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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATOLICA DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA SOCIAL

Patrícia do Prado Ferreira Lemos

O SUJEITO E O GOZO ESCÓPICO NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA


CONECTADA

Doutorado em Psicologia Social

São Paulo

2014
PATRÍCIA DO PRADO FERREIRA LEMOS

O SUJEITO E O GOZO ESCÓPICO NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA


CONECTADA

Doutorado em Psicologia Social

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia


Universidade Católica de São Paulo, como exigência
parcial para a obtenção do título de Doutor em
Psicologia Social, sob orientação do Prof. Dr. Raul
Albino Pacheco Filho.

São Paulo

2014
FERREIRA-LEMOS, P.P. O sujeito e o gozo escópico na sociedade contemporânea
conectada. Tese apresentada ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia
Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo para obtenção do título de
Doutor em Psicologia Social.

Aprovado em:

BANCA EXAMINADORA
Aos meus pais
AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu orientador Raul Pacheco, a quem admiro pela generosidade e paixão
em transmitir, por me acolher tão bem desde quando me interessei pelo Núcleo de
Psicanálise e Sociedade, por todas as trocas dentro ou fora da sala de aula, pela leitura
cuidadosa de minha tese, pelo respeito às minhas ideias e pelas sugestões apresentadas.

Aos professores doutores Sonia Borges e José Aidar, pelas valiosas sugestões no
momento da minha qualificação e aos professores doutores que compõem a banca
examinadora.

Ao Conrado Ramos e ao Guilherme Mola, pelas inúmeras e preciosas contribuições nas


discussões no Núcleo de Pesquisa.

A todos colegas que passaram ou estiveram no Núcleo, em especial àqueles que me


foram mais próximos nesses 4 anos: Lilian Clementoni, Makau Formigoni, Renata
Bazzo, Ana Paula Baima e, mais ainda, ao Gabriel Maia, pelas conversas nos corredores
e pela troca teórica e musical, especialmente ao inesperado fim do nosso prazo, e à
Karla Rampim, amiga e parceira de aventuras acadêmicas, papos incendiários e viagens
absolutamente divertidas.

Ao meu querido Pedro, sem o qual este processo seria ainda mais solitário, por não
medir esforços em me levar, buscar ou esperar, pelo respeito aos meus silêncios,
ausências, angústias, loucuras, pelo amor e por tudo que dividimos desde quando nos
conhecemos.

Aos meus pais, Antonio e Angélica, por toda ‘humanidade’ que transmitem, por
respeitarem nossas diferenças e especialmente, por todas as oportunidades que me
deram, acompanhando com apoio e amor os caminhos que trilhei.

Ao meu irmão, Toninho, por estar disposto em me acolher em sua casa (e na sua vida)
sempre que preciso, pelos shows e shots que partilhamos, pela amizade, cumplicidade,
incentivo e todo carinho.
À minha irmã, Silvinha, pela presença constante em minha vida, por tentar colocar meus
pés no chão, pela disponibilidade em ouvir meus lamentos (e não consenti-los), pela
parceria de nossa infância e mais ainda pela amizade de agora.

Aos queridos amigos que fiz na graduação e que habitam minha vida desde então: Mel
Scanhola, Ana Fattore, Fran Sousa, Rafinha Christofoletti, Luiz Luz, Fer Lemos,
Moacyr Neto, Jama Garcia, Paty ‘de Santos’, Dani Shinzato, Luís Gustavo (Verde),
Sander Albuquerque e Rick Abussafy.

Aos amigos de Araguari que estão sempre presentes: Glauco Ribeiro, Vêva Tomé, Aline
Schellas, Léo Carulla, Ciça Resende, Roberto Amaral e Marília Nunes.

À amiga Daniela Dechichi, que tive o prazer de ter novamente próxima a mim e com
quem dividi almoços reconfortantes durante esses anos.

À família Mendes Lemos, Magaly, Marcelo, Isabela e Lucas, pela compreensão e


gentileza.

À Marlene Camargo, secretária do Programa, pela paciência e presteza.

Aos meus familiares que acompanharam este processo de alguma forma.

À CAPES e ao Cnpq, pelo apoio financeiro.


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ......................................................................................................... 11

CAPÍTULO I: AS SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS ........................................... 28

1. Modernidade, modernismo e modernização ...................................................... 30

1.1. E depois, a pós-modernidade? ............................................................... 38

2. A crise do capital e o retorno à Marx ................................................................. 46

3. Diagnósticos Sociais .......................................................................................... 55

3.1. Sociedade Narcísica, Hipermodernidade e Modernidade Líquida ........ 55

3.2. Sociedade de risco e medo .................................................................... 66

3.3. Cibercultura e Sociedade em Rede ........................................................ 70

CAPÍTULO II – PSICANÁLISE E SOCIEDADE: O SUJEITO E AS


TRANSFORMAÇÕES DO OUTRO .............................................................................. 77

1. Sujeito: da linguagem ao gozo ........................................................................... 78

2. A estrutura do sujeito e as transformações no Outro ......................................... 98

2.1. Sofrimento e contemporaneidade ........................................................ 102

2.2. O pai proletário: declínio da função ou da imagem? ........................... 104

3. Discurso do capitalista: incidências no sujeito e no laço social ....................... 108

3.1. A precariedade dos laços sociais e as redes sociais virtuais ................ 113

CAPÍTULO III – O SUJEITO E O GOZO ESCÓPICO NA SOCIEDADE


CONTEMPORÂNEA ................................................................................................... 128
1. O Facebook ...................................................................................................... 129

2. Schautrieb e Schaulust através da tela ............................................................. 134

3. Recorte: Disconnect ......................................................................................... 156

4. A Sociedade Escópica no contexto de rede ..................................................... 159

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 169

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 183


ÍNDICE DE FIGURAS

Figura 1 - Matema dos discursos .....................................................................................51


Figura 2 - Discurso do Mestre .........................................................................................52
Figura 3 - Discurso Universitário ....................................................................................52
Figura 4 - Um par de sapatos, Van Gogh, 1886..............................................................58
Figura 5 - Um par de sapatos, Van Gogh, 1886..............................................................59
Figura 6 - Diamond dust shoes, Andy Warhol, 1980 ......................................................60
Figura 7 - Diamond dust shoes, Andy Warhol, 1980 ......................................................60
Figura 8 - Esquema do buquê invertido...........................................................................83
Figura 9 - Esquema L ......................................................................................................85
Figura 10 - A alienação ...................................................................................................87
Figura 11 - Grafo do desejo .............................................................................................88
Figura 12 – Intersecção na Separação .............................................................................89
Figura 13 - Operação de separação ..................................................................................90
Figura 14 - Circuito da pulsão .........................................................................................92
Figura 15 - Os quatro discursos .......................................................................................94
Figura 16 - Operação de um quarto de giro .....................................................................94
Figura 17 - Discurso do Capitalista ...............................................................................109
Figura 18 - 'Tradução' da estrutura algébrica do discurso do capitalista .......................111
Figura 19 - Namoro Fake...............................................................................................114
Figura 20 - O homem-polvo virtual...............................................................................119
Figura 21 - A Condição Humana, Renè Magritte, 1935 ...............................................142
Figura 22 - Esquema simplificado do buquê invertido..................................................145
Figura 23 - O esquema Panóptico..................................................................................164
FERREIRA-LEMOS, Patrícia do Prado. (2014). O sujeito e o escópico na sociedade
contemporânea conectada. Tese (Doutorado em Psicologia Social). 196 f. Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

RESUMO

Esta pesquisa propôs articular psicanálise e sociedade, atentando-se para as


contingências do capitalismo tardio que atravessam os laços sociais e repercutem nos
sujeitos. Diante deste cenário, entendemos que a internet assume notório papel,
especialmente em suas redes sociais, ao evidenciar a composição dos laços, assim como
aspectos da estrutura dos sujeitos. Deste modo, a tese que se buscou defender é a de que
na conjuntura atual, sobretudo a partir dos aparatos tecnológicos, os sujeitos são
capturados mais notadamente por uma modalidade de gozo, a qual apreendemos ser o
escópico, que diante de suas especialidades indica particularidades da estrutura dos
sujeitos e também de suas articulações com os outros e os objetos. Para tanto,
dividimos o trabalho em 03 (três) capítulos que se complementam: no primeiro
investigamos diferentes leituras da cultura contemporânea, contrapondo concepções
modernas às pós-modernas e elucidando a sociedade na qual os sujeitos estão inseridos;
no segundo marcamos diferenças teóricas introduzidas pela psicanálise, apresentando
peculiaridades da estrutura do sujeito e as colaborações de autores da psicanálise para a
discussão sobre sujeito na atualidade e, posteriormente, no terceiro capítulo,
contemplamos nosso objetivo e discorremos sobre o campo escópico, destacando as
implicações e a captura do sujeito por esta modalidade de gozo, sobretudo a partir das
redes sociais. Para tanto, elegemos o site Facebook como rede social para investigação,
tomando-o como um dispositivo que representa algumas das composições
contemporâneas da cultura. Destacamos, por fim, o modo como a estrutura do sujeito e
a transistoricidade da linguagem no âmbito da humanidade se relacionam com as formas
de aparelhamento do gozo e com a diversidade histórica discursiva dos laços sociais.

Palavras-Chave: Sujeito. Laços sociais. Gozo escópico. Redes sociais. Internet.


Sociedade. Psicanálise.
FERREIRA-LEMOS, Patrícia do Prado. (2014). The subject and the scopic in
contemporary connected society. Thesis (Ph.D. in Social Psychology). 196 p.
Pontifical Catholic University of São Paulo, São Paulo.

ABSTRACT

This research proposes to interface psychoanalysis and society, focusing on the


contingencies of late capitalism which cross social linkings and are reflected on the
subjects. In view of this situation, we understand the internet takes a notable role, when
regarding social networking, by displaying the constitutions of social linkings and some
aspects of the structure of these subjects. Thus, the thesis we have seeked to defend is
that in the present conjuncture, especially in light of its technological apparatuses, the
subjects are more significantly captured by a distinctive modality of gaze, one we
apprehend being the "scopic", which in face of its features, exposes the peculiarities of
the subjects structures and their interface with other subjects and objects. For such a
task, we have divided our research into three complementary chapters: in the first, we
investigate different readings about contemporary culture, contrasting between modern
and post-modern conceptions and shedding some light on the society in which the
subjects are taking part; in the second chapter, we highlight some theoretical differences
introduced by Psychoanalysis, presenting the peculiarities of the structure of the
subjects, along with some contributions by psychoanalytic authors, regarding the
debates around subjects in our society; Finally, in the third chapter, we contemplate our
objectives and examine the notion of "scopic field", highlighting the implications on
subjects by this modality of gaze, especially in light of social networks. We chose
Facebook site as the main social network under investigation, taking it as a device
which represents some of contemporary cultural constitutions. We finally stress how
subject's structures and language's transhistoricism relate to the forms of gaze
implementation and the discursive diversity of social linkings, showing that historical
shifts do affect the subjects, but not in its structure.

Keywords: Subject. Social links. Scopic gaze. Social networks. Internet. Society.
Psychoanalysis.
[11]

APRESENTAÇÃO

Existe uma composição desta pesquisa. Ela é derivada de um trajeto que nos
acompanha desde quando escolhemos a investigação como um caminho a ser trilhado.
Mesmo que tenhamos modificado o objeto, passando da televisão à internet, num
percurso que acompanha o próprio trajeto dos media, há um fio condutor que une a
pesquisa de iniciação científica a esta tese de doutorado: a relação entre as pessoas
mediada pelos meios de comunicação.

Os quinze anos que distanciam um trabalho do outro apontam uma modificação


teórica, referente a uma escolha particular, e também evidenciam essa transformação no
eixo dos media. Ao fim da década de 1990, mesmo com o início da expansão da
internet, a televisão ainda se configurava como o principal meio de comunicação que
exercia ativamente influência na vida das pessoas, apresentando-se enquanto uma
sugestão de modos de agir e pensar. Talvez ainda possamos compreendê-la deste modo
imparcial e sugestivo, mas atualmente é improvável que os holofotes não tenham se
desviado e se direcionado à internet, que se apresenta, dentro de suas características
particulares, enquanto o principal media contemporâneo. Este processo encontra-se
ainda em curso, mas desde meados da primeira década de 2000 iniciou-se uma massiva
ampliação de acesso, muito fortificado por políticas públicas que desenvolveram
projetos de ‘inclusão digital’, como o programa de 2005 do governo federal
Computador para todos – Projeto Cidadão Conectado, que objetiva a democratização
do acesso à tecnologia, visando a inserção dos cidadãos na ‘nova linguagem’ e
possibilitando que mais pessoas se ‘beneficiem’ da rede.

É também neste período – entre o fim da década de 1990 e o início da de 2000 –


que começam a serem realizados diversos estudos, especialmente nas ciências sociais,
que contemplam especulações e possíveis consequências da conexão em uma escala
global, que pouco a pouco atravessa diferentes âmbitos da vida, seja econômico, seja
político, seja cultural e até mesmo particular. É a ‘globalização’ podendo ser vista, onde
as fronteiras territoriais se esvaem e encontra-se na metáfora das nuvens sua
representação. Foi neste contexto que nos dedicamos pela primeira vez ao tema, na
[12]

ocasião da conclusão de especialização em Psicologia Clínica (PUC-Rio, 2006). Neste


momento, buscamos entender a partir das elaborações psicanalíticas de Freud sobre
vínculos sociais, especialmente Psicologia das Massas e análise do ego (1921) e Mal-
estar na Civilização (1930), a estrutura grupal da associação de pessoas em
comunidades virtuais.

No ano de 2004, chama-nos a atenção a massificação das redes sociais,


representada – particularmente no Brasil – pelo site Orkut1, juntamente com outros
dispositivos, como as salas de bate-papo de todos os tipos disponíveis em dezenas de
sites de relacionamento e propensos a formação de redes. Na práxis psicanalítica,
particularmente em nossa escuta, as falas começaram a ser atravessadas por relatos,
confusões e confissões vindos desses acontecimentos online, que despertavam fantasias
e causavam rebuliço no eu. Com a novidade e experimentação, alguns aproveitavam
para dar ‘asas a imaginação’ e se apresentavam em rede com identidades bastante
criativas, avatares que permitiam ao sujeito um verdadeiro passeio por suas
identificações. Ainda neste tempo, e não por acaso, era bastante comum encontrarmos
uma série de perfis fakes (falsos), compostos por esses ‘outros’ que habitam cada um de
nós. Isso nos despertou algumas questões e desenvolvemos nossa dissertação de
mestrado a partir do entrelaçamento entre fantasia e laço social em redes sociais. Foi
também no período correspondente à elaboração da dissertação, que vimos outras redes
sociais ganharem força no Brasil – e também ao redor do mundo –, com características
distintas daquelas às quais nos empenhamos, como o Facebook2, que ainda demorou um
pouco para cair nas graças dos brasileiros – até pela dificuldade do idioma, que nesta
época era exclusivamente em inglês.

Entretanto, especialmente estes dois dispositivos – Orkut e Facebook –


naquilo que convidavam as pessoas a se conectarem umas as outras e a se representarem
em rede, suscitaram algo que nos apontava para algo do jogo escópico enquanto um
possível ‘mediador’ dessas relações, tal como se dá no off-line, mas que aparece
amplificado pelas redes sociais virtuais.

Como expusemos, o computador e seus desdobramentos – os gadgets que dele


derivam – poderiam ser eleitos como objetos que simbolizam a cultura contemporânea,

1
https://www.orkut.com
2
https://www.facebook.com
[13]

entrelaçando suas consequências e ‘novidades’. Apesar de uma invenção relativamente


recente é cada vez mais notório que a tecnologia e a cultura se entrelaçam, como
apontado por Pierre Lévy (1999) no termo ‘cibercultura’. Nesta concepção, este modo
de cultura engloba um conjunto de técnicas, práticas, atitudes, modos de pensamento e
de valores que se desenvolvem concomitante ao meio de comunicação que surge na
interconexão dos computadores, ou seja, o ‘ciberespaço’ (p.17).

Lúcia Santaella, no livro Linguagens líquidas na era da mobilidade (2007),


destaca que as mídias (fotografia, televisão, jornal, internet), são capazes de transformar
o social. Para melhor dizê-lo, a autora refere-se à ‘ecologia midiática’ – termo definido
por Neil Postman em 1970 como “o estudo das mídias como ambientes” – para enfatizar
a possibilidade de transformação:

(...) quando uma nova mídia é criada e socialmente introduzida,


adotada, adaptada e absorvida, ela faz crescer em torno dela práticas e
protocolos sociais, culturais, políticos, jurídicos e econômicos. Isso
tem recebido o nome de ‘ecologia midiática’ que implica a total
integração de uma mídia nas interações sociais cotidianas. Embora
haja uma tendência a pensar as mídias apenas como meios de conexão
e transmissão de mensagens de um ponto a outro, elas, na realidade,
alteram de modo significativo os ambientes em que vivemos e a nós
mesmos como pessoas. (Santaella, 2007, p. 232)

Por certo, não é privilégio do media internet o impacto cultural, mas este meio de
comunicação possui particularidades que o diferencia dos outros meios mais
convencionais – como o rádio, jornal impresso e a televisão –, podendo ser pensado
como algo que se desdobra a partir destes precedentes e, em certo sentido, os ultrapassa.
Lévy (2002/2007) acredita que a cibercultura seja a nova forma de cultura, que não nega
a oralidade e a escrita, mas que emerge como um prolongamento destas, como uma flor,
um fruto. Ora, diante disso podemos afirmar que a internet é um produto de seus
antecessores, um caminho para o qual se seguiu a partir de portas que abriram.
Entretanto, não se pode negar que este seja um dispositivo, de certo modo, transgressor:
[14]

A internet é um espaço de comunicação propriamente surrealista, do


qual “nada é excluído”, nem o bem, nem o mal, nem suas múltiplas
definições, nem a discussão que tende a separa-los sem jamais
conseguir. A internet encarna a presença da humanidade a ela própria,
já que todas as culturas, todas as disciplinas, todas as paixões aí se
entrelaçam. Já que tudo é possível, ela manifesta a conexão do homem
com a sua própria essência, que é a aspiração à liberdade (Lévy,
2002/2007, p.12).

Se seguirmos esta afirmação de Lévy, teríamos margem para questionar se a


internet poderia ser tomada como Outro não castrado, sem falta, sem impossível? Em
caso afirmativo, como se posiciona o sujeito do qual se ocupa a psicanálise diante deste
“todo-possível”? Seria o apogeu da queda do simbólico, do mestre degenerado, do
declínio do pai, do sujeito pós-moderno, da esquizofrenização da cultura ou da
perversão generalizada (formulações que fragmentam o atual campo de pensamento
psicanalítico)? Haveria, neste momento, uma modificação na estrutura do sujeito ou
seriam transformações discursivas – de ordenadores de gozo –, decorrentes do
capitalismo tardio, refletindo no laço social? São questões que nos movem e às quais
nos dedicamos, especialmente nos dois primeiros capítulos. De que sociedade estamos
falando? Quais são suas características? Como o sujeito se insere neste contexto?

Antes de tudo, é importante que ressaltemos algumas considerações no trâmite


do objeto em observação, para que possamos entender como se configura. Pois, apesar
de todo o rebuliço do dispositivo internet, como afirmamos, ele só se torna acessível à
população geral a partir de meados de 1995. Portanto, estamos tratando de alguma coisa
com menos de duas décadas em ação e em permanente transformação. Mas há algo que
consta desde os primórdios, na década de 1970, quando a internet era acessível apenas a
hackers e cientistas: o projeto de redes interligadas e comunicação interpessoal
(Castells, 1999).

Hoje, a internet é cada vez mais presente na rotina das pessoas, atravessando
notadamente todas as esferas da cultura: economia, entretenimento, ciência, literatura,
artes etc., abrangendo desde conhecimentos triviais, como conhecimentos eruditos.
Vivemos em tempo da ‘Sociedade em Rede’ tendo a internet como dispositivo
[15]

facilitador da disseminação da informação, que alavanca a sociedade pós-industrial que,


como se sabe, pretende ser tecnizada, globalizada e em rede (Castells, 1999). É a
globalização de fato acontecendo e, como precisa Castells, este momento afeta a vida
em sociedade:

Se você não se importa com as redes, as redes se importarão com


você, de todo modo. Pois, enquanto quiser viver em sociedade, neste
tempo e neste lugar, você terá de estar às voltas com a sociedade de
rede. Porque vivemos na Galáxia da internet”. (Castells, 2003, p.230)

A internet se configura como o ‘tecido de nossas vidas’, comparável à rede


elétrica, por sua capacidade de distribuir a força da informação por todos os domínios
das atividades desenvolvidas, pela influência em diferentes setores e também pela
participação nas relações sociais (Castells, 2003). E ainda, como sugere Viana (2013) na
apresentação de Cypherpunks:

A rede mundial de computadores apresenta, como muitas tecnologias,


uma variedade de usos possíveis. É, como a energia elétrica, a
semente de uma gama infinita de possibilidades, e semente poderosa:
seu potencial ainda está sendo descoberto ao mesmo tempo que se
rumo vai sendo definido pelo caminhar tecnológico e pelo caminhar
político. (Viana, 2013, p.9)

Sem dúvida, as implicações nos laços sociais e, consequentemente, na política, nos


parecem ser vieses fundamentais para nossas formulações. Pois, para a psicanálise o
social sempre teve extrema relevância e destaque, como se pode observar no percurso
freudiano – de Moral Sexual Civilizada e a Doença Nervosa Moderna (1908) a Moisés
e o Monoteísmo (1939) – e também na extensão do trabalho de Lacan – desde o
inconsciente como linguagem à teoria dos discursos.
[16]

Lévy (1999), considerado por muitos um otimista, coloca que vivemos um


‘momento de mutação’, tempo que marca, inclusive, transformação nos modos de se
relacionar, partindo para um ‘coletivo inteligente’, que compartilha informações sobre
todas as coisas, o tempo todo e que, ao mesmo tempo, afeta os sujeitos humanos de
modo particular:

Cabe apenas a nós continuar a alimentar essa diversidade e exercer


nossa curiosidade para não deixar dormir, enterradas no fundo do
oceano informacional, as pérolas de saber e de prazer – diferentes para
cada um de nós – que esse oceano contém. (Lévy, 1999, p.91/92)

Slavoj Žižek (2006a), pensador esloveno contemporâneo, em sua leitura sobre o


ciberespaço, remete à ideia de tela em associação à psicanálise, ressaltando o modo
como o social se faz presente no particular – ou, para lembrar Lacan, tal como a banda
de Möebius, é indissociável o exterior do interior.

Para Žižek, o ciberespaço é capaz de promover encontros entre o sujeito e seus


‘eus’, que por vezes lhe são desconhecidos ou estão adormecidos. Esta possibilidade de
encontro se daria pelo fato de que a mediação da tela do computador proporciona certo
afrouxamento das amarras às quais o sujeito se vê referenciado em sua vida off-line:

Dicho de otro modo, los ‘múltiples yos’ que se exteriorizan en la


pantalla son ‘aquello que yo quiero ser’, la forma en que quiero verme
a mí mismo, las figuraciones de mi yo ideal; en este sentido, son como
las capas de una cebolla: no hay nada en el centro, y el sujeto es esta
‘nada’ misma. (Žižek, 2006a, p. 231)

Poderíamos trazer um sem fim de autores reconhecidos (ou não) para


reafirmarmos a importância e imenso campo de investigação do dispositivo internet, em
diversas áreas do saber e abordada por diferentes vertentes; mas a titulo de adentramos
na proposta de tese, recorreremos à investigação desenvolvida na dissertação de
[17]

mestrado, intitulada Através – Da Digitalização da Vida (Ferreira-Lemos, 2009), na


qual nos aprofundamos no estudo das relações estabelecidas nas comunidades virtuais.
Para tanto, após a pesquisa bibliográfica pelos campos sociológico e filosófico a
respeito da internet recorremos, especialmente, aos conceitos psicanalíticos de fantasia e
nó borromeano (Lacan, 1974-1975) – que compreende os elos Real, Simbólico e
Imaginário – para investigar o assunto e posteriormente coletamos material disponível
em rede.

Nosso percurso nos mostrou que as relações estabelecidas no ciberespaço,


compreendidas enquanto relações virtuais, tais quais os laços que se desenrolam fora da
rede, são mediadas pela fantasia. Como sabido, para a psicanálise, a fantasia funciona
como proteção frente ao real – o que não pode ser representado, apreendido – que dá
contorno à realidade psíquica – modo pelo qual participamos no mundo:

O inconsciente é a verdadeira realidade psíquica; em sua natureza


mais íntima, ele nos é tão desconhecido quanto a realidade do mundo
externo, e é tão incompletamente apresentado pelos dados da
consciência quanto o é o mundo externo pela comunicação de nossos
órgãos sensoriais. (Freud, 1900/2006, p.637, grifos do autor)

Com efeito, é possível afirmar, apoiados especialmente na concepção freudiana


sobre o tema, transcrita por Jacques Lacan em O Seminário, livro 5 – As formações do
inconsciente (1956-1957), através do matema , que todas as relações que o sujeito
estabelece – com outros sujeitos ou com as coisas do mundo – têm a mediação da
fantasia. Ainda, vale ressaltar:

A fantasia não se reduz ao imaginário ou à imaginação, apesar de


utilizar cenas recordadas, imaginadas ou inventadas. Ela é uma
imagem que tem uma determinação significante, ou seja, uma cena
imaginária construída sobre uma frase que, como tal, tem a estrutura
da linguagem. Por ser inconsciente, a fantasia é estruturada como uma
linguagem de pulsão. (Quinet, 2002/2004, p.170)
[18]

Assim, a partir da imersão nos sites de relacionamentos observamos a questão


escópica como um problema potencial a ser investigado em outro momento, culminando
nesta proposta tese. Várias perguntas foram surgindo e primeiramente, perguntamo-nos
sobre um possível endereçamento daquelas mensagens, das imagens, dos infindáveis
modos pelos quais milhares de pessoas pareciam evocadas a aderir a um verdadeiro
empuxo ao gozo escópico. E afirmamos que desde o início desta pesquisa o que se
constata é uma crescente: aparelhos celulares sem a função de conexão à internet e
captura de imagens, por exemplo, tornaram-se absolutamente obsoletos.

Diante do cenário composto de uma crescente facilidade (e demanda) de


conexão entre as pessoas combinada a uma proliferação de aparelhos tecnológicos
(quiçá ideológicos) e redes sociais – Facebook, Instagram – que implicam num sem fim
de possibilidades de ‘ver e ser visto’, atentamos para a presença dominante do par
exibicionista e voyerista, assim como para um caráter de vigilância – olho que vigia e
pune – que aos poucos vêm ganhando destaque na esfera da cibercultura, especialmente
impulsionado pelas denúncias de Julian Assange e Edward Snowden. Tais
circunstâncias nos levam a apreender que há aqui algo de importante a ser pesquisado
relacionado diretamente à pulsão escópica, assim como ao viés da sociedade do
capitalismo tardio que se utiliza desse gozo como moeda, seja para o exibicionismo,
seja para a vigilância.

Algo dessa correlação é indicado por Antônio Quinet (2002/2004), ao denominar


a sociedade contemporânea de ‘Sociedade Escópica’, ponto que corrobora para
tecermos nossas considerações. Quinet tomou a televisão enquanto o dispositivo
paradigmático da ‘Sociedade Escópica’ e confiamos que a internet possua
características que a coloca enquanto seu maior representante na atualidade. Dentre elas,
destacamos o passo que permite a interação entre o media e o ‘usuário’. Estaríamos
mesmo, como propõe Quinet, em um momento “para-além do panóptico da visibilidade
como fonte de poder e de controle” (p.287) ou existe uma falsa liberdade e que acarreta
na legitimação da vigilância? Quem olha o quê? Quem e para quem se mostra?

Sabemos, desde Freud – com a Schaulust, o gozo escópico – e mais


precisamente com Lacan, que a pulsão que tem o olhar como objeto é fundamental para
a constituição do sujeito, pois implica necessariamente sua relação com eu, outro e
Outro. Isto está em evidência, por exemplo, no estádio do espelho, esquema L e no
[19]

buquê invertido. Entretanto, o olhar como objeto a também deve ser compreendido
como um dos modos de apagamento do sujeito, isto é, “um modo de o sujeito se colocar
em relação ao gozo, e também uma modalidade de apagamento diante do objeto causa
do desejo” (Quinet, 2002/2004, p.66).

Assim, ao mesmo tempo orientados por esta questão e para-além dela, o que nos
evidenciam as relações sociais que se dão nas redes sociais virtuais? O que nos podem
dizer sobre os laços sociais contemporâneos regidos pelo discurso capitalista? Há algo
da estrutura subjetiva que aflora estes e nestes vínculos? Como a questão escópica
enoda este contexto? E, especialmente, como se dá a captura do sujeito pela modalidade
de gozo escópico no contexto das redes sociais?

No âmbito dos estudos que se dedicam à observação dos acontecimentos sociais


e também na concepção filosófica, a temática do olhar sempre esteve presente, como
enuncia Alfredo Bosi em seu artigo Fenomenologia do Olhar (1988). No decurso de seu
texto, Bosi percorre o pensamento antigo, em que gregos e romanos helenizados pensam
duas diferentes dimensões para o olhar: o olhar receptivo (o ver-por-ver) e o olhar ativo
(ver-depois-de-olhar). O autor atravessa o pensamento de inúmeros filósofos,
especialmente Descartes, que coloca o olhar no domínio da ciência. Ao mesmo tempo,
nos chama atenção para a leitura de Maurice Merleau-Ponty, sobretudo a partir de O
visível e o invisível (1964), onde se entende que:

Há um parentesco entre o olhar do outro e meu corpo vivo, que remete


a ‘um único mundo’. (...) Nesse mundo a espessura da carne não deve
ser temida como um obstáculo que separa o eu do outro, mas acolhida
como um meio de comunicação. Eu diria que todo o pensamento de
Merleau-Ponty começa e termina com um apelo à fruição desse olhar
não só pelos artistas mas por todos os homens. (Bosi, 1988, p.82)

A percepção do olhar em Merleau-Ponty que passa pela concepção do corpo como


carne – corpo este que está além do corpo biológico - será fundamental, como veremos
mais adiante, para a teoria lacaniana sobre o escópico.
[20]

Em Freud, no texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), o autor


coloca a existência de pulsões do prazer em olhar e em se exibir, associando-as à
curiosidade sexual. Denomina assim, de ‘pulsão de ver’ ou ‘escópica’ a manifestação
sexual espontânea que pode surgir nas crianças, tornando-as voyeurs. Deste modo, a
‘pulsão de ver’ permite estabelecer outra atividade para o olho: ele não será somente
fonte de visão, mas também fonte de prazer. O que isso significa? Que olhar provoca
algum tipo de satisfação, isto é, ele é fonte de gozo. É exatamente esta formulação que
nos conduz a nossa principal hipótese: navegar pelo ciberespaço, seja como um navio
sem destino ou ladeado por outros navegantes (nas redes sociais, por exemplo)
proclama o olhar, ou seja, implica certo gozo escópico.

No texto As pulsões e suas vicissitudes (1915) Freud se atenta aos componentes


da pulsão: a fonte, a pressão, a finalidade e o objeto; e aos seus destinos: reversão em
seu oposto, retorno em direção ao próprio indivíduo, recalque e sublimação.
Ressaltamos, que seja qual for a condição, a pulsão jamais será totalmente satisfeita,
estando ao alcance dos sujeitos somente a satisfação parcial. Por isso, quando Freud
elabora os destinos da pulsão, ele não coloca a satisfação como uma saída. Entretanto,
são estes reveses que funcionam como motores dos sujeitos, nesse jogo que os leva na
busca constante de gozo.

A pulsão escópica em Freud, i.e., a busca de satisfação através do olhar, é


descrita a partir da mudança possível entre a atividade e a passividade – ver e ser visto,
olhar e ser olhado – e pela introdução de um novo sujeito (outro) para quem o sujeito se
exibe para ser olhado/visto. Ainda, a pulsão escópica possui três tempos, que são:
autoerotismo, voyeurismo e exibicionismo, que coexistem. O autoerotismo concentra-se
no primeiro tempo da organização libidinal, no tempo narcísico em que se exclui o
outro enquanto diferente; o voyeurismo relaciona-se ao ‘ver o outro’ e o exibicionismo
ao ‘ser visto pelo outro’. Antônio Quinet (2002/2004) retoma Lacan ao afirmar que
como convém à pulsão, na pulsão escópica não há mais sujeito, somente o objeto que
brilha em satisfação, o gozo escópico, a Schaulust. Assim, atentamos: na dinâmica do
ciberespaço temos a veemência do jogo ‘olhar e ser olhado’? O laço social e a pulsão
escópica se relacionam?

Lacan se ocupa da pulsão escópica, incialmente no Seminário 10: A angústia


(1962-1963/2005) e, mais precisamente, em O Seminário, livro 11 – Os quatro
[21]

conceitos fundamentais da psicanálise (1964/1985), e coloca que o olhar – objeto de


que depende a fantasia à qual o sujeito está apenso numa vacilação essencial – se
especifica como inapreensível:

Em nossa relação às coisas, tal como constituída pela via da visão e


ordenada nas figuras de representação, algo escorrega, passa, se
transmite, de piso para piso, para ser sempre nisso em certo grau
elidido – é isso que se chama o olhar. (Lacan, 1964/1985, p. 74)

O olhar se situa, portanto, no campo do pulsional, no real, que não pode ser apreendido.
Não é o olhar do sujeito, mas aquele que incide sobre ele, que o concebe como objeto.

A pulsão escópica e o olhar são elementos estruturais dos sujeitos e dos laços
sociais. Ao refletir a sociedade enquanto comandada pela modalidade de gozo escópico
pensa-se que o olhar “é elevado ao status de mestre/senhor, ou melhor, é utilizado pelo
mestre/senhor fazendo confundir o S1 da lei com olhar vigilante e exigente do Grande
Diretor” (Quinet, 2002/2004, p.285). Portanto, o convite à visibilidade da sociedade
contemporânea se relaciona ao discurso do mestre? E é possível pensar em uma relação
com o discurso do capitalista?

Estes são questionamentos que consideramos mais relevantes de nosso estudo.


Além de nos propormos a investigar um acontecimento expressivo e atual de nossa
sociedade, ao pesquisarmos este elemento pelo viés da psicanálise o que pretendemos
também atestar é que não se trata somente de um fenômeno de massa. O que envolve o
florescimento da internet ou dos sites de relacionamento, está atrelado a um discurso –
que originalmente engendraria laços sociais – que pode se comunicar à estrutura do
sujeito. Portanto, há algo do sujeito e do discurso implicado nessa trama e que a
fortalece.

Como colocado anteriormente, a elaboração de Maurice Merleau-Ponty no seu


livro póstumo O visível e o invisível (1964) foi de suma importância para as elaborações
de Lacan sobre o campo escópico. Lacan considera que a obra é ao mesmo tempo
terminal e inauguradora, na medida em que encerra a referência do olho à forma e
coloca o olho apenas como metáfora, pois o que existe é algo anterior ao olho (Lacan,
[22]

1964/1985, p. 73). Assim, Lacan expõe que “o olhar só se nos apresenta na forma de
uma estranha contingência, simbólica do que encontramos no horizonte e como ponto
de chegada de nossa experiência, isto é, a falta constitutiva da angústia da castração”
(ibid., p. 74). Além disso, Lacan entende a partir das ideias de Merleau-Ponty:

(...) somos seres olhados no espetáculo do mundo. O que nos faz


consciência nos institui, do mesmo golpe, como speculum mundi. Não
haverá satisfação em estar sob este olhar (...) que nos discerne e que,
de saída, faz de nós seus olhados, mas sem que isto se nos mostre?
(Ibid., p.76)

Há uma cisão entre ver e olhar: ‘ver’ não é ‘olhar’, quando vemos agimos com os olhos
do eu, isto é, dotamos de sentido aquilo que nos é visível, selecionando imagens que
reconhecemos. Já o olhar é de outra ordem, implica o desejo e é nisso que é pulsional:

De maneira geral, a relação do olhar com o que queremos ver é uma


relação de logro. O sujeito se apresenta como o que ele não é e o que
se dá para ver não é o que ele quer ver. É por isso que o olho pode
funcionar como objeto a, quer dizer, no nível da falta (-). (Lacan,
1964/1985, p.102)

Nesse imenso palco, onde é possível que todos façam espetáculo, que se
exponham e que assistam, é imprescindível que se atente para o que acontece a fim não
só de entendermos a dinâmica social contemporânea pautada na incidência do discurso
do capitalista, como também perceber a estrutura subjetiva que engendra este
movimento e que o viabiliza.


[23]

Diante da exposição das inquietações que nos conduziram à formulação das


questões propostas, traçamos um percurso que nos permite nos aproximarmos da
elaboração de elucidação dos questionamentos e hipóteses aqui estabelecidas. Para
tanto, dividimos este trabalho em três capítulos.

