade de reconstruir Lisboa.
208
Ibid.
122
Além disso, no tocante à Intendência Geral de Política de 1761,
conforme Hespanha e Subtil, o seu campo de ação incorporava as práticas dos
“corregedores, provedores e juízes de fora, bem como repercutia no Senado da
Câmara de Lisboa e no Desembargo do Paço em assuntos de polícia”209, o que
remetia àquelas providências tomadas após o terremoto, por exemplo.
Com isso, começavam a ser traçadas as reformas ditas pombalinas, um
limiar de “Governamentalidade do Estado” português, tendo por base a substituição
de um governo ministerial imperante no reinado de D. João V (ainda muito próximo
dos modelos do bom governo de fortes ressonâncias religiosas)210, para um governo
estruturado em secretarias (emergências de novas responsabilidades de cada
secretaria), ocasião em que se observa a passagem de:
209
Ibid.
210
A esse respeito, é bom lembrar as premissas do bom governo defendidas por Damian Antonio de
Lemos Faria L. Castro. Cf. CASTRO, Damian Antonio de Lemos Faria L. Política moral e civil:
Aula da Nobreza Lusitana. Op. cit.
211
Ibid.
123
O caso do jesuíta Gabriel Malagrida é emblemático, pois este desfrutava
de grande prestígio no reinado de D. João V, reconhecido por suas atividades
relacionadas ao catecismo, conversão e ensino no Maranhão e no Pará, e de sua
fama como “taumaturgo”, não se podendo esperar o fim que teve: foi “estrangulado
e queimado em 21 de setembro de 1761”.212
A questão do cisma entre o Pombal e Malagrida situava-se na passagem
de um poder pautado na virtude do soberano e materializado em ações tidas como
de “bom governo”, nas quais certamente o gênero literário dos “espelhos dos
príncipes”213 constituía exemplo, para a organização de um poder de Estado mais
laicizado, ou seja, de uma Razão de Estado.
A catástrofe provocada pelo terremoto colocou em questão duas
explicações para o fenômeno: a primeira, proposta pelo padre Gabriel Malagrida,
de que se tratava de um fenômeno “sobrenatural” e indicativo de um castigo divino,
e, a segunda, proposta por Pombal, que contratou cientistas para espalhar panfletos
sobre as causas naturais dos abalos sísmicos.
212
Cf. MURY, Paulo. História de Gabriel Malagrida. Prefáciado por: Camilo Castelo Branco.
Lisboa: Mattos Moreira & Cia, 1875.
213
Sobre os gêneros literários dos Espelhos dos Príncipes cf. SENERLATT, Michel. As artes de
governar: do regime medieval ao conceito de governo. Tradução de Paulo Neves. São Paulo:
Editora. 34, 2006.
214
Cf. FRANCO, José Eduardo. O Terremoto Pombalino e a Campanha de Desjesuitização de
Portugal. Revista Lusitania Sacra (Revista do Centro de Estudos de História Religiosa/Universidade
Católica Portuguesa): Catolicismo e Sociedade na época Moderna: O terremoto de 1755. Lisboa, 2ª
série, tomo XVIII, FCT (Fundação para a Ciência e Tecnologia), 2006, p. 147-218.
124
A tônica dessa polêmica já demonstrava divergência da política
pombalina em relação ao padre Gabriel Malagrida, que atuou como missionário no
Brasil e que chegou a ter desavenças com o irmão do ministro, Francisco Xavier
Furtado, que era o então, capitão-general da capitania do Grão-Pará e Maranhão.
Veja o teor acusatório da carta remetida por Xavier Furtado ao seu irmão Carvalho
e Melo:
ILMº e Exmº Sr. meu irmão do meu coração: Ainda que dei a V.
Exª uma conta geral e larga do que me pareceu que era a ruína
deste Estado, quero agora em menos palavras contrair o discurso
e referir alguns casos em comprovação daquele papel.
Já V. Exª está informado do grande poder dos Regulares neste
Estado, que o tal poder o tem arruinado, que os religiosos não
imaginam senão o como o hão de acabar de precipitar, que não
fazem caso de Rei, Tribunal, Governador ou casta alguma de
Governo, ou Justiça, que se consideram soberanos e
independentes, e que tudo isto é certo, constante, notório e
evidente a todos os que vivem destas partes215.
215
Cf. MENDONÇA, Marcos Carneiro de. A Amazônia na Era Pombalina: Tomo I.
Correspondência do governador e capitão-general do Estado do Grão-Pará e Maranhão,
Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1751-1759). Brasília: Senado Federal, 2005, p. 203.
216
Característica marcadamente mercantilista. Cf. HUNT, E. K.; SHERMAN, Howard J. História
do pensamento econômico. Tradução de Jaime Larry Benchimol. Petrópolis: Vozes, 2005.
125
adiantamento em corporação alguma, e por essa razão só as
comunidades neste Estado florescem, e se adiantam, quando tudo
mais se acabou e extinguiu de todo217.
217
MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Op. cit., p. 206.
218
Cf. FRANCO, José Eduardo. Op. cit., p. 149-150.
126
Sabe, pois, oh Lisboa, que os únicos destruidores de tantas casas
e palácios, os assoladores de tantos templos e conventos,
homicidas de tantos seus habitadores, os incêndios devoradores
de tantos tesouros, os que a trazem ainda tão inquieta, e fora de
sua natural firmeza, não são os cometas, não são estrelas, não são
os vapores ou exalações, não são fenômenos, não são
contingencias ou causas naturais; mas são unicamente os nossos
intoleráveis pecados.[...] Nem digam os que politicamente
afirmam, que procedem de causas naturais, que este orador
sagrado abrasado no zelo do amor divino faz só uma invectiva
contra o pecado, como origem de todas as calamidades que
padecem os homens, e que se não deve comprovar com esses
espíritos ardentes , que só pretendem aterrar os mesmos homens,
e aumentar a sua aflição com ameaços da ira divina
desembainhada; porque é certo, se me não fosse censurado dizer
o que sinto desses políticos, chamar-lhes ateus; porque esta
verdade conheceram ainda os mesmos gentios219.
219
Opúsculo escrito por Gabriel Malagrida e apresentado na íntegra por Camila Castelo Branco na
obra História de Gabriel Malagrida, escrita pelo padre jesuíta Paulo Mury. Cf. MURY, Paulo. Op.
cit., p. IX-XI.
220
Esta concepção coadunava com a ideia de uma Natureza perfeita, criada pelos desígnios divinos
para satisfazer as necessidades humanas no trabalho, na vestimenta, na alimentação etc. A natureza
criada por Deus mantinha-se em perfeito equilíbrio. Sobre a mudança dos comportamentos humanos
em face ao mundo natural, cf. THOMAS, Keith. O Homem e o mundo natural: mudanças de atitudes
em relação as plantas e aos animais (1500-1800). Tradução de João Roberto Martins Filho. São
Paulo: Companhia das Letras, 1988.
127
Algumas pessoas se admiram que o tremor do dia de Todos os
Santos se tenha feito sentir no mesmo dia, em Portugal, em
Holanda, em Espanha, na África, e na América Meridional. A
lição da Teoria da Terra, obra admirável, e que imortaliza
Monsier Buffon, me ensinou a conhecer a causa desse
fenômeno221.
221
PEDEGACHE, Miguel Tibério. Op. cit., p. 7.
222
Ibid., p. 7-8.
128
a um espaço reduzido, o que levou a causar os tremores, no caso dos terremotos, ou
procurar fendas por onde pudessem escapar, no caso dos vulcões.
É claro que essas duas explicações para o fenômeno situavam-se num
campo discursivo de poder sobre a opinião pública, tendo, de um lado, a acusação
de ateísmo por parte daqueles que defendiam o evento sísmico enquanto algo
sobrenatural, chocando com a explicação veiculada pela campanha antijesuítica,
marcada por jogo de propaganda política iniciado em 1756, o qual tinha por base o
levantamento de supostas provas coligidas num conjunto de documentos intitulado
Terribilidades, no qual foram elencado o conjunto de abusos, desrespeitos e
sedições ocorridos no norte do território brasileiro, além de outras possíveis
atrocidades cometidas pelos jesuítas.
Em 1757 veio a lume uma nova compilação de documentos
denominada Relação Abreviada223, na qual projetava-se a imagem dos jesuítas
enquanto personagens alheias às leis do Estado, visto que considerados espoliadores
dos colonos brancos, ardilosos e sediosos, que chegaram ao ponto de adequar as
leis da Igreja em benefício próprio. Enfim, essas investidas, construíram uma
imagem negativa da Companhia de Jesus, criando um campo propício para
fundamentar a expulsão dos inacianos a mando do governo português, mesmo com
frente à condenação papal. Não é o nosso intuito aprofundar nos processos que
culminaram na expulsão dos jesuítas (inclusive os processos eclesiásticos224),
cabendo apenas assinalar que a campanha de Carvalho e Melo, nesse sentido,
funcionou muito bem225.
Em 5 de março de 1761, o rei D. José I publicou um alvará em que
acusava os jesuítas de traidores, rebeldes, adversários e agressores da ordem vigente
emanada do rei, redundando na expulsão definitiva dos membros da Companhia de
223
Para mais detalhes em relação à campanha de desmoralização da Companhia de Jesus e os
processos que se seguiram cf. FRANCO, José Eduardo.Op. cit.
224
Um exemplo da manifestação papal contra os jesuítas foi expressa em um documento escrito pelo
papa Clemente XIV, intitulado Breve do Santíssimo Padre Clemente XIV pela qual a Sociedade
Companhia de Jesus se extingue, e suprime em odo orbe, publicado pela régia oficina tipográfica de
Lisboa, no ano de 1773. In: MOREIRA, Antonio Joaquim. Op. cit., p.241.
225
Ao analisar o exemplo de Luís XIV, monarca francês do século XVII, o historiador Peter Burke
apresentou exemplo das estratégias utilizadas para garantir uma certa persuasão e convencimento
em relação aos seus súditos e, que, no entanto, não atribuía a uma ideia de propaganda política, que
só seria criada em finais do século XVIII. Cf. BURKE, Peter. A fabricação do rei: a construção da
imagem pública de Luís XIV. Trad. Maria Luisa X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
129
Jesus do Reino português e de seus domínios. Nesse documento também foi
estabelecido o confisco dos seus bens, os ditos bens temporais, como: móveis que
não estavam diretamente ligados ao culto, mercadorias de comércio, terras, casas,
renda em dinheiro que não foram gravadas como destinadas a capelas e obras pias,
dentre outras226.
A execução de Malagrida, em 21 de setembro de 1761, foi descrita em
tom apologético e heroicizante, por Paulo Mury227, mas semelhante episódio, para
a presente tese é interessante enquanto exemplo da técnica do exercício de “poder
de fazer morrer”, baseado no cerimonial do suplício, ou seja, produzindo uma
espécie de espetáculo a ser vislumbrado por uma grande quantidade de expetadores.
Paulo Mury descreveu uma infinidade de dores no corpo do
sentenciado, que envolvia a organização minuciosa da cerimônia de execução, a
qual passava pela realização de procissão, o que manifestava a solenidade do
evento, a construção de palanques ao redor da praça do Rocio, onde o povo e a
nobreza pudessem assistir. Além disso, esperarou-se o entardecer, para que o
sentenciado desfilasse pelas ruas para ser ultrajado. O supliciado vestia uma espécie
de mitra de papelão desenhada com demônios, sendo ao final exposto a insultos de
toda espécie, até sua morte a garrote e fogueira, cujas cinzas foram logo atiradas ao
mar, para que os súditos não a recolhessem. Todo esse espetáculo foi presidido pelo
ministro e à frente dele se posicionavam o monarca e a corte228.
226
Lei de 5 de março de 1761, reafirmando o decreto régio de setembro de 1759, em que o rei D.
José I ordenava a expulsão dos religiosos da Companhia de Jesus que estivessem em seus domínios
continentais e ultramarinos. Já, mesmo antes de 1761, por exemplo, temos a provisão de D. José I,
de 10 de abril de 1760, dirigido ao capitão-general João Pereira Caldas da capitania do Piauí,
comunicando a expulsão dos jesuítas e a entrega deles ao capitão-general do Maranhão e o confisco
de seus respectivos bens. Cf. Provisão. AHU-Piauí, CX. 06, DOC. 03; cf. MOREIRA, Antonio
Joaquim. Op. cit., p.224.
227
Logicamente, essa situação expressa o lugar social de onde fala Paulo Mury, pois, sendo ele
também um padre jesuíta, a obra fornece uma memória edificante de Malagrida, apresentando uma
imagem diferente de sua trajetória, uma vez que uma das penas conferidas ao referido padre era a
infâmia. Sobre a relação do lugar social com a produção historiográfica, ver: CERTEAU, Michel
de. A operação historiográfica. In: A escrita da História. Tradução de Maria de. Lourdes Menezes.
Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 2002.
228
Esse trabalho, intitulado História de Gabriel Malagrida, de Paulo Mury, é declaradamente
partidário do jesuíta e manifesta exatamente o objetivo de vingar o clérigo e mostrar como ele foi
alvo de injustiça, perpetrada por Sebastião José de Carvalho e Melo. Para nós, é interessante as
informações que descreve o exercício do suplício, num momento em que se buscava racionalizar as
ações do Estado pautadas pelo iluminismo, o que, a nosso ver, representa a conservação de um
paradigma político que não coadunava completamente com um liberalismo na arte de governar.
Sobre detalhes da vida de Gabriel Malagrida, cf. MURY, Paulo. História de Gabriel Malagrida.
Prefaciado por: Camilo Castelo Branco. Lisboa: Mattos Moreira, 1875.
130
A condenação do padre Gabriel Malagrida, um dos principais críticos
de Sebastião José de Carvalho e Melo em Portugal, e que anteriormente havia
manifestado desavença a Francisco Xavier de Mendonça Furtado229, foi acolhida
em oficio datado de 28 de junho de 1762, pelo até então capitão-general da capitania
de Grão-Pará e Maranhão, Manuel Bernardo de Melo e Castro, cujas cópias da
sentença deveriam ser entregues às ordens religiosas da colônia, servindo de
exemplo contra outras “possíveis sedições”.
O teor da carta apresentava a notícia do recebimento da sentença contra
Malagrida e toda a Companhia de Jesus. No documento, Malagrida foi acusado de
hipócrita, membro de congregação corrupta que, diante da sentença da qual ele tinha
cópias o mundo dito cristão, ficou conhecedor:
229
Vale ressaltar que nesse momento Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão de Pombal, era
Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, e fez questão que a notícia fosse veiculada na colônia,
como manifestação de justiça.
230
Cf. OFICIO C.T.AHU-ACL-CU-013, Caixa 52, Doc. 4.786.
231
Cf. OFICIO. AHU-Rio de Janeiro, Cx. 71, Doc. 15.
131
O aspecto cerimonioso da execução e da espetacularização da punição
apresenta as mesmas tonalidades referidas anteriormente, no caso de Malagrida. Em
relação a este último evento, o pesquisador Manoel Barros da Mota nos oferece a
seguinte explicação:
[...] vai ser queimado vivo junto com o cadafalso em que foi
executado, pois tudo foi reduzido a cinzas e pó e jogado ao mar,
em um processo de apagamento da memória que pretende
destruir os mínimos traços que falam ou escrevem sobre o
sujeito, além de destruir o seu corpo físico e tudo que o investe
do ponto de vista simbólico, imaginário e real [...]. Por outro
lado, a ação do soberano, da justiça, todos os documentos que o
acompanham, paradoxalmente, vão afirmar e conservar a
memória cujo sentido o futuro vai poder ler de outras formas234.
232
Cf. MOTA, Manoel Barros da. Crítica da razão punitiva: Nascimento da prisão no Brasil. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2011, p. 39.
233
Cf. ORDENAÇÕES FILIPINAS: LIVRO V. Silvia H. Lara (Org.). São Paulo: Companhia das
Letras, 1999.
234
MOTA, Manoel Barros da. Op. cit., p. 39.
132
De maneira paradoxal, o regicídio, em seu cerimonial punitivo, situava-
se entre a memória e o esquecimento. Operava um trabalho de memória ao imputar
um cerimonial exemplar do poder do soberano, execução pública com ostentação
dos suplícios, onde os muitos expectadores guardariam na memória o horror ou
fascínio por esse tipo de execução, tudo isso diante da tentativa de apagar e reduzir,
a pó, a lembrança dos sentenciados.
Possivelmente, antes de relegar os sentenciados de crime de lesa
majestade ao esquecimento, a punição trabalhava numa perpétua memorização, por
meio do ritual público, mas com desdobramento da infâmia que deveria atingir até
mesmo os descendentes.
A panóplia punitiva que previa a pena de morte, bem como a ostentação
dos suplícios, embora utilizadas para punições de casos excepcionais quando se
atentava contra a vida do soberano, da pátria e até mesmo de condutas consideradas
mortalmente pecaminosas pela Inquisição. O fato é que essa prerrogativa de punir
alguém à pena de morte Portugal se manteve no corpo jurídico português até 1852,
para crimes de natureza, e, até o ano de 1867, para crimes civis:
[...] Como desde 1834 não era aplicada aos crimes políticos e
desde 1846 aos de natureza civil na metrópole, estas leis
vanguardistas não suscitaram polémica, pois correspondiam à
prática penal portuguesa que a abolira de facto.[... ]
Se procurarmos a última mulher executada em Portugal e no seu
império por sentença judicial, será necessário remontar a 1772.
Muito mais tarde, em 1811 e no contexto de guerra, uma outra
mulher foi condenada à morte. Fugiu e, estabelecida a paz, veio
a ser absolvida235.
235
LOPES, Maria Antónia. Op. cit., p. 122.
133
Diante dessa questão cogita-se, tendo por base a própria historiografia portuguesa,
que tenha sido realizado um “tribunal de exceção”, no qual a pena de morte já estava
dada de antemão, tanto no processo do padre Malagrida quanto no dos Távoras.
Creio que agora possamos enfocar as reformas que advieram a esses
dois processos que, ao nosso ver, desferiram um golpe profundo em dois grupos
poderosos da sociedade portuguesa do período: a Companhia de Jesus, pilar
educacional, religioso e até certo ponto científico236, e a nobreza, que se assentava
em seus privilégios e posições.
O vácuo deixado pela Companhia de Jesus no âmbito da produção
intelectual e científica será ocupado pela reforma da Universidade de Coimbra, a
partir de 1772, adicionada à dinamização das atividades econômicas com a
consolidação das Companhias de Comércio, na indistinção dos cristãos novos237 e
cristãos velhos, que, entre outras coisas, eram hábeis comerciantes, numa
consolidação/reestruturação política emoldurada e sintonizada com uma Razão de
Estado.
O termo Razão de Estado serve para designar uma problemática na qual
a própria prática a ser desenvolvida pelo soberano deveria estar articulada às
condições de manutenção da força do Estado. Obviamente, a questão já tinha sido
de certa maneira posta por Maquiavel em relação ao príncipe que governava o seu
território e era ameaçado por forças externas e internas (os países rivais que desejam
o seu trono, e os habitantes de seu reino que querem destroná-lo). Já na consolidação
de uma Razão de Estado, o que se via era uma preocupação com a gestão das forças
do Estado e do território, apenas uma das dimensões do mesmo Estado.
Quando Portugal se encontrava fragilizado por conta do terremoto de
Lisboa e das mazelas sociais e econômicas advindas desse evento, o que se
priorizava era a necessidade de fortalecimento do Estado e, para tal, fazia se
necessário uma reestruturação política que atingisse setores tradicionais da
236
Havia entre os jesuítas, matemáticos, astrônomos e mestres de língua. O padre jesuíta Rafael
Bluteau pode ser um exemplo de erudição intelectual e científica do século XVIII e o seu dicionário
de vocábulo português cobre boa parte da semântica científica da época.
237
Eram os judeus convertidos ao cristianismo, que durante vários séculos recaíram sanções contra
eles, além de uma certa discriminação em relação a esse grupo. Havia nas ordenações Filipinas
condições e marcas simbólicas que demarcavam a distância entre eles e os cristãos considerados
normais.
134
sociedade portuguesa e que, obviamente, poderia impor resistência às reformas
desejadas pelo Secretário de Estado Sebastião José de Carvalho e Melo. Nesse
sentido, a teoria do cameralismo se coadunava com a ideia de polícia referida
anteriormente, onde:
238
HESPANHA, António Manuel; SUBTIL, José Manuel. Op. cit., p. 147-148.
239
Ibid., p. 157.
135
Tal situação apontava para a necessidade da gestão dos gastos públicos,
tornando mais visível a onda de endividamento que afetava o país desde o
terremoto. Instaurava-se, assim, a constituição de uma intervenção estatal nas
atividades econômicas orquestradas pelo ministro Sebastião José de Carvalho e
Melo, em perfeita sintonia e consonância com os dispositivos de intervenção do
Erário Régio:
240
Ibid., p. 156.
241
SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Op. cit., p.102.
136
gestão dos negócios do Estado a partir de Sebastião José de Carvalho e Melo. No
entanto, esse momento convivia com formas tradicionais de pensamento político e
econômico, centradas na perpetuação da força do Estado, e com um sistema de
justiça que ainda preconizava mais o direito de causar a morte do que investir na
vida, situação que explica a relativa lentidão da política portuguesa em assumir
premissas liberais, expressão que se torna usual na história portuguesa só
tardiamente242.
Na administração de D. José I e de Maria I assistiu-se em Portugal a
movimentos de organização da produção econômica, social e cultural que, talvez,
possam ser exemplificados tanto pela reforma da Universidade de Coimbra, na
ruptura com os jesuítas que dominavam o cenário cultural e intelectual na formação
das condutas das pessoas, bem como a criação da Academia de Ciências de Lisboa,
que, por um lado, buscava romper com a supremacia de Coimbra, tornando-se
símbolo na esfera da produção cultural e intelectual do governo pombalino. A
referida Academia, na época de D. Maria I, demonstrava uma preocupação com a
formação política dos governantes portugueses na gestão dos negócios do Estado,
mesmo que envoltos em certos “reacionarismos”:
242
Cf. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Liberal – Liberalismo, Ler História, 55, 2008, posto online no
dia 16/10/2016, consultado no dia 25/4/2017. URL: http://lerhistoria.revues.org/2242; DOI:
10.4000/lerhistoria.2242
243
SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Op. cit., p. 104-105.
137
O que se observa nesse sentido é que, durante a segunda metade do
século XVIII, a gestão do Estado encontrava materialidade na criação de diversas
secretarias, na reforma do ensino, na instauração de medidas de polícia, de fomento
das atividades comerciais (embora circunscritas a prática do mercantilismo), no
nascimento da Academia de Ciências de Lisboa, passando a ser alvo de
investimento político central no fortalecimento do Estado.
Tratava-se de uma atmosfera política que, ao nosso ver, mesmo
embebida na atmosfera cultural do iluminismo que caracterizou o cenário
intelectual europeu, as reformas pombalinas e os primeiros anos do governo de D.
Maria I, na prática política, ficaram marcados predominantemente pelas reflexões
tecidas sobre a Razão de Estado, que desde o século XVII e nascido no seio da
Igreja irá se desprender dela e criar inovadoras condições de sua
governamentalização. É nesse cenário que se vê:
244
HESPANHA, Antonio M.; SUBTIL, José M. Op. cit., p. 127-153.
138
o sistema de concessão de mercês e outros privilégios concedidos à nobreza e ao
clero já dava mostras de enfraquecimento.
Tal situação ajuda a entender porque, em Portugal, o desprendimento
de um campo de enunciados em torno do poder soberano e a constituição de um
liberalismo político em seu território se deu de forma mais lenta, cujo nascimento
terá que esperar o século XIX para instaurar um novo campo discursivo,
circunscrito às novas práticas na gestão do Estado e de sua população.
139
pombalinas e marianas em Portugal que, como apresentado anteriormente, estavam
circunscritas a uma Razão que criava um limiar de governamentalização do Estado.
Nesse sentido, creio ser possível falar de um processo de
governamentalização da colônia, ou seja, a constituição de um campo de saber
expresso pelas instruções245, que têm como alvo regular a relação dos “habitantes
com as coisas, fomentar o povoamento e a defesa do território”, as quais
detalharemos a seguir.
Vamos analisar pontuando alguns temas recorrentes já na primeira
instrução oferecida pela rainha D. Mariana de Áustria, para o primeiro capitão-
general da recém-criada capitania de Mato Grosso, D. Antônio Rolim de Moura,
datada de 19 de janeiro de 1749.
A rainha expõe ter sido relevante a criação da capitania devido à
necessidade de defesa e administração de uma área territorial muito extensa, o que
tornava muito difícil sua proteção e socorro diante de um virtual ataque do rival
hispânico. Vale lembrar que naquele momento estavam em negociação os tratados
de limites246, estimuladores da criação de mecanismos de defesa territorial, bem
como das condições de sua possível expansão.
Temos, assim, um documento cujas instruções são pontuadas em trinta
e dois parágrafos que materializavam a preocupação com a defesa territorial. Dessa
maneira, o discurso foi perpassado pela preocupação da necessidade de vigilância
das fronteiras, do incentivo ao povoamento da área, o que deveria ser conseguido
por meio da concessão de mercês e outros benefícios, criação de gado e cavalos
para abastecer as tropas, ereção de residência para atender aos governadores,
atenção aos nativos bravios e sua incorporação à população, através de
aldeamentos. Para essa última questão, foram convocados Missionários da
Companhia de Jesus para lhes ministrar os devidos sacramentos e fazê-los conhecer
e respeitar a legislação em vigor, mas também punir exemplarmente os infratores
que desrespeitassem o monopólio régio da extração de diamante, dentre outros
procedimentos.
245
Sobre a administração no Brasil colonial, cf. SOUZA, Laura de Melo e. O sol e a sombra: política
e administração na América portuguesa no século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
246
O Tratado de Madri foi assinado em 1750.
140
Dos temas arrolados no discurso inaugural, o mais relevante diz repeito
à preocupação com a soberania sobre um território posto sob a ameaça do rival
hispânico, daí a necessidade de sua povoação, para o que seria necessário atrair
habitantes, garantindo a defesa dos já estabelecidos nessa área, população que seria
engrossada pela incorporação dos nativos, mansos ou bravios, os quais se
colocariam em baluarte na guarda de um possível ataque hispânico
Tratava-se, entre outras coisas, de garantir a ocupação dessa área,
criando nela condições de efetiva ocupação. Curiosamente, os dois pontos iniciais
dessa instrução criam a base geral sobre a qual se bifurcariam as demais temáticas:
247
INSTRUÇÃO DA RAINHA D. MARIANA DE ÁUSTRIA PARA D. ANTÔNIO ROLIM DE
MOURA. LISBOA, 19 DE JANEIRO DE 1749. IN: INSTRUÇÕES AOS CAPITÃES-GENERAIS.
Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso (Publicações Avulsas), n. 27, Cuiabá: IHGMT,
2001, p.11-12.
141
da premissa das ações governamentais desses capitães-generais até fins do século
XVIII, com as negociações do Tratado de Santo Ildefonso, assinado em 1777.
248
CANOVA, Loiva. Antônio Rolim de Moura e as representações da paisagem no interior da
colônia portuguesa na América (1751-1764) Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal
do Paraná, Curitiba, 2011, p. 51.
249
INSTRUÇÃO DO CONDE DE AZAMBUJA PARA JOÃO PEDRO DA CÂMARA EM 08 DE
JANEIRO DE 1765. INSTRUÇÃO DA RAINHA D. MARIANA DE ÁUSTRIA PARA D.
ANTÔNIO ROLIM DE MOURA. LISBOA, 19 DE JANEIRO DE 1749. In: INSTRUÇÕES AOS
CAPITÃES-GENERAIS. Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso (publicações avulsas), n.
27, Cuiabá: IHGMT, 2001, p. 21.
142
das instruções recebidas, mas também das experiências adquiridas durante o seu
governo, sobrelevando a importância que o soberano atribuia às áreas, uma vez que
dispendia nela o que ela não rendia.
Insere-se nesse quadro colonial a problemática do povoamento, ou seja,
foi em torno dessa questão e da defesa do território que o elemento populacional
começou a adentrar no discurso político desses capitães-generais, visando a efetiva
ocupação, consolidação e expansão dos domínios lusitanos.
Ao nosso ver, esse campo de visibilidade da população em relação à
capitania de Mato Grosso era visto, no discurso dos primeiros governadores,
enquanto condição indispensável para a posse das áreas conquistadas, mas também
as que seriam objeto de expansão, o que incluía o domínio e o controle dos colonos
e também das nações indígenas, através da estratégia dos aldeamentos, o que
certamente derivou em muitos enfrentamentos, pois:
250
BLAU, Alessandra Resende Dias. Roubo de índios, fugas e ataques: o cenário da fronteira oeste.
In: Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos. Leny Caselli Anzai; Maria
Cristina Bohn Martins (Org.). São Leopoldo; Cuiabá: Oikos/Unisinos; EdUFMT, 2008, p. 60.
251
Cf. SILVA, Vanda. A concessão de sesmaria na Capitania de Mato Grosso. Fronteiras: Revista
de História. Dourados, vol. 17, n. 29, 2015, p. 11-33.
143
[...] entregou à sua Excelência um diário de toda a jornada, com
uma miúda averiguação, não só das nações, ou resto de nações
que já davam obediência aos sertanistas da parte oriental do
Guaporé, como uma lista de todos os rios que desta Vila até Santa
Rosa se metem no mesmo rio, tanto de uma como de outra banda,
pelas missões castelhanas, suas situações, qualidades, números
de gente, forma de seu governo, e ultimamente muitas notícias
pertencentes ao Reino do Peru e terras confinantes com esta
Província252.
252
AMADO, Janaína; ANZAI, Leni Caselli. Anais de Vila Bela (1743-1789). Cuiabá: EdUFMT;
Carlini & Caniato, 2006, p. 73.
144
próprios capitães-generais, as quais começaram a ganhar mais visibilidade no
governo de Luís Pinto de Sousa Coutinho253.
Tais dados, como os mencionados acima, constituíram um corpo de
saberes de domínio quase exclusivo das autoridades eclesiásticas que controlavam
os registros de nascimentos, batizados, casamentos e óbitos que começam a
engrossar o registro laico do Estado.
Luís Pinto de Sousa Coutinho, capitão-general de Mato Grosso entre os
anos de 1769 a 1772, sucessor de João Pedro da Câmara (1765-1769), parece
constituir um limiar de novidades em relação aos seus predecessores, no que tange
às práticas governamentais.
Começava-se a apresentar uma preocupação com a relação aos “homens
com as coisas”, elemento novo que recorrente nas práticas políticas luso-brasileiras,
no sentido de que as ressonâncias daquilo que era pensado para a organização
administrativa de Portugal se constituisse em ações práticas no território mato-
grossense. Diante disso, já nos mapas e das instruções elaborados por Luís Pinto de
Sousa Coutinho, a relação entre o governo dos homens em sua relação com as coisas
já estava sendo posta.
Tomemos as instruções que ele elaborou para o sucessor, Luís de
Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, sobre as ações a serem desenvolvidas na
capitania de Mato Grosso. Primeiramente, chama a atenção que, embora o discurso
faça referência às “ordens diretas” passadas pela “Secretaria de Estado dos
Domínios Ultramarinos”, estabelecia-se um espaço aberto de governo
materializado pelas experiências. Assim, o referido governador deixou suas
instruções:
253
Curiosamente, o governo desse capitão-general de Mato Grosso se dá num momento em que
havia pouco tempo transcorrido do processo contra o padre jesuíta Gabriel Malagrida e o processo
dos Távoras. Certamente, dois grupos fortes, que representavam uma ameaça à consolidação das
reformas que o ministro Sebastião José de Carvalho e Melo deseja impor ao reino, principalmente,
após a catástrofe do terremoto de Lisboa, em 1755.
145
Excelência todas as notícias que tiver adquirido, e o juízo que
sobre elas houver formado.
Em cumprimento pois das supremas ordens de Sua Majestade me
atreverei a expor a Vossa Excelência com a maior sinceridade
que devo, tudo quanto julgar mais favorável a boa administração
desde governo, mas mais próprias aos verdadeiros interesses do
real serviço, e à felicidade dos povos que Sua Majestade se
dignou de confiar ao seu encargo.
As luzes e talentos de que Vossa Excelência se exorna, servirão,
sem dúvida, a ratificar as minhas ideias; e a ministrar-lhes aquele
grau de utilidade e grandeza que não podem alcançar esfera; ao
mesmo tempo que as virtudes de um coração patriótico devem
propiciar a esta Capitania um governo prospero e de mais
confiança de Sua Majestade na pessoa de Vossa Excelência254.
254
INSTRUÇÃO DE DOM LUÍS PINTO DE SOUSA PARA LUÍS DE ALBUQUERQUE DE
MELO PEREIRA E CÁCERES. In: INSTRUÇÕES AOS CAPITÃES-GENERAIS. Instituto
Histórico e Geográfico de Mato Grosso (Publicações Avulsas), n. 27, Cuiabá: IHGMT, 2001, p.30.
255
INSTRUÇÃO DE DOM LUÍS PINTO DE SOUSA PARA LUÍS DE ALBUQUERQUE DE
MELO PEREIRA E CÁCERES. Op. cit., p. 31.
256
Ibid., p. 32.
146
Essa reflexão expressava duas coisas em relação ao governo: a primeira
é o fato de que, no exercício de governar a capitania de Mato Grosso, não se podia
esquecer das orientações diretas passadas via Secretaria de Estado dos Domínios
Ultramarinos, organismo que materializou as estratégias portuguesas em relação à
conservação e defesa dos limites coloniais conquistados. Por outro lado, e o mais
importante ao nosso ver, é que a experiência produzida pela governança da dita
capitania vai produzir saberes e conhecimentos sobre as característica do seu
território e a importância dos negócios, por isso as instruções do Conde Azambuja
foram sumamente recomendáveis em alguns pontos, mas que em outros foram
seguidas de recuo ou distanciamento, quando se confrontava com algum assunto
polêmico ou dúbio, ou ainda atentava contra direitos das gentes.
Assim, diante do que preconizavam os parágrafos 13 a 17 sobre o
controle da navegação dos rios, principalmente por se situarem em áreas
fronteiriças com os domínios dos castelhanos, o princípio exposto por Antonio
Rolim de Moura era o de que se impedisse neles a navegação dos castelhanos, uma
vez que tal situação comprometia a defesa, posse e comunicação das áreas
portuguesas. Nessa matéria, D. Rolim de Moura recomendava que o melhor seria
se colocar enquanto réu do que autor. Isso porque “[...] os castelhanos, já hoje não
navegam, nem têm necessidade de navegar o rio Guaporé, senão desde a barra do
Baures até a do Guaporé”257.
Sobre esse ponto em específico, Luís Pinto de Sousa Coutinho o
considerou de natureza dubitativa, ou seja, as sugestões de Rolim de Moura eram,
na sua perspectiva, no mínimo questionáveis. Talvez pelo fato de que a tônica das
discussões dos tratados de limite, a exemplo do Tratado de Madri, já induzia uma
estratégia de ocupação, o que, pela política diplomática, se estabeleceu pela
premissa jurídica do uti possidetis, garantindo a posse para quem estivesse
ocupando a área.
Em segundo lugar, vale lembrar que, no parágrafo 20 da instrução de
Rolim de Moura sobre a fuga de escravos para as regiões vizinhas, o mesmo
257
INSTRUÇÃO DO CONDE DE AZAMBUJA JOÃO PEDRO DA CÂMARA EM 08 DE
JANEIRO DE 1765. Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso (Publicações Avulsas), n. 27,
Cuiabá: IHGMT, 2001, p. 24.
147
orientava seu sucessor imediato, João Pedro da Câmara, a queimar algumas aldeias,
de modo que essa ação fosse vista e percebida enquanto ordens dos soldados, e não
ação emanada diretamente do governador.258 Esse jogo político da insinuação, à
maneira de Maquiavel, vai ser rejeitada por Luís Pinto de Sousa Coutinho, por
considerá-la inútil e por atentar contra o direito natural das gentes259.
Havia nas instruções de Luís Pinto de Sousa Coutinho também
considerações sobre os apontamentos de Rolim de Moura acerca da relevância que
tinha para Portugal do Posto da Conceição, cuja denominação no ano de seu
governo era Forte Coimbra; sobre a dificuldade de seu governo em seguir a
determinação de transpor as cachoeiras que circundavam as capitanias de Mato
Grosso e do Pará, uma vez que o conhecimento delas daria condições facilitadoras
da comunicação. Tal situação acarretaria a necessidade da criação de muitos canais,
com o remanejamento de parte do leito em várias direções, empreendimento
dificultado, ainda segundo o mencionado capitão-general, pelo fato de ser realizado
em sertão pouco povoado e inculto. Nessa peça documental podem ser observadas
considerações sobre a importância da observação dos costumes e dos hábitos das
tropas em relação ao território mato-grossense, incitando atenção ao cumprimento
dos regulamentos, sem, no entanto, criar constrangimento aos costumes correntes.
Ainda sobre a instrução de Luís Pinto, no que diz respeito à
administração da justiça e dos castigos, ele se projetou a imagem de que teria sido
“menos severo” que seu antecessor, mesmo na admissão de homens “de boa
posição, que têm mistura de índios e brancos”, e aboliu o serviço dos chamados
aventureiros, pessoas que recebiam mais do que os pedestres e que,
contraditoriamente, realizavam as mesmas funções260.
Tais experiências trazidas por Rolim de Moura e materializadas em suas
instruções foram postas em reflexão por Luís Pinto de Sousa Coutinho que, no
exercício de sua ação governamental da capitania de Mato Grosso, operou algumas
adesões e distanciamento das premissas originárias. Nesse campo discursivo
circunscrito aos diferentes capitães-generais da capitania foram geradas inúmeras
258
Ibid., p. 26.
259
Cf. INSTRUÇÃO DE DOM LUÍS DE SOUSA COUTINHO PARA LUÍS DE ALBUQUERQUE
DE MELO PEREIRA E CÁCERES. Op. cit., p. 32.
260
Ibid.
148
séries de registros sobre o território e, de posse deles, os diferentes governantes irão
imprimir a singularidade do seu governo. Dessa forma,
261
Ibid.
262
A esse respeito, por exemplo, temos a notícia de que, no ano de 1754, Antônio Rolim de Moura
enviou um ofício ao Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Diogo Mendonça Corte Real, em
que apresentava o mapa, descrevendo em relato, o caminho que ia desde Santos até Cuiabá, além de
descrever a região do Pantanal. Cf. C.T.AHU-ACL-CU-010, CAIXA 07, DOC. 439.
263
No governo do capitão-general João Pedro da Câmara começou a elaboração de mapas que
buscavam descrever as condições das forças militares da capitania e, por conseguinte a sua
capacidade de se defender. Nesse caso, é pertinente pontuar que as apresentações detalhadas dos
mapas produzidos nesse governo buscaram apresentar o número de militares dispostos na capitania:
entre engenheiros, companhia de dragões, soldados aventureiros, companhia dos pedestres,
companhia das ordenanças dos brancos, companhia das ordenanças dos pardos, companhia das
ordenanças dos pretos e escravos com armas. Além desses oficiais, apresentavam o número de
149
A confecção dos citados mapas, durante os governos de Rolim de
Moura e João Pedro da Câmara, são quase que exclusivamente voltada a demarcar
estrategicamente itinerários e a apresentar um quadro geral do poderio militar capaz
de garantir a defesa do território mato-grossense. Daí a necessidade de saber
quantos soldados, tenentes, sargentos, cirurgiões e engenheiros a capitania possuía,
enfim, uma disposição de militares de diferentes patentes constituindo uma linha de
defesa nas fortificações fronteiriças, em consonância com a quantidade de
armamentos e munições.
No governo de Luís Pinto de Sousa Coutinho os mapas referentes ao
poderio militar ainda terão importância, como se notará, por exemplo, no mapa,
enviado no dia 19 de junho de 1769 para o secretário de estado da Marinha e
Ultramar, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, no qual está descrito o estado
geral das tropas da capitania264, voltando a fazer referência explícita ao poderio
militar somente em julho de 1772 (no final de seu governo), quando enviou um
mapa descrevendo as peças de artilharia, os armamentos, munições e outros
apetrechos do Forte de Bragança.265
No entanto, os mapas da gestão desse capitão-general começaram a
descrever também outras coisas, com a incorporação de elementos constitutivos da
riqueza da capitania, ou melhor, dos rendimentos e despesas, ou seja, colocando em
circulação o que a capitania produzia e o que ela consomia para se conservar. Além
disso, os mapas lançaram um foco para quantidade de habitantes, chamando a
soldados, cabos, senhores, sargentos, furriéis, cirurgião, alferes, tenente, capelão e sargentos-mores.
Contemplavam esses mesmos mapas a quantidade de apetrechos de armas, munições e mantimentos
e, já no fim de seu governo, começaram a ser confeccionados mapas estampando a quantidade de
ouro produzido no período. No ano de 1765, temos, por exemplo, a Carta do governador e capitão-
general da capitania de Mato Grosso, João Pedro da Câmara Coutinho, ao rei D. José I, informando
sobre o envio de relações e mapas sobre o estado e forças da capitania. In: AHU-ACL-CU- 010,
CAIXA 12, DOC. 737. No mesmo ano, outra carta, agora dirigida ao secretário de estado da marinha
e ultramar, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, informando sobre o envio de relações e mapas
descritivos do estado e forças da capitania. In: AHU-ACL-CU-010, CAIXA 12, DOC. 739. No ano
de 1766 existe nova referência sobre a gente de guerra nesses mapas. In: AHU-ACL-CU-010,
CAIXA. 13, DOC. 783; e, por fim, já no ano de 1767, se tem a elaboração do primeiro mapa que
faz referência à capitação de ouro minerado em Goiás e Cuiabá. Cf. AHU-ACL-CU-010, CAIXA
13, DOC. 810.
264
Cf. AHU-ACL-CU-010, CAIXA 14, DOC. 854.
265
Cf. AHU- ACL- CU- 010, CAIXA 16, DOC. 983.
150
atenção para o aumento das povoações que, aliás, ele considerava o “objeto mais
essencial de uma boa administração266”.
No ano de 1770267 ele enviou ao secretário de estado da Marinha e
Ultramar, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, o primeiro mapa sobre a receita
e despesa da capitania, desde sua fundação até o ano de 1762 e, posteriormente, no
ano de 1772, outro, descrevendo a receita e despesa referente aos anos de 1762 a
1772268, o que vale dizer que Luís Pinto teve que fazer o balanço das receitas e
despesas de seus antecessores, aliás, segundo ele, era para seu antecessor, João
Pedro da Câmara, efetuar esse balancete, no governo anterior:
266
Cf. INSTRUÇÃO DE DOM LUÍS DE SOUSA COUTINHO PARA LUÍS DE ALBUQUERQUE
DE MELO PEREIRA E CÁCERES. Op. cit., p.35.
267
AHU-ACL-CU-010, CAIXA 15, DOC. 894.
268
AHU-ACL-CU-010, CAIXA 16, DOC. 1005.
269
AHU-ACL-CU-010, CAIXA 15, DOC. 894, folha 2-3.
151
transporte e soldados, jornais para a realização de obras em Cuiabá e Mato Grosso,
os donativos das duas vilas para reedificação de Lisboa e outras despesas miúdas.
O que nos interessa em relação a tais mapas de receita e despesa,
elaborados sob o governo de Luís Pinto de Sousa Coutinho, é que eles apontaram
para a necessidade de se organizar as finanças da capitania270, produzindo um saber
que atravessou o governo de seus dois antecessores (Antonio Rolim de Moura e
João Pedro da Câmara) no que dizia respeito ao que de fato a capitania gerou de
rendimentos e o que ela consumiu de despesa durante o período governamental
antecedente e o seu, explícito em um suplemento que antecedeu a apresentação do
mapa de 1770, demonstrativo dos critérios utilizados em tais cálculos. Dessa
maneira:
270
Essa preocupação estampa também as dimensões da política pombalina em vigiar e controlar as
receitas e despesas do reino, o que explica o fato de instaurar uma espécie de disciplina financeira
que vai começar minando alguns privilégios da nobreza. Cf. HESPANHA, António Manuel;
SUBTIL, José Manuel. Op. cit.
271
SUPLEMENTO AO MAPA GERAL DE RECEITA E DESPESA DE 1770. In: AHU-ACL-CU-
010, CAIXA 15, DOC. 894, fl. 4.
152
Diante dessa necessidade de gerir semelhante relação, emergiu no
discurso de Luís Pinto a necessidade de se elaborar também mapas sobre os espaços
e os habitantes da capitania de Mato Grosso, como atesta o elaborado em 1771:
“Mapa Geral do Estado da Povoação dos Distritos de Vila Bela, e Cuiabá na
Capitania de Mato Grosso no fim de 1768 com cálculo das [pessoas] que se
batizarão, e [se] casarão no triênio sucessivo; dividido pela classe dos sexos e pela
ordem física das estações”272.
Esse mapa, como o próprio título sugere, buscou apresentar o estado da
povoação em Vila Bela e Cuiabá, entendendo por estado a quantidade de pessoas
distribuídas por sexo e ao longo das estações do ano: inverno (janeiro, fevereiro,
março), primavera (abril, março e junho), estio (julho, agosto e setembro), outono
(outubro, novembro e dezembro). A peça documental estampa também o número
de fogos (casas), por exemplo, de 436 para Vila Bela e de 628 para Cuiabá,
arrolando também o número de batizados, óbitos e casamentos, de modo a ser
perceptível a movimentação de pessoas que chegavam e saíam da capitania, das que
ali estabeleciam residência, das que seguiam os ditames do catolicismo pelo
batismo, oferecendo um quadro geral do perfil das pessoas a cada estação do ano,
enfim, trazendo à tona saberes amiudadas e necessárias informações para o
gerenciamento das condutas em áreas mineradoras, onde a presença de aventureiros
era constante e o nomadismo existencial corrente, tanto da parte dos garimpeiros
como pela presença dos nativos que habitavam a região oestina.
O fato é que, a partir do governo de Luís Pinto de Sousa, os mapas,
versaram sobre as fortificações militares, sobre a produção aurífera, sobre a receita
e a despesa, ou relativos aos habitantes, tornando-se cada vez mais completos nos
governos seguintes, de Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres e de João
de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, produzindo melhores condições de
Governamentalidade na capitania que, embora imbuída das preocupações de
conservação e defesa territorial, sempre recorrente em todo o século XVIII,
acresceu-se também uma preocupação governamental direcionada para as
condições necessárias à manutenção da capitania, mesmo em períodos de paz.
272
AHU-ACL-CU-010, CAIXA 16, DOC. 971.
153
Ao retomar as instruções que Luís Pinto de Sousa Coutinho ao seu
sucessor, ficou clara a necessidade de aumento das povoações, o que mantinha
estreita interface com a produção de rendimentos e despesa, o que, de certa forma,
movimentava as atividades mercantis. Dessa maneira ele pontuou alguns elementos
essenciais nessa questão específica:
273
INSTRUÇÃO DE DOM LUÍS DE SOUSA COUTINHO PARA LUÍS DE ALBUQUERQUE
DE MELO PEREIRA E CÁCERES. Op. cit., p. 36.
274
Cf. AHU-ACL-CU-010, Cx. 17, Doc. 1.039, por exemplo, os mapas de Luís de Albuquerque de
Melo Pereira e Cáceres (1772-1789) referentes ao ano de 1773 sobre todas as forças militares da
Capitania; AHU-ACL-CU-010, Cx. 18, Doc. 1111, em 1775, novamente, mapas sobre as forças
militares; AHU-ACL-CU-010, Cx. 18, Doc. 1114, inventário mais moderno sobre as munições de
guerra em outro mapa de 1775. Esses mapas demonstram a importância que ainda terão os limites e
fronteiras e a necessidade do conhecimento de suas forças para defendê-los.
275
Cf. AHU-ACL-CU-010, Cx. 16, Doc. 1.009, por exemplo, os mapas de Luís de Albuquerque de
Melo Pereira e Cáceres (1772-1789) referentes ao ano de 1773 em relação à extração aurífera do
ano de 1772, pela Intendência de Mato Grosso; AHU-ACL-CU-010, Cx. 17, Doc. 1.043 no mesmo
ano de 1773, também um mapa detalhado de receita e despesa; AHU-ACL-CU-010, Cx. 18, Doc.
1.122, já em 1775, novamente outro mapa sobre a receita e a despesa e seguirá até 1776 (AHU-
ACL-CU-010, Cx. 18, Doc. 1.127) e nos anos seguintes.
154
povoação276 etc. No parágrafo 12 da carta de Melo e Castro, referida anteriormente,
indicava ao capitão-general que, de posse desses documentos:
276
Sobre essa questão, talvez seja o tema em que se mais elaboraram mapas. No governo de Luís de
Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres e de João de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres eles
são bem mais recorrentes. Curiosamente, nesses mapas o conceito de população não é muito
frequente, isso desde o mapa de 1773, que versa sobre o estado civil da povoação do Forte de
Bragança, (AHU-ACL-CU-010, Cx. 16, Doc. 1015); no mesmo apresenta um mapa mais geral sobre
o estado atual da povoação da Capitania, como consta no documento do AHU-ACL-CU-010, Cx.
17, Doc. 1.046, e segue nos anos seguintes até o final do governo de Luís de Albuquerque de Melo
Pereira. Em relação aos mapas produzidos, o conceito de população aparece em um deles, relativo
ao ano de 1795, durante o governo de João de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres, conforme o
documento do AHU-ACL-CU-010, CX. 31, DOC. 1.712.
277
CARTA-INSTRUÇÃO DE MARTINHO DE MELLO E CASTRO PARA LUIZ DE
ALBUQUERQUE DE MELO PEREIRA E CÁCERES EM 13 DE AGOSTO DE 1771. Op. cit., p.
82-83.
155
sim um dos elementos a serem constituídos ao longo do processo de povoamento e
ocupação dos espaços considerados vazios:
278
Cf. SILVA, Jovam Vilela. Op. cit. p. 318.
279
MF-274, doc. 1.165. Luiz de Albuquerque comunica ao Secretário de Estado, Martinho de Melo
e Castro a chegada, ao registro do Jauru, de famílias de índios desertados das Missões de Chiquitos.
AHU/NDIHR/UFMT. Cuiabá, MT.
156
instrumentos de organização social, política e econômica em prol do modelo de
organização europeu, o que significava ao mesmo tempo uma busca pela fissura no
interior da própria identidade nativa.
A centralidade das ações políticas na colônia até então se pautou na
problemática do povoamento, defesa e conservação das áreas fronteiriças e em
litígio, e não num investimento na população em si, uma vez que se tratava de
constituí-la do ponto de vista quantitativo (mesmo incorporando os nativos como
vassalos reais) na conservação e proteção do território.
Em outras palavras, o conjunto dos homens que habitam uma
determinada área não era suficiente para a constituição de uma população, mas sim
do povoamento, mesmo que insípido.280, mas não uma população da qual se deveria
investir em saúde pública, na instrução, segurança etc., como condições de
efetivação de uma riqueza das nações resultante do trabalho.
Será necessária uma análise mais aprofundada sobre o nascimento do
paradigma liberal na prática política portuguesa em consonância com as condições
de vida da população e a emergência de um dispositivo biopolítico de regulação da
mesma. Esse intento será a proposta do próximo capítulo.
280
No dicionário de Rafael Bluteau, do século XVIII, não há referência ao termo população, e no de
Bluteau e Morais, do final do XVIII, há uma menção à noção de populoso, enquanto adjetivo que
significava uma grande quantidade de povo, bem povoado, o que indica que esse conceito, embora
apareça em alguns discursos esparsos, não era de uso corrente e não designava um objeto preciso da
política de governança.
157
CAPÍTULO 3
GOVERNAMENTALIDADE LIBERAL:
CONDIÇÕES DE NASCIMENTO DA BIOPOLÍTICA
DA PROVÍNCIA DE MATO GROSSO (1808-1840)
158
Com isso, demarcamos o limiar de uma “governamentalidade do
Estado” que começava a postular o deslocamento daquilo das premissas do “bom
governo”, que em Portugal podia ser materializado pelo jogo de relações que se
estabeleciam entre o soberano e seus conselheiros, para um governo marcado pelas
ações administrativas cada vez mais burocratizadas e pela criação de várias
secretarias de Estado.