No primeiro, intitulado As sociedades contemporâneas, iniciamos a pesquisa


procurando compreender a ideia de modernidade, partindo das elaborações de Marshall
Berman (1982/1986), que a concebe a partir do estabelecimento do capitalismo, no
início do século XVI. Assim, atravessamos diferentes momentos modernos, até
chegarmos à atualidade, marcada pelo capitalismo tardio. Ainda, indagamos a
concepção de pós-modernidade, trazendo especialmente as considerações de Perry
Anderson (1998/1999) e Jean François Lyotard (1979/1988). Este trajeto nos leva a
questionarmos o retorno às elaborações de Marx para o entendimento da atual crise no
sistema capitalista, como sugere Eric Hobsbawn (2011), David Harvey (2010), István
Mèszaros (2009/2011), entre outros, mostrando a atualidade e lucidez da contribuição
de Marx, que contribui ferozmente para a discussão da contemporaneidade. É também
nesta ocasião que começamos a apresentação da teoria dos discursos em Lacan (1969-
70/1992), providencial para o entendimento dos modos de aparelhamento de gozo
predominantes em momentos históricos distintos e que diretamente se ocupam da
relação indissociável entre sujeito e cultura.

Nossa intenção é apresentar pensadores expressivos de diferentes abordagens


que estudam a sociedade atual, para que possamos esclarecer e entender o que permeia e
fundamenta o contexto no qual os sujeitos estão inseridos. A abertura de diversas frentes
é fundamental para entendermos não só que não há uma teoria única que possa apontar
uma resposta eficiente sobre o contemporâneo – o que marca o problema da
fragmentação do pensamento – como que há convergências que assinalam que vivemos
um momento de crise e de transformação social, com ampla participação da tecnologia e
que isso afeta diretamente os laços sociais e as inquietações dos sujeitos. Como se sabe
na psicanálise, o Outro é fundamental na estrutura dos sujeitos e esta relação entre
particular e social é intrínseca. Portanto, é imprescindível que se atente para a
constituição social quando propomos pensar a estrutura do sujeito articulada a um modo
de gozo atrelado ao contexto específico das redes sociais, inseridas no discurso do
capitalista.
[24]

Assim, ao final deste capítulo, nos dedicamos a abordar teorias que insistem em
indicar o que consideram ‘sintomas’ contemporâneos e suas consequências na vida dos
‘sujeitos genéricos’, movimento que denominamos ‘diagnósticos sociais’: Sociedade
Narcísica (Christopher Lash), Hipermodernidade (Gilles Lipovetsky), Modernidade
Líquida (Zygmunt Bauman), Sociedade de Risco (Ulrich Beck), Cibercultura (Pierre
Lévy) e Sociedade em Rede (Manuel Castells). Embora a discussão esteja distante de
nossa abordagem psicanalítica lacaniana, os apontamentos destes autores nos auxiliam a
entender de que modo a cultura vem sendo apreendida por diferentes e influentes
teóricos, que destacam, especialmente, que algo ocorre no âmbito social e,
consequentemente, nos sujeitos a partir da estrutura capital, como dos aparatos
tecnológicos.

No segundo capítulo, Psicanálise e Sociedade: o sujeito e as transformações no


Outro, nossa atenção está voltada às elaborações da psicanálise diante do cenário que
apontamos no capítulo anterior. Abrimos este investigando a questão do sujeito da
psicanálise, marcando sua evidente dissidência com a psicologia do eu e com teorias
que antecedem a psicanálise. Vemos que é Freud quem viabiliza Lacan a elaborar o
sujeito enquanto um conceito, ao conceber o inconsciente e postulá-lo como estruturado
como uma linguagem – fato evidente em suas elaborações teóricas, decorrentes da
técnica de escuta psicanalítica que fundou: a associação livre.

Neste caminho, trazemos primeiramente as elucidações e avanços de Lacan na


teoria do sujeito, apresentando motes relevantes, tais como o estádio do espelho, o
buquê invertido de Bouasse, alienação, separação, pulsão e a teoria dos discursos.
Optamos por inaugurar este capítulo com este percurso, a título de seguirmos com a
pesquisa que iniciamos no primeiro capítulo e introduzirmos diferenças teóricas que
fundamentam nossa escrita a partir do segundo capítulo. Sendo assim, a leitura da
segunda parte do capítulo é possível ser feita tendo como referência o que é explorado
em Sujeito: da linguagem ao gozo.

Na sequência, trazemos as considerações de autores da psicanálise,


especialmente Raul Pacheco, Sidi Askofarè, Carmen Gallano e Colette Soler, que
exploram a relação entre cultura e psicanálise, contribuindo para a elaboração de nossos
argumentos, uma vez que agregam elementos para a discussão com o capítulo anterior,
ao tecerem considerações relevantes sobre as transformações do Outro e suas
[25]

incidências no laço social. Ainda, é importante que se destaque a crítica às teorias que
sugerem a emergência de um sujeito inédito em nosso tempo, tais quais as que
condiremos ‘diagnósticos sociais’, que fragmentam e dissolvem conceitos fundamentais
da psicanálise, como o da estrutura do sujeito. Neste sentido, as elaborações de Markos
Zafiropoulos (2002) nos auxiliam a esclarecer qualquer mal-entendido possível de advir
da própria elaboração lacaniana, especialmente relacionada ao declínio da imago
paterna. Posteriormente, consideramos a precariedade dos laços sociais na condição do
discurso do capitalista, que inviabiliza a relação do sujeito com o outro, privilegiando e
fortalecendo a sua relação com objetos. Nesta cena, os vínculos sociais que se dão nas
redes sociais do ciberespaço, emergem enquanto um espelhamento da relação dos
sujeitos dominados pelo capitalismo tardio e potencialmente fortificam o
distanciamento entre as pessoas, mascarado pela ilusão de proximidade ao possibilitar a
‘conexão’ de todos com todos.

Isso posto, consideramos que preparamos abertura para nos dedicarmos ao


terceiro capítulo da tese, O sujeito e o gozo escópico na sociedade contemporânea, no
qual contemplamos nosso objetivo principal, ao tentarmos elaborar de que modo o
sujeito é capturado pela modalidade de gozo escópico na sociedade contemporânea,
especialmente a partir das redes sociais e, mais particularmente, no Facebook.

Deste modo, na primeira parte do capítulo apresentamos o site Facebook,


escolhido enquanto dispositivo de investigação, por uma questão necessária de recorte e
por entendermos que se configura enquanto importante representante das condições
sociais que descrevemos nos dois primeiros capítulos, ao reproduzir algumas das
articulações sociais do capitalismo tardio, uma vez que incorpora questões mercantis e
também relações sociais em sua plataforma. É também aqui que apresentamos e
discutimos, além da descrição e dados do site, alguns estudos que o tomam enquanto
uma espécie de epidemia social, causadora de diferentes tipos de males.

Em seguida, em Schautrieb e Schaulust através de uma tela, dedicamo-nos


precisamente a questão da pulsão e do gozo escópico, trazendo as elaborações de Freud
e Lacan, mais exatamente em o Seminário 10: a Angústia (1962-1963) e Seminário 11:
os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964), quando ele o toma enquanto
objeto a. Neste momento, tecemos nossas considerações e sustentamos que a relação
que o sujeito estabelece diante desses novos aparatos tecnológicos ou das novas
[26]

tecnologias de sociabilidade perpassam a estrutura do sujeito, naquilo que ela se articula


ao escópico. Trazemos o campo do visível (olho) e do invisível (olhar) para a discussão,
colocando em relevo as peculiaridades de cada campo e aproximando estas
características com essa captura de um modo particular de gozo. Nesse sentido,
procuramos apreender o que é que exerce o fascínio dos sujeitos humanos aos
dispositivos tecnológicos que se constituem sobretudo pela imagem, a representação.
Para-além das teorias que marcam o narcisismo enquanto uma das principais
características do sujeito na atualidade, buscamos incrementar e nos aprofundar na
relevância do jogo escópico na constituição psíquica, conduzindo nossas explanações
articuladas a estrutura do sujeito, o que nos leva a reverenciar que não existe uma
mudança estrutural, mas uma conexão que enoda estrutura e gozo. Ainda, questionamos
se é possível pensar no olhar a partir da rede social Facebook, isto é: o sujeito é olhado
pelo objeto? Para tanto, trazemos como recorte duas tramas do filme Disconnect
(Rublin, 2012) que nos auxiliam a pensar de que modo o olhar pode voltar-se para o
sujeito nas redes sociais.

Finalizando este capítulo e também nosso argumento, atemo-nos em A


Sociedade Escópica no contexto de rede à construção conceitual de ‘Sociedade
Escópica’ de Antônio Quinet (2002/2004), revisitando a ‘Sociedade do Espetáculo’ de
Guy Debord e a ‘Sociedade Disciplinar’ de Michel Foucault, referências para a
elaboração. Consideramos que ao destacar suas características e decorrências,
justificamos nossa escolha por essa ideia para considerarmos a sociedade
contemporânea, abarcando aquilo que desenvolvemos anteriormente e contribuindo para
se pensar a sociedade conectada. Neste sentido, desmembramos as duas propostas que
sustentam a ‘Sociedade Escópica’ e avançamos para considerarmos a sociedade atual,
em sua crescente vigilância social online e offline, assim como a crescente demanda por
visibilidade emanada pelos conectados e instigada pelos aparelhos tecno(ideo)lógicos.
Deste modo, buscamos entender e apontar, corroborando com as considerações postas
neste e nos capítulos anteriores, de que modo o gozo escópico aparece e protagoniza
nossa cultura.

Assim, acreditamos que trouxemos elementos que contribuem com nossa


hipótese e que somam argumentos para a discussão proposta sobre o sujeito e a
sociedade em nosso tempo – objetivo geral de nossa proposta – igualmente, com o
objetivo principal, de pensar a captura do sujeito pela modalidade de gozo escópico,
[27]

indicando que as contribuições da psicanálise são essenciais para que se possa


compreender os desdobramentos no momento social presente, a implicação do sujeito
nesta conjuntura e os possíveis efeitos nos laços sociais.
[28]

CAPÍTULO I

AS SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS

Especialista sem espírito, sensualista sem coração, e esta nulidade é


tida como o supra-sumo da civilização (Goethe)

A investigação bibliográfica que iniciamos nos primórdios desta pesquisa, com


intuito de entendermos a circunstância atual da sociedade, nos levou ao encontro de um
sem fim de autores que nos auxiliariam neste processo. Entretanto, e não por acaso,
encontramos na obra de alguns teóricos sociais perguntas e descompassos que podem
enriquecer este trabalho. Como é de se esperar nas ciências humanas, especialmente nas
sociais, não existe um universal que permeie as teorias e que possibilite uma proposta
sem questionamento; o que existe é um emaranhado de dúvidas, de posições que
marcam as diferentes leituras dos autores da sociedade contemporânea. Esta falta de
unidade por vezes aparece enquanto um problema para os pensadores que se inquietam
com a fragmentação do pensamento, indissociável de uma espécie de ‘sintoma’ que
também aponta para a fragmentação da sociedade.

Neste primeiro capítulo da tese nossa proposta é justamente apresentar as


transformações no campo da cultura ao longo do processo histórico. Para tanto,
percorremos os caminhos pelos quais passam importantes autores sociais hodiernos,
para que possamos contextualizar nossa sociedade, entendendo pontos primordiais que
irão contribuir para a discussão do segundo capítulo, no qual percorreremos as
elaborações da psicanálise sobre o sujeito contemporâneo. Este objetivo pode se
justificar pela referência máxima freudiana em Psicologia de grupo e análise do ego
(1921/2006):
[29]

É verdade que a psicologia individual relaciona-se com o homem


tomado individualmente e explora os caminhos pelos quais ele busca
encontrar satisfação para seus impulsos instintuais; contudo, apenas
raramente e sob certas condições excepcionais, a psicologia individual
se acha em posição de desprezar as relações desse indivíduo com os
outros. (...) desde o começo, a psicologia individual, nesse sentido
ampliado mas inteiramente justificável das palavras, é, ao mesmo
tempo, também psicologia social. (Freud, 1921/2006, p.81)

Do mesmo modo, podemos perceber ao longo dos seminários de Lacan, a insistência em


marcar a intrínseca relação entre o sujeito e o social, destacando a importância da
cultura, do simbólico e do discurso na constituição subjetiva. O sujeito é efeito do
significante e esta afirmativa também nos indica que não devemos nos alienar diante do
que se passa no contexto histórico-social. Lacan ressalta a necessidade de um analista
se atentar para a subjetividade de sua época:

(...) como poderia fazer seu ser o eixo de tantas vidas quem nada
soubesse da dialética que o compromete com essas vidas num
movimento simbólico. Que ele conheça bem a espiral a que o arrasta
sua época na obra contínua de Babel, e que conheça sua função de
intérprete na discórdia das línguas. (Lacan, 1953/1998, p.322)

É o que faremos, localizando desde a concepção de modernidade, passando para a


elaboração sobre a pós-modernidade e, de modo paradoxal, nos encontrando com a
teoria marxista. Posteriormente, trazemos o que entendemos como ‘diagnósticos
sociais’, isto é, as diversas formas de tentar contextualizar as transformações que
ocorrem no âmbito social e econômico e que, consequentemente, refletem na vida dos
‘sujeitos genéricos’.
[30]

1. Modernidade, modernismo e modernização

Se há necessidade de situarmos a modernidade, iremos concebê-la tendo como


norte as formulações de Marshall Berman (1982/1986), que a considera a partir da
implementação do capitalismo enquanto modo de produção e a divide em três
momentos, sendo: 1) o início do século XVI ao fim do século XVIII; 2) a ‘onda
revolucionária’ de 1790, marcada especialmente pela revolução Francesa e 3) a partir do
século XX. Estes três momentos são marcados por um processo de evolução da
modernidade, que irá apurá-la, até chegarmos ao seu estágio ‘final’ ou atual, marcado
pela globalização mundial e pelo capitalismo tardio.

A modernização se instaurou há mais de quinhentos anos, desenvolvendo uma


história e variedade de tradições próprias (Berman, 1982/1986). Na primeira fase de seu
processo evolutivo, a modernidade tem um caráter experimental, onde as pessoas estão
passando a vivenciá-la, com quase nenhum senso de comunidade moderna. Para
Berman, Jean-Jacques Rousseau seria a ‘voz moderna’ desta primeira etapa,
considerando-o como “matriz de algumas das mais vitais tradições modernas, do
devaneio nostálgico à auto-especulação psicanalítica e à democracia participativa”
(1982/1986, p.16). Rousseau foi quem utilizou pela primeira vez a palavra moderniste3 e
em seu romance Júlia ou A Nova Heloisa (1761) podemos ver, a partir das descrições
do jovem Saint-Preux, o tourbillon social, no qual se encontravam o personagem, o
próprio Rousseau e a sociedade francesa à época. Saint-Preux escreve a Júlia sobre o
que vivencia na vida metropolitana, indicando-nos os afetos diante da emergência da
modernidade, como cita Berman (p.16-17):

(...) eu começo a sentir a embriaguez a que essa vida agitada e


tumultuosa me condena. Com tal quantidade de objetos desfilando
diante de meus olhos, eu vou ficando aturdido. De todas as coisas que

3
No livro As origens da pós-modernidade (1998/1999), Perry Anderson sugere que o termo
‘mordenismo’ seja original da América hispânica, tendo sido criado para designar um movimento estético
a um poeta da Nicarágua chamado Rubén Darío, em 1890, que fazia frente à Espanha, almejando um
movimento de emancipação cultural.
[31]

me atraem, nenhuma toca o meu coração, embora todas juntas


perturbem meus sentimentos, de modo a fazer que eu esqueça o que
sou e qual meu lugar. (Rousseau apud Berman, 1982/1986, p. 16-17)

Na segunda fase (talvez a que de fato mais simbolize alguma ruptura),


encontramos o sentimento revolucionário desencadeado pela primeira grande revolta
social que de fato questiona a velha ordem europeia, a Revolução Francesa de 1789 e
que dá visibilidade para as transformações que ocorrem em várias esferas da vida
pessoal, social e política. Antes desse momento, as ‘maiores’ nações da Europa ainda
eram governadas pela monarquia, com apoio da nobreza e do clero. Todavia, a
‘burguesia’ ou a nova classe média, emergia pelo continente europeu, especialmente a
partir da Revolução Industrial Inglesa, também fundamental para a origem da classe
operária, que se concentrava nas cidades recém-industrializadas.

Ainda, antes de 1789, a burguesia se sentia enfurecida em manter, às suas custas,


os privilégios da aristocracia da corte de Versalhes de Luís XVI e também os eclesiais.
A França encontrava-se endividada e a burguesia procurava junto ao governo, ter seus
interesses igualmente atendidos; a nobreza e o clero também haviam se revoltado,
recusando a implementação pelo rei Luís XVI de pagamento de impostos sob suas
propriedades.

Com a França completamente em crise, convocou-se, em maio de 1789, a


Assembleia dos Estados Gerais, composta por representantes das três diferentes ordens
sociais: Primeiro estado, composto pelo clero; Segundo Estado, composto pela nobreza
e o Terceiro Estado, composto pela burguesia e pelos sans-culottes (os ‘sem culotes’,
classe trabalhadora que usava calça comprida no lugar de culotes das classes mais ricas:
o povo). Na Assembleia, o clero e a nobreza se uniram para derrubar o Terceiro Estado
e Luís XVI tentou dissolver os Estados Gerais. Diante do caos instaurado, na ocasião do
Juramento do Jogo da Péla (em junho do mesmo ano), o Terceiro Estado decidiu, no
que veio a ser a Assembleia Nacional Constituinte um mês depois, que seus membros
permaneceriam reunidos até que a França fosse dotada de uma Constituição. Dias
depois, o rei começou a tomar medidas drásticas e a população de Paris começou a
ocupar as ruas; estabeleceu-se um governo provisório, a Comuna; e em 14 de julho de
1789, deu-se a Tomada da Bastilha, ato que marca a queda do absolutismo. A revolução
[32]

toma a França como um todo: camponeses saqueiam feudos, queimam castelos e


mosteiros, títulos de propriedades privadas são destruídos, etc.. De fato, é quando o a
propriedade feudal é substituída pela propriedade burguesa. Aos poucos, a revolução
contagia a Europa – “quando a França espirra, a Europa inteira se resfria” (Metternich,
1832) –: há movimentos na Espanha, na Itália, na Grécia...

Como resposta aos movimentos revolucionários que se espalhavam pela Europa,


formaram-se coligações preocupadas em contê-los. É o caso do Congresso de Viena,
por exemplo, que em 1814 reunia diplomatas que se ocupavam em elaborar um novo
mapa a fim de reprimir as revoluções, restaurar tronos às famílias reais que haviam sido
derrotadas pelas tropas de Napoleão, estabelecer alianças com a burguesia, etc..

Todo este cenário europeu era ainda intensificado pelas transformações que
refletiam na sociedade desde a Revolução Industrial. A Inglaterra, berço deste processo,
era confrontada a todo tempo pelos problemas urbanos e sociais de diversas ordens, que
atingiam mais diretamente a vida das pessoas da ‘nova’ classe baixa, oriunda de todo
avanço moderno. Assim, numa espécie de complementação em detrimento do
estabelecimento do sistema do capital, entre Revolução Industrial e Revolução
Francesa, o senhor feudal foi substituído pelo capitalista industrial, sendo o proletariado
o maior instrumento de produção. Temos então que, apesar das promessas
revolucionárias de ‘liberdade’ do movimento francês, a revolução industrial inglesa, que
também se disseminou, oferece o outro lado: aquele da alienação e exploração do
trabalhador.

De certo modo, é sob esse pano de fundo que tanto Marx (juntamente com
Engels) e também Freud elaboram suas teorias – embora Freud tenha escrito mais a
partir do século XX. De modo peculiar, Marx convoca as pessoas a questionarem o
processo de modernização, (des) escrevendo de forma crítica o contexto moderno,
denunciando as contradições e explorações do desenvolvimento, especialmente àquelas
relacionadas ao trabalho, à vida humana reduzida unicamente a força material; e
acentuando as discrepâncias entre a burguesia e o que categorizou como proletariado –
pois, como sabemos, apesar de ‘lutarem’ juntas na revolução na França, não estava em
questão uma revolução que de fato contemplasse o proletariado. Marx é exatamente o
pensador crítico dessa revolução que acenou, prometeu e não cumpriu – como assinala,
junto a Engels, no Manifesto comunista, em 1848.
[33]

Nota-se que no Discurso no Aniversário de “The People’s paper” (14/04/1856)


Marx não se posicionava ‘contra’ a modernidade, o que buscava era que ‘homens de
vanguarda’, os operários, tomassem a frente do poder e governassem, pois assim como
as máquinas, os operários também eram uma invenção dos tempos modernos:

Nos nossos dias, tudo parece prenhe do seu contrário. Observamos


que maquinaria dotada do maravilhoso poder de encurtar e de fazer
frutificar o trabalho humano o leva à fome e a um excesso de trabalho.
As novas fontes de riqueza transformam-se, por estranho e misterioso
encantamento, em fontes de carência. Os triunfos da arte parecem ser
comprados à custa da perda do carácter. Ao mesmo ritmo que a
humanidade domina a natureza, o homem parece tornar-se escravo de
outros homens ou da sua própria infâmia. Mesmo a luz pura da ciência
parece incapaz de brilhar a não ser sobre o fundo escuro da ignorância.
Todo o nosso engenho e progresso parecem resultar na dotação das
forças materiais com vida intelectual e na redução embrutecedora da
vida humana a uma força material. Este antagonismo entre a indústria
e a ciência modernas, por um lado, e a miséria e a dissolução
modernas, por outro; este antagonismo entre os poderes
produtivos [productive powers] e as relações sociais da nossa época é
um facto palpável, esmagador, e que não é para ser controvertido. (...)
Sabemos que, para trabalharem bem, as novas forças da sociedade
apenas precisam de ser dominadas por novos homens — e os
operários são esses [novos homens]. Eles são tanto uma invenção dos
tempos modernos como a própria maquinaria. (Marx, 1856/2007,
s/p)4

Entretanto, como lembrou Herbert Marcuse (1964) muitas décadas depois, o


trabalhador é cada vez mais seduzido pelo consumo e pelos bens materiais. Para ele, a
sociedade bidimensional, que coloca em oposição capitalista e proletariado, perde sua
força ao longo do processo de modernização e, portanto, a classe dominada torna-se
menos contestadora. A sociedade torna-se unidimensional, i.e., sem opositores. Ao
4
O trecho citado foi retirado do site http://www.marxists.org/, por este motivo não há referência à página
(s/p). O mesmo ocorre em outras citações da tese, nas mesmas condições.
[34]

contrário de Berman, que condena esta posição de Marcuse, acreditamos que seu
posicionamento relaciona-se muito mais a uma crítica à alienação produzida pelo
sistema capitalista, numa espécie de equivalente a alienação fundamental formulada por
Lacan (1969-70/1992), na qual o Outro é quem tem os meios de gozo.

Para Berman, os pensadores do século XIX, como Marx e Nietzsche, estavam


divididos entre o entusiasmo e a animosidade da vida moderna, conflito que permitia
saídas criativas e pensamentos elaborados. Em contraposição, os pensadores do século
XX possuem uma concepção mais rígida, tanto para o ‘entusiasmo cego e acrítico’ ou
sua condenação, tal como proferido pela perspectiva ‘neo-olímpica’, referida ao
pensamento de direita de Weber e seguida por outros. E de que modo poderíamos
entender o posicionamento dos pensadores do século XXI?

Na terceira e última fase da modernidade, datada a partir do século XX, Berman


considera que o processo de modernização encontra-se estabelecido, expandido de
forma global e atingindo esferas da arte e do pensamento. Considera-se que se trata de
um período que marca o apogeu do pensamento moderno, ao mesmo tempo em que se
pode dizer de sua fragmentação.

A obra freudiana é elaborada neste momento e contribui, entre tantas outras


frentes, para a discussão do sujeito ao postulá-lo enquanto cindido entre sujeito
inconsciente e sujeito consciente. Assim, Freud transpõe o cogito cartesiano, marco da
filosofia moderna5. Além disso, Freud indica a relação intrínseca entre sujeito e social,
apreendida a partir de sua escuta clínica.

Dentre as inúmeras contribuições a este respeito, destacamos os textos


Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921), O Futuro de uma Ilusão (1927), Mal-
estar na Civilização (1930), Por que a Guerra? (1932), Moisés e o Monoteísmo (1939)
nos quais encontramos em evidência a impossibilidade de se pensar sujeito e social
enquanto duas instâncias separadas. Este é um ponto de suma importância para nossa
tese e que abordaremos no capítulo seguinte, acrescentando a contribuição lacaniana
que soma para melhor entendimento. Para tanto, destacamos sua indicação do sujeito
como significante que se representa para outro significante, assim como a elaboração da
relação entre sujeito e Outro e, mais além, com o desejo do Outro.

5
Desenvolveremos este ponto no capítulo 2.
[35]

Por hora, marcamos o esforço intelectual freudiano em entender os processos de


construção e destruição da cultura a partir dos pressupostos psicanalíticos, como
registrou no pós-escrito (1935) de Um estudo autobiográfico (1924-25),
onde evidencia que desde 1923 se interessava pelo tema:

Meu interesse, após fazer um détour de uma vida inteira pelas ciências
naturais, pela medicina e pela psicoterapia, voltou-se para os
problemas culturais que há muito me haviam fascinado, quando eu era
um jovem quase sem idade suficiente para pensar. (Freud, 1935/2006,
p.76)

Assim, em meio a um turbilhão de acontecimentos sociais que agitavam a


agenda moderna, a obra freudiana pode auxiliar a compreensão de vários deles. Albert
Einstein (1932), por exemplo, reconhece a relevância de Freud neste processo,
dirigindo-lhe uma carta questionando sobre a possibilidade de livrar a humanidade da
ameaça de guerra.

Embora Freud não tenha direcionado seu estudo ao tema da modernidade,


podemos considerá-lo um pensador moderno que se ocupou em entender aquilo que se
passava no psiquismo humano no âmbito singular e que, inevitavelmente, voltou-se a
apreender a relação entre a constituição subjetiva e os aparelhamentos sociais.
Entendemos que as aflições do modernismo, que se estendem no contemporâneo,
podem ser lidas na obra freudiana.

Como sugere Pacheco Filho no artigo O frenesi teórico sobre o sujeito do


capitalismo tardio (2012), a reflexão psicanalítica não deve ser tomada como uma
investigação de aspectos específicos dos laços sociais em sociedades determinadas, “em
grande parte das vezes o pensamento da psicanálise volta-se para teorizar um sujeito
genérico (o sujeito humano) em suas relações com a estrutura transistórica da
Linguagem” (s/p.).

No texto Freud como teórico da modernização bloqueada (2009), Vladimir


Safatle evidencia esta relação entre Freud e a constituição social moderna. Para o autor,
o texto Totem e Tabu (1911/2006), no qual Freud elabora o mito da horda primeva, não
[36]

pode ser tomado como uma obra que busca indicar o ‘complexo de Édipo’ nas
formações tribais do passado. Ao contrário, o recurso freudiano ao totemismo, que
culmina na elaboração do mito, teria um caráter crítico à sociedade burguesa moderna.
Vemos em Totem e Tabu que a partir da morte do pai primevo, soberano e absoluto,
pelos membros do clã – seus filhos –, se instituem leis sociais de regulação, que
culminam no horror ao incesto – um dos ‘crimes’ do pai – e na condenação do
parricídio. Para Safatle, este mito nos diz que nas relações sociais os sujeitos agem
como se carregassem o peso do ‘assassinato do pai’: “que nada mais é do que a
encarnação imaginária de representações fantasmáticas de autoridade e soberania”
(Safatle, 2009, p.367). O que fica como herança do parricídio na horda primeva, do
vazio deixado pela morte do pai primevo, é a articulação do vínculo entre enunciação do
poder e apropriação do gozo: “O mito do pai primevo é assim a representação
imaginária própria a um tempo que vê a essência de todo poder como regulação e
administração biopolítica da satisfação subjetiva” (ibidem., p.369). Esta dinâmica, que
concede às figuras ou instituições, a responsabilidade pela “distribuição desigual de
satisfação subjetiva” (ibidem.), pode ser vista nos sujeitos modernos à época de Freud e
nos contemporâneos, por uma razão de constituição, não exatamente de tempo. O que
indica Freud em Totem e Tabu e também desenvolve em Psicologia das Massas e
Análise do eu (1921), é que a relação de poder é fruto de uma exigência constitutiva dos
sujeitos, o que justificaria o fascínio das massas por instituições como a igreja e o
exército. Obviamente, a relação se estabelece através de identificações imaginárias,
como desenvolve Freud em seu texto de 1921, e não somente através da referência ao
líder soberano. A questão é conhecida e relevante, mas não julgamos necessário nos
alongarmos aqui.

Posteriormente, em O Futuro de uma ilusão (1927) e em Moisés e o Monoteísmo


(1939), Freud continua sua crítica à sociedade moderna, no sentido de assinalar que esta
se encontra profundamente vinculada ao núcleo teológico-político, apesar de sua
exaustiva tentativa em dissociar os vínculos sociais a esta concepção (Safatle, 2009). A
modernidade, especialmente àquela que tomamos como ‘segunda fase’, que tem como
‘pano de fundo’ a Revolução Industrial e a Francesa, procurava criar normas a partir de
si, procurando se desfazer de uma explicação ‘mítico-religiosa’ de mundo. Entretanto,
Freud evidencia nestas duas obras o ‘fracasso’ desta tentativa, ao explicitar que a
organização social está atrelada a valores que incluem a autoridade, soberania,
[37]

culpabilidade – o que foi colocado desde Totem e Tabu – e que também sustentam a
religião. Esta condição social permite a Safatle elaborar que vivemos em uma
modernidade bloqueada, exatamente porque campos como o da política, família, dos
processos de constituição subjetiva e da reprodução da vida material se organizam
vinculados a estas ideias de cunho religioso (Safatle, 2009). E, antecipando uma
discussão que trazemos no capítulo seguinte, é possível se pensar que a ‘pós-
modernidade’ possibilita esta ruptura com estes valores de viés constitutivo?

Em Mal-estar na civilização (1930), Freud aborda os avanços do homem na


cultura, desde o domínio do fogo até a construção de ‘próteses’ que auxiliam a atingir o
que parecia ser somente possível aos ‘deuses’: “O homem, por assim dizer, tornou-se
uma espécie de ‘Deus de prótese’” (Freud, 1930/2006, p.98). Ele também descreve que
o avanço tecnológico que aproxima o homem de deus não o faz mais feliz. Poderíamos
prolongar esta afirmativa e dissertarmos a este respeito, pois sabemos da relevância
desta premissa, mas prosseguiremos. Este ainda será um assunto que aparecerá seja nas
entrelinhas, seja diretamente nos capítulos desta tese.

A impossibilidade de plena satisfação pode ser considerada um motor para as


transformações e ‘revoluções’. Por exemplo, ao voltarmos aos acontecimentos da
revolução Francesa ou ao fim da segunda guerra mundial e às décadas que a sucedem,
encontraremos em evidencia um movimento de contestação – ou uma ‘onda
revolucionária’.

Para Bermam (1982/1986), o que ocorre ao longo desse período da modernidade


se relaciona a um desejo de atualização, muito mais vinculado a uma tentativa de
ruptura com o modernismo. Este processo fez com que tudo o que estivesse vinculado
ao moderno fosse sendo ‘esquecido’, o que causou no enfraquecimento da própria
história da modernização, sobretudo a partir da década de 1970. Aí se inicia o
movimento que alguns autores – primeiramente Jean-François Lyotard – chamam de
‘pós-modernidade’. Os movimentos sociais que emergiram na Europa e que
compuseram o ‘maio de 1968’, na extensão de outros continentes, buscavam romper
com a ordem estabelecida, na tentativa de (re) inventar outra coisa, propondo ‘novos’
modos de expressão, de entendimento e até mesmo de laços sociais. E será podemos
considerar que estes movimentos foram subversivos, no sentido de terem realmente se
configurado como algo que promoveu efetiva ruptura, um giro discursivo? É também a
[38]

pergunta que pode se encaixar para os acontecimentos sociais que ocorrem em vários
países do mundo, inclusive no Brasil.

Para Anthony Giddens (1991), estamos desorientados, com a sensação de não


termos o controle e de não compreendermos exatamente o que se passa ao nosso redor
(e quando é que tivemos pleno domínio?). O momento que sucede os movimentos de
1968, não seria exatamente outro momento social, ao contrário, “estamos alcançando
um período em que as consequências da modernidade estão se tornando mais
radicalizadas e universalizadas do que antes” (Giddens, 1991, p.9). A modernidade se
transformou tanto em sua extensionalidade – no sentido de estabelecer interconexão
social de forma global – quanto em sua intensionalidade – na medida em que estas
mudanças são percebidas também no íntimo e pessoal da existência. Ressaltamos a
afirmação de Giddens, que precede ao advento da internet, para concordarmos que
enquanto modernos, é fato que mudanças extensivas e intensivas ocorrem de maneira
efusiva em neste nosso tempo.

Se para Berman a ‘pós-modernidade’ tenta promover uma ruptura definitiva com


o moderno, Giddens é ainda mais ‘otimista’ e considera que ainda há resquícios de
continuidade do tradicional no moderno, sendo um equívoco querer separá-los de forma
abrupta. O que mostra também a impossibilidade de se ignorar o contexto histórico das
consequências do social, como se um rompimento de ordem deixasse tudo para trás,
fazendo emergir uma tela em branco para que se recomeçasse de outra forma. Mesmo
quando as mudanças são radicais, dramáticas e extensivas, é impossível negar a história,
falar do “fim da história”. A historicidade é necessária para que se possa romper com o
passado: “A historicidade, na verdade, nos orienta primeiramente para o futuro”
(Giddens, 1991, p.49).

1.1. E depois, a pós-modernidade?

Perry Anderson (1998/1999) sugere que o postmodernismo tenha surgido em um


contexto estético no mundo hispânico, na década de 1930, cunhado pelo literário e
escritor espanhol Federico de Onís. Anderson coloca que Onís usou o termo para
descrever um refluxo conservador dentro do próprio modernismo, um ultramodernismo,
[39]

que dizia de uma vanguarda da poesia, que pontuava o ‘fim da grande narrativa’.
Entretanto, nesta ocasião a palavra não caiu em uso e somente décadas depois teve seu
significado atribuído muito mais a uma questão de época, com temos agora.

O economista britânico Arnold Toynbee, no oitavo volume (1954) de seu Study


of History – que começou a ser escrito em 1934 –, afetado pelos efeitos da Segunda
Guerra Mundial, coloca que a época que se inicia com a guerra franco-prussiana6, no
final do século XIX, seria a ‘idade pós-moderna’. Esta nova era marcaria a ascensão da
classe operária industrial, enfraquecendo o poder da burguesia moderna, e “o convite de
sucessivas intelligentsias fora do Ocidente a dominar os segredos da modernidade e
voltá-los contra o mundo ocidental”, como o Japão de Meiji, a Rússia bolchevique, a
Turquia de Mustafá Kemal e a China maoísta (Anderson, 1998/1999, p.11).

Também na década de 1950, o poeta Charles Oslon referiu-se a um mundo ‘pós-


moderno’, ou ‘pós-Ocidente’, posterior a Revolução Industrial, datado pela primeira
metade do século XX. Para Anderson, em Oslon, a concepção de ‘pós-moderno’ seria
afirmativa: “com Oslon, uma teoria estética ligou-se a uma história profética, com uma
agenda que aliava a inovação poética à revolução política na tradição clássica das
vanguardas europeias do período anterior à guerra” (ibid., p.18).

Já em 1959, o sociólogo Charles Wright Mills e o crítico Irving Howe, retomam


o termo, utilizando-o em outro contexto. Para Mills, o pós-moderno diz respeito a uma
época de falência de ideais modernos, como o liberalismo e o socialismo, sendo
substituída por uma era de conformidade vazia. Howe refere-se ao pós-modernismo
para descrever a deficiência literária, incapaz de traduzir os conflitos do moderno. Na
década de 1960, o caráter despolitizado do ‘pós-moderno’ é enfatizado pelo crítico
Leslie Fiedler que como proposta de ruptura fazia um “apelo à emancipação do vulgar e
à liberação dos instintos” (ibid., p.19).

Este passeio histórico pelo ‘pós-moderno’ não o define, mas se faz necessário ao
indicar a origem e o caminho do termo, antes que nos dediquemos às definições mais
disseminadas, que por vezes nos induzem a pensar que a origem do ‘pós-moderno’ teria
sido dada a partir das elaborações de Jean-François Lyotard. Não por caso, abrimos esta

6
A Guerra franco-prussiana ocorre nos anos de 1870-1871, marcou a queda de Napoleão III e da
monarquia francesa. Em 10 de maio de 1871 o governo francês assina o Tratado de Frankfurt,
estabelecendo novos limites territoriais.
[40]

parte do trabalho indicando a impossibilidade do ‘pós-moderno’ ser entendido como um


movimento da ordem de um corte epistemológico, tal como se propõe.

O trabalho de Lyotard, publicado em La Condition Postmodern7 (1979/1988),


certamente é o mais difundido sobre o tema, do qual derivam inúmeros estudos. É neste
texto que encontramos uma discussão mais direta sobre a pós-modernidade, que aparece
como sendo um espelho do alicerce sobre o qual se fundam as ideias pós-modernas –
que discutiremos adiante – que vimos surgir desde a década de 1930. Para Slavoj Žižek
(2009/2011), Lyotard eleva o termo que vinha sendo utilizado às tendências artísticas
novas da literatura e arquitetura, para denominação de uma época. Este ato teria
efetivamente colocado o ‘pós-modernismo’ como “um novo Significante-Mestre que
introduzia uma nova ordem de inteligibilidade para a multiplicidade confusa da
experiência histórica” (p.53).