Esse tipo de processo foi timbrado por acontecimentos importantes em
Portugal, como o terremoto de Lisboa e as questões de polícia, as quais seguiram
no processo da reconstrução, acrescido dos embates que se sucederam entre o
ministro Sebastião José de Carvalho e Melo com os jesuítas e alguns membros da
nobreza, exemplificados na presente pesquisa nos processos de Gabriel Malagrida
e dos Tavóras.
Diante desse ambiente de tensões sociais e políticas é que as reflexões
e ações governamentais foram postas enquanto estratégia de “fortalecimento e
expansão do Estado, por meio de uma gestão dos homens com as coisas”, tanto
materializadas nas práticas governamentais desenvolvidas em Portugal como nas
ações desenvolvidas na capitania de Mato Grosso, marcadas pela preocupação cada
mais latente de povoamento, defesa, controle de receita e despesa, conhecimento da
potência virtual das forças do Estado, expressa nos mapas referentes ao número dos
contingentes populacionais, militares e de armamentos. Nesse sentido, desenhou-
se o limiar de “Governamentalidade” na gestão dos negócios públicos, onde as
preocupações com defesa das fronteiras e conservação do território eram
primordiais, porém não exclusivas:
159
1755/1756, da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e da
capitania de São José do Rio Negro (atual Amazonas)281.
281
FERNANDES, Suelme Evangelista. O Forte do Príncipe da Beira e a fronteira noroeste da
América Portuguesa (1776-1796). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de
Mato Grosso, Cuiabá, 2003, p. 44.
282
CHAVES, OTÁVIO RIBEIRO. Política de povoamento e a constituição da fronteira oeste do
Império Português: a Capitania de Mato Grosso na segunda metade do século XVIII. Tese
(Doutorado em História) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2008, p. 20.
160
se a quantidade de mapas descrevendo a força militar, tanto de Cuiabá e Mato
Grosso, a receita e despesa, a quantidade de alimentos, fogos, pessoas casadas,
batizadas, enfim, documentos representativos da estratégia de fixação e
povoamento dessa área, com o fim último de conservar, manter e, se possível,
ampliar os domínios lusitanos no extremo oeste colonial283.
Entre a premissa de “bom governo e de Razão de Estado”, o dispositivo
de soberania foi recorrente durante todo o século XVIII, ora comportando a
incorporação de novos elementos heterogêneos em relação à arte de governar, ora
mantendo antigas premissas e convicções.
Nessa medida, ao mesmo tempo em que se colocava a problemática da
gestão das coisas em sua relação com as pessoas articuladas a um estado de polícia,
as reformas propostas por Pombal conviviam com uma política conservadora, na
qual as práticas econômicas eram determinadas por premissas mercantilistas, onde
monopólio constituía uma das principais estratégias, e a permanência de um Código
Criminal ainda muito rígido, com penas físicas e corporais.
Nem mesmo o governo estabelecido sob o reinado de D. Maria284,
apesar da tentativa de rompimento com o modelo adotado por Pombal e de conceder
anistia aos adversários políticos dele, foi capaz de diminuir a centralidade ocupada
pelo poder régio na Monarquia portuguesa, embora já apresentasse sinais de crise:
283
Cf. CAMILO, Janaína. Homens e pedras no desenho das fronteiras: a construção da fortaleza de
São José de Macapá (1764/1782). Brasília: Senado Federal, 2009.
284
É digno de nota que, na historiografia portuguesa, o governo de D. Maria é conhecido como
viradeira, pois, nesse modelo de interpretação, acreditava-se que ela havia virado do avesso a
política proposta por Pombal, salientando que a mesma havia concedido o perdão aos jesuítas e aos
nobres que haviam fugido de Portugal etc. durante o governo pombalino, o que expressava uma
retomada de posições e valores tradicionais da corte portuguesa, no entanto, há de se lembrar que
ela manteve muitos aspectos da política pombalina em funcionamento durante sua gestão.
161
ao Absolutismo, processo que celebrizou o intendente-geral da
polícia, Diogo Inácio de Pina Manique285.
285
BRAGA, Paulo Drumond. Preces Públicas no Reino pela Saúde de D. Maria I (1792). Revista da
Faculdade de Letras História. Porto, II Série, vol. 11, 1994, p. 216. Disponível em:
http://ler.letras.up.pt/site/default.aspx?qry=id04id18id2103&sum=sim
286
LYRA, Maria de Lourdes Viana. Op. cit. p. 19-20.
287
ARENDT, Hannah. Da revolução. Tradução de Fernando Dídimo Vieira. Brasília; São Paulo:
EdUNB; Ática, 1988, p. 23.
288
O termo biopolítica, curiosamente, foi cunhado aqui no Brasil, quando Foucault ministrou uma
conferência no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),
em outubro de 1974, no Rio de Janeiro. Percebe-se aqui, que a questão de Foucault era a emergência
de uma forma de intervenção e de controle do corpo, constituindo uma realidade biopolítica, tendo
por base a medicina enquanto uma das estratégias dessa problemática do corpo, visto como uma
realidade material, biológica, somática, a qual o capitalismo vai apreender como objeto a partir do
nascimento da medicina social. Na presente pesquisa, o termo se refere a um dispositivo de governo
em que se investe no poder de gerir a vida da população e de regulá-la da maneira mais conveniente
162
colocou em relação às práticas governamentais nesse processo de constituição de
uma biopolítica.
O que está em jogo nessa analítica é a demarção das condições de
nascimento de “dispositivos biopolíticos”, cujo alvo é a população, em dissonância
com aquilo que chamei de “dispositivo de soberania”, partindo do pressuposto de
que o mesmo busca estabelecer o controle e a sujeição da população no interior do
discurso dos governantes.
Diante dessa situação, nos é pertinente evidenciar todas as ressonâncias
possíveis das Revoluções Liberais do final do século XVIII, notadamente a da
Revolução Americana, de 1776 e a Francesa, de 1789, tanto no campo do
conhecimento científico e político quanto no econômico e social, uma vez que esse
processo de gestão das liberdades foi responsável por assegurar o funcionamento
do racismo, da escravidão e das desigualdades de gênero pautadas num corpo de
saber anunciador das condições de regulação das populações num padrão ideal
majoritário, em contraposição a um povo menor, lembrando nesse caso, por
Deleuze:
aos ditames do Estado, coadunando a proposta com a penetração das premissas liberais no território
brasileiro na primeira metadade do século XIX. Cf. FOUCAULT, Michel. O nascimento da
Medicina Social. In: Microfísica do Poder. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal,
1979; FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. Tradução de Eduardo Brandão. São
Paulo: Martins Fontes, 2008.
289
DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. Peter Pàl Pelbart. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 214.
163
uma prática política e um saber que, ao se apresentar como liberal, vai construir um
ideal de cidadania excludente de mulheres, negros e índios, vedando a sua
participação direta na política e no exercício de seus direitos.
Assim, constituia-se uma sociedade de direitos, mas eles não eram para
todos, e os grupos minoritários (que numericamente constituía a maioria da
população) formavam uma subpopulação, nesse tipo de enunciado, uma produção
histórica de:
290
GROSFOGUEL, Ramón. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas:
racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Soc.
estado. Brasília, v. 31, n. 1, jan./abr. 2016, p. 25. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/se/v31n1/0102-6992-se-31-01-00025.pdf
164
colonial recente, se assenta sob as condições de um pensamento majoritário na
organização de Estado-Nação.
Os debates acerca do parlamentarismo, dos direitos do cidadão, das
liberdades formalmente concedidas pela Constituição e da construção de uma
identidade nacional, levava às omissões deliberadas de cidadania aos negros,
mulheres e escravos, nesse mesmo processo de gestão dessas liberdades.
Esse tipo de situação, curiosamente, conduziria ao funcionamento de
uma biopolítica embasada em um racismo de Estado, uma vez que a liberdade de
uns conviveria com a escravidão de outros, que a vida de uns conviveria com o
extermínio de outros, que saúde, instrução e direito à participação política de alguns
conviveria com as doenças, ignorâncias e exclusão das ações políticas de outros e
outras.
Esperamos com isso, poder anunciar a população no interior da
emergência de um dispositivo biopolítico caracterizado pela emergência de objeto
e sujeito de intervenção governamental, tendo como preocupação cuidar e controlar
as atividades de seus corpos, por meio da saúde, da instrução e da segurança
públicas, tendo por solo enunciativo “fazer viver e deixar morrer”.
Entre “fazer viver e deixar morrer” situam-se os primeiros debates
parlamentares em torno da ideia de cidadania brasileira, de identidade nacional, das
primeiras discussões sobre a importância das estatísticas na gestão das populações,
suas condutas, hábitos e costumes, e de como melhor intervir no melhoramento das
mesmas, seguindo, deliberadamente, um ideal de civilização e de ilustração.
165
problemas suscitados pelo liberalismo em relação à confrontação com as premissas
da “Razão de Estado”, sob a suspeita de que se governava demais.
Diante disso, seguiremos algumas pistas trazidas pelo historiador
português Nuno Gonçalo Monteiro, que, apoiado em fontes documentais, discute
as transformações do vocábulo “liberal e liberalismo”, mas também assinalar em
que momento essas acepções adquiriram uma conotação política.
Nuno Gonçalo Monteiro primeiramente evoca que os vocábulos liberal
e liberalismo no ambiente cultural português apresentou várias nuances e
significados ao longo dos séculos XVIII e XIX, deslocando-se de um termo
adjetivo, referente às qualidades de algumas pessoas, até ganhar à sua conotação
política e econômica que conhecemos hoje.
Diante dessas diversas significações aferidas ao termo liberal, o referido
historiador demostra incialmente que ela significava uma virtude nobiliárquica
ligada à característica próxima da generosidade e desprendimento:
[...] uma virtude própria dos Príncipes e dos nobres. Por isso no
primeiro dicionário de língua portuguesa, Bluteau acrescenta aos
significados da palavra Liberal. Nobre. Que mostra ser pessoa de
qualidade. Próprio de príncipe (1716). A expressão estava ainda,
de acordo com o mesmo dicionário, associada às Artes liberais,
as únicas que eram compatíveis com a nobreza, e que se definiam
por oposição aos Ofícios mecânicos. Estes, por seu turno, eram
os que dependiam mais do corpo do que do espírito. As artes
liberais eram solidárias da noção ampla e difusa de nobreza que
prevalecia em Portugal291.
291
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Liberal - Liberalismo, Ler História, 55, 2008, posto online no dia
16/10/2016, consultado no dia 26/9/2017. URL: http://lerhistoria.revues.org/2242; DOI:
10.4000/lerhistoria.2242
292
RIBEIRO, Renato Janine. A etiqueta no Antigo Regime: do sangue à doce vida. São Paulo:
Brasiliense, 1993.
166
distância entre ofícios mecânicos e artes liberais, conferindo aos nobres apenas o
segundo.
Temos no universo setecentista português a curiosa ligação do termo
liberal associado ao grupo social constituído pela nobreza e, mesmo com as
reformas pombalinas responsáveis pela Reforma da Universidade de Coimbra e a
criação da Academia Real das Ciências, em 1782, já no governo de D. Maria I,
ainda não permitia a profusão de novos significados293.
O fato é que, até o final do século XVIII, a conotação de liberal ainda
mantinha suas antigas significações, situação que começa a mudar com as invasões
napoleônicas, as quais, curiosamente, colocara Portugal diante de duas matrizes do
pensamento liberal polarizados pela Inglaterra e França e que certamente permitiu
a introdução dos posicionamentos políticos lusos em torno desses dois eixos:
293
Cf. SILVA, Ana Rosa Cloclet. Op. cit.
294
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Op. cit.
295
O tom dessa simpatia apontava para um projeto político afeito à reorganização das práticas
governamentais que buscavam controlar as tensões, entre a corte portuguesa transferida para o Brasil
167
Esse tipo de tensão, curiosamente, colocava em visibilidade duas
tradições do liberalismo: uma de caráter utilitarista/pragmático, ligado à escola
inglesa, e a outra de caráter revolucinário/imperial, via escola francesa. Os dois
casos estavam circunscritos aos valores burgueses:
e as elites locais, onde a manutenção do princípio de uma monarquia sob o comando de D. João (até
então príncipe regente desde 1792) seria de fundamental importância para uma posterior restauração.
Cf. LYRA, Maria de Lourdes. Op. cit.
296
MOREIRA, José Manuel. Pensamento liberal em Portugal. Cultura Revista de História e Teoria
das Ideias. Lisboa, vol. 25, 2008, p. 177-179, 2008.
297
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Op. cit.
168
[...] a economia política começou a ser difundida no Brasil
colonial por alguns letrados que haviam entrado em contato com
essa ciência na Europa. Sendo assim, esses homens trouxeram
para cá o entusiasmo que grande parte da intelectualidade
europeia manifestava pela possibilidade de promver o
enriquecimento nacional por meio da aplicação dos principios do
conhecimento econômico298.
298
ROCHA, Antonio Penalves. A difusão da Economia Política no Brasil entre os fins dos séculos
XVIII e XIX. Revista de Economia Política. São Paulo, v. 13, no 4, p. 47, outubro/dezembro, 1993.
299
Ibid.
169
[...] É nos prolegomenos da primeira experiência liberal
portuguesa, em 1820, que a palavra liberal virá a conhecer a sua
primeira notória difusão com forte cunho político, directamente
influenciada pela experiência espanhola. Quando se discute a
convocação de Cortes, tem lugar um confronto entre o partido
militar, que incluía oficias de variada tonalidade políticas, e os
civis, bacharéis e desembargadores, que repartiam a chefia do
movimento vintista. No pronunciamento da Martinhada que teve
lugar a 11 de Novembro de 1820 o partido militar reivindicava
que se proclamasse a Constituição espanhola de Cádiz de 1812
com as modificações convenientes mas nunca menos liberais300.
300
Ibid.
170
licito a qualquer dos meus vassallos, qualquer que seja o Paiz em
que habitem, estabelecer todo o genero de manufacturas, sem
exceptuar alguma, fazendo os seus trabalhos em pequeno, ou em
grande, como entenderem que mais lhes convem; para o que hei
por bem derogar o Alvará de 5de Janeiro de 1785 e quaesquer
Leis ou Ordens que o contrario decidam, como se dellas fizesse
expressa e individual menção, sem embargo da Lei em
contrario301.
301
ALVARÁ DE 1º DE ABRIL DE 1808. In: Colleção das Leis do Brazil de 1808. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1891, p. 10.
302
Sobre a relação de Hipólito José da Costa e o pensamento liberal, cf. HIPÓLITO JOSÉ DA
COSTA; Sérgio Goes de Paula (Org.). São Paulo: Editora 34, 2001 (Formadores do Brasil).
303
FERREIRA, João Pedro Rosa. O pensamento político de Hipólito da Costa. Cultura Revista de
História e Teoria das Ideias. Lisboa, vol. 22, p. 319-338, 2006. (Ideias Políticas).
171
Enfim, os princípios liberais vão ganhando cada vez mais consistência
nas discussões, nos discursos e debates parlamentares portugueses e brasileiros no
interior do processo que culminou com a emancipação política do Brasil e a
problemática da restauração da monarquia portuguesa. Nesse sentido, Castelo
Branco, no que diz respeito à experiência liberal portuguesa, é categórico ao
associar liberalismo ao movimento vintista:
304
CASTELO BRANCO, João Maria Soares de. Vintismo e Radicalismo Liberal. Revista de
História das Ideias. Coimbra, v. 3, p. 177-216, 1981. Disponível em:
https://www.uc.pt/fluc/ihti/rhi/vol3/pdfs/05_ivargues.pdf
172
Art. 9-A Divisão, e harmonia dos Poderes Políticos é o principio
conseryador dos Direitos dos Cidadãos, e o mais seguro meio de
fazer efectivas as garantias, que a Constituição offerece.
Art. 10-Os Poderes Politicos reconhecidos pela Constituição do
Imperio do Brazil são quatro: o Poder Legislativo, o Poder
Moderador, o Poder Executivo, e· o Poder Judicial.
Art.11- Os Representantes da Nação Brazileira são o Imperador,
e a Assembléa Geral. Art.12- Todos estes Poderes nó Imperio do
Brazil são delegações da Nação305.
305
CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO IMPÉRIO DO BRASIL. In: Colleção das Leis do Império do
Brazil de 1824. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886, p. 8-9.
306
LYNCH, Christian Edward Cyril. O Poder Moderador na Constituição de 1824 e no anteprojeto
Borges de Medeiros de 1933. Revista de Informação Legislativa. Brasília, 47, n. 188, p. 93-94,
out./dez. 2010.
173
Curiosamente gerou uma série de reflexões que se estabeleceram com
a incorporação dos princípios do liberalismo britânicos, desde 1808, sobre as
liberdades de livre comércio, das iniciativas de incentivo às indústrias e
manufaturas, atravessado principalmente por princípios de economia política, que,
com o estabelecimento do Império brasileiro, começam a assumir também
caracteristicas liberais da tradição francesa e de forte conotação republicana,
embora tais experiências tenham sido sufocadas, como foi o caso da Confederação
do Equador, sob a liderança de Frei Caneca:
307
ANDRADA E SILVA, José Bonifácio de. Op. cit., p. 252.
308
PAIM, Antônio. A querela do estatismo. Brasília: Senado Federal, 1998, p. 64. (Biblioteca básica
brasileira).
174
período regencial, tornarão ainda mais latentes as tensões entre o que se
convencionou chamar de partido liberal e partido conservador:
309
PAIM, Antonio. História do Liberalismo Brasileiro. Brasília: Senado Federal, 1998, p. 58.
(Biblioteca básica brasileira).
310
CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO IMPÉRIO DO BRASIL. Op. cit., p. 8.
175
Temos, assim, na presente Constituição uma garantia para que pessoas
de outros países, inclusive portugueses, fossem incorporados ao corpo social da
nascente sociedade brasileira. A configuração desse nicho social misto, como
apresentaremos com mais detalhes no capítulo 4, será utilizado como justificativa
ideológica para que alguns integrantes das elites se sentissem preteridos aos cargos
públicos mais avançados, se insurgindo, e para um grupo menos abastados da
população, desejoso de ver melhorada suas condições de vida, como será o caso da
Rusga cuiabana.
Na organização da liberdade e da gestão dos cidadãos, a referida
constituição de 1824 definia a entidade nacional, as províncias, suas formas de
governo, sua dinastia, a religião oficial (a Católica Apostólica Romana, aceitando
a prática de outras religiões apenas no culto doméstico), desde que fossem cristãs,
uma vez que o trabalho de catequese dos indígenas ou de destruição dos quilombos
representaria, no campo prática política, exatamente o contrário. Diante desse fato,
tal constituição estabelecia que:
311
Ibid., p. 7.
176
Esse princípio de liberdade, que paradoxalmente convivia com a
escravidão, com a exclusão das mulheres na participação política, da tentativa de
disciplinar a conduta dos indígenas por meio da catequese, consignava a gestão de
liberdade para apenas alguns, em detrimento de outros.
Entre a afirmação do liberalismo e a escravidão, por exemplo,
Domenico Losurdo traz alguns casos interessantes em que o pensamento anglo-
americano parece não sentir qualquer contradição ou constrangimento em
estabelecer premissas de gestão de liberdade e escravidão:
312
LOSURDO, Domenico. Contra-história do Liberalismo. Tradução de Giovanni Semeraro.
Aparecida-SP: Ideias e Letras, 2006, p. 17.
313
Ibid.
177
se imbricaram de tal forma que acabaram por conduzir ao extermínio de nações
nativas inteiras, é claro, dos escravos africanos, assim:
[...] por muito tempo, tanto a sorte dos negros quanto a dos índios
não haviam sequer arranhado a autoconsciência orgulhosa dos
ingleses nas duas margens do Atlântico de serem o povo eleito
da liberdade. Em ambos os casos, evocava-se Locke para o
qual,... os nativos do Novo Mundo estão muito perto ‘das bestas
selvagens’. Mas, ao emergir o conflito entre as colônias e pátria-
mãe, a troca de acusações estende-se também ao problema com
os peles vermelhas. A Inglaterra-proclama Paine em 1776-é ‘a
potência bárbara e infernal que atiçou os negros e os índios a nos
destruir’, ou seja, ‘a cortar a cabeça dos homens livres da
América’. Analogamente, a Declaração de Independência de
George III não só de ter ‘fomentado dentro dos nossos territórios
a revolta’ dos escravos negros, mas também de ter ‘procurado
atiçar os habitantes das nossas fronteiras, os cruéis e selvagens
índios, cuja maneira de guerrear é, como se sabe, um massacre
indiscriminado, sem distinção de idade, de sexo ou de condição’.
Em 1812, em ocasião de uma nova guerra entre os dois lados do
Atlântico, Madison condena a Inglaterra pelo fato de atingir com
sua frota indiscriminadamente a população civil sem poupar
mulheres e crianças, portanto, com uma conduta semelhante à
dos ‘selvagens’ peles-vermelhas. De cúmplices dos bárbaros os
ingleses se tornam eles mesmos bárbaros314.
314
Ibid., p. 29.
315
GILROY, Paul. Op. cit., p. 385.
316
Embora nos soe estranha a ideia de liberdade e de escravidão circunscritas na mesma lógica
discursiva, naquele momento era coerente e coadunava com uma retomada de um valor presente na
sociedade grega e romana, na qual, tal como afirmava Polibios, a liberdade era uma condição
178
proposta, a Constituição elaborada em 1824, diante da necessidade de gerir a
população enquanto importante base na construção da identidade nacional, vis
como necessário se fazer a gestão da população, projetando modelo de civilização
e de condutas que serão assumidas pelos presidentes de província, principalmente
com o Ato Adicional de 1834, que dava maior autonomia às províncias317.
Por ele, abolia-se o Conselho Geral e criavam-se as Assembleias
Legislativas provinciais, ampliando seu domínio legislativo, visto que dispunham
sobre vários assuntos referentes à divisão civil, judiciária e eclesiástica da
província; à instrução pública; à desapropriação por utilidade municipal ou
provincial; à criação de cargos públicos, bem como os respectivos ordenados,
suspensão, demissão e contratação de magistrados, obras públicas; prisões;
estatística; catequese dos índios; colonização; casas de socorros públicos,
conventos e quaisquer associações políticas ou religiosas318.
Todos esses temas recorrentes serão apresentados pelos primeiros
trabalhos estatísticos realizados na província de Mato Grosso e retomados pelos
relatórios de seus presidentes que, além disso, dispunham sobre os impostos,
receitas e despesas provincial, o que atentava por organização na gestão política de
suas populações: seus hábitos, condutas e modos de vida diante de um projeto de
civilização que se buscava construir.
excepcional para pessoas excepcionais e, de fato, nem os escravos nem as mulheres eram tidos como
excepcionais no modelo de sociedade do século XIX. Cf. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval
Muniz de.. História e Liberdade. In: Karla Íngrid Pinheiro de Oliveira e Ítalo Cristiano Silva e Souza.
(Org.). Olhares de Clio: cenários, sujeitos e experiências históricas. Teresina: EdUFPI, 2013, p. 19-
34.
317
Sobre a importância assumida pelas províncias no primeiro reinado e nas regências, cf. COSTA,
Wilma Peres; OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles (Org.). De um império a outro: a formação do
Brasil, séculos XVIII e XIX. São Paulo: Hucitec, 2007.
318
Cf. LEI N. 16 DE 12 DE AGOSTO DE 1834. Faz algumas alterações e adições à Constituição
Política do Imperio, nos termos da Lei de 12 de outubro de 1832. In: Coleção de Leis do Império
1834 (parte I). Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1866.
179
liberal na construção do Estado-Nação e da monarquia constitucional, da gestão das
liberdades.
Tal preocupação já se manifestara de forma visível quando, por
exemplo, exigia-se a confecção de mapas estatísticos da população do Império, pela
Decisão de n. 258, de 11 de dezembro de 1824:
319
DECISÃO N. 258. IMPÉRIO. Em 11 de Dezembro de 1824. Exige mappas estatísticos da
população do Império. In: Collecção das decisões do governo do Imperio do Brazil de 1824. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1886, p. 180.
180
representativo, o que abria um espaço de liberdade, embora limitada, visto que
recaía em benefício apenas de alguns segmentos da população brasileira, os quais
tinham direito de participar das eleições na escolha de seus representantes e também
autonomia que as províncias, como unidades administrativas, iriam assumir.
Em relação ao processo eleitoral, cabe lembrar algumas de suas
características que beneficiavam os cidadãos: para estar apto a votar, o eleitor
deveria pertencer ao sexo masculino e ter a idade mínima de 25 anos, exceto no
caso de homens casados, clérigos, militares e bacharéis formados, que não
poderiam votar nas Assembleias paroquiais de onde seriam escolhidos os cidadãos
ativos responsáveis para escolher em outro processo eleitoral os deputados,
senadores e dos membros dos Conselhos Gerais das Província. Assim, nos artigos
90 e 91 da Constituição de 1824 ficou estabelecido:
320
CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO IMPÉRIO DO BRASIL DE 1824. Op. cit., p. 19.
181
início do Império constituia um instrumento de ação política exclusivo das elites
brancas e masculinas.
Além disso, o processo eleitoral se mostrava muito limitado do ponto
de vista prático, pois excluía a maior parcela da população brasileira. Nessas
primeiras leis do Império criava-se um espaço de ação governamental em que
certamente conferia mais autonomia às províncias, cada qual desenvolvendo suas
gestões administrativas de acordo com os interesses e particularidades específicos
de cada região:
321
Ibid., p. 16-17.
182
províncias; formando projetos peculiares e acomodados às suas
localidades e urgências.
Art. 82- Os negócios que começarem nas câmaras serão
remetidos oficialmente ao secretário do Conselho, onde serão
discutidos a portas abertas, bem como os que tiverem origem nos
mesmos conselhos. As suas resoluções serão tomadas à
pluralidade absoluta de votos dos membros presentes322.
322
Ibid., p. 17-18.
183
O desenvolvimento da estatística, às duras penas, entrou na pauta
política da província e, diante de todas as dificuldades e resistências para sua
realização, ela não foi abandonada, fazendo-se presente, no caso de Mato Grosso,
em quase todos os relatórios dos seus governantes.
Com tais estatísticas, buscava-se um conhecimento geral sobre todas as
atividades da província, seu potencial humano, econômico, cultura, religioso etc.,
procurando intervir em questões atinentes à liberdade de gestão concedida às
províncias, suas particularidades e riquezas.
Diante dessa situação, as questões que se lançavam a esses presidentes
de província eram: quais as características da província que eu governo? Quais
pessoas que a compõe? Quais hábitos e costumes? Quais formas de fazê-la
prosperar? Com que tipo de população estou lidando?
Logo, a urgência e a necessidade da estatística constituiu uma das
ferramentas mais importantes para estabelecer o governo das populações e sua
posterior regulação, em outras palavras, significou a entrada de um mecanismo de
saber e poder a serviço do Estado, com o objetivo de intervir na conduta das
populações em suas condições positivas de seres viventes que produziam,
trabalhavam e se comunicavam e que, portanto, se definiam por interesses
específicos norteadores de suas existências.
Trata-se, precisamente, da assinalação de uma biopolítica das
populações que estava nascendo, criando formas de sujeição e objetivação e que se
fizeram constantes nos relatórios, discursos, pareceres etc. dos presidentes de
províncias e seus respectivos conselhos.
Nossa atenção agora se voltará para o “nascimento dessa biopolítica”
em Mato Grosso, atentando para a especificidade que a problemática que a sua
população apresentava: Quais eram as suas preocupações? Quais eram os perigos a
que a província estava exposta? Quais eram as estratégias criadas para a sua
regulação? E que jogos de interesses mobilizavam?
Certamente, essas questões norteadoras não se esgotam em si mesmas,
se desdobrando sobre todo um investimento político de intervenção, no sentido de
regular a população e trazer à tona as questões de saúde, de polícia e da instrução,
enquanto condições de funcionalidade vital da população, dispositivos estes, que
184
constituíram, ao nosso ver, estratégias fundamentais para o funcionamento dessa
biopolítica.
Primeiramente, partiremos de uma fonte documental que é
paradigmática nesse sentido, pois materializa a forma mais cabal de uma estatística
sobre o território de Mato Grosso, sua gente e seu potencial de riqueza. Trata-se dos
Trabalhos e Indagações que fazem o objeto da Estatística da Província de Mato
Grosso, feitos no ano de 1826 para o ano de 1827323, de D’Allincourt.
Em seguida, abordaremos a problemática da população nos relatórios,
pareceres e discursos dos presidentes provinciais sobre os negócios relativos à sua
unidade administrativa, enfocando o triedro estratégico: saúde, polícia e instrução
pública, em consonância com aquilo que Foucault chamou de “dispositivos de
segurança”, os quais atuavam diante das noções “de risco e periculosidade”, que
abordaremos com mais acuidade no próximo capítulo.
Assim, buscaremos demarcar nas materialidades das práticas
discursivas o limiar de uma biopolítica da população, e apresentar experiências de
vida postas lado a lado no momento em que se procurava instaurar uma nova
racionalidade na gestão da província e do país, o que exigia estatísticas cada vez
mais precisas.
323
Cf. D’ALLINCOURT, Luiz. Trabalhos e Indagações que fazem o objeto da Estatística da
Província de Mato Grosso, feitos no ano de 1826 para o ano de 1827. In: Percorrendo Manuscritos:
entre Langsdorff e D’Allincourt. Maria de Fátima Costa (Org.). Cuiabá. EdUFMT, 1993.
324
DECISÃO N. 258. - Império. Op. cit.
185
e saber mais abrangerntes, para que medidas governamentais fossem tomadas de
maneira acertada. Esse tipo de preocupação com a estatística, já era, de certa
maneira, uma preocupação dos teóricos da razão de Estado, que pensavam em termo
de manutenção e expansão das forças estatais:
325
SENRA, Nelson de Castro. Informação estatística: política, regulação, coordenação. Disponível
em: http://www.tce.sc.gov.br/files/file/biblioteca/informacao_estatistica.pdf. Acessado em
2/10/2017.
326
INSTRUÇÃO DE DOM LUÍS PINTO DE SOUSA PARA LUÍS DE ALBUQUERQUE DE MELO
PEREIRA E CÁCERES. In: Instruções aos Capitães-Generais. Instituto Histórico e Geográfico de
Mato Grosso (Publicações Avulsas), n. 27, Cuiabá: IHGMT, 2001, p. 35.
186
Em Notas sobre Aritmética Política ou estatística, José Bonifácio
chamou também a atenção para a importância dessa aritmética política para o
necessário exercício político, uma vez que, numa perspectiva bem próxima de Luís
Pinto de Sousa Coutinho, defendia que:
327
ANDRADE E SILVA, José. Notas sobre Aritmética Política ou estatística. Revista Brasileira de
Estatística, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 25, jan./mar. 1946, p. 120.
187
supérfluas, que pode ou deve fazer o Estado, 9º o que enfim a
repartição mais util, que se deva fazer nas rendas públicas.
Sobre as operações de Finanças é preciso examinar pelo cáIculo:
1º quais são, ou poderão ser os produtos da agricultura e
economia rural, 2º minas e pedreiras, 3º matos e casas, 4º da
indústria, 5º das fábricas e manufacturas, 6º do comércio exterior
e interior, 7º das colônias dos índios, 8º da navegação e seus
ramos, 9º que vantagem se pode tirar do estabelecimento dos
fundos públicas, 10º bancos, 11º rendas viageiras, 12º tontinas,
13º loteirias, 14º quais é a quantidade de metais preciozos
espalhados no Estado, 15º de que valor deve ser a moeda, 16º que
ganho, ou perda faz o Estado no câmhio com as outras nações no
seu vario curso, 17º em quanto se podem avaliar as riquezas
nacionais, 18º enfim se a balança do comércio é vantajosa ou não
ao país e de quanto é. Sobre o Exército e Marinha o cálculo deve
ser: 1º quantos soldados de um milhão deve entreter o Estado
para não oprimir os povos com impostos, 2º sem tirar ao
Comercio, e agricultura e a industria muita gente, 3º sem
danificar as manufaturas incomodando os cidadãos com o quartel
dos soldados, 4º quantos marinheiros pode alistar o estado sem
prejudicar a navegação mercante e a pesca, 5º quais devem ser os
fundos ou espécies de contribuição convem assinar apaga [sic]
do exercito e marinha, 6º quais são as províncias, que ganhão ou
perdem por causa das tropas de guarnição, 7º o emporte de
almazens [sic], e quantidade de víveres de diverso gênero, 8º
conforme o cálculo, que a Aritmética política faz das forças, e
situação das outras potências, cujo resultado pode servir de base
as resoluções para a guerra, etc do soberano [...]328
328
Ibid., p. 119-120.
188
Trata-se de um cálculo complexo e que, seguindo ainda as reflexões estabelecidas
por José Bonifácio, tomavam por parâmetros os seguintes objetos:
329
Ibid., p. 120.
189
e as “[...] instituições de sequestro: hospitais, asilos e orfanato, as prisões e as
escolas”330.
Tais enunciados apresentam uma certa positividade da população e
lançam as premissas de uma forma de exercício político pautado na ideia de
“intervir na regulação”. Não foi à toa que o próprio Bonifácio utilizasse o verbo
regular em vários momentos de sua reflexão, ou melhor, a regulação já significava
em si uma ideia de intervenção menor no corpo dos fenômenos vitais e que
obedeciam uma certa regularidade, mesmo no que dizia respeito aos
acontecimentos considerados improváveis.
Embora o documento em que José Bonifácio desenvolve suas reflexões
sobre a aritmética política ou estatística não esteja datada e tampouco registrado o
local, conforme Senra, é bem provável que elas tenham sido escritas antes de 1819,
quando ainda estava no continente europeu331. No entanto, já apresentava, no plano
epistêmico, algumas premissas importantes que servirão de gabarito de
inteligibilidade para uma biopolítica da população.
Em todo caso, a preocupação com a elaboração de uma estatística
enquanto instrumento de governo antecedeu a Decisão n. 258, a qual exigia mapas
estatísticos da população, no entanto, a condição de país independente colocava em
evidência, como prisma reflexivo, a necessidade de conhecê-lo para melhor
governá-lo:
330
Cf. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento das prisões. Tradução de Raquel
Ramalhete. Petrópolis/RJ: Vozes, 1987; DOURADO, Nileide Souza. Práticas Educativas Culturais
e Escolarização na Capitania de Mato Grosso (1748-1822). Tese (Doutorado em História) –
Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2014.
331
Cf. SENRA, N. História das Estatísticas Brasileiras: vol. 1 - Estatísticas desejadas (1822-1889).
Rio de Janeiro: IBGE. 2006.
190
coletadas se pudesse fazer do Reino do Brasil [grifos do autor]
uma nação moderna, inserida no rol das nações civilizadas332.
Essa peça documental indica certa afinidade com a reflexão que seu
irmão havia desenvolvido sobre a Aritmética Política ou Estatística (retoma-se a
problemática da população, das riquezas, das forças militares etc.), no entanto, as
subdivisões que Martim Francisco estabeleceu em sua dissertação aponta um
melhor esquadrinhamento tanto do campo epistêmico quanto da ação política.
No texto de Martim Francisco há uma preocupação teórica em definir
o nascimento da estatística e atribuir claramente as guerras movidas pela inveja e
ambição humanas, como princípio desse nascimento. Nesse sentido:
332
VARELA, Alex Gonçalves. Um manuscrito inédito do naturalista e político Martim Francisco
Ribeiro de Andrada. História, Ciências, Saúde. Manginhos-RJ, vol. 14, n. 3, jul./set. 2007, p. 975.
333
ANDRADA, Martim Francisco Ribeiro de. Memória Sobre a Estatística ou Análise dos
Verdadeiros Princípios Desta Ciência e Sua Aplicação à Riqueza, Artes e Poder do Brasil.
Transcrição Alex Gonçalves Varela. Op. cit., p. 973-977.
191
[...] A guerra desde sua origem, teatro horrível de mil paixões
brutais, de calamidades, misérias, combates e de morte, deve-se
em grande parte a este espírito de ambição, primeiro móvel de
todas as determinações no berço das sociedades políticas e da
mesma sorte que os princípios, pois fica o espírito do governo,
que sucederão aos hábitos guerreiros incompatíveis com o
progresso da civilização, devem-se ao estabelecimento da
igualdade de poder entre muitos Estados, que a força e ordem das
coisas produziram. É nesses tempos de tranquilidade e sossego,
que o Chefe do poder público começa a calcular os recursos, as
forças e o poder do Estado pela extensão do seu Território, sua
população e sua riqueza. Não de outra arte nasceu a Estatística334.
334
Ibid., p. 978.
192
território, e nem por isso se confunde com a geografia, assim
como se serve de fatos médicos e civis, sem que por isso com ela
se confundam a Medicina e o conhecimento do governo civil335.
335
Ibid., p. 980-981.
336
SESSÃO DE 9 DE MAIO DE 1826. In: Annaes do Senado do Império do Brazil: primeira sessão
da primeira legislatura. Tomo I. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1827, p. 45.
193
Neste caso as comissões não têm tanto a fazer, como se pretende
inculcar; e não vejo incompatibilidade alguma ele se
encarregarem os negócios da estatística a outra comissão.
Se a comissão de estatística fosse encarregada da direção dos
trabalhos, de certo teria muito que fazer.
Eu estou persuadido que qualquer comissão é só para fazer
planos, e dar a sua opinião. Neste caso julgo compatível unir-se
uma com outra, e muito mais sendo o número dos membros dos
senadores tão pequeno. Longe de apoiar a separação, eu sustento
que permaneçam unidas337.
337
Ibid.
338
Ibid., p. 46.
194
propriamente dita, lidaria também com a questão indígena e colonização
estrangeira, o que, de certa maneira, apontava para uma preocupação na produção
de riquezas da nação, em consonância com a problemática do trabalho.
É nesse cenário que Luiz D’ Allincourt principiou seus trabalhos
estatísticos sobre a província de Mato Grosso, resultando no manuscrito intitulado
Trabalhos e Indagações que fazem o objeto da Estatística da Província de Mato
Grosso, feitos no ano de 1826 para o ano de 1827, cuja transcrição é de autoria da
historiadora Maria de Fátima Costa e sobre a qual apoiaremos nossa análise.
Antes de atentarmos para o manuscrito propriamente dito, é digno de
nota lembrar que, como apresentado anteriormente, em face às discussões que se
seguiram à criação da Comissão de Estatística, Colonização e Catequese, as
primeiras décadas do século XIX foram caracterizadas pela necessidade de se
conhecer o país em todas as suas dimensões: territoriais, econômicas,
populacionais, culturais etc.
Nesse sentido, as expedições científicas339 também se prestaram a esse
propósito pois, “[...] enquanto construía paisagens, as expedições científicas
contribuíram para a formação do Estado-nação e do imaginário brasileiro, no século
XIX, delimitando-o, permitindo a construção do Império”340.
A construção e afirmação do Império perpassavam pela necessidade de
um conhecimento geral que servisse de base para a intervenção e regulação das
atividades políticas, mas também à gestão da população enquanto elemento vital na
produção de riqueza.
Os trabalhos de D’Allincourt, ao desenvolverem as indagações
estatísticas, produziram um conhecimento amplo, numa visão panorâmica da
província de Mato Grosso, enfocando aspectos sobre sua extensão territorial, seu
339
Nesse mesmo período destaca-se a expedição Langsdorff, entre os anos de 1824 e 1829, comissão
que contava com uma infinidade de cientistas da Academia de São Petersburgo, como: Maximiliano
de Wied Neuwied Eschwege, Sellow e Freyreiss, Martius, Pohl, Natterer, Mikan e Schott. Na
organização de suas indagações e trabalhos de estatísticas sobre a província de Mato Grosso é bem
provável que D’Allincourt tenha entrado em contato com as ideias trazidas por esses pesquisadores.
A esse respeito, cf. COSTA, Maria de Fátima; DIENER, Pablo. Bastidores da expedição Langsdorff.
Cuiabá: Entrelinhas, 2014; SILVA, D. G. B.; KOMISSAROV, B. N. et al. (Eds.). Os Diários de
Langsdorff. Translation Márcia Lyra Nascimento Egg and others. Campinas: Associação
Internacional de Estudos Langsdorff; Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1997, vol. 1. Available from
SciELO Books <http://books.scielo.org>.
340
COSTA, Maria de Fátima. Entre Langsdorff e D’Allincourt. Op. cit., p. 22.
195
clima e estações, insalubridade, aspectos geográficos de fauna e flora, criação de
animais domésticos, atividades de caça e pesca, atividades mineradoras etc.
Tratava-se de arrolar as potencialidades da província em tudo que dizia
respeito às condições de sua riqueza, envolvendo questões como: qual era a
extensão desse território? Ainda nesse caso, qual a importância de se conhecer a
qualidade do solo e os aspectos topográficos do terreno, do seu clima e estações
etc.? Qual era a sua gente? Como ela explorava as potencialidades do território?
Quais problemas exigiam maior atenção e, portanto, mereciam intervenção?
Em relação à extensão do território, D’Allincourt demarcou a posição
geográfica da província de Mato Grosso, sua superfície e limite com demais
províncias e países, o que certamente ofereceu informações sobre possíveis relações
do comércio interno e externo, além, é claro, de demonstrar a gestão geral de todos
os aspectos que compunham a referida província. Vejamos a descrição feita por D’
Allincourt:
341
D’ALLINCOURT, Luiz. Op. cit., p. 53-54.
196
[...] Distrito de Cuiabá [...] o terreno é pouco próprio para
plantações fora das margens dos rios e de alguns pequenos
bosques; nos meses de agosto e setembro chegam a ficar as
pastagens, em quase todo ele como crestadas, a maior parte dos
ribeirões caudalosos no tempo das águas secam assim como
pantanais e algumas lagoas; todavia pode se aproveitar
modificando a sua [sic] idas por meio de estreitos regos,
extraindo a água de poucos com noras ou outras máquinas
próprias para este fim as quais são inteiramente desconhecidas
nesta província. Não se encontra terra humos a não ser em mata
espessa, que são raras nesse distrito342.
342
Ibid., p. 61.
343
Cf. As atividades mineradoras em Cuiabá e Vila Bela de Santíssima Trindade foram temáticas
recorrentes trabalhadas pelos historiadores do período colonial mato-grossense sobre as suas
produções, os tributos e contrabandos. Uma síntese desse debate, bem como as principais referências
sobre o assunto, encontramos em: DICIONÁRIO DE HISTÓRIA DE MATO GROSSO: PERÍODO
COLONIAl. Nauk Maria de Jesus (Org.). Cuiabá: Carlini & Caniato, 2011.
197
planícies consideráveis, vales, charnecas, é cortado por alguns
rios, e por muitas paragens cobertas de espesso arvoredo, que o
tornam geralmente úmido apresentando a terra húmus com
frequência, exceto em alguns pontos no sertão para o lado do
Araguaia344.
344
Ibid., p. 61-62.
345
Ibid., p. 62.
346
Ibid.
198
[...] variada de colinas, de serras sem alturas que atrai a vista por
muito tempo, de planícies mais ou menos extensas, bosques,
charnecas, segundo a boa ou má qualidade do terreno, e regado
por grande número de rios tributários dos dois maiores da
América Meridional. Os maiores montes estão na parte
setentrional e são ramos da Serra dos Parecis, encontra-se neste
distrito ouro, diamantes, cristais, minerais de ferro, tabatinga e
pedra calcárea, a terra humos é pouco abundante, não obstante o
que o terreno produz bem o milho, mandioca com outras raízes
comestíveis, arroz, legumes, tabaco, algodão, cana de açúcar,
café quanto baste para o consumo da população enviando ainda
para Cuiabá alguma porção desse último gênero347.
347
Ibid.
348
Como veremos no capítulo 4, Antônio Luís Patrício da Silva Manso vai ser um dos pivôs da
Rusga, sendo este o idealizador da criação da Sociedade dos Zelosos da Independência,
responsabilizada pelo planejamento das sedições de 30 de maio de 1834. Cf. AGUIAR, Patrícia
Figueiredo. Uma sedição no sertão: o 30 de maio de 1834 em Cuiabá e suas ressonâncias.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2012.
199
[...] É constantemente observado que debaixo da zona tórrida,
sendo o clima já inimigo da saúde dos que não são indígenas
(pois que ardendo por todo ano precipita o processo vital por um
calor exímio, atenua o organismo, dispõe para as moléstias
asténicas; e sobretudo as que atacam os órgãos da digestão), nem
ao menos se pode o homem livrar das consequências do refresco,
porquanto, posto que seja a terra calidíssima, costumando nesta
zona serem as noites alguma coisa frescas, o organismo é afetado
em razão direta do quanto a sensibilidade da pele foi exaltada
pelo calor diurno. Estas observações são em toda a extensão
aplicáveis ao distrito de Mato Grosso, e contorno do Diamantino,
onde são as noites frescas e as moléstias endêmicas só cedem aos
remédios aplicados às que têm sua causa no sistema dermóide e
órgãos da digestão349.
349
Ibid., p. 57.
200
principalmente que pouco mais de mil pés terá sobre o nível do
mar, imensa superfície alagada, a podridão dos vegetais
espoliando a atmosfera do oxigênio, a impregna de gás
carbônico, hidrogênio, e hidrogênio carbonizado: o ar já
desproporcionado por esta, causa sobre enorme massa de águas
estagnadas, aumenta sua insalubridade sobrecarregando-a da
podridão que deve resultar de tantos vermes, insetos, peixes,
anfíbios e seus excrementos e larvas, profundamente espalhadas
por um terreno incomensurável; ao que pode ainda ajuntar o
vapor aquoso, por si só capaz de produzir incalculáveis
enfermidades350.
350
Ibid.
351
CORBIN, Alain. Saberes e Odores: olfato e o imaginário social nos séculos XVIII e XIX.
Tradução de Lígia Watanabe. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 21.
201
nos lugares incultos, como mesmo observei além da relação dos
que têm sofrido, e visto sofrer), as febres intermitentes
pertinazes, malignas, coliquativas, artrites, obstruções, cacheiras,
etc352.
352
MANSO, Antonio Luís Patrício da Silva. Op. cit., p. 57-58.
353
CORBIN, Alain. Op. cit., p. 24-25.
354
Referente à qualidade do ar, cf. Ibid., p. 22.
202
do oxigênio era também um processo elétrico e que influia diretamente no
organismo vivo de cada pessoa. Assim:
355
Ibid., p. 58.
203
Diante dessas condições de insalubridade, atreladas à qualidade do ar e
às condições que a comprometiam (como a problemática da formação de áreas
pantanosas, das trocas elétricas com o corpo no processo de respiração, da
importância das trocas gasosas dos vegetais), o cirurgião-mor Antônio Luís Patrício
da Silva Manso emitiu parecer de médico e propôs os seguintes meios de prevenção:
356
Ibid, p. 59.
357
Em nota, Maria de Fátima Costa lembra que D’Allincourt, no seu texto Resultado Trabalhos e
Indagações que fazem o objeto da Estatística da Província de Mato Grosso, feitos no Ano de 1828,
diferentemente do que se apresentava no manuscrito Trabalhos e Indagações que fazem o objeto da
Estatística da Província de Mato Grosso [que servia-se de base para esse último], ele se posicionava
contra a proposta do cirurgião-mor Manso, defendendo a criação de canais de escoamento para o
204
profiláticas de passeio, banho, nutrição e consumo de bebidas etc.), o que já dava
indícios de investimento político sobre uma problemática geral da vida.
As constatações de insalubridade das áreas pantanosas de Mato Grosso
já haviam sido descritas pelo capitão-general Antônio Rolim de Moura, no período
em que governava a capitania, pois as mudanças bruscas de temperatura produziam
friagens que chegavam a matar principalmente os escravos, devido ao fato de
possuíram poucas vestimentas358, causando as mesmas moléstias apontadas
posteriormente pelo cirurgião-mor Manso, como “sezões e perniciosos catarros,
disenterias, ectericias, hidropesias e obstruções359”.
Note-se que naquele momento a questão de reconhecimento da
insalubridade não implicava, necessariamente, por parte de Rolim de Moura, criar
mecanismos que alterassem as condições do meio e que permitissem otimizar as
condições de sua vitalidade. Simplesmente, deixa-se morrer, uma vez não ter
havido interferência nas causas de morbidade que vizassem prolongar a vida.
Essa problemática da vida surge em diferentes momentos nos
Trabalhos e Indagações que fazem o objeto da Estatística da Província de Mato
Grosso, feitos no Ano de 1826 para 1827 de D’Allincourt, quando descrevia
minuciosamente a vitalidade primeira da província: seu território, seus rios, sua
fauna e flora e, na medida do possível, trazendo reflexões sobre o potencial
econômico desses elementos e apresentando, por exemplo, a capacidade da
agricultura e pecuária de determinados distritos, como apontado anteriormente,
além de aventar para a importância dos rios nas atividades comerciais e na pesca, a
relevância das plantas nativas e seu uso medicinal útil a uma infinidade de
moléstias, da caça para exploração do couro e da carne, dentre outros aspectos.
Esquadrinhava-se uma centralidade da estatística nas reflexões sobre as
condições de vitalidade da província de Mato Grosso e, curiosamente, as reflexões
de D’Allincourt deixaram de apresentar os censos populacionais, descrevendo
somente as classes e o estado civil de seus habitantes, taxa de nascimento ou óbito,
possivelmente por se tratar de um manuscrito incompleto. Sobre as características
distrito de Diamantino e a queima das matas virgens de Mato Grosso. Cf. COSTA, Maria de Fátima.
Op. cit., p. 100.
358
Sobre esse aspecto da constatação de insalubridade na capitania de Mato Grosso, ver: SILVA,
Jovam Vilela. Op.cit., p. 258-259.
359
Ibid., p. 93.
205
desse documento, a historiadora Maria de Fátima Costa, responsável pela
transcrição, aponta que:
360
COSTA, Maria de Fátima. Op. cit., p. 30.
206
Nesse sentido, a estatística, enquanto ciência de Estado produziu um
saber que instrumentaliza um exercício de poder sobre os corpos da população de
Mato de Grosso, o que pode ser notado, inclusive, quando D’Allincourt se refere
aos três governos: eclesiástico, civil e militar, ou seja, três modalidades de
autoridade que visavam controlar as condutas do corpo:
361
D’ALLINCOURT, Luiz. Resultado dos Trabalhos e Indagações Estatísticas da Província de Mato
Grosso feitos no ano de 1828. In: Annaes da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, vol. VIII (1880-
1881). Rio de Janeiro. Tipografia Nacional, 1881, p. 49-50. Disponível em:
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/anais/anais.htm. Acessado em 6/10/2017.
207
dado por D’Allincourt às atividades desenvolvidas na província: atividades
comerciais, culturais e políticas.
Em relação ao comércio, por exemplo, o autor chamou a atenção para
os valores monetários dos produtos que entravam na província e dos valores dos
exportados, criando uma tabela estimativa das rendas provinciais advindas das
atividades comerciais, esmiuçada por cada elemento presente nas relações
comerciais, como: qualidade dos meios de escoamentos dos produtos, a inexistência
de feiras e mercados, a padronização dos pesos e medidas (que, apesar da sua
tentativa, sofria variações regionais), a inexistência de bancos, casas de seguro e de
comércio. O conjunto deles gerou saberes que serviriam de base segura para uma
intervenção eficiente na realidade provincial.
No aspecto cultural, D’Alincourt ressaltou a pintura, música e dança
geradas na província, dando a perceber a precariedade em que se encontravam. Em
relação à pintura, por exemplo, ele cita apenas o trabalho do artista plástico José da
Silva (este foi professor de Gramática Latina e abandonou a atividade por ser pouco
lucrativa), cujo talento se materializou num retrato, a óleo, de D. João VI, além das
pinturas de aves e de outros animais, assim como de plantas. As danças só se
fizeram presentes após 1826, com a chegada de um indivíduo que ofereceu algumas
noções delas. Das atividades artísticas, somente a música era praticada por um
número suficiente de pessoas, tanto em Mato Grosso como em Cuiabá, mesmo
frente à carência de conhecedores da arte e também de instrumentos:
362
Ibid., p. 65.