O livro de Lyotard é um “escrito de circunstância” proposto ao Conselho das


Universidades junto ao governo do Quebec (Canadá) e seu objetivo principal era
desenvolver um relatório sobre o conhecimento contemporâneo, isto é, sobre o ‘saber8’
nas sociedades mais desenvolvidas. A pós-modernidade emerge em Lyotard como um
paradigma da sociedade contemporânea, a partir de seu entendimento fundado em
transformações efetivas na ideia de ‘verdade’ – na decadência deste conceito – que
atingem diretamente todas as esferas sociais, na medida em que, com esta nova
condição, as regras do jogo de produção cultural também se modificam. A condição
pós-moderna “designa o estado da cultura após as transformações que afetaram as
regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes a partir do final do século XIX”
(Lyotard, 1979/1988, p.xv).

Lyotard coloca que o ‘saber cientifico’ é uma espécie de discurso sobre o qual
incidem informações tecnológicas que afetam suas funções:

7
O título original francês é La Condition Postmodern e no Brasil encontramos as duas traduções: A
condição pós-moderna e O Pós-moderno. A edição nacional consultada traduz O pós-moderno, mas
optamos por manter o título original francês.
8
Ressaltamos que o saber em Lyotard se distingue daquele da psicanálise, precisamente definido por
Lacan enquanto algo que se diferencia do conhecimento ou da representação. Para Lyotard o saber –
considerado conhecimento – nas sociedades pós-modernas, está associado aos conjuntos de enunciados
que denotam ou descrevem objetos, podendo ser falsos ou verdadeiros; o saber psicanalítico refere-se
“precisamente a algo que liga, em uma relação de razão, um significante S1 a um outro significante S2”.
(Lacan, 1969-1970/1992, p.28)
[41]

É razoável pensar que a multiplicação de máquinas informacionais


afeta e afetará a circulação dos conhecimentos, do mesmo modo que o
desenvolvimento dos meios de circulação dos homens (transportes),
dos sons e, em seguida, das imagens (media) o fez. (Lyotard,
1979/1988, p.4)

A condição pós-moderna, diretamente associada à ascensão tecnológica


(especialmente a cibernética), seria a deslegitimização do saber, onde o temos como
produzido para ser comercializado, consumido para ser valorizado: trata-se de sua
mercantilização. E isso faz com que a ‘verdade’ seja concebida enquanto produto de um
discurso bem-sucedido, ou seja, a verdade científica associa-se muito mais ao critério de
eficácia.

A verdade (entendemos que Lyotard a compreende enquanto um ‘saber


absoluto’) marca uma diferença entre o moderno e o pós. Na modernidade as ‘verdades’
e as ‘leis’ seriam cunhadas pela ciência – a partir de um conhecimento atrelado a
elaborações metafísicas – e na pós-modernidade não haveria um regulador de verdade, o
que acarretaria construções atreladas à dúvida ou a interpretação. Vale destacar que só
depois do Iluminismo o ser humano banca seu conhecimento. Antes disso, o saber era
legitimado pela igreja católica, que proferia qual era ‘a verdade’.

Como ressalta Berman (1982/1986), tanto para Nietzsche quanto para Marx “as
correntes da história moderna eram irônicas e dialéticas: os ideais cristãos da
integridade da alma e a aspiração à verdade levaram a implodir o próprio Cristianismo”
(p.20). Para Nietzsche isto resultou na ‘morte de Deus’ e no ‘advento do niilismo’ e, por
consequência, condenou a humanidade ao vazio. Esta falta de ‘valores’ que regularizam
faz com que o ser humano busque formular suas próprias regras, já que se encontram
numa espécie de caos. O passado histórico é apenas um referencial para as fantasias que
já não servem mais no ‘homem moderno’. Nietzsche acreditava no ‘homem do amanhã’
como o próprio arquiteto de seus valores. Seriam estas ideias as condutoras do
pensamento que permite o desenrolar de dezenas de teorias do sujeito pós-moderno?

Nesta ‘crise da religião’ e na desqualificação da ciência enquanto verdadeira,


aquela no para-além do simbólico, emergem centenas de correntes e pensamentos que
[42]

tentam dar sentido ao mundo, aproximando a ciência pós-moderna à formulações


ideológicas. Este movimento é claramente percebido nas universidades:

As delimitações clássicas dos diversos campos científicos passam ao


mesmo tempo por um requestionamento: disciplinas desaparecem,
invasões se produzem nas fronteiras das ciências, de onde nascem
novos campos. A hierarquia especulativa dos conhecimentos dá lugar
a uma rede imanente e, por assim dizer, ‘rasa’, de investigações cujas
respectivas fronteiras não cessam de se deslocar. As antigas
‘faculdades’ desmembram-se em institutos e fundações de todo tipo,
as universidades perdem sua função de legitimação especulativa. (...)
elas se limitam a transmitir os saberes julgados estabelecidos e
asseguram, pela didática, mais a reprodução dos professores que a dos
cientistas. (Lyotard, 1979/1988, p.71/72)

Podemos ponderar que este também era um dos sentidos do que Lacan (1968-
1969/2008) descreveu como “jeito de feira” das universidades, ao menos uma década
antes de Lyotard, na ocasião em que elaborava o conceito de mais-de-gozar, atrelado ao
de mais-valia em Marx.

Recorrendo a Colette Soler (2010), corroboramos que no discurso da


universidade o significante mestre perdeu sua função de princípio de ordem e de
legitibilidade. Nosso tempo teria se tornado ilegível, com uma multidão de autores que
não convencem suficientemente e, assim, vivemos na “Babel das leituras” (Soler, 2010,
p.258). As teorias agora se sustentam em sua eficácia social, isto é, em sua
funcionalidade. Ora, no sentido althusseriano é como se houvessem várias ideologias,
num conjunto de leituras hipotéticas diferenciadas por sua eficiência, o que não coloca
fim na concepção de verdade. Agora temos ‘verdades’ ideológicas tentando dar conta
do mundo.

Estas são características bastante disseminadas da pós-modernidade, como


ressaltado pela historiadora marxista americana Ellen Meiksins Wood, em O que é a
agenda ‘pós moderna’? (1997/1999). Para ela, o pós-modernismo rejeita
categoricamente o conhecimento ‘totalizante’ e valores ‘universalistas’, o que inclui a
[43]

concepção de racionalidade, ideias de igualdade e concepção marxista de emancipação


humana. Os pós-modernistas “enfatizam a ‘diferença’: identidades particulares, tais
como sexo, raça, etnia, sexualidade; suas opressões e lutas distintas, particulares e
variadas; e ‘conhecimentos’ particulares (...)” (p.12).

Pois é exatamente este emaranhado de leituras, de fragmentação do pensamento,


do saber, da informação e tudo o mais, que dão contorno ao tempo pós-moderno e as
teorias que derivam deste pensamento. O que encontramos no texto de Lyotard,
enquanto queda da verdade, permeado por pensamentos como os descritos por Wood, o
autoriza elaborar que não poderíamos pensar em um sujeito crítico. Entretanto, e
paradoxalmente, Lyotard refere-se diretamente a Baudrillard ao criticar a ideia existente
em alguns enunciados de uma ‘sociedade orgânica’, uma vez que analisam a sociedade
atual como “dissolução social e a passagem das coletividades sociais ao estado de uma
massa composta de átomos individuais lançados num absurdo movimento ‘browniano’”
(Lyotard, 1979/1988, p.28). Para ele, esta reestruturação do conhecimento/saber na
sociedade pós-moderna atinge diretamente os vínculos sociais, mas não os aniquilam.
Referindo-se ao ‘jogos de linguagem’ de Wittgenstein para dizer das regras que
especificam as propriedades – e, entendemos, de um discurso que regulariza – Lyotard
insiste que as regras não possuem legitimação nelas mesmas, mas constituem objeto de
contrato entre jogadores; que na ausência de regras não há jogo e que todo enunciado
deve ser considerado um lance do jogo. Os jogos de linguagem são condição para que
haja sociedade e se atualizam a partir de modificações sociais. Não por acaso (seria uma
tentativa de cooptar a psicanálise a serviço de uma dissimulação ideológica?), faz uma
menção direta à psicanálise: “desde antes de seu nascimento, haja vista o nome que lhe
é dado, a criança humana já é colocada como referente da história contada por aqueles
que a cercam e em relação à qual ela terá mais tarde que se deslocar” (ibid., p.29).

Insistimos nesta elaboração de um dos maiores expoentes sobre o pós-moderno,


pois ao contrário das leituras ‘pós-modernas’ do social, não encontramos em suas
formulações algo que sustente impetuosamente a ideia de um sujeito desprovido de
referenciais. Entretanto, para Lyotard há duas possíveis representações metódicas da
sociedade pós-moderna provindas do século XIX: a primeira relacionada a uma
sociedade que forma um todo funcional e a segunda a uma sociedade dividida em duas
[44]

partes. Para a sociedade como ‘todo funcional’, ele sugere a escola de Talcott Parsons9 e
para a ‘sociedade em duas partes’ a corrente marxista, com o princípio da luta de classes
e a dialética como dualidade que constitui a unidade social.

A perspectiva do todo, que Parsons formula como ‘sociedade auto-regulável’,


não poderia mais ser pensada como um organismo vivo, mas controlado pela
cibernética, desde o final da Segunda Guerra. Atualmente, o sistema poderia ser
pensado não como uma máquina que busca um equilíbrio social, mas como um aparelho
interessado apenas no desempenho. Numa visão pessimista, Lyotard coloca que mesmo
quando as disfunções (os sintomas) como a greve, a crise, o desemprego ou as
revoluções políticas, nos indicam algum tipo de alternativa, isto não seria nada além de
um rearranjo interno focado na melhoria do sistema – que aqui entendemos como o
sistema capitalista.

Esta lógica também condenaria a teoria crítica marxista, uma vez que o “pilar
social do princípio da divisão, a luta de classes, tendo se diluído a ponto de perder toda
a radicalidade, encontrou-se finalmente exposto ao perigo de perder sua base teórica e
de se reduzir a uma ‘utopia’, a uma ‘esperança’(...)” (Lyotard, 1979/1988, p.23). A
visão é de um desiludido ‘ex-militante de extrema esquerda’, como nos lembra
Anderson (1998/1999), já que Lyotard participou por 10 anos do grupo socialista
libertário radical francês Socialisme ou Barbarie e militou na dissidência Pouvoir
Ouvrier por dois anos. Abandonou a ‘causa’ quando teria se convencido de que a
proletariado não teria mais uma função de agente revolucionário diante do capitalismo.
Uma formulação tão pessimista, que o fez levantar a impossibilidade de se pensar em
um sujeito ‘pós-moderno’ crítico. Ora, por certo poderíamos pensar aqui na ideia do
sujeito cínico proposto por Žižek no texto Como Marx inventou o sintoma? (1996/2010)
a partir da formulação de Peter Sloterdijk (1988) sobre a razão cínica. Para Sloterdijk, o
funcionamento cínico da ideologia torna impossível (ou inútil) o método crítico-
ideológico. Diante disso, a postura adotada por Lyotard frente aos fatos da sociedade,
que denomina pós-moderna, parece assemelhar-se muito mais à escolha em insistir na
máscara ideológica, mesmo tendo perfeita consciência da distância entre ela e a
realidade social.

9
Sociólogo norte-americano considerado um funcionalista estrutural. Sua causa estava em determinar as
funções específicas que os indivíduos desempenhavam na estrutura social e as consequências disso para a
sociedade como um todo, numa espécie de sistema integrado de funções.
[45]

Ideia similar pode ser encontrada na corrente da Posthistorie ou de ‘fim da


história’, liderada por Francis Fukuyama (1989,1992/2006), que defende que o fim de
evolução ideológica da humanidade haveria chegado com o triunfo da democracia
liberal. A história é apreendida como um processo singular, coerente e evolucionário
que atingiria a experiência das pessoas em todos os tempos (Fukuyama, 1992/2006). O
comunismo teria entrado em colapso e se rendido ao capitalismo, o que seria um triunfo
inquestionável – an unabashed victory – do sistema liberal do Ocidente. Ou, como
elabora Wood (1997/1999) o pós-modernismo não seria um diagnóstico social, mas uma
doença: “a ‘pós-modernidade’ para os intelectuais pós-modernistas não é,
aparentemente, um momento histórico, mas uma condição humana em si, da qual não há
escapatória” (p.16). Para Manuel Castells (1999/2008), a teoria pós-moderna celebra:

(...) o fim da história e, de certa forma, o fim da razão, renunciando a


nossa capacidade de entender e encontrar sentido até no que não tem
sentido. A suposição implícita é a aceitação da total individualização
do comportamento e da impotência da sociedade ante seu destino
(p.42).

A partir do texto O espectro da ideologia (1996/2010) de Žižek, pode-se


entender que ideias com este teor são sustentadas pela ideologia:

É fácil discernir essa matriz na dialética do "velho" e do "novo",


quando um evento que anuncia uma dimensão ou época inteiramente
novas é (des) apreendido como uma continuação do passado ou um
retorno a ele, ou, no caso inverso, quando um acontecimento
inteiramente inscrito na lógica da ordem existente é (des) apreendido
como uma ruptura radical. O exemplo supremo deste último caso,
obviamente, é fornecido pelos críticos do marxismo que (des)
apreendem nossa sociedade capitalista avançada como uma nova
formação social, que não seria mais dominada pela dinâmica do
capitalismo tal como descrita por Marx (Žižek, 1996/2010, p.7).
[46]

É possível que em Marx, ou na psicanálise, encontremos alguma outra proposta


frente à pós-modernidade? Para iniciarmos este caminho, propomos entender de que
modo o materialismo histórico e dialético nos indica razões que podem nos auxiliar a
ponderar que não se trata do fim da razão.

2. A crise do capital e o retorno a Marx

Se no arcabouço da sociedade pós-moderna pressupõe-se o fim de uma suposta


‘evolução’ ideológica e a consagração soberana do capitalismo, como podemos
apreender o movimento paradoxal que se observa, de um possível retorno às
elaborações de Karl Marx, de que modo o retorno se dá neste contexto?

Uma relevante resposta para a questão é abordada por Fredric Jameson no artigo
Cinco teses sobre o marxismo atualmente existente (1997/1999). Ele afirma que o
marxismo é a ‘ciência’ do capitalismo. O que significa, em suas palavras, que “é a
ciência das contradições inerentes ao capitalismo” ou “que é incoerente comemorar a
‘morte do marxismo’ na mesma ocasião em que se anuncia o triunfo definitivo do
capitalismo e do mercado” (p.187). Ora, neste sentido, o recurso à teoria de Marx está
mais do que justificado neste momento de crise. É inevitável que os críticos atentos aos
efeitos do sistema capitalista jamais a tenham abandonado e os que agora pretendem
alguma reflexão, encontrem na teoria marxista o maior aparato para fazê-la.

Como levantado por Eric Hobsbawn referindo-se à Marx, em Como mudar o


mundo (2011), “se digitarmos seu nome seu nome no Google, ele continua
a ser a maior de todas as grandes presenças intelectuais, só superada por Darwin e
Einstein” (p.15). Hobsbawn aponta duas explicações para isto: a primeira delas é que
com o fim do marxismo na União Soviética, Marx teria se livrado de sua identificação
ao leninismo e a segunda, e que nos parece mais interessante, é a de que o mundo
capitalista globalizado que surge a partir da década de 1990 lembra, em alguns aspectos,
o mundo previsto por Marx no Manifesto do Partido Comunista (1848/1998). Marx
[47]

destacava especialmente as contradições inerentes ao modo de produção capitalista –


como a concentração de capital para poucos que, consequentemente, restringe aos
mesmos poucos a capacidade de consumo, incompatível com a produção em larga
escala de mercadorias –, indicando que estas se acentuariam juntamente com o seu
desenvolvimento. As crises também estavam indicadas na obra de Marx, refletindo a
dificuldade do capitalismo se manter diante de tantos contrassensos. Hobsbawn, assim
como Mèszaros e Harvey, referem-se a este acontecimento:

Em outubro de 2008, quando o jornal londrino Financial Times


estampou a manchete ‘capitalismo em convulsão’, não podia mais
haver dúvida de que Marx estava de volta aos refletores. Enquanto o
capitalismo mundial estiver passando por sua mais grave crise desde o
começo da década de 1930, será improvável que Marx saia de cena.
Por outro lado, o Marx do século xxi será, com certeza, bem diferente
do Marx do século xx. (Hobsbawn, 2011, p.16)

As incongruências do capitalismo fazem com que crises sejam fenômenos


imanentes do sistema, embora estas sejam em sua maioria crises cíclicas, originadas de
uma ou outra variável específica como, por exemplo, o subconsumo. E elas podem ser
superadas por diversas artimanhas do capitalismo, como a expansão do sistema e/ou a
produção de novos bens. Entretanto, são as crises sistêmicas as mais ‘graves’,
devastadoras e prolongadas; e que podem resultar em efetivas transformações na vida
econômica, nas relações de produção e até mesmo na vida social – como a grande crise
mundial de 1929-1933 (Mèszaros, 2009/2011). Para Mèszaros (e muitos outros)
estamos vivendo uma crise sistêmica desde a década de 1970 e acentuadamente a partir
de 2008, que está destinada a piorar consideravelmente, invadindo não só o mundo das
finanças como todos os outros domínios da vida social, econômica e cultural (ibid.).

David Harvey, na palestra The Crises of Capitalism (2010), evidencia que há


uma tentativa incessante em buscar a causa da crise. Para tanto, toma-se diferentes
justificativas que vão desde fragilidade humana; falhas institucionais; obsessão por uma
falsa teoria que acreditava na eficiência dos mercados; origens culturais (“isso é
[48]

tipicamente grego” ou “é um efeito do caráter grego” ou como o fascínio dos


americanos pela casa própria); e, até mesmo pelas alianças políticas.

Entretanto, Harvey justamente enfatiza que não se pode esquecer o risco


sistêmico, isto é, exatamente que não se pode deixar de considerar as contradições
internas da acumulação de capital. A forma da crise atual, na visão de Harvey, pode ser
explicada pela forma como saímos da última crise, que data da década de 1970. O
problema neste período era o poder excessivo do trabalho na relação com o capital. A
saída para esta crise foi ‘disciplinar o trabalho’, transportando a mão de obra para outros
países, como vimos acontecer de forma global e sendo conduzida pela doutrina
neoliberal de Margareth Thatcher (Reino Unido) e Ronald Reagan (Estados Unidos).
Em 1985/86 a questão do trabalho tinha sido essencialmente resolvida para o capital,
que tinha acesso a todo suprimento mundial de mão de obra. Entretanto, os salários
estão estagnados desde a década de 1970, o que quer dizer que cada vez menos o
trabalho está sendo pago em forma de salário... Ora, mas salário é dinheiro que compra
bem, então qual a estratégia para que se tenha demanda? Foi este cenário que provocou
o ‘tsunami’ dos cartões de crédito. A tática levou à superação do problema da demanda
efetiva na medida em que expandiu a economia de crédito. Ingleses e americanos teriam
triplicado suas dívidas nos últimos 30 anos. Mas, o capitalismo nunca soluciona seus
problemas de crise, ele se move entorno deles geograficamente: pode ser que as coisas
estejam se recuperando nos Estados Unidos, mas aí a Grécia quebra ou a Espanha
quebra, como vemos acontecer.

Jameson (1997/1999) recorre às elaborações do economista belga Ernest


Mandel, especialista em crises cíclicas, para estabelecer uma relação direta entre as
saídas para superação das crises e o recurso à inovação e revoluções tecnológicas. As
mudanças marcariam também alterações no próprio capitalismo:

(...) a tecnologia do vapor para o momento do capitalismo nacional; a


eletricidade e o motor de combustão interna para o momento do
imperialismo; e a energia atômica e a cibernética para o nosso atual
momento de capitalismo mundial e globalização, (...) rotulado por
alguns como pós-modernidade. (Jameson, 1997/1999, p.188)
[49]

Harvey (2010) relembra que Marx coloca no Grundrisse (1857-1858/2011), que


o capital não pode sustentar um limite, ele precisa transformar isto em uma barreira que
ele irá rodear ou transcender. Se o sistema não para, temos sempre uma continuação,
especialmente dos aspectos negativos. Apesar de saber qual a natureza do problema,
Harvey coloca que não tem as soluções a apresentar... Este parece ser o ‘problema’
constante da teoria crítica.

É neste sentindo que para Žižek (2009/2011) a vítima principal da crise atual
pode até mesmo não ser o capitalismo, mas a própria esquerda, que não consegue
apresentar uma alternativa global viável: “Foi como se os acontecimentos recentes
tivessem sido encenados com risco calculado para demonstrar que, mesmo numa época
de crise destrutiva, não há alternativa viável ao capitalismo” (p.27). O que, obviamente,
não significa que não haja ou que estejamos realmente vivenciando o estágio final da
evolução ideológica, como indicou Fukuyama.

Tal como Jameson (1997/1999), concordamos que se pode pensar que os


marxismos – movimentos políticos, formas de resistência intelectual e teórica – também
se diferenciaram ao longo do processo do capitalismo. A cultura atual, em grande parte,
foi apreendida pela lógica do capital, tornando-se mercadoria, e isso marca uma grande
diferença. Como tudo se reduz a mercadoria, o consumismo torna-se um estilo de vida
da sociedade. O que costumava ser considerado econômico e comercial tornou-se
também cultural (p.193). Como define Conrado Ramos no artigo Consumismo e gozo:
uma compreensão de ideologia entre T.W.Adorno e J.Lacan (2008), “o consumismo
emerge como um valor moral” (p.201). Até mesmo o trabalho entra neste circuito e é
tomado como qualquer outra mercadoria. O trabalhador é livre para vender a quem
quiser sua força de trabalho no ‘mercado de trabalho’, o que o faz se sentir como seu
‘próprio’ senhor – embora o capitalismo seja o senhor escondido por trás da ‘liberdade’.

Como esclarece Žižek (1996/2010), remetendo-se à Marx, na transição do


feudalismo para o capitalismo há um deslocamento do fetichismo, ou seja, o fetichismo
que antes se localizava na relação entre os homens, passa agora para o fetichismo da
relação entre as coisas, o ‘fetichismo de mercadoria’.

No feudalismo, com o predomínio da produção natural, as relações sociais eram


fetichizadas e transparentes, tendo-se somente duas posições: a dominação e a servidão
[50]

– ou o senhor e o escravo, no sentido hegeliano. Os papéis são nitidamente delineados,


nos quais não se dissocia função e pessoa.

Com o estabelecimento da sociedade burguesa, as relações de dominação são


recalcadas e agora se encontram disfarçadas sob a forma de relação social entre coisas –
como a apropriação da força de trabalho pelo trabalhador/o mercado de trabalho. Isto
marca a transformação das relações de produção, sendo que o que está implícito é que
um sujeito começa a comprar trabalho de outro em troca de dinheiro; ou seja, o trabalho
entra na série das mercadorias:

Onde quer que tenha conquistado o poder, a burguesia destruiu as


relações feudais, patriarcais e idílicas. Rasgou todos os complexos e
variados laços que prendiam o homem feudal a seus ‘superiores
naturais’, para só deixar subsistir, de homem para homem, o laço do
frio interesse, as duras exigências do ‘pagamento à vista’. (Marx e
Engels, 1848/1998, p.42)

Este processo delimita uma ruptura na história, pois se trata de uma ‘metamorfose de
sujeição’. O trabalhador é posse do capital antes mesmo de vender-se ao capitalista
Marx (1885). Ele se crê enquanto detentor de seu trabalho, como um sujeito livre da
relação fetichizada feudal, mas ao contrário, é exatamente nisso que reside sua alienação
ao capitalismo, nesta alienação de sua própria liberdade.

Freud, em Prefácio a juventude desorientada, de Aichhron (1925/2006) e em


Análise terminável e interminável (1937/2006), indica três ofícios impossíveis de serem
realizados, a saber: educar, governar e curar (analisar). Tais posições insustentáveis
sugerem na obra freudiana modos distintos de se fazer laço social e, nesse sentido,
podem ser tratadas como tentativas de contornar o impossível. Ou seja, nessas tentativas
de driblar a impossibilidade, instituída a partir da entrada do sujeito na linguagem,
haverá sempre a marca da falta, revelando que existe necessariamente algo que fica de
fora, que não pode ser representado, responsável pelo mal-estar, pelo mal-entendido.

Lacan, no seminário 17: O avesso da psicanálise (1969-70/1992), retoma e


avança os impossíveis apresentados por Freud ao elaborar a teoria dos discursos. Aqui,
[51]

ele indica não três, mas quatro posições insustentáveis, as quais denominam discursos.
As formas distintas de se fazer laço social, isto é, de se emparelhar o gozo são: discurso
do mestre (governar), o discurso universitário (educar), o discurso do analista (analisar)
e o discurso da histeria, incluído por Lacan e que corresponde ao fazer desejar – que não
se enquadra a nenhuma ‘profissão’ – as outras formas também não, como veremos.

Em seu estudo, Lacan sugere que o discurso não necessita de anunciados para
agir, ele pode se dar sem palavras, pois “mediante o instrumento da linguagem instaura-
se um certo número de relações estáveis, no interior das quais certamente pode
inscrever-se algo bem mais amplo, que vai bem mais longe do que as enunciações
efetivas” (p.11). Ao apresentá-los, utilizou-se do seguinte esquema lógico para indicar
os elementos que os compõem e os lugares que ocupam:

Figura 1 - Matema dos discursos

Cada posição – agente, outro, verdade e produção – é ocupada por termos diferentes em
cada discurso, sendo eles: S1 (significante mestre), S2 (o saber), S (sujeito dividido) e a
(objeto perdido, o mais-de-gozar) – todos diretamente relacionados à constituição do
sujeito.

O significante mestre (S1) advém do outro que irá representar o sujeito para
outro significante (S2) – sendo que desta articulação de S1 para S2, na qual se origina o
sujeito, há algo que fica de fora da representação, que é o objeto a, causa de desejo10.
Lacan o denomina aqui como objeto mais-de-gozar, associada à ideia de marxiana de
mais-valia, enquanto um gozo excedente. Mas como esta proposta articula com o
caminho que percorríamos?

10
Lacan equipara o discurso do mestre ao discurso do inconsciente, uma vez que ele agiria da mesma
forma no comando do sujeito, sem a sua concessão .
[52]

Pois bem, Lacan sugere que na passagem do sistema feudal para o capitalismo
ocorre um giro discursivo11, sendo do discurso do mestre para o discurso universitário:

Figura 2 - Discurso do Mestre

Figura 3 - Discurso Universitário

O discurso do mestre tem no lugar de agente o S1, no lugar da verdade está o sujeito
dividido, o S2 no lugar do Outro e no lugar da produção está o objeto, como a pura
perda. O S1 no lugar de agente relaciona-se com o senhor feudal, uma vez que está
ocupando um lugar de comando, sem nenhuma necessidade de significação. O escravo,
nesta analogia, ocupa o lugar de S2, do Outro, pois é deste lugar que se produz saber,
somente articulado a S1, que sozinho não o produz. O saber é acessível ao mestre
somente a partir do trabalho produzido pelo escravo e, neste sentido, o escravo é aquele
que sabe fazer (savoir-faire) o mestre gozar. Na posição de S1, o senhor reina absoluto,
não podendo ser contestado. Deste modo, o senhor mantém velada a sua verdade de
sujeito igualmente dividido ($), marcado pela falta. E é neste ponto que podemos pensar
no fetichismo da relação. Para o senhor, não interessa saber nada, o que visa é somente
que as coisas aconteçam, isto é, que o escravo trabalhe para que ele obtenha gozo.

O discurso universitário – que não se limita à discursividade das universidades –


nos dá as seguintes posições: S2 no lugar de agente, S1 no lugar da verdade, objeto a no
lugar do Outro e o sujeito dividido ($) no lugar da produção. Assim, o S2 assume o
lugar dominante que antes era ocupado pelo mestre, enquanto que o significante-mestre,
11
A ordem dos elementos do discurso é sempre a mesma, sendo que o giro ocorre sempre em um quarto
de volta – em sentido horário ou anti-horário –, resultando em cada um dos discursos. Para este momento,
nos ocuparemos somente em representar o discurso do mestre e o discurso universitário.
[53]

no lugar da verdade, opera para operar a ordem do mestre (Lacan, 1969-70). As relações
de poder, como vimos, encontram-se agora camufladas, sendo assim, a tarefa de nomear
ou localizar o significante-mestre é difícil. Portanto, com o quarto de giro ocorre
também um deslocamento do saber, S2. Enquanto no discurso do mestre quem detém o
saber é o escravo, no discurso universitário podemos entender, no caso específico que
estamos analisando, que o capitalista é detentor do saber. O que fica no lugar de resto é
o sujeito, o sujeito do capitalismo, expropriado da sua condição de detentor do seu
trabalho e marcando, enquanto o outro é tomado como objeto a, a sua condição de
mercadoria. Aí se inscreve o fetichismo da mercadoria, que camufla a relação existente
entre o capitalista e o trabalhador.

O discurso universitário, acentuadamente regente de nosso tempo, é também


condizente com a discursividade da ciência, que corrobora com a ideia da fragmentação
do saber, que vimos ser característica marcante da atualidade.

Este momento crítico do capitalismo que descrevemos e no qual estamos


inseridos (da energia atômica, da cibernética, do deslocamento do saber, do
consumismo) compõe o Outro. E, portanto, entende-se que tudo isso também faz parte
da composição do sujeito, afinal, não podemos esquecer que o sujeito, naquilo que é de
sua estrutura, encontra-se alienado ao Outro (Lacan, 1964), ele é efeito do significante,
isto é, sua estrutura se articula por significantes. Não se trata de uma alienação histórica,
como propõe Marx, mas de uma alienação estrutural que delineia o sujeito. Mas, vale
lembrar, que na dialética pensada pela psicanálise e regida pela lógica significante, os
termos não precedem a relação. Ou seja, a relação é que precede os termos que ela
constitui. Por exemplo, mãe e bebê são consequência e efeito de uma relação
estruturante destes dois termos e o mesmo podemos pensar que é o que ocorre entre
Outro e sujeito:
[54]

As posições de gozo predominantes na cultura nas quais o particular


contemporâneo encontra-se fixado não podem ser explicadas sem o
esclarecimento de suas mediações objetivas, mas também não podem
ser alcançadas, atualmente, sem o instrumental teórico lacaniano de
um inconsciente estruturado como linguagem e de um campo de gozo
que se expressa no laço social. (Ramos, 2008, p.208)

As concepções de sociedade, que apresentaremos em seguida, tomam o sujeito


na sua concepção de sujeito do consciente, ou seja, diferentemente da psicanálise.
Entretanto, vale lembrar que a psicanálise, enquanto uma teoria que se dedica ao sujeito,
não é uma oposição à teoria da sociedade. Ao contrário, a posição psicanalítica é
exatamente de uma interlocução com a teoria social, somando uma contribuição a este
debate. Não se tem a pretensão, portanto, de tentar explicar psicanaliticamente as
mudanças históricas, mas de realizar uma leitura a partir desta argumentação teórica,
tendo como pano de fundo a relação entre sujeito e Outro:

A relação do sujeito ao Outro se engendra por inteiro num processo de


hiância. Sem isto, tudo poderia estar aí. As relações entre os seres no
real (...) poderia, engendrar-se em termos de relações inversamente
recíprocas. É para o quê a psicologia, e toda uma sociologia, se
esforça, e ela pode ter sucesso quando se trata apenas do domínio
animal, pois a captura do imaginário é suficiente para motivar toda
sorte de comportamento do vivo. A psicanálise nos lembra que a
psicologia humana pertence a outra dimensão. (Lacan, 1964/1985,
p.196)

Entretanto, apresentar estas elaborações se faz necessário, pois as leituras nos


confirmam, cada uma a partir do seu referencial, que as questões que abordamos até
aqui implicam consequências para o laço social e para os sujeitos ‘genéricos’ inseridos
neste contexto. Consideramos que apresentá-las enriquece a discussão do capítulo dois,
no qual evocamos as abordagens do ponto de vista da psicanálise.
[55]

3. Diagnósticos sociais

Apresentamos as elaborações oriundas de algumas tentativas de se dizer sobre o


sujeito e a sociedade na qual estamos inseridos. Os pontos de partida de cada teoria são
diversos, mas conjugam que as modificações na sociedade trazem como consequência
transformações no âmbito dos laços sociais. Entendemos que as questões das quais nos
ocupamos até agora figuram como cenário das conceituações que trazemos nesta
segunda parte do capítulo, indicando que não existe um consenso de ‘diagnóstico’, e
também que há modificações importantes em curso.

Destacamos estas teorizações sobre a cultura contemporânea não a fim de


discutirmos a verdade de cada uma delas, mas como modo de expor as diferentes
formas de compreendê-la. Com efeito, cada qual à sua maneira, identifica aparentes
‘sintomas’ do nosso tempo e, como consequência, utilizam-se de distintos significantes
para dizê-la. Neste sentido, utilizamos o termo ‘diagnósticos sociais’ para agrupá-las,
uma vez que, em nosso entendimento, as teorias se regem num manifesto intuito de
detectar problemas categóricos desta época e posteriormente apresentam uma tendência
em nomeá-la. Não se trata de uma crítica, mas de uma constatação que nos permite
reuni-las no conjunto de teorias de ‘diagnósticos sociais’.

Para expormos isto destas análises, trouxemos o que acreditamos serem os


maiores e mais conceituados pensadores que tecem considerações sobre a sociedade
atual, entre os quais, destacamos: Christopher Lash, Gilles Lipovetsky, Zygmunt
Bauman, Fredric Jameson, Ulrich Beck, Barry Glassner, Manuel Castells e Pierre Lévy.

3.1. Sociedade Narcísica, Hipermodernidade e Modernidade líquida

Estes teóricos apresentam formas distintas de conceituar a sociedade


contemporânea e algumas delas são as mais difundidas. Com disparidades e
aproximações, as elaborações de Christopher Lash, Gilles Lipovetsky e Zygmunt
[56]

Bauman, podem ser tomadas como uma espécie de diagnóstico do sujeito moderno ou
pós-moderno, numa tentativa de associar as mudanças sociais às transformações
subjetivas. Em comum, a ideia de que vivemos em um tempo no qual as questões de
instância coletiva são cada vez menos importantes aos sujeitos, que agora se encontram
muito mais centrados em seus próprios interesses.

Christopher Lash (1979/1983) descreve a cultura atual como individualista e


competitiva, na qual se vive uma guerra de tudo contra todos que, segundo ao autor,
acarreta na “busca da felicidade em um beco sem saída de uma preocupação narcisista
com o eu” (p.14). Apesar de se apoiar em algumas elaborações freudianas, não vamos
considerá-lo enquanto um teórico psicanalítico, pois não é sua base psicanalítica ou o
modo como se utiliza do conceito de narcisismo que nos interessa. Nosso objetivo é
trazer para o trabalho o ‘diagnóstico social’ tecido por Lash, no que tange a sua relação
do sujeito com a sociedade.

Sua crítica incide especialmente na cultura norte-americana na década de 1970 e


1980 que, em uma tentativa de movimento ‘revolucionário’, teria objetivado uma
libertação das ideias repressoras do passado. Assim, tem-se a origem do ‘homem
psicológico’, enquanto ‘produto do individualismo burguês’, caracterizado como um
narcisista perseguido não pela culpa, mas pela ansiedade (Lash, 1979/1983). Este
‘sujeito’ está desinteressado nas questões políticas e, obviamente, centrado em si: “Para
o narcisista, o mundo é um espelho, ao passo que o individualista áspero o via como um
deserto vazio, a ser modelado segundo seus próprios desígnios” (p.31). Lash associa
características da sociedade contemporânea – tais como o medo da velhice, da morte, o
fascínio pela celebridade, o medo da competição, o fracasso das relações entre homens e
mulheres – como consequências da cultura narcisista, especialmente no que diz respeito
à burocracia, proliferação de imagens, ideias terapêuticas, racionalização da vida
interior, culto do consumismo e também às mudanças na vida familiar. O que se pode
apreender de sua obra é que, para Lash, as modificações que ocorreram no percurso da
sociedade convocaram os indivíduos a se posicionarem no mundo a partir um
movimento de centralização narcísica. Sendo assim, a condição narcísica dos sujeitos é
tomada como patológica e, portanto, o narcisismo é compreendido como um ‘fenômeno
social’.
[57]

A partir desta ideia principal, Lash enumera diversas consequências, dentre as


quais de destacamos o enfraquecimento dos vínculos sociais e o afastamento de causas
políticas – que veremos também aparecer como características da atualidade nas
abordagens de Lipovetsky e Bauman e que podemos associar a uma leitura que se
conjuga com as elaborações da pós-modernidade, que apresentamos anteriormente.