208
Tal descrição das artes liberais apresentadas, como pintura, música e
dança, foram descritos por D’Allincourt enquanto elementos de bom gosto
civilizado e, nesse sentido, foram silenciadas as tradições musicais originárias,
porém presentes no cenário regional, a exemplo das danças de influência indígena
e africana, ou seja, já se apontava para uma intervenção no campo dos hábitos
culturais por um modelo de arte.
No aspecto político, propriamente dito, além da organização dos
governos em civil, militar e eclesiástico, o trabalho estatístico de D’Allincourt e sua
comissão arrolou e descreveu os estabelecimentos públicos (órgãos
administrativos, hospitais, escolas, quartéis etc.), mas também as rendas públicas,
divididas em rendas do Estado, do município e eclesiásticas, igualmente apontando
para as instituições que começavam a criar suas condições de exercício de poder
sobre a população.
O que se delineia na estatística em questão é uma problemática que
pensava o funcionamento da província como um todo, onde o elemento população
ganhou centralidade, uma vez que seus hábitos e condutas passaram a ser vigiados
e medidos através das intervenções aplicadas segundo as situações apresentadas.
Esse trabalho estatístico produziu uma classificação geral da população
em termo de classe (homens/mulheres), condição (cativos/livres), idade, estado
civil (casados/viúvos/solteiros); por profissão e também por condição de
nascimento, óbito, além dos expostos, casamento, residência em fogos e casas.
As informações estampadas nos primeiros mapas de povoamento do
século XVIII e também nos registros paroquiais foram incorporadas ao saber
estatal, que tomou a estatística enquanto instrumento de governança no interior do
processo de intervenção política sobre a população e sua regulação.
Esse tipo de saber possibilitou e facilitou o exercício do poder, pois, o
ponto de atuação deles teve como centralidade precisamente os modos de vida da
população: o que faziam? Se trabalhavam ou se eram ociosos? Se casados ou
solteiros? Se se constituíam enquanto trabalhadores livres ou cativos? Se havia
muitas crianças enjeitadas? Enfim, tratava-se, de modo geral, de um poder que
atravessava a vida dessa população. Em 1834, o presidente da província de Mato
209
Grosso, Antônio Pedro de Alencastro, assim apresentou situação em que se
encontrava a estatística:
363
ALENCASTRO, Antonio Pedro. Discurso recitado pelo exm. presidente da provincia de Matto-
Grosso, Antonio Pedro d'Alencastro, na abertura da primeira sessão ordinaria da Assembléa
Legislativa Provincial, em o dia 3 de julho de 1835. Cuiabá: Typ. Provincial, 1845, p. 9.
364
BUENO, Antonio Pimenta. Discurso recitado pelo exm. presidente da provincia de Matto-
Grosso, José Antonio Pimenta Boeno, na abertura da terceira sessão ordinaria da Assembléa
Legislativa Provincial, em o dia 1.o de março de 1837. Cuiabá: Typ. Provincial, 1845, p. 26-27.
210
Pimenta Bueno, além de reconhecer a importância da estatística, ainda
propôs medidas legislativas para aperfeiçoa-la, visando a obtenção de
conhecimento mais qualificado para a intervenção dos negócios públicos, visto
oferecer uma visão global das reais condições da província. Esse posicionamento,
também legitimava um padrão de civilização que se pretendia disseminar em Mato
Grosso, o qual se confrontava, muitas vezes, com outros hábitos e modos de vida
de sua população.
Na ata que o Presidente da Província de Mato Grosso Estevão Ribeiro
de Resende fez na abertura da segunda seção ordinária da segunda legislatura da
Assembleia Provincial, no dia 2 de março de 1839, ocorreu um aprofundamento do
debate suscitado por Pimenta Bueno, quando Rezende sugeria melhorar a coleta
dos dados estatísticos, bem como a ampliação de seus objetivos:
365
RESENDE, Estevão Ribeiro de. Acta com que o Presidente da Província de Mato Grosso fez a
abertura da Segunda Seção Ordinária da Segunda Legislatura da Assembleia Provincial no dia 2
de março de 1839. (Documento Manuscrito, p. 37).
211
os diferentes graus de evolução ou involução de determinados fenômenos
populacionais:
366
Ibid., p. 37-39.
212
e aqui vos apresento o de casamentos, óbitos, e batismos que
tiveram lugar, durante o ano civil de 1839, na maior parte das
Freguesias da Província.
Dá ele em resumo o seguinte: 1:049 nascidos sendo 175
escravos: falecidos 435 sendo 103 escravos; e 286 casamentos
sendo 30 de escravos, como melhor vereis do mapas junto sob N.
a cuja exatidão me inclino.
Quanto ao mapa estatístico da população da Província, que
também tenho a honra de apresentar-vos sob N. observareis que
o considero imperfeitíssimo porque apresenta na sua totalidade
população menor do que a que infalivelmente deve haver.
Foi ele organizado sobre dados recolhidos pela Secretaria da
Presidência por intermédio dos Juízes de Paz, e atribuo suas
imperfeições não tanto a imperícia dessas Autoridades para
trabalhos deste gênero, como aos prejuízos dos povos, que olham
no ato de um arrolamento, uma diligência para a imposição de
tributos, ou para recrutamento, e por isso cada Chefe de família,
especialmente fora das povoações, trata de ocultar ou diminuir o
número dela o mais que pode, e assim nenhum ou imperfeito é o
número de tantas diligências.
Pretendo agora exigir dos Vigários, e coletores o número de
almas de suas Paróquias, e fogos das Coletorias, a ver se posso
por este meio conhecer melhor da população da Província, e
uniformar os trabalhos estatísticos nesta parte, a fim de vos serem
apresentados ulteriormente367.
367
REZENDE, Estevão Ribeiro de. Discurso que recitou o exm. snr. doutor Estevão Ribeiro de
Rezende, presidente desta provincia, na occasião da abertura da Assembléa Legislativa Provincial
no dia 1.o de março do corrente anno. Cuyabá: Typ. Provincial, 1840, p. 17-18.
213
CAPÍTULO 4
214
Nesse sentido surgiram os primeiros debates parlamentares, ainda sob
os auspícios da organização do Império, quanto à necessidade do conhecimento
estatístico que, ao nosso ver, apresentou-se enquanto ciência de Estado, fornecendo
subsídios de vitalidade ao Estado Nacional que estava se formando.
Naquele preciso momento, as ações e os trabalhos estatísticos
realizados por D’Allincourt368 materializavam a preocupação de se conhecer o que
era essa entidade provincial de Mato Grosso e como governar a partir delas,
intervindo com ações tidas como necessárias para potencializar o uso das riquezas
naturais e minerais que se apresentavam com grande generosidade no território.
Diante dessa problemática do liberalismo369 e da formação de um saber
estatístico370, foi adicionada a problemática da população da província de Mato
Grosso, ou seja, delineavam-se as condições para que os presidentes da província
atuassem na regulação de sua vida, hábitos e costumes.
A seguir, a apresentaremos quatro mapas que apresentam o território
mato-grossense entre o final do século XVIII e os fins do XIX. Tais mapas
apresentaram, em primeiro lugar, a grandiosidade territorial de Mato Grosso e que
os capitães-generais do século XVIII e ínicio do XIX deveriam garantir a sua
defesa, conservação e posse, por meio de uma política de povoamento. Em segundo
lugar, praticamente mantendo as mesmas dimensões territoriais, os presidentes da
368
A historiadora Maria de Fátima Costa chama atenção para o fato de que no mesmo período foram
realizadas pelo menos mais dois trabalhos estatísticos no país, os quais obedeciam aos mesmos
critérios de organização das temáticas aventadas, uma desenvolvida na capitania do Espírito Santo
e outra na capitania de São Paulo. Cf. COSTA, Maria de Fátima. Entre Langsdorf e D’Allincourt.
In: Percorrendo Manuscritos: Entre Langsdorf e D’Allincourt. Maria de Fátima Costa (Org.).
Cuiabá: Editora Universitária, 1993.
369
A questão não é determinar em que sentido os intelectuais luso-brasileiros eram ou não liberais,
mas sim, assumir naquilo que eles mesmos expressaram em suas posições políticas, marcadas pelo
debate no campo intelectual do liberalismo. De que maneira o liberalismo tocava esses intelectuais,
que ora assumiam abertamente as essas premissas e ora criavam seus antídotos, para desviar das
premissas do pensamento liberal.
370
Os trabalhos de D’Allincourt certamente representaram, na esfera nacional, um paradigma a ser
copiado. Esse mesmo autor ficará responsável pela Comissão de Estatística até a sua morte, cuja
sede era o Espírito Santo. A problemática da estatística, ao nosso ver, nunca será abandonada, visto
ter várias ressurgências, não deixando de ser posta enquanto uma necessidade do Estado. A questão
por nós trabalhada é a de que, com Allincourt ela se tornou uma prerrogativa do Estado que, aos
poucos, irá sistematizando formas de conhecimento já encontradas nos mapas do século XVIII e nos
registros eclesiásticos. O projeto estatístico de Allincourt incorre nessa forma de estatística, em que
as experiências tidas pelos mapas e registros eclesiásticos foram assumidos também como uma
função do Estado, relacionados a uma outra forma de intervenção: da ideia de conservação e defesa
do Estado/conduta da alma para a ideia de vitalidade e funcionamento do Estado/conduta do corpo
de uma população.
215
província assumirão o papel de governar semelhante território tendo por base
conhecimento rigoroso e minucioso de seus recursos minerais, energéticos e de
solo, bem como as características da população que nele habitava, para o que o
trabalho estatístico realizado por D’Allincourt cumprisse esse papel.
O território mato-grossense, no período estudado e sobre o qual
D’Allincourt realizou seus trabalhos estatísticos, era uma imensa porção territorial
que abrangia os atuais de Mato Grosso, Rondônia (desmembrado de Mato Grosso
e Amazonas, formando o território federal do Guaporé, ainda sob o governo de
Getúlio Vargas no ano de 1943, e que depois alterou seu o nome para Rondônia,
sob o governo de Juscelino Kubitschek, em 1956) e Mato Grosso do Sul,
desmembrado em 1977371. Os mapas a seguir dão uma dimensão dos
desmembramentos pelos quais passou Mato Grosso:
371
Sobre o desmembramento de Rondônia do território mato-grossense, cf. ANDRADE, Manuel
Correia de. Geografia: ciência da sociedade. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2008; FREITAS,
Teixeira de. A redivisão política do Brasil. Revista Brasileira de Geografia. Rio de Janeiro, ano III,
nº. 3, 1941, p. 558-588; GUIMARÃES, Fábio de Macedo Soares. Divisão regional do Brasil. Revista
Brasileira de Geografia. Rio de Janeiro, 1944, ano III, no 2, p. 319-345. Sobre a divisão de Mato
Grosso e Mato Grosso do Sul, confira, principalmente: SILVA, Jovam Vilela. A divisão do Estado
de Mato Grosso: uma visão histórica (1892-1977). Cuiabá: EdUFMT, 1996; WEINGARTNER, A.
A. S. Movimento divisionista em Mato Grosso do Sul (1889- 1930). Porto Alegre: Edições Est, 1995;
BITTAR, M. Geopolítica e separatismo na elevação de Campo Grande a capital. Campo Grande:
Ed. UFMS, 1999; AMEDI, Nathália da Costa. A invenção da capital eterna: Discursos sensíveis
sobre a modernização de Cuiabá no período pós-divisão do Estado de Mato Grosso (1977-1985).
Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá, 2014.
216
Mapa1: Mato Grosso entre os anos de 1772 a 1789
372
Esse belíssimo mapa foi problematizado de maneira ímpar pela pesquisadora Renata Araújo, em
artigo intitulado Os Mapas do Mato Grosso: o Território como Projeto, e me aproprio dele para
apresentar a configuração do território mato-grossense em fins do século XVIII. Cf. ARAÚJO,
Renata. Os Mapas do Mato Grosso: o Território como Projeto. Terra Brasilis (Nova Série) Revista
da Rede Brasileira de História da Geografia e Geografia Histórica. Disponível em:
http://terrabrasilis.revues.org/1230 ; DOI : 10.4000/terrabrasilis.1230
217
Mapa 2: Mapa do Brasil em 1817
Fonte: http://multirio.rio.rj.gov.br/images/mapa-brasil-1817-t.jpg
218
Mapa3: Mapa do Brasil de 1940
Fonte: https://7a12.ibge.gov.br/home-7a12?catid=0&id=79
219
Mapa 04: Mapa do Brasil 1980
Fonte: https://7a12.ibge.gov.br/home-7a12?catid=0&id=79.
220
coletivo disperso em vários pontos da província, colocando em evidência a
problemática de uma guerra civil, justamente no momento em que se procurava
construir a “unidade nacional”.
O episódio da “Rusga” foi usado pelos governantes provinciais como
uma forma de “potencializar” um medo na população, expressando em seus
relatórios, discursos e nos posicionamentos públicos uma “carga afetiva” negativa
aos participantes do movimento, como havia feito o presidente de província
Antonio Pedro de Alencastro, em 1835, no discurso pronunciado à Assembleia
Legislativa:
373
ALENCASTRO, Antonio Pedro. Discurso de 3 de julho de 1835 na Abertura da Primeira Sessão
Ordinária da Assembleia Legislativa Provincial. Cuiabá: Typografia Provincial, 1845, p. 3.
221
torná-la sadia, obediente e pacífica em prol de uma sociedade que começava a se
organizar em termos valorativos, a partir da ideia de trabalho.
Temos com isso o sintoma de uma penetração, na nascente nação
brasileira, dos princípios de economia política associados ao governo das
populações e às premissas do pensamento liberal que chegavam nas províncias e
incitavam uma problemática sobre a “gestão da liberdade e do poder representativo
delas”.
Todos esses elementos remetiam a um investimento na gestão da vida
das pessoas, de suas condutas, aptidões e moralidade, o que certamente faziam atuar
um funcionamento de saber que sancionava uma espécie de média de zona de
segurança, de nível de sofrimento permitido e até mesmo tolerado em relação à
população e de onde não se deveria ultrapassar para que, supostamente, os negócios
do Estado pudessem fluir.
Diante disso, percebemos que os presidentes da província de Mato
Grosso atuarão insidiosamente nessa população, criando condições de controle e
regulação, conclamando em seus discursos e em suas ações administrativas e
posicionamentos, os elementos indispensáveis para a potencialização dos negócios
públicos e, para isso lançou mão de três estratégias fundamentais: a problemática
da instrução, da criminalidade e da saúde.
No presente capítulo buscaremos analisar detidamente cada uma dessas
estratégias, num momento em que havia preocupação em se constituir uma
“identidade nacional” e afirmar o Império, que passava por instabilidades políticas
e sociais que culminaram com a abdicação de D. Pedro I e no estabelecimento dos
governos regenciais.
Vale ressaltar que, no processo de construção de nacionalidade e de
afirmação do Estado/Nação brasileiro, foi também extremamente importante a
criação do IHGB (Instituto Histórico Geográfico Brasileiro), em 1838 que:
222
publicar ou archivar os documentos necessários para a escrita da
história do Brasil-nação374 [...]
374
RIBEIRO, Renilson Rosa. O Brasil inventado pelo Visconde de Porto Seguro: Francisco Adolfo
de Varnhagen, o Insituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a Construção da ideia de Brasil-
Colônia no Brasil-Império (1838-1860). Cuiabá/MT: Enrelinhas, 2015, p. 37.
223
Com isso, buscaremos assinalar a emergência de uma problemática
importante na gestão da província de Mato Grosso, que foi a visibilidade dos efeitos
traumáticos da Rusga e da emergência da noção de “inimigo interno” que esse
acontecimento imprimiu na população e nos governantes.
Diante disso, a centralidade, dada a busca da paz e da tranquilidade, se
encontrava em sintonia com a preocupação com o medo produzido e incitado pelo
movimento de 30 de maio de 1834, e acreditamos que é partir da matriz do “medo”
que os governantes criaram meios de previsibilidade para combatê-lo, para geri-lo,
para regular o elemento populacional que, em alguns momentos da sedição, deu
mostras de força incontrolável.
Enfim, a partir de tais constatações que foi sendo construída uma
estatização da vida dessa população e que perpassava, ao nosso ver, por três
estratégias políticas do seu corpo: instrução, criminalidade e saúde, materializadas
nas ações dos presidentes de província em parceria com outros agentes (inspetores
de polícia, de saúde, de instrução etc., convocados em auxílio).
Tratava-se de uma tentativa de ordenamento minucioso da sociedade
mato-grossense após os enfrentamentos, as lutas e os ressentimentos advindos do
movimento de 30 de maio de 1834, o qual gradativamente criou um campo de ação
e de intervenção política que respondia aos anseios de se constituir uma sociedade
ordeira, pacífica e trabalhadora, diante de um cenário de perdas de vidas e de capital
econômico, quando os traumas provocados pela sedição de 1834 se farão ressoar
por vários anos.
224
participantes do sistema monárquico e do jovem país que se
construía. Notável, nesse sentido, foi a promoção da política de
centralização promovida pela Corte, que não deixava de visar os
políticos provinciais375.
375
SENA, Ernesto Cerveira de. Entre Anarquizadores e Pessoas de Costume: a dinâmica política
nas fronteiras do Império (1834-1870). Cuiabá: Carlini & Caniato; EdUFMT, 2009, p. 16-17.
376
MARTINS, Dulcineia Silva. No silêncio dos arquivos: relatos de viajantes que percorreram Mato
Grosso (1808-1864). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Mato Grosso.
Cuiabá, 2014, p. 48.
225
formas associativas, além do predomínio de poderes eletivos - as
Cortes e, nas províncias, as juntas provisórias)377.
377
LIMA, André Nicácio. Rusga: participação política, debate público e mobilizações armadas na
periferia do Império (Província de Mato Grosso, 1821-1834). Tese (Doutorado em História Social)
– Universidade de São Paulo. São Paulo, 2016, p. 23.
378
ESTATUTOS DA SOCIEDADE DEFENSORA DA LIBERDADE E INDEPENDÊNCIA
NACIONAL, NA VILA DE MANGARATIBA. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de SEIGNOT-
PLANCHER, 1834, p.03-04. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/242458.
Acessado em 02/11/2017
226
existência das quais é que nasce a hospitaleira urbanidade, com
que são tratados os estrangeiros, que em sentimentos se
identificam com os bons brasileiros [...] Um povo livre e
Independente, depois de ter curado de possuir esses bens, deve
também curar de tudo, quanto possa fazê-lo prosperar e ganhar
vulto entre as Nações379.
379
O VALENCIANO. JORNAL DA SOCIEDADE DEFENSORA DA LIBERDADE E
INDEPENDÊNCIA NACIONAL DA VILLA DE VALENCIA NO 1. Rio de Janeiro: Typografphia
Nacional, 1832. Disponível em: http://bndigital.bn.br/acervo-digital/valenciano/702358. Acessado
em 2/11/2017.
227
compreensível a dúbia atitude380 de Poupino Caldas em relação ao movimento da
Rusga.
Diante desse clima de ebulição política, a província de Mato Grosso foi
marcada pelo movimento regencial conhecido como a “Rusga”, provocado
principalmente pelos embates entre os dois grupos políticos distintos que se
formaram naquele momento: de um lado, os liberais, representados pela Sociedade
dos Zelosos da Independência e, do outro lado estavam os conservadores,
representados pela Sociedade Filantrópica:
380
Atitude que está presente no fato de ele ter sido um dos principais mentores do movimento e
protagonista na montagem do processo de julgamento dos envolvidos na “Rusga”. Cf. SIQUEIRA,
Elizabeth Madureira. A Rusga em Mato Grosso: edição crítica de documentos históricos vol. 1.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade de São Paulo. São Paulo, 1992.
381
AGUIAR, Patrícia Figueiredo. A sociedade dos Zelosos da Independência na província de Mato
Grosso e a ocorrência da Rusga. In: Revista Sapiência: Sociedade, Saberes e Práticas Educacionais
– UEG/Campus Iporá. Goiânia, v. 5, n. 2, p. 232-256, Ago./Dez., 2016, p. 233
228
ocupavam as atividades mais rentáveis da província. Em seu estatuto, a Sociedade
dos Zelosos da Independência já deixava claro esse posicionamento:
[...] Artigo 1º: O fim dessa Sociedade é procurar ligar pelos mais
estreitos laços os verdadeiros brasileiros, habitantes da Província
de Mato Grosso, por meio da Instrução dos seus deveres, e de
mútua coadjuvação para assegurar a independência do Brasil, e
fazer resistência legal à tirania onde quer que ela achar.
Artigo 2º: O número de sócios será determinado: e são 1º aqueles
com que se instalam; e segundo todos os que, propostos por
qualquer membro foram aprovados em escrutínio por maioria
absoluta. O título será uma lacônica participação, assinada pelo
presidente da sessão e Secretário: e a efetividade entrará do dia
da Sessão em que se receber a participação de que aceita. [...]382
382
ESTATUTO DA SOCIEDADE DOS ZELOSOS DA INDEPENDÊNCIA DE MATO GROSSO.
In. A Rusga em Mato Grosso: edição crítica de documentos históricos vol. 2. Dissertação (Mestrado
em História). Universidade de São Paulo. São Paulo, 1992, p. 339.
383
A esse respeito o estatuto da Sociedade Defensoria da Liberdade e da Independência aceitava
como membro todos que se engajassem com a causa, contribuísse com a ‘quota, ter bons costumes
e meios de subsistência’, incluía nesse propósito, a admissão de senhoras. Cf. ESTATUTOS DA
SOCIEDADE DEFENSORA DA LIBERDADE E INDEPENDÊNCIA NACIONAL, NA VILA DE
MANGARATIBA. Op. cit., p. 9.
229
A sedição de 30 de maio de 1834 dava visibilidade a um campo de
demarcação de forças e de usos estratégicos, num confronto característico de uma
“guerra civil”, de um conflito político interno que envolveu também as camadas
menos abastadas da sociedade cuiabana.
Curiosamente, o termo “rusga” era de uso corrente para explicar os
vários “conflitos civis” que explodiam em diversos pontos do país naquele mesmo
período, onde se constava o clima de instabilidade política manifestado no início
das regências. Nesse sentido, o historiador André Nicácio Lima lembrava que:
384
LIMA, André Nicácio. Op. cit., p. 15-16.
385
É digno de nota já se tratar da segunda edição de sua obra e que provavelmente a compilação
atualizada dos termos portugueses tenha se iniciado em fins do século XIX.
230
[...] rusga f. Barulho, desordem. Pop. Diligência policial, para
prender malfeitores ou contraventores de certos regulamentos ou
leis. Ant. Correria de funcionários, destinada a prender
indivíduos para soldado. * Prov. trasm. Tocata; pândega.
rusgar v. i. Neol. Lisboa. Fazer rusgas (a polícia). Cf. jornal Luta,
de 1-II-912386.
386
FIGUEIREDO, Cândido. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Disponível em: dicionario-
aberto.net/estaticos/legal.html. Acessado em 9.11.2017. A versão transcrita desse dicionário foi
realizada por voluntários no Distributed Proofreaders e contou com a supervisão da Rita Farinha.
O exemplar desse trabalho está igualmente no Domínio Público. Este documento pode ser
livremente descarregado e utilizado, a partir do sítio do Projecto Gutenberg. Cf. também:
http://www.gutenberg.org/ebooks/31552
387
MOREL, Marco. O período das Regências (1830-1840). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.
65.
231
apoio popular. Nesse sentido, o posicionamento do historiador Valmir Batista
Corrêa é muito interessante ao salientar que:
388
CORRÊA, Valmir Batista. Rebeldia em Cuiabá em 1834: a violência como matriz para a
compreensão da história regional. In: Rusga: uma rebelião no sertão: Mato Grosso no Período
Regencial (1831-1840). Ernesto Cerveira de Sena e Maria Adenir Peraro (Org.). Cuiabá: EdUFMT,
2014, p. 128.
232
autor] contra os brasileiros adotivos [grifos do autor] durante o
Primeiro Reinado, João Poupino Caldas foi aclamado pelos
rebeldes para substituir seu aliado adotivo [grifos do autor]
Jerônimo Joaquim Nunes. Sem que tenha tomado uma postura
pública de liderança, ele foi acusado na imprensa de ter sido a
mão oculta [grifos do autor] por trás do movimento. Porém, a
análise conjunta do debate público e da documentação sobre a
repressão dos rebeldes demonstrou que, mesmo que Poupino
Caldas tenha muito provavelmente exercido influência sobre a
mobilização, ela foi protagonizada por homens que já vinham de
uma longa experiência de reivindicação armada para a
deposição de comandantes [grifos nossos]. Uma trajetória
autônoma com relação à disputa política institucional e que todas
as facções políticas da província procuraram combater389.
389
LIMA, André Nicácio. Op. cit., p. 445.
390
Nesse ponto preciso discordo do autor, pois acredito que não se trata de uma captura das
mobilizações populares, mas, entre outras coisas, de reciprocidades, de pontos de apoio em comum
que se levantaram contra uma ‘ordem vigente, contra uma forma dada como certa de fazer política’
no período. Assim, existiram relações de poder que não se materializavam exclusivamente pelos
interesses políticos e partidários, mas porque também colocavam em cena a centralidade dessas
vidas, que paralelamente tinham também seus objetivos de luta. Creio que havia nesse sentido
articulações entre as elites políticas e a camada mais popular. Essa ideia de captura das forças
populares por uma outra elite, da qual a Sociedade dos Zelosos era exemplo, dilui a reciprocidade
das relações de poder e debilita a compreensão do movimento quando esta parece fugir do controle.
Sobre a ideia de ilegalismos tolerados pela elite e depois incompatível com esta, ver Cf.
FOUCAULT, Michel. Aula de 21 de fevereiro de 1973. In: A Sociedade Punitiva: curso no Collège
de France (1972-1973). Tradução de Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 129-
142.
233
a abdicação de D.Pedro I tenha sido um momento fundamental
aproximação391.
391
LIMA, André Nicácio de. Experiências políticas, ação coletiva e violência: algumas hipóteses
sobre a Rusga. In: Rusga: uma rebelião no sertão: Mato Grosso no Período Regencial (1831-1840).