Outro ponto importante que emerge na elaboração de Lash e que gostaríamos de


ressaltar, uma vez que encontramos reproduzida em outros autores (inclusive da
psicanálise), é o que ele denomina de “declínio da autoridade institucionalizada”. Na
sua concepção, o crescimento da burocracia leva à destruição de todas as formas de
autoridade patriarcal, enfraquecendo o que denomina de ‘superego social’. Isto implica
que “as figuras de autoridade na sociedade moderna perdem sua ‘credibilidade’” (p.32)
– aqui representadas por pais, professores e pregadores.

Do ponto de vista de Lash, o declínio das autoridades não teria uma


consequência libertadora para o sujeito, na medida em que ele se desvincularia daqueles
que estabelecem alguma ordem. Ao contrário, nesta condição, o supereu12 torna-se
muito mais severo, pois buscará referências em fantasias primitivas dos sujeitos, nas
quais a representação das autoridades está associada aos afetos de ódio e agressividade.
No próximo capítulo, procuramos discutir mais amplamente a ideia do ‘declínio da
autoridade’ na qual se debruçam alguns autores. Mas, de partida, afirmamos que a
psicanálise lacaniana não partilha do argumento neste sentido, especialmente pela sua
disparidade no tocante da concepção de função e representação da ‘autoridade’.

As elaborações do francês Gilles Lipovetsky sobre a sociedade começam a ser


difundidas no mesmo período que as de Lash e ambas são contemporâneas ao
pensamento de Lyotard. Entendemos que estes autores fazem parte de um período que
a ‘pós-modernidade’ ganha força conceitual. Fredric Jameson, em Pós modernismo: a
lógica cultural do capitalismo tardio (1991/2007), entende que ‘pós-moderno’ tem um
efeito em seu nome, sendo um neologismo com impacto e que carrega consigo uma
12
Lash considera que o supereu é um agente social na mente, que se constitui a partir de representações
interiorizadas de pais e outras autoridades. Com referenciais Kleinianos, Lash considera que o supereu
deriva-se de fantasias primitivas, que contêm mescla de agressão e ódio, como descreve na nota de
rodapé: “Contudo, a parte agressiva, punitiva e mesmo autodestrutiva do superego é geralmente
modificada pela experiência posterior, que abranda primitivas fantasias dos pais como monstros
devoradores. Se fica faltando esta experiência – como acontece com tanta frequência em uma sociedade
que desvalorizou radicalmente todas as formas de autoridade –, pode-se esperar que o superego sádico
desenvolva-se à custa do ideal do ego, o superego destrutivo, à custa da severa, mas solícita, voz interior,
a que chamamos de consciência” (Lash, 1979/1983, p.33).
[58]

tarefa ideológica, que desvia a atenção do econômico e político e que se trata de um


conjunto de novos estilos na em diferentes frentes, como a arquitetura, a pintura, a
literatura, os filmes e até mesmo as produções acadêmicas. Apesar de trazer
características particulares, para Jameson, não se pode tomar o pós-modernismo como
um novo tempo, pois “uma cultura verdadeiramente nova somente poderia surgir
através da luta coletiva para se criar um novo sistema social” (Jameson, 1991/2007,
p.16). O que reflete a sua convicção de que o pós-moderno seria uma modificação
sistêmica do próprio capitalismo, preferindo referenciar-se a este período como
capitalismo tardio ou capitalismo recente, que acarreta em transformações até mesmo na
produção estética que se manifesta como expressão interna e superestrutural de uma
nova dominação militar e econômica americanizada e, ainda, se relaciona com a grande
rede comunicacional global e descentralizada na qual estamos ‘presos’.

Jameson utiliza-se da comparação de obras de Van Gogh e de Andy Warhol (e


posteriormente de Renè Magritte, Walker Evans e Edward Munch), para representar
duas etapas distintas do capitalismo. Estas obras ilustrariam a transformação sistêmica a
qual se refere, ao confrontar, a partir de objetos absolutamente comuns – sapatos – ,
características do ‘alto modernismo’ e do ‘pós-modernismo’.

As duas primeiras figuras representam o alto modernismo e fazem parte da


coleção de obras que Van Gogh pintou com a temática Um par de sapatos (1886):

Figura 4 - Um par de sapatos, Van Gogh, 1886


[59]

Figura 5 - Um par de sapatos, Van Gogh, 1886

Jameson propõe que a interpretação da obra de Van Gogh, pressupõe uma expressão
mais solitária, angustiada e pouco superficial, indicando que em Um par de sapatos é
possível se apreender algum sintoma de uma realidade mais vasta, que nos indica algo
além do que está posto na superfície da tela. Isto é, se pode compreender que aí se
encontra representado o universo camponês diante dos olhos de quem o observa. Os
quadros trazem, na leitura de Jameson, a representação da miséria agrícola, da pobreza
rural, do árduo trabalho. Não estamos diante de um objeto inerte, mas sim de algo que
representa parte do mundo, que indica uma realidade que de alguma forma chega ao
observador.

Como contraponto, para representar o pós-modernismo, Jameson escolhe


Diamond dust shoes (1980), de Andy Warhol:
[60]

Figura 6 - Diamond dust shoes, Andy Warhol, 1980

Figura 7 - Diamond dust shoes, Andy Warhol, 1980

Jameson considera que a obra de Warhol representa o mundo da mercadoria, da


propaganda e os define como: “objetos sem vida, pendurados na tela como se fossem
[61]

nabos” (p.35). Deste modo, o autor indica que nesta representação poderíamos ver o
retrato da condição pós-moderna, especialmente, pela retificação da imagem que, em
sua opinião, não deixa margem para a interpretação do observador. Aqui, a realidade
estaria reduzida a imagens, a simulacros que acarretariam em uma ausência de
profundidade, decorrente de uma vertente que se centra na mercantilização e enfatiza o
fetichismo das mercadorias, particularidade do capitalismo tardio. Seria também a esta
condição de vazio da pós-modernidade que Lash, Lipovetsky e Bauman estariam se
referindo?

Lipovetsky anunciou em A era do vazio (1993), O império do efêmero (1987) e


Os tempos hipermodernos (2004), que a pós-modernidade é uma sociedade pós-
disciplinar, apontando que em nosso tempo os indivíduos teriam sido libertados das
tradições, acarretando em um processo de ‘personalização’, no qual se teve acesso à
‘autonomia real’. A personalização, tal como ele conceitua (Lipovetsky, 1993), é uma
nova maneira da sociedade se organizar e se orientar, uma maneira de gerar
comportamentos com mínimo de sujeição e o máximo de escolhas privadas, com o
mínimo de austeridade e o máximo de desejo, com o mínimo de coerção e o máximo de
compreensão. A sociedade pós-disciplinar aparece como um paradoxo, pois com a
desestruturação dos controles sociais os indivíduos teriam a opção de se responsabilizar
ou se deixar levar pela liberdade. Para exemplificar esta dualidade, Sébastien Charles,
co-autor de Os tempos hipermodernos, lembra que “nossa sociedade da magreza e da
dieta é também a do sobrepeso e da obesidade” (2004, p.21) e define a pós-modernidade
um momento no qual “todos os freios institucionais que se opunham à emancipação
individual se esboroam e desaparecem, dando lugar à manifestação dos desejos
subjetivos, da realização individual, do amor-próprio” (p.23). Assim, a pós-
modernidade seria, inclusive, um momento histórico já ultrapassado e agora estaríamos
adentrando a era do hiper.

A hipermodernidade, de acordo com as elaborações de Charles e Lipovetsky, é o


que se constituiu após o período de transição – o pós-moderno –, sendo caracterizada
como uma sociedade liberal que tem como características principais a fluidez e a
flexibilidade, além de uma indiferença como “nunca antes” dos princípios estruturantes
da modernidade. Neste contexto, o narcisismo de Lash é substituído pelo
hipernacisismo, uma espécie de Narciso maduro, que rompeu com o Narciso hedonista
e libertário ‘lashiniano’. A cultura ganha status de hipercultura, no mesmo sentido de
[62]

fluidez, e também destacando os fluxos de imagens, filmes, músicas, espetáculos, etc..


Lipovetsky e Jean Serroy, em A cultura-mundo (2011), reconhecem a consagração da
lógica do espetáculo no que denominam ‘cultura-mundo’.

Nesta elaboração o ciberespaço recebe destaque, simbolizando o triunfo da


sociedade das imagens, que desde a invenção da televisão estava ganhando força:

O Homo sapiens tornou-se Homo ecranis: daí em diante ele nasce,


vive, trabalha, ama, se diverte, viaja, envelhece e morre acompanhado,
em todos os lugares por onde passa, por telas que o mostram feto nas
imagens de ultrassonografia, que, desde seus primeiros meses, lhe
oferecem uma televisão especialmente concebida para bebês, que lhe
propõem encontrar a alma gêmea ou o parceiro de uma noite nos
fóruns de encontro e que chegam até a fazê-lo escolher seu caixão e
seu modelo de túmulo, se ele o desejar, encomendando-os nos sites
adequados. (Lipovetsky e Serroy, 2011, p.77)

A discussão que os autores fazem no livro não traz nenhuma novidade no que
tange a questão das imagens. Muito se diz sobre a representação que ocupa o lugar da
vivência, aos moldes do que há muitos anos já havia sido proposto por Guy Debord, em
A Sociedade do Espetáculo (1967). Embora de extrema relevância para nossa pesquisa,
nos dedicaremos a esta leitura de modo mais crítico no terceiro capítulo da tese.

Outro ponto que se faz necessário destacar da elaboração de Lipovetsky e Serroy


(2011) é a visão do mundo desorientado do hipercapitalismo. A desorientação
contemporânea também aparece como um além do que propõe o pós-moderno. Ela teria
sua origem muito mais na desintegração de pontos de referência sociais básicos do que
na depreciação de valores, de autoridade ou da ‘decadência’ de fundamentos
metafísicos, como o saber, a lei ou o poder: “o desnorteio hipermoderno aumenta
paralelamente com a excrescência do universo tecno-midiático-mercantil e com o
estilhaçamento dos enquadramentos coletivos, a individualização da existência,
deixando os indivíduos à mercê de si mesmos” (p.31/32). Embora se vista de outra
roupagem, não nos parece uma novidade em relação às outras teorias pós-modernas.
Passemos adiante.
[63]

Zygmunt Bauman (2011) em uma entrevista ao Fronteiras do Pensamento,


marca que algo ocorre no século XX, indicando a passagem de uma era da história
mundial, isto é, da sociedade de produção para a sociedade de consumo; assim como
uma fragmentação da vida humana. Neste sentido, Bauman ressalta que atualmente a
vida é dividida em episódios. As sociedades teriam sido individualizadas, o que
significa que no lugar de pensarmos em uma comunidade, nação ou movimento político
ao qual se pertence, tentamos redefinir o significado de vida, o seu propósito, a
felicidade, pensando somente individualmente. Existe uma demanda para que se crie a
sua própria identidade e é possível que se passe toda a vida em busca de redefini-la, já
que as referências mudam o tempo todo, tornando-as old fashioned, fora de moda.

Assim, Bauman afirma que estas transformações que ocorreram e que ainda
ocorrem na sociedade não nos permitem elaborar se são mudanças duradouras, que vão
se solidificar, ou se estamos vivendo um período de transição de um tipo de ordem
social para outro. No período de transição é muito difícil pensarmos em uma solução
estável, mas há duas coisas que, para ele, de fato aconteceram e que não seriam
reversíveis: a primeira delas seria que a humanidade do planeta se multiplicou, assim
como as conexões e as relações e que “estamos agora em uma posição em que todos nós
dependemos uns dos outros, (...) é a primeira vez na história em que o mundo é
realmente um único país, em certo sentido” (s/p); e a segunda é que os homens
acreditaram que poderiam gestar sobre a natureza e extrair seus recursos, mas que
depois de tanto sucesso tecnológico, científico e social, teríamos chegado aos limites da
suportabilidade do planeta.

Para Bauman, outra característica da atualidade é que não acreditamos mais na


ideia de democracia, pois sabemos que ela não funciona da forma como foi pensada ou
instituída. Para ele, é notório e preciso a necessidade de se pensar em outra forma
‘democrática’ ou de governabilidade. De forma irônica, Bauman refere-se aos talk
shows para dizer que ‘a revolução’ se iniciou quando as pessoas começaram a colocar o
que era da esfera privada no âmbito do público e, em uma imagem bastante precisa,
elabora que é como se tivessem sido colocados microfones nos confessionários: “A
maior aproximação da Ágora, do lugar onde a democracia foi feita, refeita, continuada,
desenvolvida e protegida, (...) são os talk shows na televisão. É onde as massas assistem,
participam, telefonam, enviam perguntas, mensagem etc.” (s/p, grifo meu). Esta também
parece ser uma função que podemos associar às redes sociais, como vimos acontecer a
[64]

partir dos movimentos sociais que saíram das redes e ganharam as ruas aqui no Brasil e
em outras partes do mundo. E embora não se limite a isso, os blogs de várias
‘especialidades’, destinados ao que entendemos como ‘socialização do particular’,
também podem ser apreendidos enquanto lugar de espaço democrático.

Em várias de suas obras, o sociólogo polonês valeu-se do significante ‘líquido’


para qualificar o estado atual de nossa sociedade. Em seu entendimento, houve uma
passagem da modernidade ‘sólida’ para a ‘líquida’, no que se reflete especialmente
numa forma de condição na qual as organizações sociais não podem manter uma mesma
forma por muito tempo. Nestas organizações, que Bauman inclui “estruturas que
limitam as escolhas individuais, instituições que asseguram a repetição de rotinas,
padrões de comportamento aceitável” (2007, p.7), não há tempo suficiente para a
estabilidade, uma vez que a ‘ordem’ se desfaz em alta velocidade. Assim, é como se não
houvesse espaço no qual se pudesse buscar alguma referência para as ações humanas,
para se criar o que ele chama de ‘projeto da vida’ (Bauman, 2007, 2011).

A ‘liquidez’ é utilizada como referência em suas obras para diferentes âmbitos


da sociedade, mas é especialmente de nosso interesse sua elaboração a respeito dos
laços sociais. Para o autor, os ‘laços inter-humanos’, que antes se constituíam ao longo
de um contínuo investimento de tempo e esforço, agora teriam se tornado frágeis e
temporários. Um bom exemplo, citado por Bauman, e que também podemos encontrar
em outras referências é a imagem dos usuários da rede social Facebook, que acumulam
‘amigos’. Os ‘laços humanos’ e ‘comunitários’ atualmente foram sendo substituídos por
redes. Na concepção de Bauman, podemos diferenciar as comunidades e as redes de
forma que a comunidade seria aquilo que te precede, aquilo no qual você nasce já
inserido; enquanto que a rede é constituída – e não precedente – e sempre mantida viva
pelo viés da conexão ou da desconexão.

No Facebook, ou em outras redes sociais virtuais, estas são duas vertentes


extremamente simples e, para Bauman (e também destacamos a pesquisadora americana
Sherry Turkle), a facilidade de desconexão é um atrativo deste tipo de ‘laço’. O vínculo
que se estabelece não está solidificado e por esta razão é mais simples se desfazer. Esta
é uma ideia bastante difundida e que discutimos amplamente em outro momento, na
ocasião da elaboração da dissertação de mestrado (Ferreira-Lemos, 2009), abordando-a
especialmente pelos conceitos psicanalíticos de fantasia e realidade psíquica.
[65]

Bauman difere as relações em rede e aquelas offline destacando a presença física


de uma pessoa diante da outra neste tipo de vínculo, do ‘olho a olho’, indicando que
romper relações ‘reais’ seja um evento traumático, pois o sujeito precisa se explicar, isto
é, se responsabilizar diante de sua decisão. Em sua opinião, esta dinâmica mina os laços
humanos. E, apesar de não se posicionar enquanto um saudosista, é notável a insistência
de Bauman quanto a necessidade de nos sentirmos seguros e livres simultaneamente e
em ‘medidas saudáveis’, atentando para o fato de que para que se tenha algum tipo de
satisfação, se faz necessária alguma referência. Podemos entender que o sociólogo faz
uma leitura da sociedade contemporânea não como uma sociedade na qual todas as
referências se esvaíram, mas muito mais atrelada a uma ideia de excesso e velocidade
(ou liquidez) que geram angústia e insatisfação. Não poder planejar, sonhar, decidir
tendo algo como ‘meta’, ‘projeto de vida’ seria um problema contemporâneo. Ao
mesmo tempo, segurança e liberdade nunca tiveram uma medida exata que permitisse
esse equilíbrio: “Cada vez que você tem mais segurança, você entrega um pouco da sua
liberdade. Não há outra maneira. Cada vez que você tem mais liberdade, você entrega
parte de sua segurança. Então, você ganha algo e você perde algo” (Bauman, 2011,
s/p.).

Embora em alguns momentos as ideias de Lash, Lipovetsky e Bauman se


aproximem – do que diz respeito à fragmentação do pensamento, à despolitização, a
alguma ‘outra ordem’ na sociedade atual, à importância dos meios de comunicação
neste momento, ao consumo enquanto valor e até à latente solidão humana – é preciso
ressaltar que são autores com teorias próprias e que indicam momentos distintos da
sociedade. O exemplo que emprestamos de Jameson, talvez possa ter este sentido de
significar o que de comum há entre as três teorias. No entanto, se para Lash a cultura do
narcisismo aparece em um contexto pós-moderno, para Lipovetsky este momento já
teria sido ultrapassado, como um momento consagrado que teria dado origem à sua
proposta hipermoderna... Mas a pergunta que surge com isto é: qual teria sido de fato o
giro discursivo?

Talvez, a formulação de Bauman, que não se posiciona como pós-moderno,


responderia a esta questão. Como provocador, ele questiona o que haveria de
revolucionário nesta ‘evolução’ do capitalismo, indicando que, no máximo, poderíamos
pensar este momento enquanto um período de transição e não uma outra ‘ordem’ social
estabelecida.
[66]

3.2. Sociedade de risco e medo

No texto O mal-estar na civilização (1930/2006), Freud alerta que nossas


possibilidades de felicidade são restritas pela nossa própria constituição estrutural e,
portanto, o desprazer é muito mais acessível aos sujeitos humanos. Somos ameaçados
pelo sofrimento a partir de três fontes:

(...) de o nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução,


e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como
sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra
nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e,
finalmente, de nossos relacionamentos com outros homens. (Freud,
1930/2006, p.84-85)

Esta afirmação parece ser essencial para o conceito de ‘sociedade de risco’, elaborado e
desenvolvido pelo sociólogo germânico Ulrich Beck (1986/2010), pelo menos no que
diz respeito ao sofrimento advindo da fragilidade de nosso corpo e do mundo externo.

Para Beck somos, sujeitos e objetos, testemunhas oculares de um momento de


ruptura no interior da modernidade, na qual a sociedade industrial clássica assume a
forma de ‘sociedade (industrial) de risco’. Nesta proposta de Beck, podemos apreender
que há algo que conecta nosso modo de estar no mundo a uma cultura que faz uso do
‘medo’ ou do ‘risco’ que, como exposto por Freud, está em nossa constituição enquanto
sujeitos. Em nosso entendimento, é como se vivêssemos em uma sociedade na qual se
tente apropriar deste afeto em busca de dirigirem (ou controlarem) os mais díspares
âmbitos sociais.

O que ele denomina de ‘sociedade (industrial) de risco’ está inserido em um


contexto globalizado, que implica uma atmosfera com força cultural e política, de cunho
violento, que mobiliza a sociedade atual de diferentes formas. O ‘risco’, tomado como
uma antecipação da catástrofe, utiliza-se de diferentes roupagens (ecológico, financeiro,
militar, bioquímico, informacional, etc.), faz girar as relações de poder entre as nações e
[67]

afeta também as pessoas. Além disso, as técnicas de visualização e os meios de


comunicação de massa são fundamentais para a sua existência.

O que nos parece uma forma de discursividade assustadora, na visão


extremamente otimista de Beck é potencialmente transformadora. Beck crê que a
sociedade de risco é também uma oportunidade social. Para ele, ao se prever a
destruição e o desastre pode-se gerar uma pressão para agir sobre isso, o que indica uma
concepção mais próxima a uma ideia de que os desastres (naturais ou econômicos)
podem ser evitados e outros infortúnios devidamente remediados (como doenças,
epidemias, pobreza,...). O risco, para Beck, pode unir os seres humanos, não só em
termos de solidariedade, mas da emergência de um ‘mundo comum’, como projeto
alternativo a partir da consciência de risco global: “A sociedade mundial de riscos nos
obriga a reconhecer a pluralidade do mundo que a visão nacionalista podia ignorar”
(Beck, 1986/2010, p.364). A partir de uma ideia de ‘identificação geral’, em decorrência
de compreendermos a vulnerabilidade frente às experiências traumáticas às quais
estamos expostos, Beck defende que a consciência do risco abre um espaço moral e
político que pode fazer emergir uma cultura civil que minimize as diferenças entre
culturas e trabalhe sempre pensando na contribuição para uma harmonia geral. Apesar
de ser uma ideia bonita de união dos povos em prol de uma sociedade sem conflitos,
parece-nos impraticável não só diante de todos os interesses econômicos envolvidos,
como também na impossibilidade da suplência de conflitos, numa espécie de estado de
satisfação universal.

O estudo realizado pelo sociólogo americano Barry Glassner (2003) apresenta


contribuições menos idealizadas. Ele se dedicou a compreender a ascensão da cultura do
medo nos Estados Unidos, apontando a influência fundamental dos meios de
comunicação em sua disseminação, partindo do célebre acontecimento da transmissão
radiofônica, em 1938, de A guerra dos mundos (1898) de Orson Wells, que resultou no
profundo desespero de milhões de americanos que acreditavam que a Terra estava sendo
invadida por extraterrestres. Esta passagem ilustra muito bem o que Glassner quis dizer
ao afirmar que temos mais medo de fatos que acontecem cada vez menos. Em
contrapartida, a cultura do medo distancia-se cada vez mais de assuntos que realmente
deveriam provocar algum tipo de temor, como as questões políticas e econômicas, a
venda de armas (no caso dos Estados Unidos), o preconceito, a falta de recursos para a
educação e a saúde, etc.. Tal estratégia aponta para a gestão da ideologia capitalista,
[68]

pois ocupando as pessoas com causas que geram giros econômicos, que continuam a
sustentar o sistema, ofuscam-se assuntos que poderiam resultar em algum tipo de efetiva
transformação social. O objetivo é sempre o de tamponar o furo do sistema, mesmo que
para isso se produzam centenas de dispositivos provocadores de angústia. A velha
fórmula bastante conhecida utilizada pela discursividade capitalista.

Bauman (2007) também contribui para a discussão ao salientar que somos


convocados a observar:

(...) ‘os sete sinais do câncer’ ou "os cinco sintomas da depressão", ou


para exorcizar o espectro da pressão alta, do nível alto de colesterol,
do estresse ou da obesidade. Em outras palavras, buscamos alvos
substitutos sobre os quais possamos descarregar o medo existencial
excedente que foi barrado de seus escoadouros naturais, e
encontramos esses alvos paliativos ao tomarmos cuidadosas
precauções contra a inalação da fumaça do cigarro de outra pessoa, a
ingestão de comida gordurosa ou de "más" bactérias (ao mesmo tempo
em que sorvemos os líquidos que prometem conter as "boas"), a
exposição ao sol ou o sexo desprotegido. (Bauman, 2007, p.17)

E o autor igualmente afirma que a cultura do medo seja algo lucrativo, extremamente
explorado na cultura global, se engendrando em ‘microatitudes’ – como carros
blindados, casas em condomínios, aprendizado de artes marciais – ou em
‘macroatitudes’ – representado aqui pelos armamentos ou câmeras de segurança
espalhadas por todos os lados e, acrescentamos, a espionagem americana dos governos e
também dos cidadãos.

A discussão pode também ser feita a partir do medo da desordem psíquica, que
agora acomete milhões de pessoas no mundo todo, provocando um ‘boom’ de
portadores de síndrome do pânico, transtornos obsessivos, popularizando a fibromialgia,
condenando crianças ao TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade),
etc.. Vivemos a categorização psiquiátrica de todos os ‘desvios’ que se possa apresentar
e, consequentemente, a medicalização psiquiátrica de centenas de milhares. Para todo
mal, a cura. Por de trás das descobertas científicas divulgadas a cada dia em jornais e
[69]

revistas – afinal, ovo aumenta ou não o colesterol? – uma indústria incomensurável de


produtos prontos para ‘dar conta’ de tudo.

Podemos também deslizar a questão do medo e risco para a queda da ascensão


capitalista, que tem seu marco no episódio do ataque terrorista de 11 de setembro de
2001 aos Estados Unidos. Como ressalta Žižek, em Primeiro como tragédia, depois
como farsa (2009/2011), o discurso do então presidente Bush ao povo norte-americano
– na ocasião de 11 de setembro de 2001 e na crise financeira de 2008 –, evocava a
“ameaça ao estilo de vida norte-americano e a necessidade de tomar providências
rápidas e decisivas para enfrentar o perigo” (p.15). Assim, instaura-se o risco do sistema
financeiro, o medo de perder seus bens, medo do vizinho de nacionalidade árabe, de um
novo ataque ao território e as medidas de proteção tomadas em nome da segurança, que
acabaram eclodindo na guerra aos países islâmicos.

Como sabemos, para a psicanálise a angústia é um afeto. E é também um dos


temas mais importantes, tendo Freud e Lacan se dedicado a estudá-lo em diversos
momentos. Há um sem fim de publicações que se dedicam ao tema, mas não se
justificaria trazermos à discussão neste momento da tese. Portanto, com objetivo de
esboçarmos alguma elaboração da psicanálise sobre o que foi exposto por Beck,
Glassner ou Žižek, trazemos dois trechos da entrevista de Lacan à revista italiana
Panorama (1974/2004).

O entrevistador, Emilio Granzotto, interroga Lacan sobre o que leva os sujeitos à


análise e ele rebate que é o medo. Ele afirma que as pessoas sentem medo quando coisas
desejadas ou não lhe acontecem e o sujeito não compreende. O sofrimento neurótico
vem de não compreender: “(...) na neurose histérica, o corpo fica doente de medo de
estar doente, e sem estar na realidade. Na neurose obsessiva, o medo coloca coisas
bizarras na cabeça, pensamentos que não podemos controlar, fobias nas quais as formas
e os objetos adquirem significações diversas e que dá medo” (Lacan, 1974, s/p). No
final da entrevista, Granzotto questiona “Mas o que é a angústia para a psicanálise?” e
Lacan responde:

Algo que se situa fora de nosso corpo, um medo, mas de nada, que o
corpo, espírito incluído, possa motivar. O medo do medo, em suma.
[70]

Muitos desses medos, muitas dessas angústias, no nível em que os


percebemos têm a ver com o sexo. Freud dizia que a sexualidade, é
sem remédio e sem esperança. Uma das tarefas do analista é encontrar
na palavra do paciente a relação entre a angústia e o sexo, esse grande
desconhecido. (...) Não existe psicanálise coletiva assim como não
existe angústias ou neuroses de massa. (Lacan, 1974, s/p)

Deste modo, isto nos permite afirmar que a ‘Sociedade de Risco’ e/ou a ‘Cultura do
Medo’ contribuem enquanto leituras da discursividade contemporânea, na qual por trás
da tentativa de instauração de medos que visam transformar a relação dos sujeitos com
as coisas e até consigo mesmo, está implícita a ideia de um coletivo homogêneo guiado
pelos significantes ‘medo’ ou ‘risco’, que nada mais alcançam através de identificações
imaginárias, senão a insistência na alienação das estratégias do capitalismo. Assim,
neste contexto, o discurso funciona como uma via de mão-dupla no sentido que provoca
‘ações’ – seja a solidariedade, seja a busca pela cura – ao mesmo tempo em que
condena o sujeito a buscar soluções na própria armadilha do capital, numa espécie de
resposta ao ‘Che vuoi?’.

3.3. Cibercultura e Sociedade em Rede

As elaborações de Manuel Castells e Pierre Lévy sobre a sociedade partem de


um denominador comum: a internet. Ambos a concebem enquanto um dispositivo que
possui efeitos reais na estrutura econômica e social, possibilitando que suas análises
sejam feitas partindo de uma concepção de cultura na qual o mundo encontra-se
interligado por redes. Mais do que pensar a internet enquanto uma característica de
nosso tempo, Lévy e Castells a tomam enquanto um catalisador cultural.

O sociólogo espanhol Manuel Castells (1999/2008) consagrou ‘a sociedade em


rede’ em seu livro homônimo, entendendo rede enquanto: “um conjunto de nós
interconectados” (p.566), que são capazes de se expandir sem limite, integrando novos
nós em redes que compartilham do mesmo código de comunicação (por exemplo, os
mesmos valores):
[71]

A sociedade em rede, em suas várias expressões institucionais, por


enquanto é uma sociedade capitalista. Ademais, pela primeira vez na
história, o modo capitalista de produção dá forma às relações sociais
em todo o planeta. Mas esse tipo de capitalismo é profundamente
diferente de seus predecessores históricos. Tem duas características
distintas fundamentais: é global e está estruturado (...) em uma rede de
fluxos financeiros. (Castells, 1999/2008, p. 567)

Em uma análise bastante abrangente sobre as transformações socioeconômicas em seus


mais distintos aspectos, Castells destaca que a tecnologia deve ser levada a sério e a
utiliza como ponto de partida de sua investigação. No entanto, ele faz duas ressalvas que
são interessantes: a primeira delas é que não confia que novas formas sociais emergem
como consequência da transformação tecnológica e que, portanto, a tecnologia não
determina a sociedade; a segunda é que a sociedade igualmente não dita o caminho das
transformações tecnológicas, uma vez que uma série de outros fatores – como
iniciativas empreendedoras criativas – intervém no progresso de descobertas científicas,
tecnológicas e também em sua aplicabilidade social: “Na verdade, o dilema do
determinismo tecnológico é, provavelmente, um problema infundado, dado que a
tecnologia é a sociedade, e a sociedade não pode ser entendida ou representada sem suas
ferramentas tecnológicas” (Castells, 1999/2008, p.43). Entretanto:

(...) embora não determine a evolução histórica e a transformação


social, a tecnologia (ou sua falta) incorpora a capacidade de
transformação das sociedades, bem como os usos que as sociedades,
sempre em um processo conflituoso, decidem dar ao seu potencial
tecnológico. (ibid., p.44-5)

Podemos entender que Castells tenciona tecnologia e sociedade em uma relação dual
que, em analogia, permite assentar que corrobora com a perspectiva psicanalítica de que
[72]

sujeito e social não podem ser pensados de forma independente – ou, como veremos no
capítulo seguinte.

Posteriormente, em A Galáxia da Internet (2001/2003), Castells entende que a


‘cultura da internet’ estrutura-se em quatro camadas, hierarquicamente dispostas, que
contribuem para uma ‘ideologia de liberdade’ disseminada na internet, constituindo:
cultura tecnomeritocrática, cultura hacker, cultura comunitária virtual e cultura
empresarial. Sendo que se articulam do seguinte modo:

(...) a cultura tecnomeritocrática especifica-se como uma cultura


hacker ao incorporar normas e costumes a redes de cooperação
voltadas para projetos tecnológicos. A cultura comunitária virtual
acrescenta uma dimensão social ao compartilhamento tecnológico,
fazendo da Internet um meio de interação social e de integração
simbólica. A cultura empresarial trabalha, ao lado da cultura hacker e
da cultura comunitária, para difundir práticas da Internet em todos os
domínios da sociedade como meio de ganhar dinheiro. Sem a cultura
tecnomeritocrática, os hackers não passariam de uma comunidade
contracultural específica de geeks e nerds. Sem a cultura hacker, as
redes comunitárias na Internet não se distinguiriam de muitas outras
comunidades alternativas. Assim como, sem a cultura hacker e os
valores comunitários, a cultura empresarial não pode ser caracterizada
com especifica à Internet. (Castells, 2001/2003, p.34-5)

A cultura tecnomeritocrática – uma vez que a internet foi produzida em círculos


acadêmicos – está enraizada na discursividade acadêmica e científica, o que no nosso
entender, neste contexto, se associa ao discurso universitário. Uma de suas crenças, tais
quais os iluministas e a modernidade, é a de que o desenvolvimento tecnológico e
científico é decisivo no progresso da humanidade. Os hackers formam uma comunidade
dentro desta cultura que se utiliza da conexão dos computadores para desenvolvimento
de programas e software, tendo como significante a liberdade. “Liberdade para criar,
liberdade para apropriar todo conhecimento disponível e liberdade para redistribuir esse
conhecimento sob qualquer forma ou por qualquer canal (...)” (Castells, 2001/1003,
[73]

p.42) , embora na maioria das vezes os hackers estejam sendo utilizados por empresas
para a sustentação e desenvolvimento da internet e também do sistema... O que, neste
caso, não nos deixa margem para pensarmos em liberdade. Entretanto, vale mencionar a
organização transnacional WikiLeaks, representada aqui pelo ciberativista Julian
Assange.

A WikiLeaks, a partir do trabalho de hackers, desde 2006 é responsável pela


divulgação em rede de centenas de milhares de documentos confidenciais, sejam
diplomáticos ou militares – na intenção de deixar às claras o que não se encontra tão
transparente, fazendo frente, especialmente, às grandes organizações, como governos e
bancos. No mês de novembro do ano de 2010 o WikiLeaks divulgou, em conjunto com
cinco importantes jornais do mundo (El País, Le Monde, Der Spiegel, The Guardian e
New York Times), documentos secretos que se relacionavam com a invasão americana
ao Iraque e ao Afeganistão. Desde então, viu-se uma verdadeira perseguição política à
Assange. O mesmo aconteceu com o técnico de informática americano Edward
Snowden, funcionário da Agência de Segurança Nacional (NSA) americana, que
revelou ao The Guardian (2013) informações confidenciais sobre os programas de
vigilância das comunicações implantados pelos Estados Unidos e que, ironicamente, é
procurado por espionagem.

Em relação ao WikiLeaks, dias após a divulgação dos documentos,


‘coincidentemente’, a Interpol colocou Julian Assange na lista de procurados, por ter
sido acusado na Suécia de crimes sexuais – entre eles a ausência de preservativo – que
teriam ocorrido em agosto do mesmo ano. Assange se apresentou à polícia de Londres,
negou as acusações e foi liberado. Como ressalta Wladimir Safatle (2012), neste caso
houve uma inversão: o problema de cunho político passa para uma questão moral.
Contudo, por questões diplomáticas, se vier a ser extraditado para a Suécia, ele pode ser
extraditado para os Estados Unidos e por lá responderá a crimes de espionagem, fraude,
entre outros. No Reino Unido, Assange conseguiu asilo político na embaixada do
Equador, sendo o local constantemente ameaçado de invasão pelo governo britânico. Já
Snowden ainda busca asilo político, mas os países que poderiam acolhê-lo são a todo
tempo intimidados pelo governo americano. Em julho de 2013, por exemplo, um voo no
qual estava o presidente boliviano Evo Morales teve acesso negado aos espaços aéreos
de Portugal e Itália, pois havia a suspeita de que Snowden estaria a bordo.
[74]

Esta passagem serve como imagem tanto para se pensar no problema


transparência política, quanto para questionarmos a questão da ‘liberdade’ na internet ou
entendermos a dinâmica de sustentação dessa cultura. Como Castells sugere, as culturas
que apoiam a ‘cultura da internet’ se inter-relacionam e também a sociedade em rede se
configura enquanto capitalista. Portanto, questionar os pilares que a amparam, isto é,
fazê-la em detrimento de algo que não consta no sistema e que, portanto, denuncia seu
furo (aos moldes da histeria), se torna um enorme problema. Neste sentido, poderíamos
apreender um viés político na Internet, para-além da alienação que também se solidifica
e da prévia condenação dos mais apressados. Voltaremos a este ponto em outro
momento.

Castells indica que as comunidades virtuais se originaram de modo semelhante


aos movimentos de contracultura e dos modos de vida alternativos que emergiram a
partir da década de 1960, supondo uma ideia de cultura comunitária unificada. Na
medida em que foram se expandindo, as comunidades virtuais também se distanciaram
de sua conexão original com a contracultura.

Atualmente, as comunidades virtuais configuram-se enquanto uma das maiores


‘utilidades’ da internet, especialmente a partir da ampliação de redes sociais, como
Facebook (com aproximadamente um bilhão de usuários no mundo todo) e o Twitter.

As redes sociais são apreendidas enquanto um meio no qual as pessoas se


relacionam umas com as outras. Logo, aparecem enquanto um instrumental que incide
sobre os laços sociais. Castells, assim como Pierre Lévy (1996, 1994, 1999) e Sherry
Turkle (1999, 2003, 2007, 2008), se ocupam em entender de que forma essa
composição social afeta a vida e a relação das pessoas. Muitos outros autores, de
diferentes áreas, também se dedicam a estudar o mesmo tema, inclusive autores da
psicanálise, como veremos no próximo capítulo.

Se no período de nosso mestrado (2007-2009) as pesquisas pareciam caminhar


em direção a estabelecer congruências e dissidências entre o mundo online e offline,
especialmente a partir de estudos das redes sociais, entendemos que houve certo avanço.
A discussão que acompanhamos hoje nos permite descrever duas transparentes
variações: em primeiro lugar, notamos precisamente que a preocupação não é mais a de
estabelecer uma dicotomia entre online e offline, colocando a internet enquanto um
‘mundo possível’. Agora, ela é tomada como algo concreto, que efetivamente incide na
[75]

vida social ou econômica. O segundo ponto – e esse nos é bastante caro – percebemos
que em psicanálise igualmente tem produzido sobre o tema, validando nosso esforço
contínuo que se ocupa em apreender que ali existe algo alocado sobre o sujeito.