Ernesto Cerveira de Sena e Maria Adenir Peraro (Org.). Cuiabá: EdUFMT, 2014, p. 183.
392
SENA, Ernesto Cerveira de. Op. cit. p. 38.
234
[...] o elemento português aparecia muitas vezes como
catalisador dessa anarquia. Os gritos de mata marinheiro
[grifos do autor] e morra português [grifos do autor] enchiam
as ruas, precedendo reinvindicações de nacionalização de
comércio a retalho. Acontecia assim no Recife, onde tal situação
parece ter chegado ao auge em meados do século e animava os
praieiros; acontecia assim na Corte, onde o ódio ao comerciante
português era somado ao ódio pelos elementos lusitanos que,
acreditava-se, dominavam o Paço; não alcançava maior
expressão em São Paulo, talvez porque ali o comércio varejista
já se encontrasse em larga medida em mão de elementos
nacionais393.
393
MATTOS, Ilmar Rohloff. Tempo Saquarema. São Paulo; Brasília: Hucitec; INL, 1987, p. 75-76.
394
Ibid., p. 76.
235
tais narrativas certamente não estavam imbuídos de imparcialidade e neutralidade
no momento em que se posicionaram sobre o assunto.
As repercussões nas narrativas a posteriore ao evento levaram à
construção de interpretações que se circunscreveram desde a construção de uma
imagem “violenta”, “sanguinária” e de certo teor “xenofóbico”, como característica
marcante dos cuiabanos (versão interpretativa presentes em nomes como Augusto
Leverger, Joaquim Ferreira Moutinho e Visconde de Taunay). Por outro lado, em
reação a esse tipo de interpretação, um outro modelo de inteligibilidade histórica
construiu uma imagem “pacífica e hospitaleira” do homem cuiabano e que, de certa
forma, o episódio da Rusga se deu de fora para dentro, ou seja, o motor do conflito
eram as indisposições entre “adotivos e nativos”, desencadeadas em outras partes
do país e que penetraram na província de Mato Grosso e ali fizeram eco.
Nesse segundo viés interpretativo da Rusga se encontram alguns
representantes do Instituto Histórico de Mato Grosso, como Philogonio Corrêa,
Virgílio Corrêa Filho, Firmo Rodrigues, Franklin Cassiano e José de Mesquita.
As narrativas, como as elaboradas por Leverger, Joaquim Ferreira
Moutinho e Taunay, por exemplo, se sustentaram nas adjetivações que todo
processo crime impunha aos revoltosos: “sanguinários, facinorosos, traidores da
nação”, de modo a construir uma imagem negativa do povo cuiabano, como
“desordeiro” e, claro, fundamentada na superioridade do povo português residente
no país (adotivos), com quem eles talvez tivessem que aprender, o que
expressamente exemplifica o lugar social da fala desses dois personagens enquanto
lusitanos e descendentes de brasileiros que desempenhavam funções no Brasil.
Augusto Leverger, por exemplo, na obra Apontamentos cronológicos
sobre a província de Mato Grosso, narra a maneira violenta como se materializou
o conflito entre nativos e adotivos, onde:
236
nascidos em Portugal menores de 60 anos fossem mandados sair
da província, devendo por se em caminho dentro de 24 horas.
Os amotinados cometeram atrocidades inauditas – cortaram as
orelhas e partes pudendas das vítimas, queimaram cadáveres,
violaram esposas e outros atos de selvageria.
Aquela deliberação do Conselho e as ordens que se expediram
em cumprimento dela deram lugar à caça que se fez dos adotivos,
que se mataram onde eram encontrados. A pretexto de que
pretendiam resistir, expediram escoltas para persegui-los e
ameaçaram-se os brasileiros natos que deram couto.
Foram mortas 33 pessoas, sendo 3 brasileiros e 30 adotivos395.
395
LEVERGER, Augusto. Apontamentos cronológicos sobre a província de Mato Grosso. Revista
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, vol. 205, out./dez.1949, p. 350.
396
Se por um lado a mutilação das orelhas era uma forma de indicar a condição racial de adotivo,
uma vez que essa parte do corpo denunciaria, pela cor da pele, a sua origem. A mutilação do pênis,
por outro lado, atentava contra a virilidade masculina dos adotivos tratava-se de produzir um
rebaixamento do homem, de sua masculinidade e força. O falo representa força, ação, violência. Daí
todas as analogias em relação ao pênis e armas de ataque, como: pau, espada, cacete etc. Sobre a
produção de masculinidade e o falo, Cf. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Nordestino:
uma invenção do falo. Maceió: Catavento, 2003.
237
portuguez [sic], queimamos muitos documentos que dizião [sic] respeito aos
negócios de 1834”397.
A queima de documentos referentes ao episódio certamente estaria
relacionada a alguma imagem que os portugueses não queriam que viesse a público,
ou provocando deliberadamente o apagamento da memória legada pelos
estrangeiros, especialmente lusitanos, sobre a Rusga. Em todo caso, esse tipo de
possibilidade não foi aventada por Moutinho ao não dar ênfase descritiva ao
acontecimento, o que certamente não o impossibilitou de se posicionar sobre o
assunto:
397
MOUTINHO, Joaquim Ferreira. Notícia sobre a Província de Mato Groso seguida d'um roteiro
da viagem da sua capital a São Paulo. São Paulo: Typographia de Henrique Schroeder, 1869, p. 11.
398
Ibid., p. 10.
238
divino sobre um desses cuiabanos envolvidos na “Rusga”. Tal episódio é narrado
da seguinte maneira:
399
Ibid., p. 11.
239
[...] Desde os primeiros tempos da Independência, os
portugueses, bastante numerosos em Mato Grosso e sobretudo
concentrados na cidade de Cuiabá, se haviam tornado alvo de
inveja e malquerença, já pela indisputável preponderância
comercial, já por vexatória influência política, confirmada e
ampliada pela Constituição de 25 de março de 1824, que lhes
dera a feição de brasileiros adoptivos com todas as regalias de
cidadãos natos.
A prosperidade de alguns dentre eles, como o tenente coronel
José Joaquim Ramos, José Teixeira de Carvalho, Francisco
Manoel Vieira, Bernardino José Vieira, José Coelho Lopes,
Manoel José Moreira, José Teixeira de Carvalho, major Joaquim
Duarte Ribeiro e outros particularmente excitava a cobiça e o
rancor de não poucos filhos do país também negociantes, sendo
o sentimento de odiosidade aumentado pela imprudência [...] dos
adoptivos, habituado ao mando dos tempos coloniais, duro e
áspero, sobretudo nas capitanias mais distantes.
Desse fermento já houvera manifestações bem claras naquele ano
de 1824, acentuando-se mais a 7 de dezembro de 1831400.
400
TAUNAY, Visconde de. A Cidade de Mato Grosso. Rio de Janeiro: Typ. Universal de Laemmert,
1891, p. 103.
401
Sobre a construção imagética de Taunay sobre Mato Grosso em consonância com a formação da
identidade nacional brasileira, ver: CASTRILLON-MENDES, Olga Maria. Taunay Viajante:
construção imagética de Mato Grosso. Cuiabá: EdUFMT, 2013.
240
uma narrativa que conferiu uma proeminência lusa vitimizadora dos portugueses
em face às violências perpetradas pelos cuiabanos.
Esse tipo de discurso inferia à Rusga uma natureza “vil, mesquinha,
ignóbil e baixa” aos cuiabanos e aos seus seguidores em relação aos estrangeiros,
tensão entre civilização e barbárie que, curiosamente, não foi pensada em termos
de uma “guerra civil”, aspecto esse negligenciado também em outras produções
historiográficas (inclusive as produções mais atuais).
Essa inteligibilidade da “guerra civil”, a nosso ver omissa, tanto na
versão elaborada pelos intérpretes da segunda metade do século XIX, como pelos
que descreveram o movimento primeira metade do século XX, demonstrando que
o confronto da “Rusga” não foi visto e tampouco pensado enquanto uma “guerra
interna”, uma “guerra fratricida”, preferindo, de um lado, enfatizar a importância
do elemento “estrangeiro” na cultura brasileira e na crueldade dos cuiabanos, e, de
outro lado, serviu para enfatizar o protagonismo cuiabano em face ao “peso da
estrutura colonial” nos postos de mandonismo local, os quais os rebeldes buscavam
assumir.
A “sedição, a anarquia, a rebeldia”, enfim, foram elementos constantes
nos discursos oficiais sobre o evento e que criaram condição propícia para que uma
visão aterradora do movimento fosse construída no imaginário de pessoas do porte
de um Leverger, Moutinho e Taunay, no século XIX, visão que construiu uma
imagem pejorativa do povo cuiabano ligada ao sentimento de aversão ao estrangeiro
como uma de suas características intrínsecas e natural caracterizando-os enquanto
“povo dado à violência”.
Curiosamente, os primeiros posicionamentos em forma de narrativa e
de pesquisa histórica foram escritos por pessoas cujas ligações familiares
descendiam de estrangeiros (Moutinho, proveniente de família portuguesa e
Leverger e Taunay descendiam de franceses), o que ajuda a entender a centralidade
conferida ao processo de violência cometida contra os “adotivos” em face à
“selvageria cuiabana”.
Por outro lado, nas primeiras décadas do século XX, firmando uma
narrativa a partir do lugar social dos mato-grossenses, verificou-se a produção de
uma historiografia a cargo do IHGMT, construtora de uma outra versão sobre o
241
evento de 1834, atrelada à imagem “pacífica e acolhedora do povo cuiabano”, a
qual frisava que o episódio da “Rusga” foi, sem dúvida, um sintoma do que estava
ocorrendo em todo o país naquele momento. Nesse sentido, no texto A significação
da Rusga, Philogonio Corrêa conferiu positividade aos cuiabanos ao salientar que:
402
CORRÊA, Philogonio. A significação da Rusga. Revista do Instituto Histórico Geográfico de
Mato Grosso. Cuiabá, t. XXXI/XXXII), 1934, p. 6.
403
Região da África do Sul anexada ao domínio britânico desde 1902. Cf. AJAYI, J.F. História
geral da África, VI: África do século XIX à década de 1880. Editado originalmente por J. F. Ade
Ajayi. Brasília: UNESCO, 2010.
242
Essa dimensão de uma narrativa de “conciliação” certamente era uma
tônica de quase todos os membros do Instituto Histórico e Geográfico404 no período
e,
404
Em relação aos propósitos de nossa pesquisa, não vamos adentrar em todas as produções
referentes à temática da “Rusga” e produzidas no IHGMT, pois, ao nosso ver, esse tipo de
abordagem historiográfica exigiria uma discussão aprofundada com outros intérpretes do Brasil na
primeira metade do século XX ( Gilberto Freyre, Paulo Prado e Sérgio Buarque de Holanda), cujas
narrativas materializavram a necessidade de se compreender a nossa identidade nacional, os entraves
que nos impediam de chegar à constituição de uma nação desenvolvida, nos moldes da nação norte-
americana etc, Cf. RAGO, Margareth. Sexualidade e Identidade na historiografia brasileira. Revista
Resgate. Campinas, v. 6, n. 1, p. 59-74, 1997.
405
PERARO, Maria Adenir; BORGES, Fernando Tadeu Miranda. Revisitando o Centenário da
Rusga na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso (IHGMT) de 1934. In: Rusga:
uma rebelião no sertão: Mato Grosso no Período Regencial (1831-1840). Ernesto Cerveira de Sena
e Maria Adenir Peraro (Org.). Cuiabá: EdUFMT, 2014, p. 50.
243
Curiosamente, essa perspectiva de pensar a “Rusga” como uma guerra
civil não alcançou a mesma visibilidade nessas narrativas que se construíram sobre
o evento, porém, ela, de certa maneira, já estava presente em alguns documentos do
período, como o descrito por Joaquim José de Almeida, ex-comandante das armas
da província de Mato Grosso, em julho de 1834:
406
SIQUEIRA, Elizabeth Madureira. Op. cit. p. 363-363.
244
cotidiano “tranquilo e pacífico” experimentado até então pela província de Mato
Grosso. Nessa perspectiva, o pacto teria sido rompido e exigia-se uma reparação,
ou, em outras palavras, vingança, o que certamente em termos legislativos não
condizia com o novo código penal do Império de 1830.
Curiosamente, a exigência por “vingança” e não por “justiça” nos
chamou a atenção, pois, diante da violação da lei, o que deveria ser exigido seria o
julgamento e punição aos culpados que violaram a lei e quebraram o pacto social
previsto pelo referido código penal. No caso de sedições e insurreições, o referido
código previa respectivamente:
SEDIÇÃO:
Art. 111. Julgar-se-ha commettido este crime, ajuntando-se mais
de vinte pessoas, armadas todas, ou parte dellas, para o fim de
obstar á posse do empregado publico, nomeado
competentemente, e munido de titulo legitimo; ou para o privar
do exercicio do seu emprego; ou para obstar á execução, e
cumprimento de qualquer acto, ou ordem legal de legitima
autoridade.
Penas - Aos cabeças - de prisão com trabalho por tres a doze
annos.
Art. 112. Não se julgará sedição o ajuntamento do povo
desarmado, em ordem, para o fim de representar as injustiças, e
vexações, e o máo procedimento dos empregados publicos.
INSURREIÇÃO
Art. 113. Julgar-se-ha commettido este crime, retinindo-se vinte
ou mais escravos para haverem a liberdade por meio da força.
Penas - Aos cabeças - de morte no gráo maximo; de galés
perpetuas no médio; e por quinze annos no minimo; - aos mais -
açoutes.
Art. 114. Se os cabeças da insurreição forem pessoas livres,
incorrerão nas mesmas penas impostas, no artigo antecedente,
aos cabeças, quando são escravos.
Art. 115. Ajudar, excitar, ou aconselhar escravos á insurgir-se,
fornecendo-lhes armas, munições, ou outros meios para o mesmo
fim.
Penas - de prisão com trabalho por vinte annos no gráo maximo;
por doze no médio; e por oito no mínimo407.
407
LEI DE 16 DE DEZEMBRO DE 1830 que determinava o código criminal do Império do Brasil.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm. Acessado em
06/02/2018. A “Rusga” curiosamente guarda uma estranha proximidade entre sedição e insurreição,
pela natureza do movimento e de seus participantes. Cf. SIQUEIRA, Elizabeth Madureira. Op. cit.
245
Ainda sobre o discurso de Joaquim José de Almeida, percebe-se uma
omissão deliberada no sentido de que, ao ocupar um cargo militar, certamente não
ignorava os movimentos que estavam acontecendo em vários pontos do país e que,
para um oficial como ele, não poderiam passar desapercebidos, pois a exigência de
passaportes nas regiões conflituosas dava prova desse conhecimento.
Na perspectiva defendida na presente tese sobre a emergência de um
dispositivo biopolítico, busca-se dar visibilidade a esse elemento da “guerra civil”,
pois mobilizou diferentes operadores materiais de dominação e enfrentamento.
Com isso, a reciprocidade dos diferentes agentes históricos, com suas “vidas postas
em risco” diante da exposição aos embates que se travariam, das mortes que
certamente ocorreriam e das punições que poderiam advir dessas “insurreições ou
sedições”, enfim, surgia a figura do “inimigo interno da população, ou do inimigo
interno do Estado”.
Não se trata de negar as tensões entre “adotivos e nativos”, tampouco
omitir a violência e a participação popular, ou mesmo conferir demasiada
centralidade, ou centralidade às elites. Trata-se de pensar exatamente esse jogo
discursivo em que era evidente a problemática do “inimigo interno” que,
mobilizado por diferentes discursos, conferia um ao outro, reciprocamente, o lugar
de inimigo interno da nação, no caso específico da sociedade cuiabana e mato-
grossense de modo geral.
Diante dessa problemática do inimigo interno, a dimensão de “guerra
civil” começava efetivamente gerar uma tensão entre a população, a qual passou a
ser vista como perigosa, e o Estado interpretado, por muitos, como uma instância
digna de desconfiança.
Vê-se com isso o surgimento do uso estratégico do medo na gestão das
condutas da população mato-grossense, incitado pelo fantasma do evento, o que,
até certo ponto, justifica a construção de um campo de ação política que tentasse
apagar da memória o elemento de desarmonia e desconfiança da população em
relação ao Estado.
Diante dessa situação, o movimento de maio de 1834 ativou uma
preocupação com a “periculosidade” da população em face ao ideal de unidade
246
nacional, primado pela harmonia, tranquilidade e sossego público, e, diante disso,
projetasse mecanismos de contenção e regulação dessa força pulsante da população.
O processo de construção da ordem, em meio às “guerras civis” que
“pipocavam” em diferentes pontos do país, a ideia de “inimigo interno” ou “de
inimigo social” começava a ganhar corpo no seio da população, sendo necessário
se defender contra isso. “Assim, a defesa da sociedade está ligada, pelo fato de ser
pensada, no fim do século XIX, como uma guerra interna contra os perigos que
nascem do próprio corpo social”408.
O movimento da Rusga é significativo no sentido de que os elementos
de uma guerra pensada como continuação da política são bem visíveis, onde o
enunciado de inimigo interno, polarizado entre “nativos e adotivos”, foi deslocado
para pensar os cidadãos, os habitantes com suas condutas e seus modos de vida,
fazendo-se necessário introduzir, agora, uma organização administrativa e política
de construção da ordem, incorporando nessa política os elementos táticos e
estratégicos da guerra:
408
SENERLAT, Michel. Op. cit., p. 514.
247
declarar como episódios, fragmentações, deslocamentos da
própria guerra. Sempre se escreveria a história dessa mesma
guerra, mesmo quando se escrevesse a história da paz e de suas
instituições409.
409
FOUCAULT, Michel. Op. cit., p. 22-23.
248
No discurso do presidente de província Antonio Pedro de Alencastro,
pronunciado no dia 3 de julho de 1835, já se colocava na agenda política por assim
dizer, a problemática da instrução pública, ao expressar abertamente a importância
dela na formação de “bons cidadãos”, em contraposição ao “estado calamitoso” em
que se encontrava:
410
ALENCASTRO, Antonio Pedro de. Discurso recitado pelo exm. presidente da provincia de
Matto-Grosso, Antonio Pedro d'Alencastro, na abertura da primeira sessão ordinaria da Assembléa
Legislativa Provincial, em o dia 3 de julho de 1835. Cuiabá: Typ. Provincial, 1845, p. 4.
249
possível que o Presidente da Província possa presidir a exames,
fiscalizar escolas, descer a outras minuciosidades.
É certo que, quanto a fiscalização, as Câmaras Municipais
tomarão parte nela; mas a respeito tais corporações não têm sido
exatas411.
411
Ibid., p. 4.
250
solicitude, zelo, e patriotismo que se deve esperar o impulso desta
aquisição em proveito da mocidade Cuiabana412.
412
Ibid., p. 4-5.
413
As escolas de ensino mútuo baseavam-se no método criado por Joseph Lancaster, na Inglaterra.
414
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento das prisões. Tradução de Raquel Ramalhete.
Petrópolis: Vozes, 1987, p. 139-140.
251
A importância desse método, como demonstrou a pesquisadora Maria
de Fátima Neves, adivinha de questões que incialmente ultrapassavam a
problemática pedagógica propriamente dita, pois era viável economicamente e
podia prontamente sanar o problema da falta de professores, confiando também o
processo de aprendizagem aos alunos mais adiantados:
415
NEVES, Maria de Fátima. O método lancasteriano e o projeto de formação disciplinar do povo.
Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual Paulista. Assis, 2003, p. 44.
416
Note-se que o Decreto de 14 de junho de 1830, o qual versava sobre a instrução pública em São
Paulo e Rio de Janeiro, não dizia respeito a essa temática em relação a todas as províncias do
Império. Nesse sentido, é significativo que Antonio Pedro de Alencastro, chegado da província do
Rio de Janeiro para acompanhar o processo da Rusga, tenha se pautado nesse decreto para começar
a organizar o ensino na província. Cf. O DECRETO DE 14 DE JUNHO DE 1830 APROVAVA A
CRIAÇÃO DE DIFERENTES CADEIRAS DE PRIMEIRAS LETRAS NAS PROVÍNCIAS DO
RIO DE JANEIRO E S. PAULO E MARCAVA OS ORDENADOS DOS PROFESSORES
DISPONDO O LIMITE DE SEUS PROVIMENTOS. In: Colleção das Leis do Império do Brazil
de 1830. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1876, p. 2.
252
provimentos em 150.000 réis, bem como a exigência de pessoas habilitadas para
exercer a docência, e somente no caso de não haver é que se admitiriam aqueles
sem a devida formação, desde que dessem provas de idoneidade.
O discurso de Antônio José da Silva, pronunciado em 2 de março de
1836, até então vice-presidente da província, retomava as mesmas preocupações
aventadas por Alencastro sobre a importância da instrução pública e do pouco
desenvolvimento em que a mesma se encontrava no momento, mas ele é mais
incisivo em relação à problemática da ociosidade e da instrução enquanto
mecanismo de combatê-la:
417
SILVA, Antonio José da. Discurso recitado pelo exm. vice-presidente da provincia de Matto-
Grosso, Antonio José da Silva, na abertura da segunda sessão ordinaria da Assembléa Legislativa
Provincial, em o dia 2 de março de 1836. Cuiabá: Typ. Provincial, 1845, p. 3-4.
253
“nem toda forma de sujeição era inimiga da liberdade”. Diante dessa preocupação,
a Lei no 29, de 5 de setembro de 1835 atuou como uma estratégia importante, pois
agia diretamente na mocidade:
418
LEI PROVINCIAL Nº 29, DE 5 DE SETEMBRO DE 1835, P. 1. Disponível em:
https://www.al.mt.gov.br/storage/webdisco/leis/lim-29-1835.pdf. Acessado em 10/01/2018
254
No mesmo ano de 1836, Antonio Pimenta Bueno, ainda desdobrando o
discurso de Antonio José da Silva em relação à importância da instrução pública,
especialmente a educação moral e cívica da população mato-grossense, por meio
de um ato de força e de sujeição dizia que:
419
BUENO, Antonio Pimenta. Discurso recitado pelo exm. presidente da provincia de Matto-
Grosso, Antonio Pimenta Boeno, na abertura da sessão extraordinária da Assembléa Legislativa
Provincial, no dia 30 de novembro de 1836. Cuiabá: Typ. Provincial, 1845, p. 15-16.
420
Vale ressaltar que a questão da catequese já era recorrente desde o período colonial, mas naquele
momento (1836) tal função já era vista enquanto atribuição de políticas de Estado e não mais uma
prerrogativa dada exclusivamente à Igreja. Nesse sentido, a Igreja, deixava de ser uma funcionária
da Coroa passando a atuar em parceria ao Estado Liberal no controle das condutas dos índigenas,
processo que representou uma perda de autonomia da autoridade religiosa em prol de um Estado
laico, iniciado com a expulsão dos jesuítas em 1759. Vide Capítulo 2 da presente tese.
421
Fruto peco é o que cai do pé antes de amadurecer, fica ruim para comer.
255
[grifos meus], e os princípios morais da liberdade por isso em
perigo, como por vezes já tem sido, de servir a interesses
privados criminosos contra a causa pública, contra as próprias
vítimas que os secundão. E não são somente nossas instituições
que reclamam o emprego de todos os recursos na organização e
aperfeiçoamento da instrução primária.
A voz de todos os melhoramentos materiais e morais é uníssona
em exigi-los.
O agricultor embora tenha na Província solo rico, clima fecundo,
não há de poder tirar dele todo o proveito, sem que se lhe feneçam
os meios de poder estudar o aperfeiçoamento de seus
instrumentos, preparar o terreno, melhorar a criação dos seus
animais; e isto que com ele acontece, verifica-se com todos os
demais, que exercem qualquer outro ramo de indústria, cujo
incremento tanto influi por seus resultados sobre a moral pública.
Sem a instrução primaria, que é a chave de comunicação do
mundo civilizado, dele retirados ignoram os homens os primeiros
princípios de suas profissões, e atados unicamente as noções, que
uma vez receberam, conservam-se estacionários, renunciando,
a maneira dos nosso Índios [grifos meus] toda a ideia de
melhoramentos, que lhes parecem sonhos422.
422
BUENO, Antonio Pimenta. Discurso recitado pelo exm. presidente da provincia de Matto-
Grosso, José Antonio Pimenta Boeno, na abertura da terceira sessão ordinaria da Assembléa
Legislativa Provincial, em o dia 1.o de março de 1837. Typ. Provincial de Cuiabá, 1845, p. 5-6.
256
parecia mais distante quanto mais perto estavam de Mato
Grosso423 [...]
423
GALETTI, Lylia da Silva Guedes. Sertão, Fronteira, Brasil: imagens de Mato Grosso no mapa
da civilização. Cuiabá/MT: Entrelinhas; EdUFMT, 2012, p. 102.
257
Segundo a lei de 15 de outubro de 1827, e lei provincial n.9 de
12 de agosto de 1835 acham-se criadas 14 Cadeiras de Primeiras
Letras para o ensino de meninos, e 4 para o de meninas nos
Municípios e Paróquias, que demonstra a relação n.2 de todas as
18 Cadeiras apenas estão providas 6, não tendo quase todos esses
Professores a necessária aptidão!
A simples exposição de semelhante estado da instrução
elementar é bastante para contristar, e fazer sentir a necessidade
imperiosa de empregar todos os recursos capazes de dar ânimo,
e organização a base de toda a civilização424.
424
Ibid., p. 4-5.
425
Ibid., p. 6.
426
Ibid.
258
Esses problemas acabaram por criar uma espécie de ciclo vicioso que
era preciso resolver, uma vez que os salários baixos não estimulavam profissionais
a se dedicar à docência, e os que estavam na função não se sentiam ameaçados em
seus cargos, pois não havia concorrentes que pudessem assumir a atividade.
Visando diminuir esse estado de coisas e regulamentar a instrução
pública, ainda sob o governo de Pimenta Bueno, foi sancionado a Lei de 5 de maio
de 1837427, composta de 45 artigos os quais preconizavam criar mecanismos de
controle na implantação das escolas públicas, suas modalidades de ensino,
habilitações necessárias aos professores, suas suspensões, remoções e demissões,
mas também a regulamentação das inspeções sobre as escolas e exames dos alunos,
e, ao final, dispondo sobre as obrigações dos pais de família em relação à instrução
primária. Assim se apresentava a seguinte lei:
427
Cf. LEI PROVINCIAL Nº 8, DE 5 DE MAIO DE 1837. Disponível em:
https://www.al.mt.gov.br/storage/webdisco/leis/lim-8-1837.pdf. Acessado em 10/01/2018.
428
Ibid., p. 6.
259
diversas causas, que empecem os progressos do estudo primário,
e por consequência do desenvolvimento intelectual da mocidade:
a proporção que ela for tendo execução iremos obtendo
melhoramento429.
429
BUENO, Antonio Pimenta. Discurso recitado pelo exm. presidente da provincia de Matto-
Grosso, José Antonio Pimenta Boeno, na abertura da primeira sessão da segunda legislatura da
Assembléa Provincial, em o dia 1.o de março de 1838. Cuiabá: Typ. Provincial, 1845, p. 6.
430
Ibid. p. 5-6.
431
REZENDE, Estevão Ribeiro de. Acta com que o Presidente da Província de Mato Grosso fez a
abertura da Segunda Seção Ordinária da Segunda Legislatura da Assembleia Provincial no dia 2
de março de 1839, p. 7-8. (manuscrito)
260
Novamente, a classe menos abastada foi vista com indiferença em
relação aos estudos e aos prazeres do homem civilizado. Diante disso, o que
propunha Ribeiro Rezende em relação à vida desse segmento interiorizado da
população era, na verdade, um maior rigor na aplicação daquela lei e que esta
também incidisse sobre os pais dos alunos de camadas mais pobres:
432
LEI PROVINCIAL Nº 8, DE 5 DE MAIO DE 1837. Op. cit., p. 5.
261
acarretaria em multas, mecanismo que isentava os pais de alunos pobres. Tal
situação criava um ciclo vicioso exposto no relatório do presidente de província
Ribeiro de Rezende, em 1º de março1840:
433
REZENDE, Estevão Ribeiro de. Discurso que recitou o exm. snr. doutor Estevão Ribeiro de
Rezende, presidente desta provincia, na occasião da abertura da Assembléa Legislativa Provincial
no dia 1.o de março do corrente anno. Cuyabá: Typ. Provincial, 1840, p. 8.
434
Cf. RESOLUÇÃO PROVINCIAL Nº 2, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1836. Disponível em:
https://www.al.mt.gov.br/storage/webdisco/leis/rsi-2-1836.pdf. Acessado em: 10/02/2018
262
ministrassem as aulas no segundo grau, os quais receberiam entre trezentos e
quinhentos mil réis, podendo haver complementação salarial através das
bonificações oferecidas pelo governo, tendo por base o número de alunos, ou
mesmo serem oferecidas espontaneamente pelos pais de alguns alunos que
quisessem gratificá-los. No entanto, seria cabível de punição aos professores se
constatada a concessão de privilégios ao ministrarem as aulas aos filhos de pais
mais abastados.
Pelo o que diz respeito aos alunos pobres, a Lei no12 de 6 de maio de
1839, estabeleceu que, para os alunos das camadas mais pobre da população, o
conteúdo escolar poderia ser reduzido. Assim, entre as despesas orçadas em relação
a instrução pública temos:
435
LEI PROVINCIAL Nº 12, DE 6 DE MAIO DE 1839, QUE ORÇA RECEITA E DESPESA
PARA O ANO FINANCEIRO DE 1 DE JULHO DE 1839 A 30 DE JUNHO DE 1840, p. 2.
Disponível em: https://www.al.mt.gov.br/storage/webdisco/leis/lim-12-1839.pdf
263
Ainda em relação à Lei no 8, de 1837, essa fiscalização caberia ao
Inspetor Especial, nomeado pelo Inspetor Geral dos Estudos Públicos da Capital e
Província, a quem competia:
436
LEI PROVINCIAL Nº 8, DE 5 DE MAIO DE 1837. Op. cit., p. 4.
264
desenvolvimento da província, ou começassem a sair da indolência e ociosidade
para se dedicar ao trabalho.
Note-se, portanto, que toda a problemática da instrução pública
dependia do investimento na moralidade do trabalho, moldando novos hábitos e
costumes a esse princípio, o que, certamente, incluía também a catequese dos
índios. A seguir, discutiremos mais detidamente a problemática da catequese
indígena em face à problemática do trabalho.
437
SILVA, Jovam Vilela. Tom sobre tom: o ouro vermelho no contexto do povoamento brasileiro.
Povoamento, população (etnias) e demografia no período colonial brasileiro. Revista Coletâneas de
Nosso Tempo. Cuiabá, v. 1, n. 1, 1997, p. 49.
265
Agora, diante de uma realidade de país independente, a problemática
dos povos indígenas foi colocada sob o prisma da civilização e do pensamento
liberal, assumidos naquele momento pelos políticos do período regencial enquanto
mecanismo de “integração” das nações indígenas ao mundo do trabalho, incluindo
também as camadas menos abastadas da população, ensejando a configuração
enquanto premissa da riqueza das Nações.
Esse princípio de positividade do corpo indígena que se assumia nas
regências e que foi implantado pelos presidentes de província de Mato Grosso nas
décadas de 1830, se apresentou como tentativa de descontinuidade em relação à
visão “declaradamente de extermínio”, estabelecida em relação aos índios
Botocudos, proposta pela carta régia de 1808 em que:
438
D. JOÃO VI. CARTA RÉGIA - DE 5 DE NOVEMBRO DE 1808: SOBRE OS ÍNDIOS
BOTOCUDOS, CULTURA E POVOAÇÃO DOS CAMPOS GERAIS DE CURITIBA E
GUARAPUAVA. In: Coleção das Leis do Brasil de 1808. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1891,
p. 157-158.
266
sentido, discursava o presidente da província de Mato Grosso, Saturnino da Costa
Pereira:
439
DISCURSO DO SR. SATURNINO NA SEÇÃO DE 13 DE MAIO DE 1830. Op. cit., p. 108.
440
Cf. ALENCASTRO, Antonio Pedro de. Discurso de 3 de julho de 1835. Op. cit., p. 5.
267
nação Caiapó, emigrada da província de Goiás para a de Mato Grosso, nas
imediações desses rios.
Por essa lei percebe-se que, ao mesmo tempo em que se buscava criar
condições de integrar as nações Caiapó que fugiram de Goiás, objetivava-se
também integrar uma estratégia de povoamento e colonização nas áreas fronteiriças,
por meio de estradas e rios.
Diante desse cenário, o trabalho indígena e das camadas marginalizadas
da população seria de fundamental importância no bojo do projeto, vislumbrando
com essa proposta o combate a um modo de vida caracterizado, pelos discursos
enquanto ocioso, errante e desregrado, por meio de mecanismos de disciplinamento
com base nas forças policiais convocadas em seu auxílio, bem como pela ação da
catequese. Assim, no:
441
LEI PROVINCIAL Nº 7, DE 12 DE AGOSTO DE 1835, p. 1. Disponível em:
https://www.al.mt.gov.br/storage/webdisco/leis/lim-7-1835.pdf. Acessado em 10/01/2018
268
construir edifícios obedecendo um padrão simétrico, regular e nivelado de terreno,
tornando o espaço um lugar salubre.
O discurso da salubridade foi utilizado tendo por base a problemática
europeia de civilização, a qual buscava disciplinar a população que passaria a ser
composta por indígenas e colonos que para lá fossem trabalhar na construção de
estradas, ou na navegação pelos rios, tanto um como outro, indispensáveis na
comunicação e abastecimento entre as províncias.
Certamente, tal medida legislativa não visava somente oferecer moradia
aos Caiapó, o que foi evidenciado nos artigos seguintes da referida lei, que oferecia
incentivo a todos aqueles que quisessem se estabelecer na região:
442
Ibid., p. 2.
269
Artº. 6º. A Administração finanças economia e policia da Colonia
será confiada a hum Director, que terá para o coadjuvar aquelles
Empregados subalternos, que o Governo Provincial julgar
indispensáveis.
Artº. 7º. O Governo nomeará o Director e mais Empregados
assignar-lhes-há ordenados, que serão submetidos a approvação
d’ Assembléa Legislativa Provincial, e dará as instruções
regulamentares para o regimento da Colonia.
Artº. 8º. A jurisdição Policial, conferida no Artigo sexto ao
Director, cessará logo que a Colonia e suas immediações
contiverem numero de fogos (não comprehendidos os dos
colonos indigenaes) para ter hum Juiz de Paz.
Artº. 9º. Fica desde já creada huma Parochia na referida Colonia,
e o Parocho para ella nomeado vencerá a Congrua de trezentos
mil reis, e terá huma Caza de rezidencia com seu quintal a custa
da Fazenda Publica Provincial que passara aos seus sucessores, e
ao primeiro se dará em propriedade e a sua escolha hum terreno
que todavia não excederá a de huma Sesmaria443.
443
Ibid., p. 1-2.
444 O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro lembra que uma das principais características da
maioria dos Tupinambá, por exemplo, é a inconstância de sua alma, pois sua organização social
valorizava a afinidade relacional (da relação das pessoas com o mundo) e não uma identidade
substancial, que é examente o que os missionários da colônia vão tentar impor e depois o Estado
imperial, aos moldes de um homem disciplinado ao trabalho regrado. Cf. CASTRO, Eduardo
Viveiros de. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac
& Naify, 2002.
445
O mesmo presidente de Província Pimenta Bueno revogou a Lei nº 7, de 12 de agosto de 1835,
substituindo-a pela de no 4, de 19 de abril de 1837, onde a tônica do disciplinamento e moralidade
das condutas persistia. Cf. LEI PROVINCIAL Nº 4, DE 19 DE ABRIL DE 1838. Disponível em:
https://www.al.mt.gov.br/storage/webdisco/leis/lim-4-1838.pdf. Acessado em 10/01/2018.
270
Temos tirado não pequena vantagem para o serviço e defesa do
Baixo Paraguai dos Guatós, Laianas, Terenas e Quiniquinaos, e
Guanás: a boa índole e serviços dos Apiacás, prometem nos
igualmente interesses na navegação do Juruena para o Pará:
assim como prometiam as tribos dos Jacarés e Caripunas na
povoação do Ribeirão, e navegação pelo Guaporé446.
446
BUENO, Antonio Pimenta. Discurso recitado em 1º de março de 1837. Op. cit., p. 18.
271
ótimos canais, que desaguam nos foços que formam as suas
primeiras linhas de defesa, quais são os importantes rios
Paraguai, Jaurú, Guaporé, Mamoré, e Madeira, e pelos quais,
assim como pode entrar-se pelo interior dos territórios daqueles
Governos, pode-se também avançar até o interior do Brasil por
muitos diferentes pontos, de nada precisa tanto como de uma
população que lhe ministre forças447.
447
Ibid., p. 18-19.
448
Ibid., p. 19.
272
colonial, fizeram com que os nativos ficassem de certa maneira coagidos a aceitar
os ditos “presentes” oferecidos. Em seguida, o referido governante concluía:
449
Ibid., p. 19-20.
273
da “guerra justa” irão se perpetuar. Nesses termos expressava o presidente de
província Estevão Ribeiro de Rezende, em 1839:
450
REZENDE, Estevão Ribeiro de. Acta com que o Presidente da Província de Mato Grosso fez a
abertura da Segunda Seção Ordinária da Segunda Legislatura da Assembleia Provincial no dia 2
de março de 1839, p. 60-62. (Documento Manuscrito).
274
anteriormente, se tratava dos “brindes e da guerra justa”, o que expressou a
imposição de uma cultura tida como hegemônica sobre essas existências concebidas
enquanto menores.
Expressava-se nesse tipo de posicionamento uma parcialidade em
relação às tensões entre os indígenas e os povoados da província. Nesse caso,
percebe-se uma construção imagética em que as terras, as riquezas minerais, o solo
e suas potencialidades para a agricultura e pecuária foram pensados exclusivamente
do ponto de vista dos fazendeiros e sitiantes, e que as nações indígenas, como as
dos Cabixi, Pareci e Cabaçal, por exemplo, só atrapalhavam o seu desenvolvimento,
pois, no momento em que realizavam a “invasão”, sem, contudo levar em
consideração que tais áreas já eram habitadas pelos próprios indígenas.
No discurso de 1º de março 1840, Estevão Ribeiro de Rezende
descrevia os ataques indígenas em “correrias” realizadas pelos Coroado:
451
REZENDE, Estevão Ribeiro de. Discurso de 1º de março de 1840. Op. cit., p. 15.
275
Tal situação atrelava a questão indígena à problemática do trabalho que
estava se formando no país e que certamente chegara à capitania de Mato Grosso,
caracterizada por ser uma área de fronteira e de sertão, uma grande porção territorial
habitada por índios e demograficamente pouco povoada por “brasileiros”, e que
fazia divisa com outros países, como Paraguai e Bolívia. Nesse cenário, a qualidade
dos indígenas era medida e avaliada de acordo com o grau de assujeitamentos à
cultura imposta, ou seja, aos “serviços prestados” à província, “premiando-os com
brindes”:
452
Ibid., p. 64.
276
vocação para a agricultura, comem pães criar neles as nossas
necessidades, e hábitos, educa-los e bem depressa tornaram
amar ao trabalho assíduo, e as suas colheitas, e lavouras hão
de abastecer o lugar e auxiliar as viandantes. [grifos meus]
Além de muitas outras coisas pede com instância o Diretor do
Aldeamento instrumentos agrários para ser dividido pelos Índios,
a construção de um moinho e assistência de vestuário453.
453
Ibid., p. 66-67.
454
Ibid., p. 68.
277
A gestão da vida indígena era atravessada por discursos e ações práticas
que retomavam antigas formas de dominação colonial, como os “brindes e as ações
das bandeiras”, mas, nos oitocentos a problemática do trabalho começava a ganhar
cada vez mais consistência nas atividades provinciais.
Nesse sentido, a instrução coadunava-se com a da catequese, uma vez
que a justificativa para a intervenção e regulação das populações da província era
formalizada por discursos que buscavam acompanhar os ideais da ilustração e do
utilitarismo das luzes, enfim, da civilização, embora algumas vezes tivessem que
recorrer à guerra. Sobre esse ponto, em seu discurso de 1840, Estevão Ribeiro de
Rezende expressava que:
455
Estevão Ribeiro de Rezende se refere às quatro nações que ele teve que organizar bandeiras a fim
de conter os seus ataques, são elas: Cabixis, Parecis, Cabaçais e Coroados apresentados nos seus
relatórios de 1839 e 1840.
456
Ibid., p. 17.
278
Com isso esperavam também combater a ociosidade, a preguiça, a
indolência e a comodidade características da população mato-grossense mais pobre
e indígena, em prol de uma província que começava a se organizar em termos de
trabalho regrado e disciplinado.
279
As ressonâncias que a “Rusga” provocou na organização política foram
marcantes e na contramão de uma política de apaziguamento introduzida já nos
primeiros relatórios dos presidentes de província ao falarem da paz, da segurança e
da tranquilidade de que gozava a província, o que contrastava com a imagem
negativa do evento.
Assim, por exemplo, vale lembrar que o presidente Antonio Pedro de
Alencastro, no mesmo discurso, de 3 de julho de 1835, impingiu termos pejorativos
ao movimento, taxando os seus partícipes de “facinorosos, anarquistas, inimigos da
nação”, enfim, anunciava:
457
ALENCASTRO, Antonio Pedro de. Discurso de 3 de julho de 1835. Op. cit., p. 3-4.
280
A organização da força policial no período imperial já havia se
manifestado pelo Edital de 3 de janeiro de 1825, da Intendência Geral da Polícia,
ainda sob a organização do primeiro reinado de D. Pedro I, buscando criar novas
regras para manter a segurança e o sossego público. Dizia o referido edital:
[...] Toda a pessoa, que depois do toque dos sinos for achada na
venda, taberna, botequim ou casa de jogo, pague da cadeia pela
primeira vez quatro mil e oitocentos réis; pela segunda o duplo,
e assim progressivamente sendo livre; se for escravo será
conduzido ao calabouço e castigado com açoites; e o dono ou
caixeiro da casa pague também da cadeia pela primeira vez nove
mil e seiscentos réis, pela segunda o duplo, e pela terceira o
triplo, e a licença cassada459.
458
ARAGÃO, Francisco Alberto Teixeira de. Edital da Intendência Geral da Polícia, sobre novas
regras para manter a segurança e o sossego público. Disponível em:
http://bdlb.bn.gov.br/acervo/handle/123456789/40653
459
Ibid.
281
verão, e das nove no inverno, até a alvorada”, e permitia que essa força policial
“apalpasse” qualquer cidadão para descobrir o “uso de armas de defesa, ou
instrumentos para abrir portas e roubar casas”460.
Outro aspecto interessante dessa peça documental é o de que, diante de
toda a preocupação atestada contra as formas de criminalidade e de violência que
se assistia, produzia em seus procedimentos físicos uma “criminalização” a priori
dos negros e da população menos abastada, inferindo sobre eles um julgamento
moral de “suspeitos”, condição para as quais não havia muitas restrições, como se
pode observar nos artigos 4 e 6 do Edital:
460
Ibid.
461
Ibid.
462
Cf. RODRIGUES, Bruno Pinheiro. Paixão da Alma: O Suicídio De Cativos em Cuiabá (1854-
1888). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá, 2010.
282
prescrevendo os meios de punir as “contracondutas”, uma vez que afirmavam as
suas existências contrapondo-se ao modelo estabelecido.
Nesse mesmo ano, temos, por exemplo, a Lei provincial nº 12, de 26 de
agosto de 1835, que estendia à província de Mato Grosso a mesma resolução criada
na província do Maranhão em relação à problemática da segurança, desde 1830.
Antonio Pedro de Alencastro, em anexo a essa lei provincial da capitania de Mato
Grosso, apresentou o teor da resolução maranhense, a qual estabelecia, dentre
outras coisas:
283
Companhia na multa de dusentos mil reis, applicadas ás Casas de
correcção, e mais obras do Municipio, além das mais penas, que
por direito lhe forem impostas.
Artº. 6º. Nas mesmas penas incorrerão os mencionados
Proprietarios, e serão julgado consentidores aquelles S.rs de
terras, que nellas conservarem os supraditos individuos, sessenta
dias depois da publicação d’esta por Editaes affixados na Cidade,
ou Villa, a cujo districto pertencerem463.
463
LEI PROVINCIAL Nº 12, DE 26 DE AGOSTO DE 1835, p. 2. Disponível em
https://www.al.mt.gov.br/storage/webdisco/leis/lim-16-1835.pdf. Acessado em 10/01/2018.
284
que, por meio das armas, resolviam contendas partidárias, políticas e outras formas
de inimizades, onde a “Rusga” seria o exemplo mais cabal desse tipo de prática.
Embora ainda persistissem e em muitos casos se fizessem vistas grossas
sobre os conflitos inerentes aos grandes proprietários rurais e comerciantes, em
relação à população menos abastada, o fato, é de que, na gestão da vida das pessoas,
o Estado, assumia para si a função de gerir a vida e atuar minuciosamente na
administração da justiça.
Isso não significou uma garantia de proteção efetiva das camadas mais
humildes da população, mas uma representação dessa garantia, o que materializava
a forma de a província de expandir ainda mais no exercício do poder do Estado
sobre a existência da população de modo geral.
A formação dessas forças policiais na província de Mato Grosso,
começava a dar mostras de um investimento incisivo na produção de mecanismos
que garantissem sua segurança, ou seja, um nível “ideal” de paz e de controle das
contravenções, dos ilegalismos etc. Dessa maneira,
464
ALENCASTRO, Antonio Pedro. Discurso de 3 de julho de 1835. Op. cit., p. 6.
285
Eis que ano seguinte, 1836, o vice-presidente da província Antonio José
da Silva, em discurso de 2 de março, já se mostrava queixoso e preocupado com a
problemática da segurança que, ao contrário do tom “pacífico e harmonioso”
apresentado pelo governo anterior, assim se pronunciou:
465
SILVA, Antonio José da. Discurso de 2 de março de 1836. Op. cit., p. 4-5.
286
dos criminosos, estreita, e por falta de suficiente ventilação, por
defeito de construção, perniciosa á saúde dos delinquentes466[...]
466
ALENCASTRO, Antonio Pedro. Discurso de 3 de julho de 1835. Op. cit. p. 8.
467
BUENO, Antonio Pimenta. Discurso de 1º de março de 1837. Op. cit., p. 22-23.
287
para o projeto de ordenamento da sociedade que, pela Lei provincial no 2, de 8 de
agosto de 1835, determinava:
[...] Art. 1º. Fica desde ja creada nesta Provincia huma Casa de
Correcção.
Art. 2º. Ao Governo da Provincia compete designar o lugar, em
que tal caza se faz indispensavelmente necessaria, tendo em vista
o de maior população.
Art. 3º. Ao mesmo Governo compete marcar o local, em que ella
deve ser edificada, aproveitando para isso algum edificio, que
esteja desocupado, e que seja idoneo para este fim.
Art. 4º. Ficão revogadas todas as Disposições em contrario468.
468
LEI PROVINCIAL Nº 2, DE 8 DE AGOSTO DE 1835. Disponível em:
https://www.al.mt.gov.br/storage/webdisco/leis/lim-2-1835.pdf. Acessado em 10/01/2018.
469
BUENO, Antonio Pimenta. Discurso de 30 de novembro de 1836. Op. cit., p. 5-6.
288
Entre a sedição de 30 de maio e as revoltas que ocorreram na província
do Pará, foi criado um clima propício de intervenção e investimento nas forças
policiais, uma vez que não se tratava de lidar somente com a problemática das
contravenções que atentavam contra a propriedade privada, mas englobava também
uma atenção para com os “crimes de natureza política”, no entanto, ao julgar
dissipado o legado da “Rusga” decretou-se a extinção da referida Guarda Municipal
Permanente, pela Resolução provincial nº 11, de 30 de dezembro de 1836:
470
RESOLUÇÃO PROVINCIAL Nº 11, DE 30 DE DEZEMBRO DE 1836. Disponível em:
https://www.al.mt.gov.br/storage/webdisco/leis/rsi-11-1836.pdf. Acessado em 10/02/2018.
289
A confecção de mapas criminais cada vez mais detalhados passou a ser
preocupação cada vez mais frequente nos discursos dos presidentes da província de
Mato Grosso. No de 1º de março de 1840, Estevão Ribeiro de Rezende, manifestava
o seguinte posicionamento:
471
REZENDE, Estevão Ribeiro de. Discurso de 1º de março de 1840. Op. cit., p. 12-13.
290
de 1837 a 1839 houveram apenas 10 homicídios, 8 ferimentos
graves e leves, 3 roubos com homicídio, 2 roubos sem homicídio,
5 furtos, e 3 estelionatos.
Por falta de uma Estatística exata dos habitantes desta Capital e
seu Termo; não se pode avaliar a proporção dos crimes cometidos
com a população; de qualquer forma, porém é doloroso observar-
se que durante aquele prazo quase todos os crimes se dirigiram
contra a vida e fazenda do Cidadão.
A falta ou ineficácia da proteção das Leis, a ineptidão ou
negligência dos Juízes de Paz, a incerteza da imposição das
penas, a maneira fraca porque se acha organizada a nossa Polícia
sem um centro de ação enérgico e forte, e finalmente a falta de
prisões seguras, são as causas principais da impunidade dos
delitos, da qual deve de força resultar o seu aumento472.
472
Ibid. p. 13.
291
[...] A criação de Guardas encarregados da Polícia das Vilas e
Freguesias, segurança das prisões, captura dos criminosos,
destruição de quilombos [grifos meus], prisão de escravos
fugidos, condução de ofícios das Autoridades, e mais misteres da
Polícia, seria de muita utilidade: opõem se as dificuldades que já
outrora ponderei, e que só pelo vosso ilustrado zelo poderão ser
vencidas473.
473
BUENO, Antonio Pimenta. Discurso de 1º março de 1838. Op. cit., p. 26.
474
CHAVES, Otávio Ribeiro. Op. cit. p. 47.
475
Referência ao Quilombo na Barra do rio Piraputanga.
292
três lanços, sendo duas de alto sobrado, e todas colocadas de
modo tal que formavam entre si uma praça vazia.
Tinham grandes roças, porque o seu forte era a lavoura, e tão
provisionados os seus seleiros que não foi possível a Bandeira
dar consumo aos mantimentos que achara. A numerosa
escravatura que ali existia tentou resistir a Força, que se lhe
apresentou, por meio d’armas, porém logo cedeu, evadindo-se
alguns, e sendo presos muitos escravos, escravas, e crianças de
um e de outro sexo, entregues a seus donos.
Consta-me que outros Quilombos existem em diversos lugares
da Província, fazendo-se notável um que há nas proximidades de
Vila Maria. Convém faze-los bater e destruir. Estas reuniões de
escravos fugidos são más não só pelos prejuízos que ocasionam
a seus donos, mas também pelo perigo da segurança da vida e
fazenda dos povos, e finalmente pelo alento que dão a fuga de
outros escravos, a que oferecem guarida476.
Esse exemplo trazido pelo governante de Mato Grosso se, por um lado,
mostrava prosperidade, organização e sustentabilidade da comunidade quilombola
do rio Piraputanga, com construções de habitações bem feitas, roças que
asseguravam uma grande quantidade de mantimentos em seus seleiros, de outro
lado simbolizava a intolerância das autoridades governamentais em relação a essa
comunidade que, “aproveitando” das Bandeiras organizadas para conter os índios
Coroado, destruíram, saquearam e enviaram os escravos fugitivos para os “seus
senhores”.
O discurso dos governantes da província não avaliava a constituição
dessas comunidades enquanto elemento de sustentação da província, com suas
roças, mantimentos, habitações cuja prosperidade poderia dinamizar a economia,
mas eram vistas exclusivamente do ponto de vista dos senhores, para os quais a
fuga dos escravos, além de uma afronta à autoridade constituída, representava
“prejuízos materiais” aos mesmos, além de criar um clima de insegurança
provocado pela confrontação física ocasionadas na fuga.