Diante disso, interrogamos se na atualidade a internet funciona mais como um


dispositivo que expõe o que é próprio do sujeito ou podemos concebê-la enquanto algo
que estabelece uma ‘nova ordem’? Para Castells, esta questão pode ser respondida por
uma via de mão dupla: “nem utopia nem distopia, a Internet é a expressão de nós
mesmos através de um código de comunicação específico, que devemos compreender se
quisermos mudar nossa realidade” (2001/2003, p.11).

A concepção do filósofo Pierre Lévy é similar a de Castells ao se deter sobre as


comunidades virtuais. Ambos escrevem suas obras no momento de franca ampliação da
internet, quando essa passa a ser acessível aos usuários em suas próprias casas, através
de computadores pessoais. Este contexto suscita em Castells e Lévy, a necessidade de
entenderem e explicarem a ‘novidade’ a quem pudesse interessar. O receio e debate em
torno de uma inovação em comunicação é uma reação esperada frente ao novo. Antes
da internet, a maioria dos estudos estava às voltas, progressivamente, com a influência
da fotografia, do rádio ou da televisão na vida social: “Muitas vezes, enquanto
discutimos sobre os possíveis usos de uma dada tecnologia, algumas formas de usar já
se impuseram. Antes de nossa conscientização, a dinâmica coletiva escavou seus
atratores” (Lévy, 1999, p.26).

Lévy (1999) se utiliza do termo ‘ciberespaço’ cunhado por William Gibson, em


1984, para falar de desse universo de redes digitais, onde se estabelecem novas
fronteiras econômicas e culturais. O ciberespaço (ou rede) é entendido como um espaço
de comunicação aberto que se dá a partir dos computadores conectados em rede,
especificando a infraestrutura material e também todo o fluxo de pessoas que se
comunicam e participam. Já para definir as técnicas materiais e intelectuais, Lévy
inventa o termo ‘Cibercultura’, indicando as práticas, os valores, os pensamentos que se
desenvolvem neste espaço.

A possibilidade de a sociedade encontrar-se no ciberespaço, juntamente com o


otimismo e encantamento de Lévy (1994/2007) diante de tantas aberturas (um novo
território que converge comunicação, pensamento e trabalho), viabilizam para que o
autor formule um projeto que denomina de ‘inteligência coletiva’. Assim ele a define:
[76]

“é uma inteligência distribuída por toda parte, incessantemente valorizada, coordenada


em tempo real, que resulta em uma mobilização efetiva das competências” (1994/2007,
p.28). O ciberespaço é o dispositivo ideal para que esses coletivos inteligentes se
desenvolvam, conectando saberes e provocando transformações. O WikiLeaks ou o
Wikipedia, assim como várias outras comunidades virtuais, podem ser tomados como
exemplos. As trocas de ideias, artigos, imagens, as conferências eletrônicas, entre
tantos outros, também são meios de se coletivizar o saber. Para Lévy, esta seria a
melhor maneira de se utilizar o ciberespaço.

Tendo este ideal como precedente, Lévy afirma no documentário As formas de


saber (Sesctv, 2012), que a internet é a ‘revolução’. Ao retomar a origem das redes
sociais – que foram também remetidas por Castells enquanto um processo que se deu
semelhante à contracultura – o autor afirma que em sua constituição podemos pensá-la
enquanto revolucionária. No inicio dos anos 1970, a internet era utilizada
exclusivamente por pesquisadores científicos e, portanto, era inacessível à população.
Contudo, vários grupos ativistas, sobretudo na Califórnia, acreditaram que seria possível
fazer este tipo de ‘informação’ (mesmo que ainda fosse extremamente precária em
relação ao que temos hoje), chegar ao público em geral, enquanto um instrumento de
informação. Assim, o computador pessoal (PC) apareceu. O que, no seu entendimento,
permite afirmar que a internet é um movimento social que emergiu da própria
sociedade, oriunda de jovens que viviam em grandes metrópoles, interessados na
revolução técnica e em novas formas de comunicação interativas e comunitárias.

Autorizamo-nos, a partir das considerações de Lévy e Castells, e também em


conjunto com o que pesquisamos até aqui, apontarmos: enquanto Lévy afirma que a
internet é um dispositivo revolucionário desde sua ‘criação’, Castells elabora que isso
foi se diluindo na proporção de sua expansão; enquanto os pós-modernos assinalam para
a ausência de um sujeito crítico, observamos uma ebulição de movimentos sociais – seja
na rua, seja no ciberespaço; em tempos de cultura narcisista, nunca se esteve tão
conectado aos outros; na falta de referências, um sem fim de universidades, de guerra e
de fiéis...

Chè vuoi?
[77]

CAPÍTULO II

PSICANÁLISE E SOCIEDADE: O SUJEITO E AS


TRANSFORMAÇÕES NO OUTRO

Diante do cenário de transformações na sociedade que percorremos no capítulo


anterior, vimo-nos impelidos a continuar nossa investigação buscando contribuições de
autores da psicanálise, sobretudo aqueles de orientação lacaniana, que constantemente
se ocupam da articulação entre psicanálise e sociedade.

Como mencionado previamente, a relação entre estas duas vertentes se origina


em Freud e se mantém nas elaborações de Jacques Lacan. Na essência desta discussão,
podemos entender que também se insere a relação intrínseca entre sujeito e sociedade,
indicada por Freud e fomentada pela psicanálise lacaniana como de impossível
dissociação. Portanto, temos que sujeito e sociedade não são dois polos oponentes,
tampouco um se funde e exerce soberania em detrimento do outro; ambos só são
possíveis pelo e a partir do outro.

Na primeira parte do capítulo, marcamos a concepção de sujeito na teoria


lacaniana, desenvolvendo considerações sobre a relação entre sujeito, outro e Outro e
assinalando a distinção entre o sujeito na compreensão das teorias sociais e
psicológicas, com a da psicanálise. Nosso percurso perpassa as primeiras elaborações de
Lacan sobre o tema, o desenrolar durante seu ensino, até a elaboração dos quatro
discursos como forma de aparelhamento de gozo.

Posteriormente, nos ocupamos das frentes que diretamente se relacionam com


nossa proposta, indicando as transformações do Outro e de que modo estas incidem nos
laços sociais. Neste sentido, optamos por autores que consideram a internet e,
sobretudo, as redes sociais, como uma particularidade contemporânea, indicando o
modo como estas advêm nos sujeitos que transitam em nosso tempo ou de que forma
contribuem para transformações (ou, quiçá, para predicados próprios) nos laços. Mesmo
[78]

ainda precocemente, nos arriscamos a afirmar que as elaborações dos psicanalistas


legitimam que tal dispositivo de fato provoca alguma coisa... E o que isso significa?

1. Sujeito: da linguagem ao gozo

Eu, reduzida a uma palavra? Mas que palavra me representa? De uma


coisa sei: eu não sou meu nome. O meu nome pertence aos que me
chamam. (Clarice Lispector em Um sopro de vida, 1991)

Antes de tudo, iniciamos esta segunda etapa marcando a concepção de sujeito


para a psicanálise, que difere veementemente do que estava posto, uma vez que esta
noção emerge teoricamente a partir de Lacan. Em Freud não há referência direta à
noção de sujeito, embora Lacan a tenha formulado apoiando-se especialmente nas
elaborações clínicas freudianas. No progresso dos estudos lacanianos, vemos que a
concepção de sujeito também avança, entretanto não se pretende traçar um histórico de
tal concepção no decorrer dos seminários, mas apresentarmos um contorno que
contemple o surgimento da ideia e modificações relevantes para o entendimento.

O retorno ao conceito de sujeito é importante na medida em que ideias – como


as citadas anteriormente, sobretudo a de ‘novas formas de subjetivação’; os sujeitos pós-
modernos, narcisistas, hipermodernos... – se disseminam no discurso contemporâneo.
No entanto, é importante questionar se estes autores estariam limitados em seu
pensamento por se centrarem na noção de realidade (que Freud subverte) e de eu
(indivíduo).

Legitimar estas concepções precipitadas, nos lembra Pacheco Filho, “poria em


xeque as formulações teóricas e conceituais desenvolvidas para a compreensão do
sujeito de períodos históricos precedentes, ou, no mínimo, exigiria uma utilização
radicalmente distinta dos conceitos e proposições anteriormente empregados”, o que
[79]

não nos é interessante, tampouco sustentável. Uma vez que, como nos esforçamos em
sustentar, não se trata de um rompimento, pois não estamos diante de uma modificação
estrutural do sujeito. A transformação em nossa conjectura se dá na ordem da
discursividade, e por esta mesma razão, é possível que vejamos as alterações refletidas
nos laços sociais.

A compreensão sobre sujeito que existia antes da formulação da qual nos


ocupamos não consente a apreensão do sujeito pensado do modo como concebemos. O
que marca esta principal distinção é que na concepção anterior, de origem filosófica, o
sujeito é identificado como o sujeito da consciência, representado principalmente pelo
cogito cartesiano “Penso, logo sou”. Esta elaboração está atrelada muito mais a razão,
isto é, àquele que tem consciência de seus atos, consciência de si. O sujeito sobre o qual
toma a psicanálise é pensado a partir de outro viés, qual seja: o da ideia de inconsciente.
Este ponto marca em definitivo a ruptura na concepção de sujeito da psicanálise em
relação às outras teorias, especialmente com a psicologia, mesmo com aquelas que não
se apoiam em uma concepção de sujeito, como no caso do Behaviorismo:

Nosso ego, nosso bem pensante ego cartesiano, diz penso, logo sou.
Eu me defino pelo que estou falando, pelo que estou pensando, pela
minha imagem corporal, mas isso não me diz quem sou. Esse eu do
pensamento consciente e do corpo não se confunde com o sujeito do
desejo inconsciente. (Quinet, 2000/2003, p.28)

Lacan propõe no texto Subversão do sujeito e dialética do desejo no


inconsciente freudiano (1960/1998) um sujeito para-além da consciência, a partir do
reconhecimento da estrutura da linguagem no inconsciente: “O inconsciente, a partir de
Freud, é uma cadeia de significantes que em algum lugar (numa outra cena, escreve ele)
se repete e insiste, para interferir nos cortes que lhe oferece o discurso efetivo e na
cogitação a que ele dá forma” (Lacan, 1960/1998, p.813).

Neste sentido, o sujeito se situa em uma relação com o saber e o saber não
comporta qualquer conhecimento. É por isso que no entendimento de Lacan, a grande
descoberta de Freud é que a verdade (e, portanto, o sujeito) aparece no equívoco.
[80]

Freud nos mostra no percurso de sua obra, notadamente na ‘trilogia do


significante’: A interpretação dos sonhos (1900), Psicopatologia da vida cotidiana
(1901) e Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905), a estrutura de linguagem
do inconsciente, enfatizando os relatos de seus casos clínicos. É também através de sua
escuta, tendo como técnica a associação livre, que Freud nos indica que lapsos, atos
falhos, chistes e sonhos são manifestações do inconsciente. São nestes acontecimentos
que temos pistas do sujeito desejante:

Nossos atos falhados são atos que são bem sucedidos, nossas palavras
que tropeçam são palavras que confessam. Eles, elas, revelam uma
verdade detrás. No interior do que se chamam associações livres,
imagens do sonho, sintomas, manifesta-se uma palavra que traz a
verdade. Se a descoberta de Freud tem um sentido é este – a verdade
pega o erro pelo cangote, na equivocação. (Lacan, 1953-1954/1986,
p.302).

Depois, já tendo proposto a subversão do algoritmo do linguista Ferdinand


Saussure (em 1957) 13, Lacan reafirma sua proposta ao dizer que: “Se a linguística nos
promove o significante, ao ver nele o determinante do significado, a análise revela a
verdade dessa relação, ao fazer dos furos do sentido os determinantes de seu discurso”
(Lacan, 1960/1998, p.815).

Como destaca Antonio Quinet em A descoberta do inconsciente (2000/2003),


em Freud encontramos que o inconsciente é determinado e tem leis próprias. Deste
modo, a proposta lacaniana é de que o inconsciente seja pensado como um conjunto de

13
A teoria de Ferdinand Saussure é a base utilizada por Lacan para elaborar sobre o significante. Na tese
de Saussure qualquer signo linguístico é constituído por uma imagem acústica (som) e o conceito, isto é,
o significado daquilo que sobre o qual o som diz. A imagem acústica sem o seu significado (conceito), é o
que Saussure entende como significante. Portanto, temos na linguística que: o significado (s) se sobrepõe
ao significante (S): s/S. Lacan (1957/1998) acredita que sustentar essa ideia – de que o significante atende
à função de representar o significado – é um equivoco, pois as coisas não podem fazer mais que
demonstrar que nenhuma significação pode se sustentar a não ser pela remissão a outra significação. Não
existe uma significação em si, fechada e recíproca, pois “[...] não há língua existente à qual se coloque a
questão de sua insuficiência para abranger o campo do significado, posto que atender a todas as
necessidades é um efeito de sua existência como língua” (Lacan, 1957/1998, p. 501). Lacan propõe que
se inverta este algoritmo, sugerindo que o significante (S) se sobreponha ao significado (s): S/s,
demonstrando sua primazia e sua necessária articulação a outros significantes. È na combinatória entre
significantes que temos a cadeia significante.
[81]

cadeias significantes que se articulam entre si formando anéis dentro de um colar, que
se articulam com outros anéis de outros colares, etc. O significante não pertence
exclusivamente a uma cadeia, ele está articulado a outra, o que garante a sua
propriedade de equivocidade. Isto é, a equivocidade do significante é a característica
que sustenta que uma mesma palavra possa ter diferentes significados.

Para Lacan, é neste jogo de linguagem, no qual um significante mestre (S1) irá
buscar representação em outro significante (S2), formando a cadeia significante, que o
sujeito surge. É também neste jogo de linguagem – inerente e submetido à sua
irrefragável imersão na cultura – que é colocado diante do laço social desde antes de seu
nascimento. Não se pode questionar a ideia de que um bebê seja carregado de desejos e
expectativas do outro que o embalam antes mesmo de ter atravessado a barreira
corpórea que o separa do ventre da mãe e do mundo. É neste sentido ainda que se pode
pensar em sua inscrição no laço social, uma vez que sua condição é de alienado a um
desejo que não lhe é próprio, mas do Outro.

Torna-se fundamental destacar que na trama simbólica – a dos significantes, do


inconsciente – o sujeito se referencia diretamente a instância do Outro (A, o grande
outro, de Autre, em francês). O Outro é o discurso do inconsciente, é um lugar, que
pode também ser compreendido como a alteridade do eu consciente (Quinet, 2012): “A
é o lugar onde se coloca para o sujeito a questão de sua existência, de seu sexo, de sua
história” (ibid., p.21).

Sidi Askofarè (2009) indica que ao formular o conceito de sujeito, especialmente


se distanciando da psicologia do eu, Lacan estaria contestando a não historicidade do
sujeito, abrindo uma perspectiva para a articulação entre estrutura e história. E este
trabalho justamente se alicerça nesta ideia, uma vez que sujeito e cultura estabelecem
uma relação indissociável.

A relação entre estrutura e história é também o que evidencia o laço social que
traz consigo a marca da impossibilidade da relação sexual, constitutiva da cultura e
também do sujeito. A linguagem viabiliza que se contorne o objeto impossível (o objeto
a para sempre perdido), nunca alcançado, já que é desde sempre inacessível – ele não
está lá, embora produza efeito. Em definitivo, é a falta estrutural (e real) do sujeito, que
inaugura a sua entrada na cultura, que o condena ao laço social, pois é pela linguagem
que terá a função de tentar contornar este furo, através de suas tramas simbólicas, que se
[82]

dá a tentativa incessante de representar algo que é da ordem do impossível de


representação, “que não cessa de não se inscrever” (Lacan, 1974-1975).

E a relação dos sujeitos com os outros? Pois, o ‘pequeno outro’ (a – de autre, em


francês) também está na composição do sujeito, especialmente em sua estrutura
imaginária, a qual contempla o eu. Neste cenário, eu e outro se confundem, e em sua
relação com o mundo, este outro – desde sempre intruso – tem dois possíveis lugares: o
de igual e de rival. O outro é aquele com o qual o eu se identifica enquanto semelhante,
em uma relação que é especular. Lacan demonstra isso quando formula o ‘complexo do
intruso’, em Os complexos familiares na formação do indivíduo (1938/1997), e depois
em elaborações mais técnicas como o estádio do espelho e também o esquema L.

No ‘complexo de intrusão’, fica evidente a rivalidade que surge, por exemplo, no


nascimento do irmão mais novo, quando o primogênito irá se interrogar sobre o lugar
que o pequeno ‘intruso’ virá a ocupar no desejo do Outro, a mãe. Ao mesmo tempo, a
hostilidade convive com a identificação imaginária ao outro, marcando a principal
proeminência da relação do sujeito com seus semelhantes, mencionada por Freud
(1927/2006): a angústia.

No estádio do espelho, Lacan formaliza o modo como se dá a separação do


Innenwelt do Umwelt, mundo interno e mundo externo. Este seria o momento no qual o
bebê percebe pela primeira vez a sua imagem refletida no espelho na forma de uma
unificação de seu corpo, através da imagem de si e do outro. A partir deste momento de
júbilo, o mundo interno será apropriado através de identificações com o mundo exterior,
e a oferta será feita por aquele que ocupa o lugar do Outro, no qual o sujeito busca a sua
representação – significante (S1) que o representa para outro significante (S2).

Este é um ‘acontecimento’ que indica as funções que serão desempenhadas. O


eu emerge neste tempo e será, suis generis, narcísico. Será também o ‘eu ideal’, sua
imagem refletida, a base das identificações que irão compor a sua cadeia. O ‘eu ideal’ é
uma imagem mental do eu que acarreta sua condição de alienado. A imagem que reflete
vem acompanhada do discurso do Outro que qualifica o sujeito - bonito, bom, ruim,
genial, feio –, e é internalizado. A trama irá tecer uma série de imagens ideais que irão
preencher o eu desde então.
[83]

Chegamos a dois pontos importantes: primeiramente, a evidente distinção entre


sujeito do inconsciente e o eu, no tocante de suas próprias fórmulas de consistência; e,
posteriormente, à questão especular – colocação que ampara nossa discussão proposta.
Embora Lacan tenha avançado em sua teoria, o que temos já nos permite dizer que este
é um ponto que merece destaque, pois é aqui que vemos o início da apresentação do
especular como condicional para o sujeito, especialmente para a instância do eu. A
questão da imagem emerge enquanto fundadora do eu e é dela que partirá a série de
identificações, que sustentará sua relação com o mundo, assim como a imagem que tem
de si, a que gostaria de ter, seu eu impotente e alienado diante do Outro. É uma teoria
inicial, de origem imaginária e simbólica, mas que não será abandonada, mesmo quando
ele se dedica ao campo do gozo (real). Como sabido, os três registros não são possíveis
sozinhos, eles encontram-se enodados.

Vemos que a série de Lacan que enfatiza a questão da imagem é também


destaque em Observação sobre o relatório de Daniel Lagache (1960/1998),
especialmente quando utiliza o exemplo do buquê invertido de Bouasse14 para dizer da
relação do eu com o outro:

Figura 8 - Esquema do buquê invertido

14
Lacan também se refere ao experimento do buquê invertido no Seminário 1: Os escritos técnicos de
Freud (1953-1954), mas tomando um espelho esférico.
[84]

Este experimento é evocado para que se evidencie novamente o modo como o eu


se constrói, a partir de imagens que não são ‘reais’, mas lhe dão a impressão de
realidade. No ensaio, uma caixa oca é colocada em frente a um espelho plano,
representado por A, sendo dentro da caixa colocado um vaso vazio e sobre a caixa um
buquê. O espelho irá possibilitar a ilusão de uma imagem virtual, na qual se vê o buquê
dentro do vaso. A posição do olho no experimento é fundamental e ele se localiza no
interior do espelho; similar à posição do sujeito no simbólico, para que se possa
constituir um corpo.

Analogicamente, o esquema do buquê invertido representa o eu que constrói sua


imagem a partir daquela que vê refletida no espelho, ou seja, imagem que lhe dá a
impressão de realidade, mas que se trata de simulacro, de ‘como se’. Isto dá margem
para entendermos o que Lacan diz com: “o homem passa pela experiência de que se vê,
se reflete e se concebe como outro que não ele mesmo – dimensão essencial do humano,
que estrutura toda a sua vida de fantasia” (Lacan, 1953-1954/1986, p.96) ou “(...) é
preciso pensarmos o sujeito como o sujeito em que isso pode falar, sem que nada saiba a
respeito (e do qual até convém dizer que nada sabe a seu respeito enquanto fala” (ibid.,
1960/1998, p.681). E esta não seria a mesma estratégia utilizada nas redes sociais de
representação eu para si e para aqueles que te veem?

No Seminário 10: A angústia (1962-1963), quando Lacan está elaborando o


conceito de objeto a, ele volta a este esquema e ressalta a importância da imagem
especular na relação imaginária, assim como localiza o a neste esquema, indicando-o
enquanto um resto que não pode ser especularizado, por efeito da castração. Voltaremos
a esse ponto em outra ocasião. Já no Seminário 11: Os quatro conceitos fundamentais
da psicanálise (1964) Lacan diz que é no espaço do Outro (A) que o sujeito se vê e é
também a partir desse ponto que ele se olha, assim como é de onde ele fala, pois “é no
lugar do Outro (A) que ele começa a constituir essa mentira verídica pela qual tem
começo aquilo que participa do desejo no nível do inconsciente” (1964/1985, p.137).

Para Žižek, a imagem especular tem propriedade de congelar o movimento,


sendo que a partir desse ‘olhar imaginarizado’ os objetos são vistos de forma
petrificada, o que entendemos como cheios de sentido, de simulações de realidade que
não correspondem a um ‘real’ do objeto.
[85]

O eu faz exatamente este movimento, na medida em que através da fantasia


inconsciente constrói para si uma tela que o protege do encontro com o real ou, como
coloca Coutinho Jorge (2004): “A fantasia é uma espécie de matriz psíquica que
funciona mediatizando o encontro do sujeito com o real. Ela é uma matriz simbólico-
imaginária que permite ao sujeito fazer face ao real do gozo” (s/p.). Embora, como
destacamos anteriormente, o sujeito inconsciente – desconhecido, indeterminado –
sempre impetra uma forma de se fazer presente, numa tentativa de significação, embora
não possa ser inscrito. Pois, esse sujeito é vazio, como nos lembra Soler (1997), na
medida em que perdeu seu ‘ser’. E é justamente em sua relação com o Outro, que o
sujeito tenta responder a questão de seu ser. Desenvolveremos isso adiante.

Temos o esquema L, no Seminário 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da


psicanálise (1954-1955/1985), que contempla a construção imaginária do eu e também
a simbólica, evidenciando a relação inconsciente entre o Outro (A) e o Sujeito (S) ,
assim como destacando que a mensagem do Outro é de alcance ao sujeito somente de
modo fragmentado, como se vê representado pelos pontilhados. Isto é: há uma marca da
falta nesta relação entre S e A, indicando que o discurso de A é sempre atravessado pela
face imaginária, numa tentativa de camuflar a falta, aquela que se refere ao impossível
da relação sexual:

Figura 9 - Esquema L

Ora, neste sentido acrescentamos que o Outro é inconsciente, entretanto:


[86]

(...) mas ele é também saber, dito de outro modo, o que dessa
estrutura se desenrola, se articula no discurso, no discurso do Outro.
Esse Outro, do qual o inconsciente é o discurso, não se reduz aos pais;
é o Outro do discurso universal que determina o inconsciente como
transindividual. Ora, o Outro, entendido nesse sentido, ou seja, o
simbólico, se ele é invariável em sua estrutura – aquela da linguagem
–, é também submetido às mudanças, às mutações, às rupturas, às
subversões (Askofarè, 2009, p.169).

Assim, a cultura do medo, a sobredose de medicamentos consumidas, os avanços da


tecnologia, entre tantos outros aspectos contemporâneos que citamos anteriormente, em
nosso entendimento, se sustentariam a partir de seus efeitos sobre o sujeito que está
atrelado ao Outro, igualmente em sua condição de estrutura.

A partir do seminário dedicado à angústia (Seminário 10) e mais claramente no


Seminário 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964), há uma
transformação no ensino de Lacan, no que tange a concepção de sujeito. Esse giro se dá
a partir de sua elaboração sobre o que denominou de objeto a, juntamente à elaboração
de seus conceitos sobre alienação e separação, que indicam que Lacan está levando a
ideia do inconsciente estruturado como linguagem a um passo adiante. E é exatamente a
separação que sinaliza esse além.

Para elaborar a estrutura lógica das operações de alienação e separação, Lacan


se refere às operações de união (U) e intersecção (∩) da teoria dos conjuntos. Como
sabemos, a união agrega dois conjuntos distintos, enquanto a intersecção destaca aquilo
que conjuntos distintos apresentam em comum. Entretanto, ao representar a separação
por meio da intersecção, Lacan ‘muda’ a operação, colocando em destaque não aquilo
que os dois ‘conjuntos’ tem em comum, mas aquilo que falta em ambos, aquilo que não
pertence a nenhum, como veremos.

Na alienação temos dois conjuntos: um referente ao Outro (S1-S2) e outro que se


refere ao ‘ser’ (que é vazio) – mas que, como sabemos, é transformado em sujeito pelo
Outro, que será representado pelo S barrado, indicando sua castração simbólica, efeito
de sua entrada na linguagem. Logo, temos:
[87]

Sujeito Outro

S S1 S2

E que Lacan representa:

Figura 10 - A alienação

O conjunto do sujeito é vazio, na medida em que o sujeito só se dá a partir de seu


encontro com o Outro, na medida em que ele empresta do Outro um significante (S1)
para poder se representar para outro significante (S2). Isso indica também, que o campo
do ser só será instaurado quando o vazio passa a ser nomeado, quando é simbolizado e,
assim, destacado do real, no sentido de criar barreiras que o delimitam. É aí também que
algo fica de fora, uma vez que o ser não pode ser totalmente tomado de sentido pelo
Outro (como vemos ilustrado na figura acima), pois sempre há algo que se perde. Aqui,
temos um duelo entre o ser e o sentido, já que ao ‘escolher’ o ser, se perde o sentido,
enquanto que a escolha do sentido implica a perda do ser e, consequentemente, o
desaparecimento do sujeito, a afânise: “A alienação (...) condena o sujeito a só aparecer
[88]

nessa divisão que venho, me parece, de articular suficientemente ao dizer que se ele
aparece de um lado como sentido, produzido pelo significante, do outro ele aparece
como afânise” (Lacan, 1964/1985, p.199). É nesse sentido que temos o que Lacan
denomina de ‘escolha forçada’, já que independente do que escolher não se terá nem
um, nem outro.

Evidencia-se na operação de alienação que o sujeito antes de advir como


significante que se representa para outro significante não é absolutamente nada. Ele
precisa, necessariamente, apelar ao Outro enquanto segundo significante, para se inserir
no sistema simbólico, na linguagem, como coloca Lacan: “(...) o sujeito aparece
primeiro no Outro, no que o primeiro significante, o significante unário, surge no campo
do Outro, e no que ele representa o sujeito, para um outro significante, o qual outro
significante tem por efeito a afânise do sujeito” (Lacan, 1964/1985,p.207).

Soler (1997) destaca que o sujeito da alienação é o que está posto no nível
inferior do grafo do desejo (figura 4), onde ele tem que decidir entre a identificação
fixada e o sentido, sendo o destino desse sujeito do significante a petrificação (pelo
significante) ou a indeterminação, no interior do deslizamento do sentido:

Figura 11 - Grafo do desejo


[89]

Para Soler, temos aqui o ‘impasse do sujeito do significante’, “resultado dos dez anos de
retorno de Lacan a Freud – dez anos em que Lacan construiu o sujeito da fala e da
linguagem, terminando com um sujeito alienado, isto é, um sujeito que perdeu seu ser e
está dividido” (1997, p.62).

Assim, a operação de alienação se apresenta enquanto ‘novidade’ somente no


sentido lógico, enquanto estrutura lógica do sujeito do significante e se delineia
enquanto destino, o qual nenhum sujeito falante pode evitar. Portanto, é a operação de
separação que surge como um aparato teórico que realmente assinala o avanço
lacaniano em relação ao que vinha formulando sobre o sujeito, donde temos:

Sujeito Outro

Figura 12 – Intersecção na Separação

Vemos aqui representada a operação, onde encontramos na interseção dos dois


conjuntos aquilo que falta a ambos: o objeto a, entendido aqui enquanto objeto causa de
desejo:
[90]

Figura 13 - Operação de separação

As duas faltas que temos representadas na operação são o ser perdido do sujeito –
decorrente da operação de alienação – e a falta do desejo que se refere ao Outro, própria
à estrutura significante, que permite que o sujeito apreenda algo do desejo do Outro no
intervalo que corta dos significantes:

Pela separação o sujeito acha, se podemos dizer, o ponto fraco do


casal primitivo da articulação significante, no que ela é de essência
alienante. É no intervalo entre esses dois significantes que vige o
desejo oferecido ao balizamento do sujeito na experiência do discurso
do Outro, do primeiro Outro com o qual ele tem que lidar, ponhamos,
para ilustrá-lo, a mãe, no caso. É no seu desejo que está para além ou
para aquém do que ela diz, do que ela intima, do que ela faz surgir
como sentido, é no que seu desejo é desconhecido, é nesse ponto de
falta que se constitui o desejo do sujeito. O sujeito – por um processo
que não deixa de conter engano, que não deixa de representar essa
torção fundamental pela qual o que o sujeito reencontra não é o que
anima seu movimento de tornar a achar – retorna então ao ponto
inicial, que é o de sua falta como tal, da falta de sua afânise. (Lacan,
1964/1985, p.207)

Soler indica que nesta separação o sujeito precisa se implicar no sentido de querer, é
preciso que ele queira se separar da cadeia significante: “A separação supõe uma
[91]

vontade de sair, uma vontade de saber o que se é para além daquilo que o Outro possa
dizer, para além daquilo inscrito no Outro” (1997, p.62-3).

Neste contexto, a dimensão do desejo no Outro é o que possibilita a separação.


Este Outro da separação (A barrado) se difere do Outro da alienação (A) justamente
porque neste há a marca da falta, ele não é um cheio de significantes, não é consistente
ou ‘Um’. Deste modo, na separação o sujeito irá confrontar o Outro em relação ao seu
desejo, é ainda onde “termina a circularidade da relação do sujeito com o Outro”
(Lacan, 1964/1985, p.202), ou:

O desejo do Outro é apreendido pelo sujeito naquilo que não cola, nas
faltas do discurso do Outro, e todos os por-quês? da criança
testemunham menos uma avidez da razão das coisas do que
constituem uma colocação em prova do adulto, um por que será que
você me diz isso? sempre re-suscitado de seu fundo, que é o enigma
do desejo do adulto. (Lacan, 1964/1985, p.203)

É nesta operação que o sujeito se dá conta do furo do Outro, de sua incompletude; o


Outro, então, advém enquanto Outro barrado, mostrando-se incerto em suas escolhas,
aparecendo para o sujeito enquanto portador de um “desejo ambíguo, contraditório, e
em fluxo constante” (Fink, 1998, p.76). Ou seja, há algo além do simbolizável no
Outro, isto é, onde o simbólico e o imaginário não dão conta de prosseguir para intervir
no mais além da ‘rocha da castração’, ponto instransponível para Freud. Aqui,
concordamos com Maria Cristina Poli (2005), quando afirma que ao nominar ‘alienação
e separação’ a inter-relação entre sujeito e Outro, Lacan formulou uma especificidade
da psicanálise, incidindo no ponto de encontro entre discurso e pulsão. Sendo que, a
partir de então, seja na clínica, seja no social, a função da psicanálise pode ser “definida
como uma operação dirigida à produção do lugar de enunciação, pela incidência da
clivagem entre traço (ideal do eu) e objeto (causa de desejo)” (Poli, 2005, p.250).

Assim, a pergunta da separação é: ‘o que sou eu no desejo do Outro?’. E a


resposta não pode ser dada pelo Outro, no qual se encontram os significantes ou o vazio
– que está no intervalo dos significantes –, tampouco pelo sujeito da fala, pois este é
[92]

sujeito alienado. Somente o ser é que pode responder e o ‘ser’ é gozo. Isto é, o sujeito
para além do significante é pulsão (Soler, 1997). E a pulsão é uma atividade do sujeito,
mesmo sendo sem o sujeito. Ela visa restaurar seu lugar de objeto para o Outro, isto é,
enquanto objeto de desejo do Outro.

Como lembra Coutinho Jorge (2004), o que Lacan denomina gozo é a pulsão de
morte freudiana, um vetor fundamental que rege o psiquismo e que tem como finalidade
buscar a satisfação. Entretanto, sabemos “nenhuma pulsão se satisfaz direta e
totalmente, ela deriva” (Quinet, 2002/2004, p.80), pois o objeto está estruturalmente
perdido e responder à exigência pulsional implicaria na abolição do desejo, pois o gozo
total é a morte. No entanto, ela se satisfaz nas suas derivações, nas formações
inconscientes e nos prazeres advindos da arte e do sexo (id.). Assim, a pulsão sempre
contorna o objeto e é aí encontra a sua satisfação, como demostra Lacan (1964/1985,
p.169) no seu esquema (figura 13), sendo aim correspondente à trajetória e goal a ter
atingido seu objetivo:

Figura 14 - Circuito da pulsão

Portanto, sua finalidade é exatamente contornar o objeto, por isso podemos dizer que a
estrutura da pulsão é circular e, além, que a pulsão é parcial: “a estrutura circular da
pulsão, de vai-e-volta, fará Lacan dizer que a atividade da pulsão se encontra no ‘se
[93]

fazer’: ‘se fazer chupar para a pulsão oral, ‘se cagar’ para a pulsão anal, e ‘se fazer
olhar’ para a pulsão escópica” (Quinet, 2002/2004, p.82). Ainda, Lacan coloca que “se a
pulsão pode ser satisfeita sem ter atingido aquilo que, em relação a uma totalização
biológica da função, seria a satisfação ao seu fim de reprodução, é que ela é pulsão
parcial, e que seu alvo não é outra coisa senão esse retorno em circuito” (Lacan,
1964/1985, p.170). Esta é uma colocação importante para a tese, pois a insatisfação da
pulsão, na qual se inclui a escópica, sustenta o ‘se fazer olhar’, dispositivo fundamental
daquilo que se propõe enquanto Sociedade Escópica. Abordaremos a questão no
capítulo seguinte.

Uma elaboração de Soler (2009) amarra essa relação transposta até agora,
entrelaçando (e distinguindo) o ‘trabalho’ do sujeito do inconsciente ao do sujeito do
gozo “é sobre essa foraclusão daquilo que faria relação de gozo, sobre essa falta central,
que o inconsciente constrói aquilo que supre para assegurar a relação com o parceiro,
fantasia e sintoma” (p.188). O sujeito tenta, com a ajuda da fantasia e do sintoma,
contornar o furo estrutural, que aponta para a impossibilidade de escrever relação
sexual, o real, na medida em que, por exemplo, a fantasia enquadra a relação do sujeito
com o gozo, ela é uma espécie de véu da pulsão.

Essa articulação que trouxemos aqui é também o que viabiliza a psicanálise


lacaniana avançar em relação à abordagem freudiana, ao permitir que se pense no além
da ‘rocha de castração’. É por isso que Lacan irá formular que só se pode pensar no fim
de uma análise a partir da travessia da fantasia15 ou seja, desde quando o sujeito acessa a
dimensão do desejo, inscrito no próprio matema da fantasia ($◊a) pela punção, que
‘separa’ o simbólico ($) do real (a).

Outro importante avanço lacaniano em relação ao sujeito e ao Outro que


gostaríamos de destacar se localiza no Seminário, livro 17: O Avesso da psicanálise
(1969-70/1992). Aqui temos a elaboração de Lacan que comtempla a relação entre
sujeito e os laços sociais, passando justamente pelo aparelhamento do gozo, isto é, pelo
enquadre da pulsão. Entretanto, em nossa leitura, este seminário corrobora com suas
construções prévias ao mesmo tempo em que as transpõem, pois, com a elaboração dos

15
Na década de 1970, Lacan avança ainda mais ao indicar o fim de análise como identificação ao
sinthome (1975-76), que se refere a um ‘saber-fazer’ com seu sintoma, com o real do seu gozo.
[94]

quatro discursos – do mestre, da histérica, da universidade e do analista – Lacan nos


indica de que modo o discurso articula os laços sociais, ou seja, ele nos possibilita
entender quais são as formas possíveis de ‘emolduramento’ do gozo:

Figura 15 - Os quatro discursos

Figura 16 - Operação de um quarto de giro16

16
Fonte: KOSOVSKI, Giselle Falbo. O semblante, o corpo e o objeto. Fractal, Rev. Psicol., Rio de
Janeiro , v. 22, n. 2, Ago. 2010. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-
02922010000800005&lng=en&nrm=iso>. Acessado em: 21 Jan. 2014.
http://dx.doi.org/10.1590/S1984-02922010000800005.
[95]

E é justamente por aparelhar o gozo que os discursos funcionam como laço social.
Como sabido, o aparelhamento de gozo é parte imprescindível do processo da cultura,
na medida em que a renúncia pulsional é necessária para que os laços se estabeleçam. O
que sugere, em ultima instância, que existe um aspecto de mestria, no sentido de
ordenação do gozo, em todos os discursos – com exceção do discurso do analista, que se
encontra no polo oposto (Lacan, 1969-70):

Um discurso se sustenta a partir de quatro lugares privilegiados,


dentre os quais um, precisamente, ficou sem ser nomeado –
justamente aquele que, pela função de seu ocupante, fornece o título
de cada um desses discursos. É quando o significante-mestre encontra-
se num certo lugar que falo do discurso do mestre. Quando um certo
saber o ocupa, falo do discurso da Universidade. Quando o sujeito, em
sua divisão, fundadora do inconsciente, encontra-se instalado ali, falo
do discurso da histérica. Por fim, quando o mais-de-gozar ocupa esse
lugar, falo do discurso do analista (Lacan, 1971/2009, p.24).

Antonio Quinet, no artigo A ciência psiquiátrica nos discursos da


contemporaneidade (2002), indica que a tendência da pulsão é tratar o outro como
objeto a ser consumido, lembrando a menção freudiana (Mal-estar na cultura, 1930) a
Thomas Hobbes, Homo homini lupus, o homem é o lobo do homem:

(...) o seu próximo é (...) não apenas um ajudante potencial ou um


objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele
a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem
compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento,
apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-
lo e matá-lo – Homo homini lupus. (Freud, 1930/2006, p. 116)

Como indicamos no capítulo anterior, Lacan relaciona analogicamente o


discurso do mestre (M) à relação feudal entre senhor e escravo. O senhor feudal
[96]

encontra-se no lugar de agente S1, significante do senhor absoluto, no lugar de onde se


ordena o discurso; enquanto o escravo ocupa o lugar do outro, em S2. Qualquer
significante pode ocupar este lugar de significante-mestre, é exatamente por isso que
podemos dizer que S1 contempla a função alienadora do significante. Este ‘discurso
inaugural’, numa concepção ontogênica, nos diz do ‘sujeitamento’ ao significante
essencial para a emergência do sujeito. A relação entre S1 e S2 tem como efeito a
constituição do sujeito dividido e, como produção encontramos a, mais de gozar,
enquanto perda. É o próprio discurso da alienação pelo significante, como temos tratado
ao longo do capítulo.

Na passagem do sistema feudal para o sistema capitalista, há um giro discursivo,


especialmente ordenado pela ciência. Mas, temos que advertir que a ciência moderna
não se confunde com o discurso universitário (U) – o que não quer dizer que não se
relacionem. A ciência propriamente dita indaga, questiona o saber absoluto, investiga, o
que a aproxima muito mais do discurso histérico. O discurso universitário se sustenta na
acumulação de ‘saber’, muito mais no sentido de amontoamento de conhecimento; o
‘saber’ encontra-se como agente do discurso, é o mestre moderno. Em analogia,
podemos pensar no Google, o campeão de acessos na internet, um exemplo majoritário
de acumulação de conhecimento. Se tiver alguma dúvida, pergunte ao Google, ele é
uma espécie de senhor moderno, onde temos explicações para perguntas de todas as
ordens, desde ‘como tirar mancha de vinho de roupa?’ a diagnósticos de doenças... Um
saber genérico que triunfa.

No discurso universitário o sujeito encontra-se enquanto resto, é aquilo é


produzido e descartado: “o sujeito dividido como produto da ciência, resto do saber
científico, é também aquele que é excluído por ela. E é por isso que ele acredita
desacreditando na ciência” (Quinet, 2002, p.34). Neste contexto, Quinet sugere que o
sujeito correspondente ao discurso universitário é o sujeito da crença, o crente.

Em contrapartida, o discurso da histeria (H), o sujeito dividido encontra-se no


lugar de protagonista, é o agente suscitado pela falta (a). É neste discurso que temos um
sujeito que se interroga, onde o sujeito está sustentado pela verdade de um saber que
não se sabe. O sujeito na posição de mestria dirige-se e questiona o S1, o significante-
mestre, para que S1 produza saber (S2), em função do desejo de saber do sujeito divido.
[97]

Neste sentido, pode-se considerar que o discurso da histérica subverte o discurso do


mestre, pois o seu saber era detido pelo escravo e aqui ele é evocado a produzi-lo.

Em um processo de análise busca-se, entre outras coisas, a histerização do


discurso do analisante, isto é, a histeria enquanto posição do sujeito, no sentido de
questionar o mestre. Quando o sujeito dividido dirige-se ao outro (S1) ele está evocando
um mestre, colocando o outro na posição de detentor de saber, ao mesmo tempo em que
questiona o saber, que jamais será um saber absoluto, capaz de elucidar as questões que
emanam de seu sintoma.

No discurso do analista (A) o analista (a) encontra-se na posição de agente, no


sentido de objeto causa do desejo do analisante (sujeito dividido) enquanto objeto a: “O
próprio analista tem que se representar aqui, de algum modo, o efeito do rechaço do
discurso, ou seja, o objeto a” (Lacan, 1969-70/1992, p.41). Neste sentido, Quinet (2009)
coloca que o discurso do analista é aquele no qual a causa do laço social coincide com a
causa do sujeito. “Em todos os outros discursos a causa é ocupada por outro elemento: o
poder, o saber, a falta, ou seja, respectivamente, o Um totalitário, a burocracia
universitas e o pathos do sujeito” (ibid., p.36), i.e., no discurso do mestre, do
universitário e da histérica. A verdade que sustenta é o saber inconsciente (S2), que
emerge da escuta do analisante, deixando no lugar de produção o significante-mestre
(S1), o que significa que, ao tratar o outro como sujeito, o que se obtém como produto
são seus equívocos, seus significantes singulares.

É diante das elaborações de Lacan e de seus comentadores que expusemos nesta


parte do capítulo que nos sentimos autorizados a convocarmos as contribuições de
autores contemporâneos que corroboram com a causa psicanalítica e que articulam
sujeito e sociedade. É também este percurso que nos permite questionar as teorias que
abordamos anteriormente e que sugerem a emergência de ‘sujeitos novos’, na
articulação da cultura, do simbólico e do discurso na constituição subjetiva. Entendemos
que, ao contrário da psicanálise – na qual o sujeito é efeito do significante –, nestas
perspectivas psicológicas regidas pela lógica formal, o indivíduo apresenta uma
positividade e entra nas relações sociais com atributos pré-datados que determinariam as
relações. Seguimos e apontamos porque não corroboramos com esta formulação.
[98]

2. A estrutura do sujeito e as transformações no Outro

No artigo Da subjetividade Contemporânea (2009), o psicanalista francês Sidi


Askofarè interroga sobre a possibilidade de falarmos sobre o ‘sujeito contemporâneo’,
isto é, de um sujeito marcado pelo seu tempo e, portanto, pela sua história, a partir da
concepção psicanalítica que o toma, como vimos, enquanto assujeitado à linguagem ou
como um significante que o representa para outro significante. Esta discussão se
complementa e se torna mais efetiva no artigo O frenesi teórico sobre o sujeito do
capitalismo tardio, de Pacheco Filho (2012), ao questionar a concepção de um ‘sujeito
inédito’ em nosso tempo, que indicaria uma modificação na estrutura do sujeito,
desconsiderando as transformações no laço social que emergem ao longo do processo
histórico.

Pacheco Filho concentra sua crítica na proposta daqueles que defendem a


concepção de um ‘novo sujeito’, tendo como pano de fundo a ideia de que haveria um
ponto de ruptura, tal como vimos nas concepções dos autores e ideias trabalhadas no
capítulo anterior, especialmente baseadas em uma passagem da modernidade para a pós-
modernidade; ou do que tenha emergido a partir do capitalismo tardio. Iniciamos
afirmando, o que deveras já contornamos, que esta tese concorda com as elaborações de
que não se pode pensar em uma mudança na estrutura do sujeito e, por esta razão, não
se pode anuir em considerar que em nosso tempo haja qualquer transformação na
estrutura dos sujeitos, pois eles não se estruturam de forma distinta daquilo que
elaboramos e que se sustenta na perspectiva psicanalítica de orientação lacaniana. Como
coloca Soler (1993/1995):

Podemos dizer que em cada tratamento analisamos cada sujeito como


‘um’ particular diferente de todos os outros. Mas, dizemos que para
cada ‘um’ analisamos o que há nele de sujeito, o que nele participa do
sujeito como um todo e, como tal, é fixado na função fálica (p.34)
[99]

Ou seja, quando se trata de prática analítica, “Lacan prioriza o universal do sujeito e a


passagem obrigatória pelo Outro, como lugar significante” (ibid., p.35). E mais além:

Mesmo se considerarmos que o desafio do fim de uma análise é a


relação do que há de mais real como gozo e que esse mais real como
gozo é o que há, de um lado, de menos universalizável, e de outro, de
mais diferenciado conforme os sexos, será preciso lembramo-nos do
que Lacan dizia em 1967-1968, na resenha do seminário sobre o ‘Ato
analítico’, (p.17 do número 29 do ‘Ornicar?’), que o gozo se aborda,
até na prática, somente pelo sulcos traçados do lugar do Outro (Soler,
1993/1995, p.34).

Como já destacamos, consideramos – a partir das ideias de Freud e de Lacan –


que as modificações históricas se relacionam às transformações na ordem do discurso e,
portanto, no laço social.

Como destaca Pacheco Filho, o objeto da psicanálise é o inconsciente e o seu


sujeito; sendo este sujeito a marca essencial da psicanálise e a partir do qual a
psicanálise “delimita suas fronteiras e a distingue de outras abordagens do ser humano”
(2012, s/p.). O discurso do analista, como vimos, coroa esta afirmativa na medida em
que é o único no qual o outro é tomado enquanto sujeito.

A proposta de Pacheco Filho aponta que a tentativa de ‘revolucionar’ o campo


psicanalítico, a partir de sugestões de transformações na estrutura do sujeito que
decorreriam dos fenômenos do capitalismo tardio – como indicam o sujeito narcísico
(Lash) ou o sujeito hipermoderno (Lipovetsky) –, apresentam-se como uma ameaça à
fragmentação do campo, uma vez que se sucumbem ao discurso capitalista:

(...) em sua substituição frenética de mercadorias/marcas/modelos, de


modo a tamponar a ‘falta’. Serve-se o semblante de totalização da
'falta', por meio da troca acelerada e irrefletida dos fundamentos
teóricos e conceituais, como modo de se tentar lidar com a
impossibilidade de totalização do saber. (Pacheco Filho, 2012, s/p.)
[100]

Ainda, Pacheco Filho atenta-se para a questão política camuflada no problema.


A ideia do ‘novo sujeito’ pode sobrepor a alienação histórica à alienação estrutural do
sujeito, sendo que embora as vertentes se relacionem, elas não se confundem e também
não se excluem. De certo modo, podemos entender que a alienação histórica é uma
espécie de ‘envelope’ formal de estrutura, que se modifica de sujeito a sujeito, de
sociedade a sociedade.

Considerando os quatro discursos aos quais nos ativemos anteriormente,


entendemos que as formas discursivas justamente colocam em questão a relação entre o
contexto histórico e a ordenação de gozo. Quando não se considera esta dimensão de
relação – e diríamos que de crítica – ao capitalismo enquanto modus operandi social,
não se tem abertura para que se possa discutir suas implicações no laço social,
tampouco se possibilita que se criem formas para que o supere. Ao contrário, este
movimento consolida e fortalece o discurso capitalista.

Neste sentido, a crítica de Pacheco Filho é certeira ao apontar que há um desvio


quando ocorre de ao invés do capitalismo ser tomado enquanto o problema, ele se
consagra; e a dualidade se concentra na oposição entre sujeito moderno e pós-moderno;
ou em considerações que indicam o declínio do pai, queda do simbólico, entre outras:
“estas formulações servem ao recobrimento e à dissimulação entre classes e grupos
sociais” (Pacheco Filho, 2012, s/p.).

Precisamente é esta razão que nos leva a considerar estas posições equivocadas.
Este mesmo pensamento se apoia especialmente nas elaborações de Lyotard, que sugere
que vivemos em um tempo no qual não há possibilidade de se pensar em um sujeito
crítico e que o problema da luta de classes encontra-se ultrapassado:

(...) de um lado, a glamorização de uma certa crítica inócua e sem


consequências, que se satisfaz em descrever e lamentar os
acontecimentos, sem apontar um caminho de transformação social
(atitude de um certo 'relaxa e goza', pois não há o que fazer); (...) de
outro, ainda pior, uma certa indignação moralista combinada com uma
nostalgia reacionária, que reclama a volta do 'Pai' poderoso e
prepotente, que seria capaz de utilizar sua mão forte e sua lei isenta de
[101]

ambiguidades na restauração da ordem e das certezas. (Pacheco Filho,


2012, s/p.)

Não articulamos aqui que os problemas apontados pelos autores que destacamos
no capítulo anterior sejam inexistentes, de fato há questões como a segregação do saber,
o discurso do medo, a despolitização dos sujeitos, entre tantos outros. Atentamos para
que o que se enfatiza nessas condições não as foca enquanto uma problemática, mas
enquanto consequências do pós-moderno no ‘novo sujeito’.

Askofarè (2009) retoma uma passagem de Lacan no Discurso de Roma (1953)


onde ele afirma a necessidade de que um analista alcance em seu horizonte a
subjetividade de sua época:

(...) como poderia fazer seu ser o eixo de tantas vidas quem nada
soubesse da dialética que o compromete com essas vidas num
movimento simbólico. Que ele conheça bem a espiral a que o arrasta
sua época na obra contínua de Babel, e que conheça sua função de
intérprete na discórdia das línguas. (Lacan, 1953/1998, p.322).

Como se evidencia, Lacan nos indica mais uma vez que o sujeito é efeito do
significante, ele está imerso e emerge na linguagem. Assim, o inconsciente é tomado
como estrutura, lugar do Outro simbólico, mas é também saber, pois se trata do que
desta estrutura se articula no discurso do Outro. Neste sentido, o Outro (simbólico) é
invariável em sua estrutura, mas encontra-se suscetível às mudanças e que,
consequentemente, ecoam em outros termos que o compõem, mais especificamente
sobre o eu (Askofarè, 2009): “Quem pode contestar as mudanças induzidas no Outro
pelo advento do monoteísmo, a invenção da escrita, a emergência da ciência moderna e,
mais recentemente, das biotecnologias e da informática?!” (Askofarè, 2009, p.169).
Portanto, afirmamos que há incidência do capitalismo tardio no campo do Outro e, por
esta mesma razão, isso pode gerar confusões e criações deste ‘acontecimento’ das mais
variadas formas. Ou seja, gostaríamos de apontar que o modo de interpretar estas
transformações implica na emergência de distintas leituras, como as que indicamos até
[102]

aqui. Do mesmo modo, é possível aos psicanalistas encontrarem em suas escutas


evidências dessas transformações no Outro social, inclusive no modo de relatar os
sintomas. De certa forma, podemos considerar que as histéricas de Freud estavam em
conflito com o tempo moderno. Então, questionamos: os modos de sofrer se
transformam ao longo da História?

2.1. Sofrimento e contemporaneidade

Para Christian Dunker, em O real e a verdade do sofrimento (2012), há uma


história das manifestações do sofrimento. A histeria ‘descoberta’ por Freud na virada do
século XIX trazia em suas palavras, lembranças e afetos que não poderiam ser expostos
socialmente. Na mesma época, o neurologista americano George Beard atribuiu o termo
‘neurastenia’ para nomear o sofrimento daqueles sujeitos que considerava reativos,
sensíveis, irritados; localizando sua origem na aceleração da vida moderna. O psiquiatra
francês Pierre Janet escolheu denominar de ‘psicastenia’ o sofrimento de mulheres que
apresentavam alteração da consciência e transe. Embora sejam formulações de uma
mesma época, Dunker considera suas diferenças marcando que a histeria reuniria
conflitos de forma mais ampla, atravessando a questão da linguagem, da vida social, do
desejo e do trabalho, enquanto que a neurastenia se vinculava mais ao trabalho e a
psicastenia à debilitação da consciência. Não se pode negar, no entanto, que há alguma
similaridade na elaboração destes autores.

Trazemos esta colaboração, pois ela se relaciona diretamente com o que está em
discussão. No nosso entendimento, Dunker indica que a paridade existente entre as
elaborações de Beard, Janet e Freud, não se encontram no modo de sofrer, na
fenomenologia do sintoma de cada paciente ou de pacientes de cada época particular, e
sim na função do sintoma enquanto aquilo que constitui transgressão ao discurso, isto é,
que atrapalha a ‘bela ordem do mestre’ e que vem do real: “as doenças mentais, ou
melhor, seus sintomas, realizam possibilidades universais do sujeito, que se tornam
coercitivamente particulares ou privativamente necessárias. (...) um sintoma é um
fragmento de liberdade perdida imposto a si ou aos outros” (Dunker, 2012, p.24). Lacan
(1971-1972/2012) indica a inexistência da verdade no princípio do sintoma:
[103]

O que está no princípio do sintoma é a inexistência da verdade que ele


supõe, como quer que ele marque seu lugar. O sintoma liga-se à
verdade que já não vigora. Por isso, podemos dizer, como qualquer
um que subsista na era moderna, nenhum de vocês desconhece essa
modalidade de resposta. (Lacan, 1971-1972/2012, p.49-50)

Alberti (2000) sintetiza que “o sintoma é a mais humana tentativa de posicionamento


frente ao mal estar na civilização, ou seja, frente à impossibilidade” (s/p.). Embora o
sintoma seja o particular de cada sujeito, ele possui uma ‘transversalidade histórica’: “se
há uma homologia entre o sintoma e a obra de arte é preciso considerar cada novo
sofrimento como invenção e resposta as transformações no horizonte de uma época”
(Dunker,2012, p.25). Relembramos aqui, a distinção entre a obra de Van Gogh e Andy
Warhol, que evocamos no capítulo I.

Há uma série de modos de sofrimento que se podem listar a partir dessas ideias,
quais sejam: nos anos 1940 (pré-guerra e pós-guerra) temos as neuroses de caráter–
àquelas em que há falta de implicação da pessoa em reconhecer seu sofrimento; nos
anos 1950/60 as neuroses narcísicas – sofrimento de inadequação, de vazio, falta de
sentido (onde a proposta de Christopher Lash da ‘cultura do narcisismo’ seria a maior
expressão); nos anos 1980/90 temos os pacientes limítrofes – o laço como problemático,
pessoas fora de aceitação em relação ao outro; nos anos 2000 temos as depressões,
pânico e anorexia como formas paradigmáticas de sofrer... “há uma variação das
modalidades preferenciais de sofrimento” (Dunker, 2012).

Por certo, podemos entender o ‘sucesso’ na internet, de blogs escritos por


pessoas que sofrem com anorexia, pânico, depressão, bulimia, etc., como um
compartilhamento de modo de sofrer, desencadeador de uma espécie de movimento de
identificação com o sofrimento do outro, mas sempre guardando algo da singularidade
de cada sujeito. Um bom exemplo disso é lembrado por Dunker quando se refere à
princesa Diana em sua relação com a anorexia exposta em uma entrevista: “Minha
anorexia é uma forma de dizer que preciso de ajuda”. Depois desta fala, existiu uma
epidemia de anorexia em Hong Kong, justificada no seu entender, por esta identificação
na forma de sofrimento. Algo como, “esta é uma boa saída para expor o meu modo de
sofrer”.
[104]

Isto posto, devemos marcar que existem e sempre irão existir modos de sofrer
mais específicos em uma época, mas que isso não indica uma transformação estrutural
do sujeito. Se se pode formular algum tipo de afirmativa de transformação, esta se
relaciona muito mais à emergência de uma subjetividade de um tempo, relacionada à
questão social e histórica, mas não se pode remeter a um ‘sujeito contemporâneo’, como
um marco inédito, pois existe uma impropriedade em se buscar dar conta disto pela
postulação de uma estrutura inédita do ‘sujeito contemporâneo’, completamente distinta
da estrutura dos sujeitos anteriores a este período histórico. Há transformações na
ordem discursiva, mas o mal-estar é permanente, sem nome e sem lugar, pois se articula
ao que é impossível ser dito, portanto, à ordem do real. Quando se tenta nomear o mal-
estar, ou trazê-lo ao simbólico, ele vira sofrimento, que quando articulado em narrativa,
vira sintoma (Dunker, 2012). Como nos alerta Carmem Gallano (2006), os sintomas
neuróticos não estão desconectados da história, eles tomam formas próprias em um
momento da história particular de um sujeito e também da época social que condiciona
o sintoma.

Além disso, estas transformações nas manifestações do sofrimento não parecem


ser exclusivas das estruturas neuróticas. Em meados de 2012, um artigo no jornal de
circulação nacional O Globo (04/06/2012) divulgou uma pesquisa de dois psiquiatras
americanos, Joel e Ian Gold. Os pesquisadores indicaram que os seus pacientes
diagnosticados como psicóticos paranoicos não tinham mais a ideia bastante comum de
serem Jesus Cristo ou Napoleão Bonaparte, mas em tempos atuais, suas alucinações se
relacionariam muito mais a estarem sendo vigiados por câmeras, tais como no clássico
filme The Truman Show (1998), no qual o personagem, sem saber, encontra-se em um
reality show. Portanto, variações do mesmo tema: estrutura paranoica em sua certeza de
perseguição, com seu delírio atualizado.

2.2. O pai proletário: declínio da função ou da imago?

Antes de passarmos ao próximo item, gostaríamos de nos ater ao trabalho Lacan


y las ciencias sociales (2002) do psicanalista Markos Zafiropoulos, que estabelece a
relação existente nas primeiras elaborações de Lacan e pressupostos sociológicos de
[105]

Émile Durkheim, especialmente no texto Os complexos familiares na formação do


indivíduo (1938/2002). Essa referência inicial de Lacan à teoria durkheminiana,
posteriormente abandonada, pode confundir e alimentar proposições que defendem que
em nosso tempo vivemos o ‘declínio da função paterna’ – como parecem sugerir, por
exemplo, Lasch e Lipovetsky.

No decorrer deste seu texto, Lacan investiga as relações dos sujeitos dentro da
família, destacando na complexa relação do núcleo familiar, pai, mãe, filhos e irmãos,
ressaltando importâncias e conflitos; relacionando-a com a sociedade e valorizando a
função do pai enquanto responsável pelas funções repressivas e sublimatórias. Neste
momento, ele postula três complexos: desmame, intrusão e Édipo e se estende sobre
eles. Aqui, não julgamos nos voltar a cada um, pois nosso problema não se centra em
estudá-los.

Entretanto, no contexto do escrito de 1938, Lacan refere-se à leitura


durkhemiana, a qual se dedica ao surgimento da ‘família conjugal’ (a partir da
burguesia, do iluminismo e da revolução industrial) constituída por marido, esposa e
filhos – legitimada pelo casamento –, em oposição a uma ‘família paternal’ constituída
por pai, mãe e todas suas gerações.

Em suas explanações, Lacan pontua:

Não somos daqueles que se afligem com um pretenso afrouxamento


do liame familiar. Não será significativo que a família tenha se
reduzido a seu agrupamento biológico à medida que se integrava os
mais elevados progressos culturais? Mas um grande número de efeitos
psicológicos nos parecem depender de um declínio social da imago
paterna. Declínio condicionado pelo retorno de efeitos extremos do
progresso social no indivíduo, declínio que se marca, sobretudo, em
nossos dias, nas coletividades que mais sofreram estes efeitos:
concentração econômica, catástrofes políticas. O fato não chegou a ser
formulado por um chefe de Estado totalitário como argumento contra
a educação tradicional? Declínio mais intimamente ligado à dialética
da família conjugal, já que se opera pelo crescimento relativo, muito
[106]

sensível, por exemplo, na vida americana, das exigências matrimonias.


(Lacan, 1938/2002, p.60)

O que, no nosso entender, se aproxima muito mais de um alerta de que não se


trata de um discurso que lamenta o fim da família patriarcal, e que não se deixa
confundir que se refere à imago e não à função paterna. Referindo-se a esta proposição,
Zafiropoulos coloca que o declínio da autoridade do pai pode ser interpretado como
uma queda que afeta o poder social do grupo familiar e também sua amplitude, na
medida em que a concepção de família conjugal é uma referência jurídica, de acordo
com a ideia de Durkheim da evolução do direito que a regulariza. Para Gallano (2006) o
pai do século XX, retratado por Lacan em 1938, aparece como um pai mais
‘proletrarizado’. Ainda que seja um pai burguês, ele é um pai ausente, carente,
humilhado ou postiço. É importante apontarmos esta referência à Durkheim nesta
conjuntura dos Complexos Familiares justamente para que não se ‘herde’ uma nostalgia
do pai, que não cabe à teoria psicanalítica, inclusive ao próprio Lacan, como vemos.

É também esta base sociológica que leva Lacan a pensar em uma evolução do
‘Complexo de Édipo’, a partir das transformações sociais. Tal proposta, em nosso
entendimento, se distancia do campo epistemológico proposto por Freud e, como
sabemos, também irá ser descartado por Lacan no decorrer de seus seminários. Em
1938, Lacan está vinculado a uma versão ‘familiarista’ da psicanálise, que depois será
substituída pelas regras da linguagem, a partir da influência do pensamento de Lévi-
Strauss, assim como a um retorno a Freud, especialmente a partir do início da década de
1950, sendo Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise (1953) o marco
deste momento.

A proposta do ‘declínio da função paterna’ poderia ser entendida como um


equívoco de leitura, se ponderarmos: a) que não se trata de função, b) que não se
colocou em questão o contexto no qual o texto foi escrito ou suas referências e, c)
tampouco, ocupou-se em continuar a leitura da obra lacaniana, acompanhando o seu
percurso.
[107]

Este pensamento levaria a crer na supressão da função simbólica do ‘Nome-do-


pai’, essencial para que se estabeleçam as estruturas clínicas. Encontra-se aí o mesmo
engano das propostas que evocam um ‘novo sujeito’, descartando a questão estrutural.






As colaborações dos autores nos indicam pontos que se relacionam. Elas
destacam a relevância das transformações históricas, enquanto dispositivos de giro nos
laços sociais ou de engendramento nos modos de sofrer; colocam que na perspectiva
psicanalítica que toma o sujeito enquanto um constructo estrutural, não é possível a
emergência de um sujeito inédito, muito menos sem que tenha havido um corte
epistêmico; e apontam que a leitura de Lacan é minuciosa, não podendo tomar uma obra
por todo o conjunto, sem se considerar o seu contexto e desdobramentos.

Entretanto, as transformações sociais eclodem em todo mundo e suas


consequências são notáveis numa escala macro e também no particular. Por isso, cada
vez mais alguns psicanalistas se dedicam a tentar compreender de que modo podemos
entender os efeitos do capitalismo tardio, do avanço tecnológico e científico, da
informática enquanto propensora de encontros (e desencontros) entre as pessoas, entre
tantas outras peculiaridades que implicam os sujeitos e os laços sociais. No próximo
item, procuramos trazer as colaborações de autores que compartilham e se atentam a
esta vertente, tomando como ponto de partida o discurso capitalista.
[108]

3. Discurso do capitalista: incidências no sujeito e no laço social

No Seminário 17: O avesso da psicanálise (1969-70/1992) Lacan menciona que


o discurso do capitalista se engendra a partir de uma subversão do discurso do mestre, a
partir de seu encontro com as ciências: “Não se esperou, para ver isso, que o discurso do
mestre tivesse se desenvolvido plenamente para mostrar sua clave no discurso do
capitalista, em sua curiosa copulação com a ciência” (p.103), ou:

Alguma coisa mudou no discurso do mestre a partir de certo momento


da história. Não vamos esquentar a cabeça para saber se foi por causa
de Lutero, ou de Calvino, ou de não sei que tráfico de navios em torno
de Gênova, ou no mar mediterrâneo, ou alhures, pois o importante é
que, a partir de certo dia, o mais-de-gozar se conta, se contabiliza, se
realiza. Aí começa o que se chama de acumulação de capital (Ibid.,
p.169).

Na Conferência na Universidade de Milão (1972) ele apresenta sua fórmula,


indicando a inversão do discurso do mestre, no qual se tem S1 no lugar de agente e o
sujeito barrado ocupando o lugar da verdade. Na contramão dos outros quatro discursos,
o discurso do capitalista não é obtido a partir do quarto de giro, de importância para a
construção do laço social. O vetor que relaciona o agente (S1) ao outro (S2) no discurso
do mestre, indicando uma relação, é eliminado; assim como a impossibilidade de
encontro entre sujeito e objeto (produto), que estarão ligados por um vetor que permite
ao objeto alcançar o sujeito. Assim, o sujeito ocupa o lugar dominante de agente, antes
ocupado pelo significante mestre:

No discurso tradicional do capitalista-agente-de-seu-discurso, surgido


com as revoluções burguesas e com a revolução industrial, filtram-se
[109]

as variáveis intromissões do discurso da histérica (agente:$), da bela


alma que pretende não ter responsabilidade pelos transtornos que
produz a seu redor e que confunde seu desejo (de que nada sabe) com
suas demandas. O sujeito $ aparece ocupando o lugar do agente no
discurso capitalista e da histérica. Porém, enquanto a histérica se
direge ao mestre (vetor $→S1) e o comina na produção do saber (S2),
o capitalista não se dirige a nenhum outro (eventualmente, o
proletário) e aparece dissociado do saber. Já não importa quem é o
anônimo e desfigurado produtor do objeto a. Mas importa, sim, que o
produto volte às mãos do capitalista: mostra-o o vetor diagonal
ascendente que vai de a (abaixo à direita) a $ (acima à esquerda)
(Braunstein, 2010, p.151).

Figura 17 - Discurso do Capitalista

Ainda, a verdade (S1) dirige-se ao outro (S2), que é desapropriado de seu lugar
de saber e reduzido ao seu lugar de gozo. Quando S1 se dirige a S2, produz os gadgets,
que se identificam com o mais-de-gozar e que em tese satisfazem o saber (S2). O que
ocorre é que o acesso ao mais-de-gozar que deveria conservar-se distante do sujeito,
como pressuposto no discurso do mestre, agora é viabilizado, foracluindo a castração e
fixando o sujeito no lugar que S1 determina. O sujeito do significante é, então,
‘transformado’ em sujeito do gozo.

Para Quinet (2012), o discurso capitalista estimula a “ilusão de completude não


mais com uma pessoa, e sim com um parceiro conectável e desconectável ao alcance da
mão” (p.57) ou, nas palavras de Alberti (2000): “o discurso do capitalista não exige a
renúncia pulsional, ao contrário, ele instiga a pulsão, impondo ao sujeito determinadas
[110]

relações com a demanda, sem se dar conta de que, ao fazê-lo, sustenta e em primeira
mão, a pulsão de morte” (s/p.).

É esta vertente que coloca o mestre antigo, do discurso do mestre, em oposição


ao mestre moderno17, do discurso do capitalista. Enquanto um preza pela regulação,
para que os sujeitos vivam de acordo com suas leis, estabelecendo a relação entre
senhor e escravo, portanto, entre soberano e súdito; o outro clama pela satisfação,
transpondo as linhas de barreira, declamando o imperativo Goza! Neste sentido, Quinet
enuncia:

O discurso do capitalista não é regulador e instituinte como o DM, ele


é segregador. A única via para tratar as diferenças na sociedade
científico-capitalista é a segregação determinada pelo mercado: os que
têm ou não acesso aos produtos da ciência. É um discurso que não
forma propriamente laço social, ele segrega – daí a proliferação dos
sem: terra, teto, emprego, comida etc. (Quinet, 2012, p.58).

Entendemos que ao esquematizar o discurso do capitalista, Lacan possibilita que


visualizemos como a lógica do capital se coloca para os sujeitos e como este pode ser o
ponto de partida e elucidação para uma crítica da sociedade contemporânea. A
segregação a partir do acesso aos bens de consumo, mas também aos serviços públicos e
ao saber; as questões que emergem sobre a liquidez e fragilidade das relações entre as
pessoas; as constantes transformações no modo de expressão do sofrer, entre outros
problemas que abordamos até aqui, podem ser mais bem compreendidos a partir deste
esquema. Pois, como indica esta ‘tradução’ da estrutura algébrica (figura 16) (Quinet,
2006, 2012), os papéis estão bem definidos no discurso do capitalista: o sujeito está no
lugar do agente consumidor, o saber é dado pela ciência/tecnologia, a verdade dada por
S1, o significante mestre, encarnado pelo capital e como mais-de-gozar tem-se os
gadgets:

17
No seminário 17 Lacan refere-se ao discurso universitário como ‘dominante’ laço social no contexto do
final da década de 1960 e, posteriormente, em Televisão (1974), indica que o discurso do mestre moderno
é o do capitalista.
[111]

Figura 18 - 'Tradução' da estrutura algébrica do discurso do capitalista

O discurso do capitalista, neste sentido, visa tamponar a falta, alimentando-se do


semblante de que é capaz de realizar isto. Deste modo, produzem-se bens de consumo
(gadgets) que visam ocupar o lugar de objeto (a) e se colocam como hipótese de
satisfação. Pela oferta ser contínua e sempre renovada, fabrica-se a ideia de que um
objeto pode sempre ser melhor e mais ‘satisfatório’ que o anterior, abastecendo assim as
leis do capital. Ou seja, os gadgets, enquanto ‘objetos de gozo’, proporcionam o mais-
de-gozar que geram cada vez mais consumidores ávidos por comprarem aquilo que
julgam ser possível lhes atender.

São inumeráveis os exemplos de como isso funciona na prática, uma vez que as
promessas se estendem em para todas as direções, gerando consumidores de todos os
tipos de ofertas, desde as tecnológicas com centenas de celulares, tablets, televisões etc.,
até consumidores de ‘ciência’, como os ávidos por correções de suas imperfeições,
como no mercado dos tratamentos corporais ou a própria indústria psiquiátrica. A
mesma lógica ocorre nas ofertas de aplicativos na internet, sendo que de tempos em
tempos surgem novos sites que se tornam os ‘da vez’. A ciência e a tecnologia
legitimam esta lógica, seja ao sustentarem o estatuto de verdade ou em seu próprio
avanço. O discurso universitário, deste modo, corrobora com o discurso do capitalista:
“(...) estamos falando do capitalismo, mas o capitalismo é, ele mesmo, condicionado
pelo discurso da ciência” (Soler, 2010, p.261).

O capital não tem uma face, o que culmina, por exemplo, que o trabalhador que
no discurso do mestre sabia ser explorado pelo senhor agora não sabe quem o explora.
Cada sujeito torna-se um explorador do outro para que se tire vantagem, para que se
possa acumular e, então, consumir. O discurso do capitalista faz girar a máquina que o
sustenta, uma espécie de ‘máquina de gozo’ (Alberti, 2000), repleta de ilusões de
[112]

completude. E não é a este processo que Lacan remete com a denúncia de espoliação de
Marx, ao aproximar mais-valia ao mais-de-gozar?

O que Marx denuncia com a mais-valia é a espoliação do gozo. No


entanto, essa mais-valia é o memorial do mais-de-gozar, é o seu
equivalente do mais-de-gozar. A sociedade de consumidores adquire
seu sentido quando ao elemento, entre aspas, que se qualifica de
humano se dá o equivalente homogêneo de um mais-de-gozar
qualquer, que é o produto de nossa indústria, um mais-de-gozar – para
se dizer de uma vez – forjado. (Lacan, 1969-70/1992, p.76).

Não nos restam dúvidas de que a elaboração de Lacan elucida a relação que se
estabelece entre sujeito – que aqui é tomado como um indivíduo completado pelo mais-
de-gozar, na medida em que em na posição de agente do discurso do capitalista, ele
nada se assemelha ao sujeito aos moldes do que está posto no discurso da histérica, por
exemplo – e a sociedade contemporânea. Como expusemos anteriormente, o predomínio
de um discurso sobre o outro não significa que isso se faça em todos os momentos ou
que não haja possibilidade de transitar entre cada um deles em ocasiões distintas. Mas,
enquanto se estabelece como discurso do senhor moderno, qual seria a possibilidade de
saída de suas impiedosas presas?

A proposta vem do próprio Lacan. Sonia Alberti alerta que a última vez na qual
Lacan menciona o discurso do capitalista é em Televisão (1974), justamente fazendo
referência ao discurso do analista como saída para o discurso do capitalista: “Quanto
mais somos santos, mais rimos, esse é meu princípio, ou até mesmo a saída do discurso
capitalista – o que não constituirá um progresso, se for apenas para alguns” (Lacan,
1974/2003 p.519). O santo seria uma referência ao lugar do psicanalista no discurso do
analista, objeto a, que como vimos, é o único discurso que realmente toma o outro
enquanto sujeito:

É essa posição do psicanalista como agente do discurso que pode


subverter e barrar o discurso do capitalista no qual o sujeito se crê
[113]

agente sem se dar conta de que age somente a partir dos significantes
mestres que o comandam e que, no discurso do capitalista estão no
lugar da verdade. (Alberti, 2000, s/p.)