O julgamento expresso nesse discurso materializava-se por um
investimento biopolítico na vida dos homens brancos, proprietários de terra e ricos,
sendo a destruição dos quilombos garantia do funcionamento de seu exercício de
poder, marcado pela violência física e simbólica, mesmo havendo restrições aos
476
REZENDE, Estevão Ribeiro. Discurso de 1º de março de 1840. Op. cit., p. 34.
293
castigos físicos, mas, do ponto de vista prático, eles eram praticados até quase ao
limite da morte.
Esse projeto de segurança construído na província de Mato Grosso
contou com a criação de um aparato policial e jurídico, que, embora se apresentasse
como deficitário, incrementou a problemática “de mais policiamento”, “de mais
punição”, ou melhor, garantindo com que as margens de criminalidade não ficassem
impunes.
O fato de nos discursos dos presidentes de província se constatar a
fragilidade dos mapas criminais elaborados, de atestar a parcialidade dos juízes de
paz, das péssimas condições das cadeias e dos poucos recursos públicos existentes,
ainda assim mobilizavam discursos e ações práticas na gestão dos “ilegalismos”,
“das contracondutas”, e das “contravenções” que ferissem os princípios da lei e da
normalidade.
Visualiza-se lentamente a organização de uma força policial para
garantir a ordem, introduzir a “paz” na sociedade civil na gestão dos conflitos
internos, uma paz que, de fato, não era efetiva, tratando-se da mera organização de
um nível “permitido e tolerado” de violência que, de um modo geral, apresentava
efeitos globais de pacificação.
Vimos também que semelhante investimento nas forças policiais
apresentava efeitos de poder que representavam uma função de vigilância e de
punição das condutas da população, necessárias para se conseguir um processo de
moralização de suas condutas no seio de uma sociedade pautada no trabalho.
Assistia-se, nesse caso, à transformação da ação da polícia adotada no
século XVIII, para a ação policial desenvolvida na província de Mato Grosso no
período regencial. Enquanto a primeira se articulava às premissas da razão de
Estado, lidava-se com a problemática do embelezamento das cidades, que envolvia,
dentre outras coisas, limpeza, higiene, polidez, cuidado para com as pessoas
desamparadas etc., como foi exemplificado com mais detalhe no capítulo 2 da
presente tese. No caso da segunda, o que se viu foi uma força policial que atuou
prioritariamente sobre a conduta das pessoas, sobre a sua moralidade e propensão
no cometimento de crimes etc.
294
Curiosamente, o campo prático das medidas de polícia adotadas no
século XVIII, que exemplificamos com o caso do terremoto de Lisboa de 1755,
foram incorporados no século XIX em Mato Grosso, pelos Códigos de Posturas477
que, a guisa de exemplo, apresentaram temas como: controle das vendas de gêneros,
concessões, medições e alinhamentos de ruas e terrenos, ornato e formosura das
ruas, obras Públicas, abastecimento de viveres e comodidades, sobre polícia etc.
Enfim, a estratégia biopolítica da segurança fazia funcionar os
princípios de propriedade privada, de cidadania, da vida enquanto principal bem de
um cidadão e, a partir dela, gerir as condutas dessa população, de moralizar seus
atos e impor um julgamento, que a priori, já produzia uma criminalização de
“negros, índios e pobres.”
477
Cf. RESOLUÇÃO PROVINCIAL Nº 14, DE 2 DE MAIO DE 1837. Disponível em
www.al.mt.gov.br/storage/webdisco/leis/rsi-14-1837.pdf. Acessado em 10/01/2018.
295
da qualidade do ar, da periculosidade das regiões paludosas da província, das áreas
mais pantanosas etc.”478
A preocupação remetia ao corpo coletivo e à análise de seus efeitos
globais na gestão da população mato-grossense, por meio de relatórios, decretos de
lei e discursos dos governantes provinciais que perseguiam realizar condições de
vitalidade e de “assistência” ofertadas à população.
A relação entre a produção de um corpo sadio estava em sintonia com
as técnicas cada vez mais sutis de investimento político na “vida”, nas condições de
seu “prolongamento” ou de sua proteção, exemplificados na “preocupação latente”
com as condições dos “estabelecimentos pios” e com a problemática das doenças
endêmicas.
A temática da saúde não é nova na historiografia mato-grossense, visto
ter sido abordada de maneira magistral na tese de Leny Caselli Anzai que leva o
título de Doenças e práticas de cura na capitania de Mato Grosso: o olhar de
Alexandre Rodrigues Ferreira, sobre doenças endêmicas que atingiram os
moradores da Capitania de Mato Grosso, em fins do século XVIII479. Também de
importância capital sobre esse assunto temos as dissertações de mestrado da
historiadora Nauk Maria de Jesus, intitulada Saúde e Doença: Práticas de Cura no
Centro da América do Sul (1727-1808)480, e a dissertação de Marina Azém,
intitulada Viagem filosófica às doenças e curas em Mato Grosso no século XVIII:
os relatos do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira481.
A importância de tais resultados de pesquisa nos remete à preocupação
com as práticas de cura desenvolvidas no período colonial e imperial, em especial
entre fins do século XVIII e início do XIX, nos oferecendo uma dimensão das
principais enfermidades e as formas mais eficazes de combatê-las, materializadas
478
Cf. D’ALLINCOURT, Luiz. Resultado dos Trabalhos e Indagações Estatísticas da Província de
Mato Grosso feitos no ano de 1828. In: ANNAES da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, vol.
VIII (1880-1881). Rio de Janeiro. Tipografia Nacional, 1881.
479
ANZAI, Leny Caselli. Doenças e práticas de cura na Capitania de Mato Grosso: o olhar de
Alexandre Rodrigues Ferreira. Brasília. Tese (Doutorado em História) – Universidade de Brasília.
Brasília, 2004.
480
JESUS, Nauk Maria de. Saúde e Doença: Práticas de Cura no Centro da América do Sul (1727 –
1808). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá, 2001.
481
AZÉM, Marina. Viagem filosófica às doenças e curas em Mato Grosso no século XVIII: os relatos
do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira. Dissertação (Mestrado em História) Universidade
Federal de Mato Grosso. Cuiabá, 2006.
296
não somente nos discursos, mas também por meio de ações práticas de diversos
agentes. Sobre esse ponto, Nauk Maria de Jesus salienta que:
482
JESUS, Nauk Maria de. Op. cit., p. 18.
297
quais teve acesso- e o conhecimento empírico- apreendido com
os grupos contatados durante suas viagens483.
483
ANZAI, Leny Caselli. Leitura Paleográfica Comentada de Enfermidades endêmicas da capitania
de Mato Grosso: apresentação. In: Enfermidades endêmicas da capitania de Mato Grosso: a
memória de Alexandre Rodrigues Ferreira. Ângela Porto (Org.). Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008, p.
21-22. (História e Saúde).
484
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Enfermidades endêmicas da capitania de Mato Grosso’. In:
Op. cit., p. 25-26.
298
Nesse opúsculo de Rodrigues Ferreira estava estampada uma
idealização do projeto iluminista, no sentido de que ele buscava com isso
instrumentalizar cada habitante no autoconhecimento dos males, seus sintomas e
causas, mas também as formas de tratá-los por meio de um conhecimento, ou
melhor, de um saber, que mesclava uma terapêutica europeia com outra americana,
dada a natureza de algumas afecções atingirem principalmente, segundo esse tipo
de discurso, os índios, negros e mulatos.
Pautado em estudos, o mencionado Alexandre Rodrigues Ferreira, já
em finais do século XVIII, apresentou alguns elementos para se pensar a “saúde
pública”, ao propor um conhecimento útil aos habitantes da capitania, como forma
de agir em caso de acometimento por alguma enfermidade. Dessa maneira:
485
FALCÂO, Edgard de Cerqueira. Breve Notícia Sobre A ‘Viagem Filosófica’ de Alexandre
Rodrigues Ferreira (1783-1792). In: Revista de História. São Paulo, v. 40, n. 81 (1970), p.185.
Disponível em: http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/128948/125632.
299
problemática das práticas de cura e das doenças endêmicas na ótica do naturalista
Alexandre Rodrigues Ferreira.
Nos circunscrevemos, a seguir, ao uso estratégico da doença da
população a partir da problemática da saúde pública, significando que as discussões
de um Ribeiro Sanches, em seu Tratado sobre a Conservação dos Povos, enquanto
um intelectual luso, e de um Alexandre Rodrigues Ferreira, nas Enfermidades
endêmicas da capitania de Mato Grosso, vão adquirindo visibilidade cada vez
maior em face à problemática geral da saúde da população e dos recursos
legislativos de controle das moléstias que afligiam o corpo coletivo da população.
Diante disso, o que chamo de “saúde pública” é, precisamente, todo um
investimento político preciso na gestão da vida de uma população, criando
condições de segurança necessárias ao controle dos negócios da província e aos
jogos de interesses que respondiam à demanda de saúde.
Desde o século XVIII, quando se começava a organizar a então
capitania de Mato Grosso, os colonos, indígenas e escravos certamente foram
acometidos por diversas moléstias, expressas, por repetidas vezes, por conta das
inundações das regiões paludosas, como o pantanal, mas também pela qualidade do
ar fétido, propagador de doenças etc., ocasião em que se recorria a médicos e
curandeiros.
No entanto, o que se percebeu no período regencial de Mato Grosso foi
a constituição de uma problemática da saúde inerente à “prevenção”, o que exigiu
dos presidentes de província uma atuação precisa nos meios que causavam as
doenças, usando de medidas legislativas e ações práticas para atingir esse fim.
Claramente, a gestão dos corpos da população perpassava pelo uso
estratégico das “associações filantrópicas” e de “caridade486”, as quais, em
consonância com as intervenções dos presidentes de província, assumiam o
486
Vale ressaltar que, embora as instituições de caridade, que eram de cunho religioso, se
diferenciassem das filantrópicas, que eram civis, no caso da província de Mato Grosso, nos meados
do XIX, ambas foram investidas de regimes discursivos do Estado, mantendo suas especificidades
onde os orfanatos, que eram instituições de internação, convivessem com as rodas dos expostos,
prática de passagem que não criminalizava o abandono das crianças. Cf. MELO, Mariana Ferreira
de. Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro: assistencialismo, sociabilidade e poder. In: As
Misericórdias das duas margens do Atlântico: Portugal e Brasil (séculos XV e XX). Maria Marta
de Araújo (Org.). Cuiabá-MT: Carlini &Caniato, 2009.
300
investimento político quanto à vida da população. Nesse sentido, o presidente
Antonio Pedro de Alencastro, em discurso de 3 de julho de 1835, salientava que:
[...] Como El Rey Nosso Senhor que Deos Guarde pela carta
Regia de 6 de Junho de 1814. Foi servido Approvar a
encorporação da Testamentaria de Manoel Fernandes
Guimaraens as Rendas Reaes desta Capitania e ao thrazer ao
nosso Illustrissimo Excellentissimo Governador Capitão-
General p.ª fazer a aplicar as penas q. p.r isso houvesse de pagar
a R.l Fazenda anualm.e p.ª os estabelecimentos pios apontados
p.lo m.mo Gen.al no Plano q.’ subio a Sua R.l Presença em
desempenho da vaidoza istituição daquele Testador: havia S.
Exc.ª começado com o socorro de algumas subscripcoens
voluntário, e esmolas q.’ pedio hum edificio, q.’ dominou R.l
caza pia de S. Lazaro = para nella se recolherem todos os
infermos do mal de S. Lazaro, q.’ vagão p.r esta V.ª e seu termo,
487
ALENCASTRO, Antonio Pedro. Discurso de 3 de julho de não 35. Op. cit., p. 5.
301
e p.r q.’ se tinha adiantado muito a construção deste edificio
conhecendo S. Ex.ª p.las contas q.’ pedio a Administração q.’
criou p.ª aquela R.l Caza assistencia de hum excesso, que alem
de segurar a subsistencia dos Lazaros ainda permitia q.’ se
estendia a aplicação approvada a outra obra Pia ainda mais
entereçante: e havendo ordemnado, q.’ os fundos daquela
administração fossem simultaneamente applicados p.ª
sustentação dos ditos Lazaros p.ª ultimar as obras da R.l caza Pia,
e p.ª as obras, q.’ hia principiar de hum hospital Geral com a
invocação de N.S da Conceição q.’ tinha ja marcado no Bairro
do Mundeo, em terras, q.’ se havia comprado a Victoriano de
Souza Neves: Foi no dia 3 de Fevereiro deste anno, q.’ com
grande acompanhamento S. Ex.ª lançou a primeira Pedra deste
Edificio, q.’ Deos permita se adiante, e prospere p.r bem da
humanidade com tanto fervor como principiou, e como se está
continuando, e graças sejão rendidas ao mesmo Deos p.r nos dar
hum Soberano tão Pio, tão caridozo tão am.te de Seus vaçallos
q.’ não perde ocazião de faser o bom que lhes dezeja, e q.’ p.r
isso m.mo anuiu promptam.e aos rogos do nosso encançavel
General, que tanto trabalha em beneficio dos seus subditos. Seja
a carid.de dos fieis e seguro fiador desta grande obra, e passa a
Administração de obras Pias, exercitar no Hospital Geral de N.S.
da Conceição, as meritorias açoens, q.’ exercitão as S.tas Cazas
da Mizericordia deste Reino488.
488
ANNAES DO SENNADO DA CAMARA DO CUYABÁ. Op. cit., p. 214-215.
489
ALENCASTRO, Antonio Pedro de. Discurso de 3 de julho de 1835. Op. cit., p. 5.
302
Observa-se gradativamente uma intervenção estatal nesses
estabelecimentos de caridade, expressos no presente discurso de Alencastro, como
a necessidade de reforma nas referidas instituições, para que estas funcionassem
plenamente e oferecessem condições de atender a população mais pobre. Além
disso,
490
Ibid. p. 5-6.
491
Cf. VENÂNCIO, Renato. Entre dois impérios: a Santa Casa da Misericórdia e as ‘Rodas dos
Expostos’ no Brasil. In: Op. cit.
303
discurso de 1º de março de 1837, pronunciado por Antonio Pimenta Bueno, quando
chamava a atenção para:
492
BUENO, Antonio Pimenta. Discurso de 1º de março de 1837. Op. cit., p. 27-28.
304
Além disso, propôs que o único cirurgião-mor da província de Mato
Grosso ensinasse a dois moços do Corpo de Ligeiros, repassando-lhes o
“conhecimento farmacêutico” para, certamente, amenizar as condições precárias no
tratamento das afecções que se disseminavam em diferentes pontos.
Eis que, no ano seguinte, o presidente da província Antonio Pimenta
Bueno, em seu discurso de 1º de março de 1838, apresentou um quadro diferente
da cidade de Mato Grosso, onde:
493
Idem. Discurso de 1º de março de 1838, p. 27.
494
LEI PROVINCIAL Nº 19, DE 28 DE AGOSTO DE 1835. Disponível em:
https://www.al.mt.gov.br/storage/webdisco/leis/lim-19-1835.pdf. Acessado em 10/01/2018.
305
[...] A Inspeção dos Estabelecimentos Pios desta Cidade,
continua a ser prestante. O Hospital de S. João dos Lázaros, o
Hospital da Misericórdia e dos Expostos, além dos reparos
obtidos, tem conseguido melhoramentos em seu Regimento
Administrativo: os enfermos e crianças são cuidadosamente
tratados.
A comissão de visita dos Estabelecimentos Pios, e a Câmara
Municipal acham-se contentes com o digno Inspetor de tais
Estabelecimentos, Joaquim Alves Ferreira, e não menos contente
o Governo, que louvando os gratuitos serviços por tão útil
Cidadão prestados a prol da humanidade, exerce ato de rigorosa
justiça495.
Sob o comando do inspetor das obras pias, Joaquim Alves Ferreira, foi
sendo construído um conjunto de dados que expressaram o número de pessoas
assistidas, curadas e mortas, oferecendo ao presidente de província uma visão geral
dos habitantes “sadios, válidos e fortes”, ou seja, aptos ao trabalho. Eis as condições
apresentadas em 8 de abril de 1838:
495
Ibid., p. 23.
306
funebre aspecto que outrora mostrava, se trocou em rizonho e
alegre face, por o seu orizonte parece qui anuncia a epoca da sua
criação, e por isso esta Commissão vem faser injuria a verdade
louva o assiduo trabalho do seo Inspector o quanto tem
promovido o bem destes Pios edifícios496.
496
RELATÓRIO DA COMISSÃO DE VISITA ÀS PRISÕES E ESTABELECIMENTOS PIOS,
NOMEADA PELA CAMARA MUNICIPAL DA CIDADE DE CUIABÁ, DATADO DE 8 DE
ABRIL DE 1838, ENCAMINHADO AO PRESIDENTE DA PROVÍNCIA, DR. JOSÉ ANTONIO
PIMENTA BUENO, POR OFÍCIO DATADO DA SESSÃO DE 10 DE ABRIL DE 1838. COD.
DOC. 142. APMT.
497
Fiscalizava também as cadeias da província, onde foram constatadas as condições precárias em
que encontravam. Cf. Loc. cit.
498
REZENDE, Estevão Ribeiro de. Op. cit., p. 55-56.
307
Ressaltava ainda a importância da referida cidade de Mato Grosso como
ponto militar, assim como sobre o relativo abandono em que se se encontrava.
Nesse sentido, reiterou, mais uma vez, a proposta de Pimenta Bueno, de solicitar,
ao Ministério da Guerra, dois cirurgiões ajudantes, além de propor outras medidas
higiênicas que prevenissem o mal provocado em decorrência das cheias. Nesses
termos, lembrava que:
499
Ibid., p. 56-57.
308
A título de exemplo, o Código de Posturas de Cuiabá, aprovado pela
Resolução provincial no 14, de 2 de maio de 1837, já dispunha algumas medidas de
higienização do espaço público, principalmente em seu Título 1, que versou sobre
Saúde Pública, explicitados em 6 artigos:
500
RESOLUÇÃO PROVINCIAL Nº 14, DE 2 DE MAIO DE 1837, P. 1. Disponível em
www.al.mt.gov.br/storage/webdisco/leis/rsi-14-1837.pdf. Acessado em 10/01/2018.
309
Em todo caso, tratava-se de atuar sobre os meios propagadores das
doenças e manter um controle estável das moléstias que acometiam a população.
Tal situação impunha aos dirigentes a necessidade de vigiar as condições de cada
município no controle das pestes e epidemias. Diante disso, o presidente de
província Estevão Ribeiro de Rezende, em seu discurso de 1º de março de 1840,
lembrava:
[...] O terrível flagelo das bexigas, que tantos estragos tem feito
na população de outros pontos do Império, bastante nos ameaçou
o ano passado.
Chegou mesmo a aparecer no Termo do Alto Paraguai
Diamantino, mas felizmente não grassaram, o que é devido as
cautelosas medidas tomadas pelo respectivo Juiz de Direito
interino, e fortalecidas pelo Governo.
Se é para lamentar, Snrs., os prejuízos que ainda hoje dominam
esta Província contra a vacina, poderoso antídoto para as bexigas,
e que tantas vidas tem poupado, muito mais o é a indiferença com
que um objeto de tanta importância tem sido tratado da parte da
Autoridade Pública.
Não achando, para fazer distribuir pelas Câmaras Municipais
outro pus vacínico além de um recebido da Corte a nove anos, do
qual apenas uma lamina se julgou servível, e foi remetida pelo
Governo a Câmara do Diamantino, oficiei ao Governo Imperial
pedindo a remessa de algumas lâminas, que espero receber
brevemente, acompanhadas de instruções para a sua
inoculação501.
501
REZENDE, Estevão Ribeiro de. Discurso de 1º de março de 1840. Op. cit., p. 11.
502
Curiosamente, a problemática da vacina se mostrou enquanto temática que persistirá até no
período republicano, uma vez que a população mais pobre era ainda marcada fortemente por um
modelo patriarcal de sociedade, onde os ‘pais de família’ não aceitavam a aplicação da vacina em
310
Embora as dificuldades apresentadas no estabelecimento desse nível de
segurança buscado em relação à saúde pública e das medidas de higienização
adotadas, criava-se um campo propício na administração da população,
disseminando a participação ativa de outros agentes, como fiscais, inspetores etc.,
ocasião em que o mesmo defendia que:
[...] Artº. 1º. Todo aquelle Senhor que desamparar algum seu
escravo, por molestias, ou por avançada idade, por lhe não poder
prestar mais serviços, será obrigado a curalos, e sustental-os para
não virem a ser pesados aos habitantes das Cidades,Villas, e
Destrictos.
Artº. 2º. No caso que o Hospital dos Lasaros, ou Casa da
Misericordia, queirão receber os ditos escravos, ficarão seus
Senhores obrigados a pagar duzentos reis diarios para sustento
dos mesmos, alem do vestuario, e remédios.
Artº. 3º. O escravo assim desamparado, será obrigado a
apresentarse ao Juiz de Paz respectivo, para faser executar o
disposto nos Artigos antecedentes504.
suas mulheres e filhas, justificada por se tratar de um atentado à ‘moralidade e ao pudor’. A revolta
da vacina, em 1904, foi um exemplo característico desse tipo de resistência. Cf. SEVCENKO,
Nicolau. A Revolta da vacina: Mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Scipione, 2001.
503
REZENDE, Estevão Ribeiro de. Discurso de 1º de março de 1840. Op. cit., p. 12.
504
LEI PROVINCIAL Nº 5, DE 26 DE ABRIL DE 1836. Disponível em:
https://www.al.mt.gov.br/storage/webdisco/leis/lim-5-1836.pdf. Acessado em 10/01/2018
311
Esse tipo de discurso não expressava, certamente, a benevolência dos
presidentes de província em relação à vida dos escravos, mas a preocupação de não
“onerar” ainda mais a camada composta de homens livres da população, tornando
suas condições de vida ainda mais difíceis.
O descontentamento que isso poderia gerar na “população livre” foi
pensada estrategicamente, uma vez que esse segmento poderia votar nas eleições
primárias e, portanto, tal restrição poderia gerar resistência em relação às práticas
emanadas do governo provincial.
Expressava-se com isso, ao nosso ver, a fundamentação discursiva “de
uma subpopulação”, cuja gestão e administração cabia aos senhores de escravos e
não propriamente ao Estado que, nesse caso, se apresentava enquanto regulador das
instâncias de miserabilidade geradas pela escravidão e também no interior da
população menos abastada.
Enquanto a precária condição do cativo seguia um princípio de
propriedade, cabia aos senhores arcar com custos dela. Por outro lado, a
miserabilidade da população menos abastada exigia uma intervenção do Estado,
uma vez que afetava o cidadão pobre, porém livre.
Projetava-se gradativamente um espaço dos vivos e o afastamento das
condições que causassem a morbidade. Diante disso, as práticas de sepultamento
também ganharam maior visibilidade nesse período. Assim, temos as primeiras leis
que buscaram criar um cemitério para abrigar os mortos:
312
Camara Municipal tiver feito como Semiterio, ferramentas, e
asseio do mesmo e sallario ao Coveiro.
Artº. 5º. Promptos que estejão os Semiterios fica prohibido a
sepultar-se dentro da Igreja, e adro, pessôa alguma sem exceção.
Artº. 6º. Os que infringirem esta Lei serão multados pelo Juiz de
Paz respectivo em trinta mil reis para as despesas do Semiterio:
na mesma pena incorrerão as Parochias, que consentir.
Artº. 7º. Hé permittido aos parentes, amigos, e testamenteiros do
morto, fazerem sepultura com a decencia, que quizerem, com
tanto que não occupem mais terreno que nove palmos de
comprido, e quatro de largo, pagando neste caso quarenta mil reis
para a Camara Municipal.
Artº. 8º. O Parocho hirá encommendar o seu parochiano, onde se
achar morto, que depois seguirá para o Semiterio, recebendo por
isso o benz que lhe competir pela Constituição do Bispado505.
505
LEI PROVINCIAL Nº 21, 9 DE SETEMBRO DE 1835, p. 1. Disponível em:
https://www.al.mt.gov.br/storage/webdisco/leis/lim-21-1835.pdf. Acessado em 10/01/2018.
506
ROCHA, Maria Aparecida Borges. Transformações nas práticas de enterramento: Cuiabá (1850-
1889). Cuiabá: Central de Texto, 2005, p. 34.
313
da vida e dos espaços dos mortos, o que já fora lembrado por Estevão Ribeiro de
Rezende, em 1840:
507
REZENDE, Estevão Ribeiro de. Discurso de 1º de março de 1840. Op. cit., p. 11.
314
É pois diminuta a sua mortalidade, e o mesmo acontece no outro
Hospital de S. João dos Lázaros, o que atesta o bom tratamento
dos enfermos508.
Diante desse estado de coisas foi exigida uma ação mais efetiva do
Estado na manutenção das citadas instituições que, embora regidas por
regulamentos próprios formulados por seus associados, suas funções eram
exercidas gratuitamente, no entanto, tais instituições passavam por problemas
estruturais do espaço físico e conservação dos edifícios, exigindo reformas, mas
que naquele momento se encontravam paralisadas:
508
Ibid., p. 14.
509
Ibid., p.14.
315
de tanta importância a humanidade desvalida, cumpre suprir a
falta da maneira compatível, manter ao menos os que existem, e
o Governo o espera da vossa filantropia510.
510
Ibid., 15.
316
A exemplo do que foi exposto, os presidentes Pimenta Bueno e Estevão
Ribeiro de Rezende apresentaram, o primeiro, a necessidade de um professor de
medicina na região, de dois cirurgiões auxiliares no destacamento militar e que
também ofereceriam ajuda aos habitantes e aumento das boticas, contudo, o
segundo propôs ações mais avançada de higienização, por meio da construção de
canais e redes de esgoto que impediriam a estagnação das águas e,
consequentemente, a proliferação de doenças.
Diante disso, afigurava-se, também nesse tipo de discurso a construção
de uma ideal de higiene, limpeza, ordenamento e asseio, como condição garantidora
de um espaço salubre e saudável e de uma gestão sutil da existência, expressos no
uso político do “sofrimento”, “das doenças”, “moléstias” e “condições de
miserabilidade” expressos em um discurso no qual o dirigente se arrogou a falar em
nome dessa população.
317
CONSIDERAÇÕES FINAIS