Não se trata de uma alusão à solução do sistema capitalista a partir de uma


‘psicanalização’ em escala global, antes disso, entendemos que Lacan menciona
justamente o discurso do analista enquanto saída, pois ele é aquele que “desvela a
hipocrisia do ‘S1 encarnado’ que faz função de mestre e senhor, mostrando que o
mestre é o significante” (Quinet, 2012, p.56), é aquele que tendo o analista enquanto
semblante de objeto a, indica que quem está no comando é o desejo do sujeito.
Portanto, a saída para o discurso do capitalista é que os sujeitos respondam a partir de
seu próprio desejo e não sob a tutela da lógica do capital que incessantemente indica
possibilidades de caminhos a tomar para ‘fazer de conta’ que houve escolha.

3.1. A precariedade dos laços sociais e as redes sociais virtuais

Carmen Gallano (2011) ressalta que ao promover o laço direto entre o objeto e
sujeito, sem se passar pelo simbólico, o discurso capitalista promove, como vimos, a
quebra dos laços sociais. Assim, os laços entre os sujeitos tornam-se instáveis e
precários. A relação de amor torna-se caduca e desnecessária, pois os sujeitos deverão
satisfazer o outro como um objeto, numa relação direta e imediata.

O amor também deveria se configurar como uma via de saída do discurso


capitalista, um dissidente, na medida em que impõe limite ao gozo, no sentido de
transcender a lógica contratual e o cálculo de custo e benefício, ou seja, não se rendendo
ao discurso imposto pelo capital. No entanto, ao rejeitar a castração do simbólico, o
discurso do capitalista exclui o amor nos laços sociais18. Quando não há um outro ao
qual o sujeito possa transferir a sua libido, amar o outro, desejar o outro, estabelecer
uma relação de gozo sexual, a angústia toma conta e, então, as pessoas adoecem.
18
Gallano (2011) remete-se a Colette Soler para juntas discordarem de Freud. Para as psicanalistas, o
amor é uma suplência ao laço social, enquanto Freud o coloca enquanto discórdia com o laço. O amor na
contemporaneidade não se configura somente enquanto suplência à relação sexual que não existe entre os
corpos, mas uma suplência da precariedade dos laços.
[114]

O amor não escapa a lógica do mercado ou poderíamos pensar que o que ocorre
é uma impossibilidade em se estabelecer o amor? Para Gallano, as relações têm sido
substituídas pela ‘relação pessoal’, em uma referência a Anthony Giddens. Com isso, as
uniões se baseiam na associação a outra pessoa para que esta satisfaça ‘suficientemente’
e, perdendo seu ‘valor de mercado’, seu brilho fálico, troca-se o parceiro. Um dos
exemplos contemporâneos extremos que temos de ‘relações pessoais’, são os aluguéis
de pessoas para substituir filhos, mãe, pai, avós e até mesmo de cachorros que ocorre no
Japão. Os objetos ‘alugados’ fazem semblante de laço, é ‘como se’ amasse e fosse
amado. No Brasil, há um site na internet (Namoro Fake) 19 que disponibiliza mulheres e
homens para que se contrate como um namorado (a) fake:

Figura 19 - Namoro Fake

A ideia é que ‘mulheres e homens reais’ se façam de namorados – ficantes, ex-


namorado, namorado virtual ou namorado top – nas redes sociais para que o usuário do

19
http://www.namorofake.com.br/
[115]

serviço possa atualizar seu status de relacionamento ou provocar ciúmes em ex-


relacionamentos, por exemplo...

Neste sentido, remetendo-se a Freud (1930), Gallano (2006) indica que ele
antecipa em Mal-Estar na Civilização a condição do homem moderno ao assinalar que a
mais dolorosa fonte de sofrimento é proveniente dos vínculos com os outros seres
humanos. O modo pelo qual se regulam os laços sociais é uma marca essencial da
cultura – é o que vemos indicado na elaboração de Freud e também de Lacan ao
estabelecer os quatro discursos.

Os conflitos dos neuróticos de Freud estavam relacionados muitos mais ao dever


do Outro, muitas vezes representado pela figura paterna, o pai de família (e incluímos
aqui também a Igreja) que estabeleciam a regulação dos modos de gozo em renúncias
pulsionais. Com a passagem do senhor antigo para o senhor moderno, inclusive com
aquilo que Lacan indicou como ‘declínio da imago paterna’, os sujeitos encontram-se
perdidos em referência, numa espécie de carência do Outro enquanto regulador, numa
contracorrente ao ‘supereu cultural’ que é o do direito ao gozo, que insiste que se goze
de todos os modos.

Neste cenário atual, a internet aparece enquanto um dispositivo que tem recebido
cada vez mais atenção dos pesquisadores. Como vimos, os autores das ciências sociais e
da teoria da informação se ocupam desde meados dos anos 1990 com o tema. Na
psicanálise, este movimento é tímido. Entretanto, alguns psicanalistas também vêm se
atentando ao tema, especialmente indicando as incidências nos laços sociais. Essa
‘demora’ pelo interesse pode ser justificada, em nossa hipótese, por duas vias:
primeiramente, a internet aparece como um mass media, bastante relacionado ao
entretenimento e semelhante aos outros meios já instituídos, como o rádio, os jornais, as
revistas, o cinema ou a televisão; e, posteriormente, pelos seus ‘efeitos’ que aparecem
nas falas dos sujeitos, na escuta psicanalítica, enquanto um dispositivo que desvela as
implicações do discurso capitalista na precariedade dos laços.

Os mass media foram abundantemente analisados durante décadas, com


destaque para o seu poder de manipulação, alienação, persuasão, entre tantos outros, que
ainda hoje se encontram em função e em debate. Neste sentido, eles podem se relacionar
diretamente com a lógica capitalista, especialmente por dependerem de verbas de
publicidade e também enquanto um organizador onipotente, que transmite ao receptor a
[116]

informação em uma via de mão única, sem que haja meios para questioná-la. A
influência e o papel dos meios de comunicação na sociedade foram extremamente
desenvolvidos pela Teoria Crítica, ou Escola de Frankfurt, indicando a perda de
autonomia do sujeito na sociedade da indústria cultural, reforçando a alienação e
aniquilando qualquer ideia de resistência do espectador/receptor:

Sob o poder do monopólio, toda cultura de massas é idêntica, e seu


esqueleto, a ossatura conceitual fabricada por aquele, começa a se
delinear. Os dirigentes não estão mais sequer muito interessados em
encobri-lo, seu poder se fortalece quanto mais brutalmente ele se
confessa de público. O cinema e o rádio não precisam mais se
apresentar como arte. A verdade de que não passam de um negócio,
eles a utilizam como uma ideologia destinada a legitimar o lixo que
propositadamente produzem. Eles se definem a si mesmos como
indústrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus diretores
gerais suprimem toda dúvida quanto à necessidade social de seus
produtos. (Adorno, Horkheimer, 1947/1985, p. 114)

A estratégia dos meios de comunicação de massa relaciona-se com a captura


pela identificação, pela ditadura de padrões de comportamento, dos objetos de consumo,
entre tantos outros fatores que poderíamos aqui enumerar. Entretanto, o que marcamos é
que não há interação.

Não podemos negar que a internet também é parceira do capitalismo, entretanto,


ela emerge enquanto um self media – termo cunhado por Jean Cloutier na década de
1970, para dizer do homem enquanto receptor e emissor em relação aos meios de
comunicação. Nesta abordagem, o processo de comunicação não se dá mais de forma
unilateral. O emissor perde a sua onipotência e o receptor pode ter um desempenho
ativo, ou seja, a ideia principal não é mais a massificação da informação, mas sua
‘personalização’. Os exemplos de como isso ocorrem são inúmeros, desde o pay-per-
view disponibilizado pelas TVs a cabo até as propagandas ‘personalizadas’ que
aparecem enquanto está navegando na internet.
[117]

A passagem para os self media cria um paradoxo. De saída, temos uma ideia
otimista que nos leva a crer que nos libertamos das armadilhas dos mass media de
massificação, na medida em que se dissolve a ideia de que ‘todos são iguais’ e que o
que vale para um vale para todos – seja no âmbito do conhecimento, no da moda, do
entretenimento ou em qualquer outro; ou que é possível ter alguma autonomia em
relação à ideologia, especialmente em relação ao que podemos pesquisar, pois, neste
sentido, é possível fazer uma seleção no que se busca, trocar informações, tecer críticas
ou concordar com ideias que estão postas, colocar em rede elaborações que eram
particulares e que dificilmente circulariam de forma ‘global’. Sim, tudo isso é possível.
No entanto, por outro lado, concordamos com Slavoj Žižek (2011) quando ele indica
que a internet não é exatamente um espaço público e aberto, há empresas que a
monitoram, controlam. Este controle também pode ser feito pelo Estado, como na China
ou em Cuba, onde há controle do que pode ser acessado (voltaremos a esse ponto no
capítulo que segue) e também do que é veiculado no ciberespaço. Adiantamos que um
exemplo recente disso são as manifestações que ocuparam as ruas aqui no Brasil e as
‘retaliações’ denunciadas por vários internautas. Esse é um ponto que gostaríamos de
ressaltar, o outro diz respeito aos sujeitos e aos laços sociais.

Como pronunciamos, os psicanalistas passam a se interessar pela internet,


especialmente quando ela se articula nos discursos dos analisandos. Com a interação
entre homem e máquina e, consequentemente, de uns com outros, Doris Rinaldi (2011)
relembra elaborações de Heidegger quando este se refere à invenção do avião, rádio,
cinema, televisão, enquanto encurtadores de distância: “todo distanciamento no tempo e
todo afastamento no espaço estão encolhendo” (Heidegger apud Rinaldi, 2011, s/p.).
Para a psicanalista, apesar da superação das distâncias e do tempo, isso não traz
proximidade. O que temos é uma ‘ilusão de proximidade’.

Quando Lacan (1959-1960) coloca sobre o conceito de Das Ding, anos antes de
sua elaboração sobre o objeto a, coloca que o objeto de desejo do sujeito está sempre
mantido à distância e relaciona Das Ding – o vazio constitutivo, enquanto um enigma,
estranho e hostil –, ao próximo:

Essa distância não é completamente uma distância, é uma distância


íntima que se chama proximidade, que não é idêntica a ele mesmo,
[118]

que lhe é literalmente próxima, no sentido em que se pode dizer que o


Nebenmensch do qual Freud nos fala no fundamento da coisa é o seu
próximo. (Lacan, 1959-60/1997, p.97)

A análise de Rinaldi, na qual aborda as relações entre os sujeitos na internet,


parte da ideia de proximidade indicando que é o que possibilita o jogo entre desejo e
gozo, que está na base dos laços sociais, especialmente do amoroso. Assim, ela remete-
se a metáfora schopenhaueriana dos porcos-espinhos utilizada por Freud em Psicologia
de grupo e análise do ego (1921): durante o inverno os porcos-espinhos precisavam
ficar juntos para se aquecerem, mas como tinham espinhos era preciso manter uma
‘distância necessária’ para não se ferir. Neste sentido, a metáfora indica que existe algo
de intolerável na aproximação exagerada do outro, evidenciando a necessidade do
distanciamento, que constitui o desejo.

Nas redes sociais que se estabelecem no ambiente virtual o distanciamento é um


tema que pode ser visto de dois modos: o primeiro deles é que há um encurtamento da
distância, no sentido de permitir que se ‘acesse’ às pessoas de forma imediata, que se
reencontrem amizades antigas, que se formem grupos em rede de pessoas que tenham
interesse comum, mas que se encontram em lugares distintos, etc.; e por outro lado,
esses mesmos encontros se fazem a partir da ‘subtração da presença’ (Rinaldi, 2011),
elas dispensam a proximidade, atuando como um aparato que protege o sujeito do
desconforto trazido pelo outro:

As redes sociais se articulam fundamentalmente pelo princípio da


identificação e as conexões se fazem entre semelhantes, que
compartilham imagens e significantes. A primazia do imaginário
deixa na sombra a dimensão simbólica e principalmente a dimensão
real do outro, evidenciada no enigma que envolve a presença. (Ibid.,
s/p.)

A tecnologia, portanto, simularia a proximidade, a partir de ilusões que condensam


imagem e voz. Mas, como lembra Rinaldi, a presença não pode se resumir em
[119]

significante e imagem, não podemos esquecer o ‘porco-espinho’, pois é ele que implica
a distância mínima necessária ao desejo. Neste contexto, a função dos aparatos
tecnológicos (self media) – sejam celulares, computadores, tablets... – pode ser
apreendida enquanto similar ao que vimos no esquema L ou até mesmo ao aparato da
fantasia, um vez que se estabelecem também como mediadores entre eu e o outro, ou
seja, uma espécie de escudo que protege o sujeito do possível incômodo da presença do
outro, que aponta sua própria falta.

Fonte: Adão Iturrusgarai/http://adao.blog.uol.com.br

Figura 20 - O homem-polvo virtual

Não podemos deixar de frisar que o que está implícito é a confirmação da


relação do sujeito com os outros enquanto objetos ‘potencialmente’ capazes de
angustiarem os sujeitos... Tal como sugere Freud, essa mediação aponta para a relação
com o outro enquanto a maior fonte de angústia. De forma resumida, Gallano elabora
que equivale a reduzir o sujeito à condição de indivíduo e os coletivos à multidões de
agregação e segregação. E não é isso que fica evidente na coleção de ‘amigos’ que é
possível se fazer em redes como Facebook? Para Gallano (2006), o problema do sujeito
na atualidade se sintetiza no dilema: “como viver enquanto corpo falante e corpo
gozante com os outros?”, o que entendemos ser uma colocação que questiona de que
modo é possível ao sujeito escapar da lógica de ser reduzido a um indivíduo.
[120]

Estar reduzido a ser um indivíduo-corpo, suscita a experiência subjetiva do


anonimato, reduz o sujeito à sua insignificância social de identidade ou à solidão, a
partir da dificuldade de se fazer vinculo nas coisas do amor. O mesmo vale para os
coletivos que se transformam em multidões que segregam ou que agregam... Falta o que
envolve, falta amor.

Assim, pensando na conectividade entre as pessoas, pode-se pensar que existe


um ‘gozo de conectar’, isto é, de encontrar-se permanentemente conectado aos diversos
dispositivos: chats, e-mails, blogs, SMS, entre outros, para que se alimente a ilusão de
que não se está sozinho, na pretensão de se sentir acompanhado mesmo que seja a partir
da mediação da tela do computador (ou do telefone). Gallano (2006) sugere que
enviamos nossas mensagens como “garrafas lançadas ao mar internáutico”, onde não se
pode saber se o que se encontra do outro lado é um humano com corpo gozante que
recebe as mensagens enviadas. Mas, questionamos se em qualquer outra ocasião é
possível saber o que se encontra do ‘outro lado’... Não é também disso que se trata o
mal-estar? E é possível que a ‘solidão em rede’ seja apreendida enquanto uma via que
expõe o modo de socialização do capitalismo tardio? Poderíamos pensar que essa
enorme oferta de meios e ‘facilidades’ de se tentar tamponar a falta não a faz
desaparecer. Ao contrário, como sabemos, ela não pode ser ‘silenciada’ e sempre irá se
manifestar.

A pesquisadora Sherry Turkle, em Alone Together (2011), justamente afirma


que na atualidade se espera mais da tecnologia e ‘menos’ do outro, destacando que cada
vez mais as pessoas estão conectadas e simultaneamente mais solitárias. Sua crítica,
com viés sociológico, abraça exatamente as coordenadas apontadas por Gallano e
confirma a relação entre sujeito e objeto, posta no matema do discurso do capitalista.
Uma das vertentes do excesso de conectividade que Turkle ressalta é que os sujeitos
estão se tornando ‘progressivamente’ mais ansiosos por comunicação e,
consequentemente, desconfortáveis quando não estão conectados, exatamente por se
sentirem sós na vida offline.

Em sua palestra no TED20 2012, Turkle argumenta que quando escreveu seu
primeiro livro sobre tecnologia, Life on the Screen: Identity in the Age of the Internet

20
TED é a abreviatura de Technology, Entertainment, Design, uma fundação americana que se dedica a
compartilhar ideias sobre questões da atualidade que contemplem seus temas. As palestras ocorrem ao
redor do mundo, com pensadores locais ou não, e são amplamente divulgadas em rede.
[121]

(1996), estava completamente encantada com as facilidades da tecnologia: a


conectividade, a troca de informações, o elo possível entre as pessoas e a possibilidade
das pessoas explorarem aspectos diferentes delas próprias – o que outros autores
também destacam, enquanto possibilidade de desamarras das presas da vida online . Ela
acreditava que se poderia aprender mais sobre si no mundo virtual e assim, viver melhor
no mundo desconectado. Entretanto, constatou que o encantamento inicial não se
provou ao longo dos anos que seguiram e que hoje, se preocupa com o uso que se faz
quando se está conectado.

Não queremos justificar nosso pensamento a partir do de Turkle, mas


consideramos que algo similar se aplica quando colocamos a dissertação preparada no
mestrado e a pesquisa que desenvolvemos neste momento. Não se trata de uma
passagem de um viés mais otimista para uma elaboração de cunho pessimista ou de uma
visão ingênua para algo mais perspicaz. Acreditamos que o que ocorreu ao longo desse
prazo, relaciona-se muito mais ao modo como a cibercultura foi rapidamente e
amplamente (e continua sendo) devorada pelo discurso do capital, o que afetou ainda
mais diferentes frentes da cultura e que, em certo sentido, ofuscou o plano de autonomia
que parecia pretender. Além disso, ela se estabelece como uma das principais vias de
comunicação entre as pessoas e evidencia, a partir das redes sociais virtuais, a tomada
radical dos laços pelo discurso do capitalista.

Ao realizar uma pesquisa empírica com centenas de pessoas sobre a vida delas
conectadas, Turkle concluiu que os dispositivos móveis (que são levados em bolsos e
bolsas) são extremamente potentes psiquicamente, no sentido de que podem modificar o
que as pessoas fazem (como por exemplo, atualmente enviam mensagens durante
reuniões, conversas, jantares; fazem compras; atualizam o Facebook durante as aulas,
apresentações, etc..) e também aquilo que elas ‘são’. Uma das evidencias que Turkle
encontrou foi a de que o sujeito sempre se desculpa dizendo que envia mensagens para
o outro para não incomodá-lo, enquanto, em ultima instância, o que realmente almeja é
que o outro também não lhe ‘incomode’. E o que é incomodar? Para Turkle, é
conversar, estar com o outro, ter que lidar com o jogo de palavras entre eu e o outro:
“vejo que as pessoas não se fartam umas das outras se, e somente se, eles podem ter
uma outra distância, em quantidades que elas podem controlar. Eu chamo isto de efeito
Cachinhos Dourados: não muito perto, não muito longe, simplesmente certo” (Turkle,
[122]

2012, s/p.) 21
. Mais uma vez, evidencia-se a intensificação do movimento de ‘porco-
espinho’ entre os sujeitos e seus pares nas relações atuais.

Ainda, Turkle considera que as conversas face a face causem desconforto por
ocorrerem em tempo real e, desde modo, não se pode ter controle absoluto sobre aquilo
que vai dizer. Ou seja, existe algo do sujeito que escapa quando se fala. Para Turkle, a
possibilidade de optar pela conversa online em detrimento daquela na qual se teria uma
‘presença real’ – no sentido de duas pessoas frente a frente –, as pessoas poderiam se
apresentar como gostariam de ser vistas, isto é, enquanto eu ideal: “Nós editamos, e isto
significa que deletamos, o que significa que retocamos o rosto, a voz, a carne, o corpo...
Não muito pouco, não em demasia, apenas o certo” (ibid.). Mas não seriam também
estes ‘truques’ utilizados na vida off-line? Não é sempre para o outro e enquanto ‘eu
ideal’ que nos apresentamos? Maquiagens, perfumes, plásticas etc., também não podem
ser consideradas formas de ‘se editar’?

Assim, a conclusão de Turkle é que a tecnologia atrai quando nos sentimos mais
vulneráveis. E, neste sentido, ao se relacionar com o outro enquanto objeto, sem ter o
amor enquanto fonte que enlaça, todos estão vulneráveis, sozinhos, e com receio da
intimidade, da proximidade. Estas relações que emergem no discurso capitalista,
especialmente nas redes sociais, oferecem três fantasias gratificantes, de acordo com
Turkle, sendo: 1) as pessoas podem se concentrar onde quer que deseje; 2) sempre terão
a sensação de estarem sendo ‘ouvidos’; e 3) nunca precisarão ficar sozinhos. Sendo,
que, em sua análise, estar sozinho é algo que se configura enquanto um problema para
as pessoas na atualidade, que buscam na conexão uma forma de resolvê-lo parcialmente.
Portanto, neste contexto, estar conectado se configura muito mais enquanto um sintoma
do que como ‘cura’.

Nas relações virtuais, assim como em todas as outras, por via das palavras e dos
significantes no imaginário, se podem cultivar ficções amorosas que satisfazem as
fantasias; entretanto, o que se questiona é se com o advento da ‘sociedade do
espetáculo’ as imagens recebem um valor fálico justamente por não colocar em jogo o

21
O efeito ‘Cachinhos Dourados’ refere-se ao termo físico que diz à distância de um planeta em relação à
sua estrela – se perto demais, quente demais, se longe demais, frio demais; se, na distância ‘certa’, terá
condições de desenvolver vida. A título de curiosidade, a expressão foi tirada de uma história infantil,
onde uma menina de ‘Cachinhos Dourados’ que invade a casa de uma família de ursos e encontra três
pratos de mingau, do pai, da mãe e do filho urso. O prato maior estava muito quente, o intermediário
muito frio e o menor estava ‘perfeito’.
[123]

encontro ‘presencial’ dos sujeitos, como sugere Gallano (2011). Para ela, os vínculos
que se estabelecem nas relações virtuais não são libidinais, não entrelaçam real,
simbólico e imaginário, o que impossibilita que se forme um laço estável com o outro.
Isto é, Gallano sugere que o real não está em ali e, por isso mesmo, a internet é tomada
como muito propícia para os ‘amores líquidos’, que não entrelaçam corpos, gozos e
palavras. Perguntamo-nos: esta afirmativa não coloca novamente em questão que existe
uma distinção entre ‘vida online’ e ‘vida off-line’, controversa para quando pensamos
em ‘realidade psíquica’ ou fantasia? Ou: ao pensar a internet enquanto dispositivo
propício para ‘amores líquidos’, não devemos tomá-la enquanto um amplificador das
transformações do Outro que evidencia questões próprias relativas ao que é da estrutura
dos sujeitos?

Outra vertente trazida pela psicanalista é que há o relato de uma violência muda
que agita o corpo no já desassossegado da pulsão, que agora se nomeia ansiedade. O
‘desassossego’ da pulsão se dá justamente porque o sujeito não encontra um modo de
colocá-lo para fora do seu corpo, ligando-se a outro corpo, a outro sujeito, pois a relação
se dá a objetos inanimados (como podem ilustrar as bulimias ou as toxicomanias).
Assim, o sujeito irá se conformar com ‘gozos autistas’ ou autoeróticos, retornando as
pulsões sobre o próprio corpo, na escassez do amor. Outra indicação da falta outro
corpo para se enlaçar em um laço de amor e também de desejo.

Por certo, não podemos generalizar e afirmar que é impossível se fazer laço no
ciberespaço. As considerações feitas até aqui corroboram com as considerações de
Gallano, Rinaldi e Turkle, de que as relações na internet reproduzem e evidenciam a
escassez do amor, potencializando a dificuldade de fazer laço na conjuntura do
capitalismo tardio, seja na internet, seja em qualquer outro espaço. Caso contrário,
estaríamos afirmando que fora da rede o laço social não apresenta transformações e,
como exposto, isso não se confirma.

O amor que enoda o laço ocorre na contingência de um encontro e não está


restrito a incidência entre os sujeitos que se conhecem. Freud (1921) afirma que as
‘relações amorosas’ constituem a essência de grupo, quando considera que nesta
situação os indivíduos encontram-se vulneráveis às sugestões por sentirem necessidade
de estarem em harmonia com os outros, por amor aos outros. Esta descrição grupal
refere-se à definição freudiana de ‘grupo primário’, na qual os indivíduos elegem um
[124]

único objeto no lugar de ideal de eu e se identificam a partir do eu. Acreditamos ser este
tipo de agregação que comporta críticas à alienação grupal em torno de um líder ou uma
ideia e que também nos permite pensar na ‘prática’ e ‘confortável’ militância que vemos
nas redes sociais. Sem esforço, as pessoas podem se engajarem em causas políticas ou
reivindicações, ‘compartilhando’ publicações, curtindo status de outras pessoas,
assinando petições que ficam ali, ‘nas nuvens’. É como se assim se desse contorno ao
seu ‘eu ideal’ preocupado com questões políticas, ciente dos problemas do mundo e
acreditando que isso é suficiente para se sentir ‘menos culpado’, já que está fazendo
algo em favor da sociedade, do coletivo. O maior exemplo de como se engajar a partir
de forma confortável pode ser representado pelo site Avaaz22, que se descreve enquanto
“uma comunidade de mobilização online que leva a voz da sociedade civil para a
política global”. As petições são compartilhadas nas redes sociais virtuais, como o
Facebook e o Twitter, e as pessoas (algumas vezes milhões) vão disseminando a ideia e
aderindo ao movimento.

Em ação desde 2007, a organização Avaaz (‘voz’ em algumas línguas europeias,


do oriente médio e asiáticas) define seu trabalho enquanto uma missão democrática,
com intuito de “mobilizar pessoas de todos os países para construir uma ponte entre o
mundo em que vivemos e o mundo que a maioria das pessoas querem”. Assim, o
objetivo é que as pessoas unidas possam originar uma força coletiva poderosa. Até a
presente data (fevereiro/2013), o site exibe 28 ações vitoriosas, entre elas, ações que
contemplam a natureza (Impedindo o massacre da motosserra na Amazônia - 2012,
Protegendo o mar de coral – 2012), a violência no oriente médio (Seja bem-vinda,
Palestina – 2012, Rompendo com o Blecaute na Síria – 2011), a corrupção no Brasil
(Brasil: Ficha Limpa – 2010) , ajuda humanitária (Ciclone em Mianmar, Terremoto no
Haiti, Enchente no Paquistão) , questões democráticas (Democracia para o Zimbábue –
2008, Revolta em Mianmar – 2007), etc..

Em uma via de mão dupla, a internet mostra como as pessoas podem se articular,
desde pequenas comunidades locais a multidões, a partir de uma insatisfação coletiva e,
em nosso entendimento, a partir da ideia freudiana, esta é uma forma de ‘amor’. Ao
mesmo tempo, o ativismo social que se dá pela via de preenchimento e

22
http://www.avaaz.org/
[125]

compartilhamento de dados, pode reduzir ainda mais a participação ativa, isto é, fazer o
movimento descer às ruas.

Em oposição aos manifestos silenciosos vimos eclodir, no ano de 2011, em


diversos lugares do mundo, manifestações que tomaram as praças, as ruas e a rede.
Vários artigos foram escritos questionando a participação da internet e enfatizando sua
importância enquanto um espaço para debates que envolvem a ‘luta pela democracia’ e
‘livre’ circulação de informações. O movimento conhecido como ‘Primavera Árabe’
ganhou forças na Tunísia, Egito e na Líbia com forte mobilização via Facebook e
Twitter. O mesmo aconteceu com o movimento 15-M (Os indignados) na Espanha e
Occupy Wall Street originário do “We are the 99%”, em Nova York, que se espalhou
por outros lugares na Europa e América, até mesmo no Brasil. Essas mobilizações que
se deram de forma globalizada têm/tinham, em maioria, reivindicações locais, mas todas
elas apontam para o “profundo sentimento de mal-estar e desencanto”, a “angústia do
desencanto”, como formula Safatle: “Vemos uma mudança fundamental na dimensão
afetiva: (...) novos laços sociais paulatinamente apareceram, levando em conta a força
produtiva do desencanto” (2012, p.52). Os movimentos indicam que há algo equivocado
com a ‘sociedade globalizada’. É evidente que há diferenças entre as ocorrências na
Praça Tahir (Egito) ou em Wall Street (EUA), mas o que se pode perder de vista “é o
descontentamento geral com o sistema global capitalista” (Žižek, 2011/2012, p.21).

Gallano (2011) entende que, no caso específico da Espanha, a crise do mercado


financeiro condenou multidões pela ação do governo e tornou-se um sintoma social que
une a multidão. Este cenário parece similar nos outros países e entendemos que indica
transformação no laço, pois a multidão não se agrupa referenciada a um líder, a um
significante mestre coletivizante, que situe a ordem simbólica da organização de uma
sociedade. Em um ato histérico, os protestos provocam o mestre, questionam a sua
autoridade, criam um vazio no campo da ideologia hegemônica (Žižek, 2011/2012).
Mas, será que o que queremos é outro mestre, como sugere Lacan (1969-1970/1992), na
ocasião da ebulição das mobilizações 1968? O Occupy, por exemplo, defende um
movimento sem liderança, uma ‘democracia horizontal’ que permita a participação de
todos para que se crie uma mudança efetiva na sociedade, o mesmo vimos ser
reivindicado durante as manifestações no Brasil, especialmente em junho de 2013.
[126]

Concordando com vários estudos, acreditamos que a internet foi fundamental


nesses acontecimentos. Não é possível ignorarmos a disseminação e desapropriação da
informação via redes sociais. Existem sim discussões que criticam a fragmentação do
saber em rede e, como destacamos, isso também é um fato. Entretanto, enfatizamos a
disseminação globalizada do sentimento de desencanto, como comum a muitos e que
pode ganhar forças não só para pensar, como para agir. De que outro modo isto seria
possível, se pensarmos na ausência de neutralidade e de efetiva participação nos outros
meios de comunicação, os mass media?

No capítulo anterior, destacamos que Pierre Lévy (1994/2007) sugere que a


cibercultura pode possibilitar uma “inteligência distribuída por toda parte,
incessantemente valorizada, coordenada em tempo real, que resulta em uma
mobilização efetiva das competências” (p.28), a inteligência coletiva. Estes
acontecimentos e movimentos atuais podem não ter esta pretensão de uma
‘administração geral’ onde todas as coisas possam ser discutidas e resolvidas a partir do
ciberespaço. Entretanto, podemos afirmar que as redes sociais promovem algum efeito
de desestabilização da ordem quando revelam um furo no sistema. A censura é um
indicativo de que aí pode estar localizada alguma possibilidade de ‘consciência social’.
A Inglaterra, em agosto de 2011, ameaçou retaliação às mensagens entre smartphones a
fim de impedir a organização de manifestações que irrompiam. Outros países, como
China, Cuba, Coréia do Norte, Irã e Birmânia, censuram o acesso às redes sociais
virtuais e também às páginas com conteúdos divergentes da política local ou blogs de
jornalistas etc., em um esforço sem fim de inibir o acesso à troca de informação.

São estes laços que podem incidir no real, pois estão atados pelo sintoma, por
aquilo que faz furo no social e, portanto, ‘sintoma social’. São estes movimentos, deste
nosso tempo, “que podem entrelaçar semelhantes que são dispares para alguma via de
efetiva realização que, para-além do efêmero das agregações, possa inventar modos de
vínculo que, cada qual se autorizando de seu desejo, apostem em projetos coletivos
ideais” (Gallano, 2011, s/p.).

Se esta é a saída para os coletivos, Lacan indica que, para os sujeitos, é o


discurso do analista que poderia intervir. Não é a análise enquanto forma de vida, mas o
sujeito se interessar em se escutar naquilo que é lhe é singular, a sua verdade, intrínseca
na sua própria estrutura inconsciente, que é de onde emerge. Assim, o movimento não é
[127]

se proteger por trás de telas, simulando proximidade, enquanto, em última instância,


cria-se distanciamento... É manter-se em um intervalo íntimo consigo e com os outros,
para que se possa ouvir o desejo.
[128]

CAPÍTULO III

O SUJEITO E O GOZO ESCÓPICO NA SOCIEDADE


CONTEMPORÂNEA

Neste capítulo, após contextualizarmos a sociedade contemporânea e trazermos


considerações da psicanálise sobre o sujeito e os laços sociais em estrutura e na
atualidade, sentimo-nos autorizados a adentrar mais especificadamente à nossa proposta
de tese. Para tanto, iniciamos esta parte apresentando o site Facebook, dispositivo que
elegemos pela necessidade de recorte e por considerarmos representativo para
desenvolvermos as elaborações sobre as quais concentramos nossa pesquisa. Além
disso, destacamos alguns estudos que o associam a uma espécie de correlato de
problema epidêmico social.

Posteriormente, desenvolvemos nossas considerações que contemplam o


objetivo primordial da tese ao nos dedicarmos à argumentação e sustentação do sujeito
pensado enquanto capturado pela modalidade de gozo escópico na contemporaneidade,
articulando pulsão e gozo escópico e, portanto, o olhar como objeto a, com o
investimento dos sujeitos nas novas tecnologias de sociabilidade que convocam o
escópico. Assim, busca-se compreender de que modo essa captura se articula à estrutura
do sujeito (tal como considera a psicanálise) e também ao discurso do capitalista, para-
além daquilo que vem sendo discutido e questionado sobre o tema.

O filme Disconnect (Rublin, 2012) é trazido como um aparato, a titulo de


ilustração, para contribuir com o estudo, pois entendermos que coloca em evidência o
olhar do objeto incidindo sobre o sujeito no contexto das redes sociais.

E, deste modo, finalizando nossa argumentação, retomamos o conceito de


‘Sociedade Escópica’, cunhado por Antônio Quinet em Um olhar a mais (2002/2004),
enfocando as elaborações que lhe foram caras para sua construção, especialmente as de
Guy Debord (sociedade do espetáculo) e Michel Foucault (sociedade disciplinar), por
consideramos a elaboração relevante a este estudo, na medida em que Quinet nos reitera
sobre a predominância do escópico na conjuntura social na qual estamos inseridos e que
[129]

ponderamos contribuir para o contexto da tese quando pensamos em duas frentes: a


indiscutível preponderância da imagem nas redes sociais e a crescente militarização do
ciberespaço.

1. O Facebook

Fez-se necessário um recorte para que pudéssemos tecer nossas considerações


sobre a questão escópica na sociedade contemporânea, especialmente para que fosse
possível contemplarmos o modo pelo qual os sujeitos são capturados por essa
modalidade particular de gozo, a Schaulust.

Mesmo diante da possibilidade de diferentes escolhas de redes sociais, elegemos


o site de rede social Facebook23 (FB) 24
como dispositivo a ser considerado. E assim o
fizemos, pois se trata do maior site de relacionamentos do Brasil (76 milhões de
usuários ativos mensais em dados de 30 de junho de 2013) 25 e um dos maiores de todo
26
mundo (1,15 bilhão de usuários) , que além de todas as características que nos são
caras e que lhes são próprias, ainda engloba outras importantes redes sociais, tais como
o Youtube27, Instagram28 e Twitter29, que igualmente apresentam elementos relevantes,
mas que não consideraremos neste momento específico.

No nosso entendimento, este site se apresenta enquanto um robusto expoente de


variáveis que apresentamos no decorrer dos dois capítulos anteriores: ele reproduz as
articulações sociais que se dão no contexto do capitalismo tardio, inclusive,
funcionando enquanto um outdoor de produtos, isto é, ele conjuga na mesma plataforma
laços sociais e capitalismo, embora as duas dinâmicas não se deem uma em detrimento
23
http://www.facebook.com
24
Algumas vezes utilizaremos a sigla FB ao nos referirmos ao Facebook.
25
Conforme matéria publicada em http://www1.folha.uol.com.br/tec/2013/08/1326267-brasil-chega-a-76-
milhoes-de-usuarios-no-facebook-mais-da-metade-acessa-do-celular.shtml
26
Idem.
27
http://www.youtube.com/
28
https://instagram.com/
29
https://twitter.com/
[130]

de outra. Alguns temas que levantamos sobre os laços sociais no contexto


contemporâneo também aparecem estampados no FB, sejam as relações entre as
pessoas, que agora ‘acumulam’ amizades e evidenciam sua possível fragilidade, sejam
as relações que vão se tramando por contextos distintos, como motivações sociais de
todos os tipos que indicariam algum tipo compartilhamento de certo mal-estar
contemporâneo.

Ao mesmo tempo, é indispensável que apontemos a fluidez e efemeridade dos


sites na internet, ou seja, a tendência à adesão e popularização que parece sempre estar
condenada ao ofuscamento pela chegada de novas propostas que se apresentam mais
‘incríveis’ e que, pouco a pouco, vão fazendo dissolver aquilo que se encontrava tão
popular. Foi assim a passagem do Orkut para o Facebook, por exemplo. Claro, não
deixamos de entender essa transitoriedade enquanto exemplo da própria dinâmica
capitalista, na sua persistente substituição de objetos.

Um sem fim de matérias em jornais e revistas – acadêmicos ou não – poderiam


nos levar a creditar ao Facebook uma espécie de epidemia. Há estudos sendo realizados
em diversas universidades que ‘comprovam’ que o FB , assim como outras redes
sociais, ‘viciam mais do que álcool e cigarro’ (Universidade de Chicago), ‘são mais
tentadores que sexo’ (Universidade de Chicago), ‘causam estresse e ansiedade’
(Universidade Edinburgh Napier), ‘te deixam mais gordo e consumista’ (Universidade
de Pitsburgo e Universidade Columbia), enfim, uma infinidade de pesquisas
comportamentais nas quais não nos cabe aprofundarmos em suas evidências, mas que
marcam que alguma coisa acontece no FB que desperta tantos desses interesses e
olhares.

Há outras pesquisas que parecem retomar o que fora elaborado por Lasch no
final da década de 1970 – e ao qual nos referimos no primeiro capítulo – indicando que
se trata de uma espécie de epidemia narcísica, como sugere o estudo das psicólogas
americanas Jean Twenge e Keith Campbell, em The Narcissism Epidemic (2010):

Narcissism clearly leads to more social media use, social media use
leads to positive self-views, and people who need a self-esteem boost
turn to social media. It is less clear whether social media directly
causes narcissism, at least in the short term. With narcissists having
[131]

more friends and posting more frequently, however, social media sites
are clearly influenced by those high in narcissism at a rate higher than
their fair share. And that’s just the way they like it. (Twenge, 2013,
s/p)

Essa ideia ainda ganha reforço em dezenas de outras pesquisas, como a de Panek
et. al (2013), quando afirmam que no Twitter as postagens estão associadas a
componentes narcísicos de superioridade enquanto no FB os posts se associam a um
componente exibicionista do narcisista. Vale salientar, que o narcisismo ao qual se
referem em nada se assemelha ao da construção psicanalítica freudiana, tampouco das
considerações de Lacan. Nesses estudos ele é compreendido quase como uma ‘doença’,
grosso modo, podemos afirmar que ele é entendido da maneira como popularmente se
toma o termo ao dizer de uma pessoa que se sente melhor do que as outras, centrada em
si, entre tantas outras características comumente associadas a estes ‘narcisos genéricos’,
que se aproximam mais do eu consciente. Ou, muito mais semelhante ao narcisismo
secundário exemplificado por Freud (1914/2006) a partir dos ‘megalomaníacos’, os
quais desinvestiriam a libido do mundo externo e a dirigiriam para si. Entretanto, Freud
ressalta a existência de um narcisismo que é primário e encontra-se presente em toda
criatura viva, isto é, parte da constituição psíquica dos sujeitos e que posteriormente
será deslocado para os objetos. Mais ainda, para a psicanálise o narcisismo implica o
reconhecimento do eu a partir da imagem do corpo próprio investida pelo pequeno outro
e introduz o sujeito numa tensão mortífera (eu ou o outro) cuja pacificação só pode ser
dada pela mediação simbólica, garantida pelo desdobramento da alteridade na ordem
simbólica, impessoal, a ordem da linguagem que estrutura o inconsciente e o desejo.
Mas não é esse nosso ponto.

Além disso, os media aparecem na maioria das pesquisas enquanto os


ocasionadores de problemas, sem se discutir exatamente qualquer estruturação psíquica
ou contexto social que justifique a adesão e fascínio em massa de centenas de milhares.
O mesmo ‘problema’ podemos ver em estudos anteriores sobre a televisão, por
exemplo, no qual sempre encontramos a ideia de que é potencialmente alienante, mas
sem que se questione de que modo ela se associa ao psiquismo dos sujeitos, à sua
alienação estrutural e transistórica ou ao seu ‘encantamento’ com os objetos. Não é a
máquina que aliena, não é a tecnologia seja antiga ou nova que favorece determinado
[132]

tipo de ‘comportamento’. Defendemos aqui que é o modo como esses aparatos se


articulam à estrutura dos sujeitos, respondendo a uma demanda constituinte, que pode
tentar elucidar de fato qualquer tipo de investigação. Sem se deixar de lado, claro, a
relação de todas essas questões com a própria “infra-estrutura econômica e a economia
simbólica do capitalismo” (Pacheco Filho, 2010), ou:

Los ideólogos del ciberespacio suenan con un nuevo paso adelante en


la evolución, en virtud del cual dejaremos de ser meros individuos
‘cartesiano’ condenados a interactuar mecánicamente, y la ‘persona’
cortará su vínculo substancial con un cuerpo individual para
concebirse a sí mismo como parte de una nueva mente holística que
vivirá y actuará a su vez a través de él o ella, pero lo que pierden de
vista con esta ‘naturalización’ de la World Wide Web y del mercado
son el conjunto de relaciones de poder – decisiones políticas,
condiciones institucionales – necesarias para que medren
‘organismos’ como Internet (o el capitalismo, o el mercado…).
(Žižek, 2006a, p.257)

É partindo destas considerações que entendemos ser possível pensarmos em


algum modo de contribuirmos para que melhor se compreenda as dinâmicas da
sociedade contemporânea e, especialmente, considerando os sujeitos ante a tecnologia
do FB, isto é, diante do que entendemos enquanto expoente maior da captura do sujeito
pela modalidade de gozo escópico. Não tomaremos o FB para analisá-lo em sua função
de rede social, mas como via de acesso para que dali possamos ser conduzidos a algo
que nos indique alguma coisa da relação dos sujeitos a esta modalidade de gozo, nos
atentando para as particularidades do olhar enquanto objeto.

Antes disso, consideramos ser indispensável apresentarmos o próprio FB,


considerado a mais popular rede social da (curta) história da internet, que teve sua
origem nos Estados Unidos a partir da ideia de alguns estudantes da Universidade de
Harvard – Mark Zuckerberg, Eduardo Saverin, Dustin Moskovitz e Chris Hughes – de
digitalizar os tradicionais livros de nome homônimo que circulavam pelas universidades
americanas apresentando os estudantes de cada instituição a partir de algumas
[133]

informações e fotos. Não se trata de uma invenção, visto que existiam outras redes
sociais circulando na internet como, para citar alguns, o ClassMates de 1995, o
SixDegrees de 1997, o Frindster de 2002 e até o próprio Orkut de 2004. E, lembramos,
que o conceito de ‘rede social’ não se origina com a internet, ele é bastante antigo e
emerge justamente da demanda dos sujeitos humanos em compartilharem entre si,
estabelecerem laços, socializarem suas afinidades e ideias. Qualquer pessoa pode buscar
em sua memória as redes as quais se conectaram durante sua vida. No entanto, com o
advento da internet o que antes estava restrito às histórias e nichos particulares ganham
a dimensão da digitalização e, então, temos acesso a todas essas redes que nos
atravessam de algum modo.

As redes são reconstruídas nos sites e sofrem diretamente a ação da mediação


pelos próprios sites que as alocam. Por isso, na nossa visão, a crítica que muitas vezes
circula da ilusão de laços ao se agregar ‘amigos’ que contabilizam centenas, não pode
perder de vista esta outra dimensão, de que há também outras milhares de redes,
inclusas aquelas que se aliam a partir de business e que em nada se assemelham à
questão do laço social dado pelo amor, como sugere a teoria psicanalítica.

De forma geral, o funcionamento do FB é simples e contempla alguns elementos


comuns das redes sociais que listamos acima: possibilita aos seus usuários a criação de
perfis públicos que contém fotos, informações pessoais – que podem ou não serem
compartilhadas –; troca de mensagens públicas ou privadas entre seus participantes;
compartilhamento de músicas, arquivos ou ideias; adesão a grupos e páginas de seu
interesse e tudo o mais que se quiser agregar. De uma forma crítica e ainda precipitada,
podemos destacar que ‘agregar’ ou ‘adicionar’ são significantes que marcam a
socialização contemporânea. Permitimo-nos afirmar que há certo prazer na

quantificação de amizades ou na contabilidade de likes - - a cada postagem. E,


neste sentido, podemos começar a indicar que há algum endereçamento e demanda
daqueles que navegam por essas ferramentas. Ainda, de saída, destacamos a relação
direta entre os perfis e compartilhamentos e o ‘eu ideal’, narcísico, que se constitui no
estádio do espelho, conforme nos indica Lacan e que compõe a dimensão imaginária do
sujeito, se constituindo enquanto base de suas identificações e amparando a sua relação
com os outros e as coisas do mundo, sempre revelando a sua condição de alienado ao
Outro. Assim, é partindo deste ponto e propondo seu além, que avançamos em nossa
[134]

investigação, contemplando justamente essa captura do sujeito numa determinada


modalidade de gozo, o escópico, com suas peculiaridades e implicações.

2. Schautrieb e Schaulust através da tela do computador

O olhar é invisível (Antonio Quinet)

É Freud quem nos indica a existência da pulsão do prazer em olhar e se exibir, a


Schautrieb, pulsão do ver ou escópica, no texto Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade (1905):

(...) a vida sexual infantil, apesar da dominação preponderante das


zonas erógenas, exibe componentes que desde o início envolvem
outras pessoas como objetos sexuais. Dessa natureza são as pulsões do
prazer de olhar e de exibir, bem como a de crueldade, que aparecem
com certa independência das zonas erógenas e só mais tarde entram
em relações estreitas com a vida genital (...). (Freud, 1905/2006,
p.180)

Nesta ocasião, Freud menciona que a pulsão de ver pode aparecer nas crianças como
uma manifestação sexual espontânea, sendo que elas primeiramente se sentem curiosas
por sua própria genitália e posteriormente inclinam seu interesse para os genitais de seus
colegas. Sabe-se, de todo modo, que para Freud as experiências iniciais de satisfação
são autoeróticas e se relacionam com funções vitais. Não por acaso, os dois objetos
sexuais iniciais de um sujeito são ele mesmo e seu cuidador, indicando a presença do
[135]

narcisismo primário que favorece a escolha de objeto. Ao mesmo tempo, sugerindo a


estruturação da relação entre sujeito e o Outro, a quem dirige suas demandas.

Além disso, Freud indica uma atividade além da visão para os olhos ao nos dizer
de sua função também enquanto fonte de prazer:

O olho, talvez o ponto mais afastado do objeto sexual, é o que com


mas frequência pode ser estimulado, na situação de cortejar um objeto,
pela qualidade peculiar cuja causa no objeto sexual costuma ser
chamada de ‘beleza’. Daí se chamarem ‘atrativos’ os méritos do
objeto sexual. (Freud, 1905/2006, p.198)

Quinet (2002/2004) completa afirmando que “é a pulsão escópica que faz de uma
pessoa um objeto excitante e charmoso, com o caráter de belo. O objeto olhar, enquanto
objeto pulsional, emerge no campo de desejo do sujeito e veste a quem causar o desejo
do sujeito de beleza” (p.12).

Seguindo, em As pulsões e suas vicissitudes (1915), Freud indica que a pulsão


tem diferentes destinos, sendo: reversão em seu oposto, retorno em direção ao próprio
eu, recalque e sublimação. Neste caminho, ele coloca que a reversão da pulsão pode
ocorrer de dois modos: muda-se da passividade para a atividade e reverte-se ao seu
conteúdo. Aqui, o par de opostos escopofilia-exibicionismo, da pulsão escópica, é
tomado como exemplo no caso da reversão de sua finalidade. Temos, portanto, que a
finalidade ativa de ‘olhar’ é substituída pela finalidade passiva de ‘ser olhado’.

Para Freud, na pulsão escópica – e igualmente nas demais – existe uma espécie
de ‘fase preliminar’ que é de cunho narcísico. Isto é, no início de sua atividade, a pulsão
escópica é autoerótica: é o próprio corpo do sujeito o seu objeto, que só posteriormente
também irá investir no outro. É neste movimento que se podem articular os três tempos
da pulsão escópica: o autoerotismo, o voyeurismo e o exibicionismo, que irão existir
simultaneamente:
[136]

A única afirmação correta a fazer sobre o instinto escopofílico seria a


de que todas as fases de seu desenvolvimento, tanto sua fase
preliminar auto-erótica quanto sua forma ativa ou passiva final,
coexistem lado a lado; e a verdade disso se tornará evidente se
basearmos nossa opinião, não nas ações as quais o instinto conduz,
mas no mecanismo de sua satisfação. (Freud, 1915/2006, p. 136-7)

Deste modo, é possível afirmar que ver (voyeurismo) e ser visto (exibicionismo)
não são destinos excludentes, ao contrário, ambas estão presentes simultaneamente,
indicam a estruturação da pulsão e sua constituição, como sugere Quinet:

No retorno sobre o próprio individuo (ser atormentado, ser olhado),


trata-se do retorno sobre o sujeito daquilo que foi produzido no outro
(atormentar, olhar). O masoquismo é o retorno do sadismo assim
como no exibicionismo o olhar dá a volta no outro para retornar ao
próprio corpo, fazendo com que o exibicionista compartilhe o gozo do
voyeur. (Quinet, 2002/2004, p.75-6)

Ser olhado pelo outro, isto é, introduzir no jogo escópico um outro sujeito que
olhe para o sujeito da pulsão ou para o qual ele possa se exibir, faz eclodir o sujeito da
pulsão enquanto objeto e o outro que olha toma o lugar de ‘sujeito’ ativo: aquele que o
vê. Entretanto, como lembramos, os três tempos da pulsão escópica permanecem
sempre presentes, o que nos indica que “a pulsão escópica permanece sempre presa ao
narcisismo, que não se desvincula do exibicionismo fálico” (ibid., p. 76). Todavia, em
seus diferentes momentos, vemos serem introduzidos alguns elementos: se na fase
inicial autoerótica o sujeito é seu próprio objeto, na fase voyeur temos a presença de um
outro objeto, estranho ao sujeito e na fase exibicionista temos a introdução do outro, de
uma pessoa estranha. O que ocorre é que nessa articulação o sujeito desaparece, uma
vez que ele se reduz ao objeto que é olhado. Para Quinet, “isto mostra a estrutura
paradigmática da pulsão, pois revela que a pulsão é acéfala: não há mais sujeito,
somente o objeto que brilha em satisfação, o gozo escópico, a Schaulust” (p.76).
[137]

A argumentação freudiana a respeito da pulsão escópica já nos apresenta


elementos importantes para a nossa construção, que aspira entender como este jogo se
dá no ambiente de rede, na internet. É possível identificarmos com base em suas
elaborações e sem nos preocuparmos em sermos rigorosos, que o modo como se
articulam os laços que se estabelecem em ambiente virtual, antes de tudo, estão
capturados pela sedução da pulsão escópica, a Schautrieb.

David Lyon (2006/2010), da Queen’s University (Canadá), indica em suas


análises que vivemos em um mundo no qual cada vez mais o ‘olhar voyeur’ tem se
tornado central, assumindo várias formas e cada uma de suas formas ajuda a questionar
exatamente a questão da esfera ‘privada’ justamente quando ela é ‘invadida’ a todo
tempo. A discussão sobre este assunto tem tomado a sociedade contemporânea e ganhou
ainda mais elementos a partir das revelações sobre espionagem feitas inicialmente por
Assange e que continuam sendo delatadas. Claro, este é um assunto político de suma
importância ser amplamente debatido por todas suas implicações. No entanto, quando
pensamos o ‘olhar voyeur’ no FB, por exemplo, será que podemos pensar em termos de
‘invasão’?

Se o usuário aceita os ‘termos e condições’ – não necessariamente tendo lido


qualquer um dos itens –; se é possível configurar todas as suas preferências, limitando
aquilo que cada ‘amigo’ pode ver e acessar em seu perfil; se as escolhas de postagens,
daquilo que irá compartilhar são decisões de cada um, então, não se trata de invasão,
mas de outra coisa. Esse é um dos pontos que nos convida a esta tese, nisso que convoca
o sujeito a partir de algo que é de sua estrutura, que está no para-além do que se tem
tentado justificar sobre os ‘modos subjetivos’ da contemporaneidade, sem levar em
conta que não se pode pensar absolutamente que os sujeitos que navegam nas redes
sociais não sejam atravessados por nada além de uma parceria entre imaginário e
capitalismo. Entretanto, não podemos deixar de marcar que no mundo contemporâneo a
‘escolha’ quase sempre se dá de posições dadas, “ou seja, a seleção, ou mesmo
construção, de possibilidades identitárias diferentes dentro de um sistema de relações e
regulações” (Ramos, 2009, p.52). Como discutido em capítulos anteriores, a ideologia
nos faz crer que estamos escolhendo alguma coisa, quando na verdade não é isso que
ocorre.
[138]

Como já destacamos, foi Freud quem apresentou ‘o olho’ enquanto fonte de


prazer, mas Lacan toma esta condição de modo mais amplo desde o Seminário 10: A
angústia (1962-1963). No entanto, ele justamente o faz a partir das construções de
Freud a respeito do circuito do voyeur e do exibicionista, indicando o olhar como
objeto. É nesse momento também que Lacan designa o objeto a – o objeto dos objetos –
, aproximando-o de sua função de causa de desejo e, por conseguinte, de causa da
angústia. Aqui, Lacan toma o objeto a enquanto o que resta da ordem significante, que
permanece sempre perdido, ao mesmo tempo em que afeta o sujeito como algo que é
parte de si:

É essa parte de nós que é aprisionada na máquina e fica irrecuperável


para sempre. Objeto perdido nos diferentes níveis da experiência
corporal em que se produz seu corte, é ela que constitui o suporte, o
substrato autêntico, de toda e qualquer função de causa. (Lacan, 1962-
1963/2005, p.237)

Neste sentido, ao articular desejo e objeto, Lacan declina o desejo “de acordo
com os objetos entendidos como pedaços do corpo” (Soler, 2012, p.111): desejo oral,
desejo anal, desejo fálico e inclui o olhar e a voz. Acrescentando que essa parte corporal
é “essencialmente e por função, parcial” (Lacan, 1962-1963/2005, p.237) e que
enquanto objeto de desejo só os somos como corpo. O que significa que o desejo é
sempre desejo do corpo, desejo do corpo do Outro.

Lacan nos diz que o ‘objeto’ não se associa a objetividade, mas à objetalidade.
Essa distinção marca a objetividade enquanto um correlato de uma razão pura que se
traduz, em última instância, ao formalismo lógico e a objetalidade enquanto um
correlato de um pathos de corte. Soler nos indica que o pathos de corte é o substrato da
causa do desejo, ou seja, é um modo de dizer que para desejar é preciso da falta. Neste
sentido, “o que falta devido ao corte, é um pedaço do corpo. O que produz o corte (...) é
o significante” (Soler, 2012, p.113). É por isso que desejo é desejo de corpo e que os
‘objetos’ da pulsão, na proposta lacaniana, se ligam diretamente a uma parte desse
corpo: boca, ânus, falo, olho ou voz. Além disso, o objeto a enquanto resto deve ser
entendido enquanto aquilo “que sobrevive à provação da divisão do campo do Outro
[139]

pela presença do sujeito” (Lacan, 1962-1963/2005, p.243), tomado “não somente como
tronco cortado, mas como cepo de onde jorra a vida. O resto não é apenas algo perdido,
é também o que jorra a partir do perdido” (Soler, 2012, p.117).

A partir das imagens de Buda, Lacan (1962-1963) introduz a questão do olhar,


ampliando precisamente a questão do desejo escópico que evocou Freud e afirmando
que o campo escópico é um ‘novo’ campo da relação com o desejo. Neste sentido,
convém nos atentarmos que se a pulsão escópica assume um lugar de prestígio na
contemporaneidade e, como propomos, na configuração e articulação do FB, estamos
aqui também afirmando que existe algo do desejo implicado nesse modo de
engajamento dos sujeitos e, se estamos falando de desejo, nos encontramos além da
trama imaginária:

Esse componente de fascínio na função do olhar, no qual toda


substância subjetiva parece perder-se, ser absorvida, sair do mundo, é
enigmático em si mesmo. No entanto, ele é o ponto de irradiação que
nos permite questionar o que a função do desejo nos revela no campo
visual. (Lacan, 1962-1963/2005, p.264)

A imagem de Buda reflete a cisão entre olho e olhar, entre o visível e invisível
do campo escópico, justamente apontando para o olhar enquanto objeto de gozo, não
mais podendo ser confundido com sua função visual. O que se destaca é exatamente a
inversão da relação entre sujeito e objeto quando se pensa no olhar, uma vez que o olhar
está do lado do objeto – é o objeto que olha –, justamente enquanto ponto cego do
campo do visível. As pálpebras de Buda estão baixadas e preservando o sujeito da
fascinação do olhar ao mesmo tempo em que o indica. É por isso que Lacan afirma que
Buda está no campo do visível, mas está voltado para o invisível e tenta-nos poupar
disso. A imagem budista, portanto, “toma a seu encargo o ponto de angústia e suspende,
anula, aparentemente, o mistério da castração” (Lacan, 1962-1963/2005, p.265).

Desse modo, podemos fazer uma analogia com o campo visual que se configura
no FB, primeiramente naquilo que ele tem de ‘visível’. O usuário da rede social é
capturado pelo campo do visível através das imagens dos outros que continuamente se
[140]

atualizam e, ao mesmo tempo, o sujeito se coloca – dar-se a ver – para os outros a partir
da imagem que alcançou no campo visível do espelho. Este é um sem fim do campo do
sentido e, portanto, da idealização, no qual o sujeito tem ideia, por exemplo, de que ali
pode se apresentar de acordo com seu ‘eu ideal’, o suporte de onde o sujeito se vê como
visto pelo Outro, que se constitui no estádio do espelho. Aí se localiza novamente a
dimensão narcísica na qual se estendem as pesquisas que mencionamos. E sim, é
também disso que se trata aqui. O espelho no qual o sujeito se vê é o Outro e,
certamente, são as respostas desse Outro – enquanto ideal do eu, que dão a forma do eu
ideal que se pode ver refletida nos ‘perfis’ do ciberespaço. Deste modo, cada um pode
eleger sua representação, dando seu contorno de corpo e assim gozar do sentido. Isso se
dá não só pela exposição de seus autorretratos, do compartilhar de fotografias das ‘férias
incríveis’, dos lugares visitados, do que foi comido ou comprado, mas também através
da exibição de seus pensamentos. E falamos dos banais e também dos mais elaborados.
Ter sua foto ou seu status (provocado pelo próprio FB com a pergunta No que você está
pensando?) ‘curtidos’ ou comentados se configura enquanto uma aprovação dos
semelhantes, que sabemos ser uma demanda estrutural para o fortalecimento de
construções fantasiosas e, por conseguinte, para o próprio eu.

A troca de informações – brilhantemente expandida e possibilitada pela internet


– também vigora no FB, mas não podemos ser ingênuos e tão sonhadores ao ponto de
acreditarmos que a grande maioria dos milhões de seus usuários estejam conectados
entre si para esse tipo de permuta. A ‘inteligência coletiva’, proposta por Lévy, ainda
nos parece uma ideia utópica, mesmo quando vemos as articulações e possibilidades
que tomam a rede e depois as ruas. Além disso, nos parece impossível uma dimensão de
totalidade num ambiente de intenso fluxo de diferenças (ou em qualquer outro
ambiente). Se você é cadastrado no FB pode facilmente perceber que existem
características próprias de compartilhamentos em cada ‘rede social’ ao qual se está
vinculado – essas ‘micro-redes’ as quais nos referimos anteriormente. Em última
instância, dentro do possível e a partir do desejo de cada um em fazê-lo, o FB marca
diferenças ao permitir essa simbolização. É bastante provável que alguns laços, desses
tão bem-estimados pelos mais saudosistas por serem off-line e que se estendem no
online, foram ou serão colocados à prova com a paradoxal ‘clareza’ com que as pessoas
se apresentam no FB. Muitas vezes, as trocas que fazemos nos nossos nichos,
especialmente vinculados por identificações, limitam e delineiam os laços, isto é, nos
[141]

expomos de maneira específica de acordo com a rede na qual circulamos, justamente


por essa imagem carregada de fantasia. Quando as relações passam para essa rede maior
que agrega todas as demais, a exposição das pessoas – daquilo que pensam, ouvem,
sentem – é automaticamente maior e, então, o que há é um excesso, uma radicalização
de ‘ver’ e ‘saber’ do outro. Há quem afirme que isso seja um ponto negativo das redes
sociais. Marcondes Filho (2012), por exemplo, defende que:

(...) na experiência presencial, a figura do segredo consegue viabilizar


a saída do meu casulo e a experiência do diferente, contactando-me
com algo que mexe comigo pela sua estranheza e diferença; já nas
transmissões eletrônicas eu só consigo visibilidade expondo-me,
apelando para formas extremas de atração do outro, tornando-me o
stripteaser da minha vida e da minha mente, radicalizando a
exposição, entregando tudo. (Marcondes Filho, 2012, p.158)

A visibilidade pode se configurar enquanto um valor social se pensarmos, por


exemplo, na contabilidade das ‘curtidas’ e ‘compartilhamentos’ do que se posta no FB.
É o sujeito se colocando enquanto objeto do olhar do outro numa busca por algo que
não que o ratifique enquanto tal, mas, justamente que vele o sujeito. Aqui está,
novamente, um ponto que se articula com a estratégia da fantasia, no sentido de mediar
a relação do sujeito barrado com o real. O olho, nos afirma Lacan, organiza o mundo
como espaço. Isto é, ele reflete aquilo que é reflexo no espelho e “a partir do momento
em que existem o olho e um espelho, produz-se um desdobramento infinito de imagens
entre-refletidas” (Lacan, 1962-1963/2005, p.246). Daí, a dinâmica entre os sujeitos
humanos que se utilizam do FB ter acentuadamente esse caráter do jogo de espelho. O
que, insistentemente, deixa algo fora desta cena.

Assim sendo, a nossa primeira ideia é pensarmos na posição do sujeito diante do


fascínio exercido por se ver no espelho enquanto um alienado diante do objeto, que crê
na sua potência enquanto um photoshoper de sua vida, podendo editar e filtrar seu
mundo. O que significa, em última instância, que esta é propriamente uma estratégia
similar a da fantasia se a pensamos enquanto aquilo que mediatiza o encontro do sujeito
com o real – como metaforiza a obra A Condição Humana, de Renè Magritte (1935):
[142]

Figura 21 - A Condição Humana, Renè Magritte, 1935

O que, em tese, não é algo que possa ser ‘criticado’ enquanto um mecanismo do
FB, pois é algo da estrutura do sujeito que é maximizado pelo dispositivo. Não há uma
mudança estrutural, mas uma situação contingente que convoca o privilégio desta
modalidade de gozo. Neste sentido, o FB se configura enquanto um espaço onde é
possível se ver no espelho – a construção que colocamos em seguida, extraída de um
blog da internet30, descreve essas possibilidades de ‘edições’ do eu:

No Facebook todo mundo é legal

é descolado

30
http://diasdepoesias.wordpress.com/2013/03/15/no-facebook/
[143]

curte pra caramba

é inteligente

faz associações engraçadas…

No Facebook todo mundo é engajado

faz protestos

contesta os serviços públicos

denuncia as injustiças

apontam os maus tratos contra animais

No Facebook todos mostram o melhor perfil

as fotos são muito bonitinhas

mostrando os dentes, de frente, de lado, de quadril…

criança, avô, tia, irmão, sobrinha

as imagens das viagens sempre são maravilhosas

tanto faz se é para Nova Iorque ou para Caldas Novas

No Facebook todo mundo é carinhoso

são milhões de “bjs”

milhares de “:)”

Inúmeros “s2″

um sem número de cutucadas

as bajulações são escancaradas

e tudo é compartilhado

(...)

(Edvan Moura, 2013)


[144]

Se por um lado, temos este campo do visível, absolutamente claro nas


articulações do FB, será que podemos pensar que o invisível também está aí? Ou de que
modo podemos pensar a dimensão do invisível nesta montagem entre sujeito e rede
social? Destacamos que visível e invisível se articulam de acordo com a topologia
borromeana, desenvolvida por Lacan no Seminário 22, R.S.I (1974-1975), sendo:

O registro simbólico age como barreira entre o imaginário e o real ao


mesmo tempo que os articula. O registro do imaginário é o campo do
visível, onde se encontra o mundo dos objetos perceptíveis e das
imagens que segue a tópica especular. É onde reina o eu, mestre da
consciência, do corporal e da extensão (no sentido cartesiano), que, no
entanto, não governa – pois quem comenda é o simbólico com sua
lógica significante. O real é o registro pulsional, da causalidade,
espaço que Lacan apreendeu com a topologia, invisível aos olhos
humanos, em que o olhar faz de todos (os que vêem e os que não
vêem) seres vistos, mergulhados na visão. A estruturação simbólica,
que separa o imaginário do real, se reduz à relação do sujeito com o
significante, presente em todo fenômeno visual. (Quinet, 2002/2004,
p.41-2)

Como anuncia Soler (2012), temos uma tendência em opor o especular – isso
que é do campo do imaginário, tomado pelo narcisismo – ao registro do desejo.
Entretanto, a psicanálise deve ser pensada enquanto uma prática que merece o nome de
erotologia (Lacan, 1962-1963/2005, p.12) quando tenta responder à questão do desejo,
nesse um por um. O que está evidenciado na topologia do nó borromeano (distante do
seminário que estamos tratando, mas pertinente para essa discussão) é justamente a
intrínseca relação entre os campos imaginário, simbólico e real, sem que estes sejam
possíveis senão enodados. Algo similar a isso pode já ser lido nesse momento do
estudo lacaniano, pois vemos que a todo tempo – e mesmo sem intenção – Lacan tenta,
com os recursos cabíveis do momento, articular os três registros. Acreditamos que isso
também se confirma em Soler quando ela coloca que a erotologia começa no especular e
acrescenta que há um discurso na própria psicanálise que sustenta que o especular se
despreze em função do registro simbólico: “Lacan é um pouco culpado por essa
[145]

degradação do imaginário, mas o especular é já uma erotologia para Lacan” (Soler,


2012, p.27). Isto é, há evidências do desejo no registro imaginário. O retorno lacaniano
no Seminário 10 ao esquema do buquê invertido, onde redefine e articula (-φ) e o objeto
a, nos dá algum ideia de como isso se articula:

Figura 22 - Esquema simplificado do buquê invertido

Aqui temos: i(a) enquanto a imagem real ou imagem de corpo, (-φ) – que Lacan
aborda a partir da libido e não da imagem –, o espelho do Outro (A) – enquanto aquele
olha e valida as imagens narcísicas, sustentando, como destaca Soler, que o acesso a
própria imagem não passa somente pela imagem real, mas também pelo espelho do
Outro, que aí sim irá produzir no espelho plano a imagem virtual de i(a). E, ainda, tem-
se a que não aparece na imagem virtual. Para Soler, é justamente aí que se localiza o
equívoco do especular, pois a não está remetido à forma e, portanto, a relação especular
não é uma relação a uma forma. O especular se refere à uma forma libidinizada:

Quando Lacan introduz o especular, ele introduz a forma, a imagem


da forma do corpo. Muito bem, mas isto deixa um pouco mascarado
aquilo que é investido nesta forma que não é da ordem da forma, mas
da ordem do investimento libidinal que dá a esta imagem seu peso e
sua importância para o sujeito. (Soler, 2012, p.28)

Assim, o que temos é que em i(a) está não só a forma, enquanto imagem,
mas também o afeto, aquilo que pode ser entendido como uma quota de libido investida
[146]

na forma, onde temos: i (imagem) + a. Não se trata de uma imagem com investimento
libidinal, o que é investimento libidinal aqui é “esta forma que nos interessa, cativa,
atrai, ocupa, deixa com raiva, excita... (...)” (ibid., p.29). O a, oculto na imagem virtual,
é ‘suporte de desejo da fantasia’ e, por isso mesmo, não é da ordem do visível.

Lacan ainda acrescenta que à esquerda vemos o a próximo demais para ser
visto por S, mas que se configura como o initium do desejo e coloca i’(a) em lugar de
prestígio. O a, na sua não-visibilidade, engana o sujeito. O desejo está velado:

(...) quanto mais o homem se aproxima, cerca e afaga o que acredita


ser o objeto de seu desejo, mais é, na verdade, afastado, desviado dele.
Tudo que ele faz nesse caminho para se aproximar disso dá sempre
mais corpo ao que, no objeto desse desejo, representa a imagem
especular. Quanto mais ele segue, mais quer, no objeto de seu desejo,
preservar, manter e proteger o lado intacto do vaso primordial que é a
imagem especular. Quanto mais envereda por esse caminho, que
muitas vezes é impropriamente chamado de via da perfeição da
relação de objeto, mais ele é enganado. (Lacan, 1962-1963/2005, p.
51)

Pois, voltando ao sujeito em sua relação com o visível no FB, podemos


pensar que a relação com as imagens – suas e dos outros – apesar de investidas de libido
em sua forma, como argumentamos, se configure enquanto um modo de ‘velar’ o desejo
ou o invisível e, neste caso, em ultima instância, o próprio sujeito. Isso faz sentido se
também articulamos esta formulação à própria dinâmica do discurso capitalista, que
facilita o acesso ao mais-de-gozar, potencializando a relação entre os sujeitos humanos
e os gadgets – enquanto objetos de gozo –, na medida em que os bens de consumo – e
aqui incluímos o FB enquanto um ‘bem’ – sugere um sem-fim de outros objetos que se
colocam enquanto hipóteses de satisfação, ao visarem justamente ocupar o lugar do
objeto (a), sempre faltoso. Assim, a oferta de imagens, de informações, de
conhecimento e etc., isto é, esses fragmentos de objetos que vem do outro conectado ao
sujeito no FB, podem ser tomados como possibilidade de ‘objetos de gozo’ guiados,
sumariamente, por esse jogo sedutor da pulsão escópica, a Schautrieb, que implica o
[147]

sujeito capturado por sua imagem no espelho e o escamoteamento de a, reduzindo-o,


assim, portanto, ao que Lacan denomina de ‘ponto zero’. Sendo, no campo de visão,
“uma espécie de apaziguamento, traduzido desde sempre pelo termo contemplação”
(Lacan, 1962-1963/2005, p.264), onde há “uma suspensão do dilaceramento do desejo –
uma suspensão frágil, por certo, tão frágil quanto uma cortina sempre pronta a se reabrir
para desmascarar o mistério que o oculta” (idem). Na satisfação escópica o ‘ver’
camufla o ‘ser olhado’, ou seja, o que é do sujeito apareceria na dimensão que ele é
olhado e isso só é possível a partir da ideia do olhar do outro.

Deste modo, ao não ser possível ver a, a falta também não é possível no
registro da visão, na medida em que não é possível ver o que falta à imagem. É nesse
sentido que a imagem traz sempre um aspecto de ‘júbilo’, de satisfação, já que está
‘cega’ para a castração. Como coloca Soler (2012), isso faz com que “o desejo escópico
em jogo na contemplação, na relação estética com o mundo, tente e consiga, em parte,
uma nulificação do objeto a” (p.124). Ou, como elabora Quinet: “O encobrimento
promovido pela imagem vela também que o objeto que aí se apresenta como causa de
jubilação é justamente o olhar, causa da Schaulust, o gozo do especular” (2002/2004, p.
133). Também nessa direção, a fantasia se assemelha ao campo do visível ao se articular
com o objeto, justamente trazendo essa ideia de uma completude que, no entanto, está
sempre na iminência de se ‘descortinar’ pois o objeto é reduzido ao ‘ponto zero’, mas
encontra-se lá enquanto causa de desejo:

O prazer de ver uma pintura, uma paisagem, um corpo, um objeto, ou


a visão da ‘brancura deslumbrante’ do corpo de Mme.K para Dora, e
sua atitude de contemplação e admiração diante do quadro da Madona
Sistina, de Rafael, na capela de Dresden, todos estes são exemplos de
satisfação com conotação de prazer da pulsão escópica. Em tudo que é
prazer sentido pela vista, encontra-se o olhar enquanto objeto a pela
atividade da pulsão escópica. (Quinet, 2002/2004, p.86)

Estaríamos diante de um tempo em que o sujeito encontra-se absolutamente seduzido


por esta modalidade de gozo em razão dela justamente velar a castração?
[148]

Quando se aferra ao aponto de onde olha, é ele, o sujeito, que está


numa certa mestria. Mas, na verdade, enquanto o sujeito olha
fixamente o objeto e se crê na mestria disso, ali se exerce uma
atividade pulsional, na qual o sujeito aparece apenas nessa satisfação
(...). (Costa-Moura e Costa-Moura, 2011, s/p.)

Por isso o desejo cada vez mais em se estar conectado aos gadgets que pressupõe a
mestria/atividade do sujeito – smartphones, Ipad, Ipod, computadores? Seria uma
‘parceria’ sustentada pela articulação entre a estrutura do sujeito, no que diz respeito às
peculiaridades da pulsão escópica, e o discurso do capitalista?

O discurso do capitalista não se apropriou de algo estrutural do sujeito, mas


o sujeito foi se engendrando naquilo que o discurso do capitalista oferece enquanto
facilitador de gozo. E sim, estar diante de um sem fim de proliferação de imagens em
tempo real é um modo de obter quotas de satisfação. É o que estamos tentando articular
aqui. E isso não passa despercebido nem pela ciência nem pelos conectados. As
questões que trouxemos nos capítulos anteriores que questionavam a sociedade em rede
e os ‘sujeitos’, independente de suas argumentações teóricas e objetos de estudo,
constatam que existe ‘alguma coisa’ que se articula e promove uma série de fatores que
corroboram para que se possa pensar que estamos mais ‘narcísicos’, ‘menos sociais’,
que os laços são mais ‘liquidos’, mais fragilizados, entre tantas outras conotações que
foram expostas e discutidas. Do mesmo modo, as pesquisas que trouxemos no início
deste item, talvez por caminhos mais quantitativos, também estão delatando que existe
uma relação ‘especial’ na sociedade contemporânea entre as pessoas e os objetos que
citamos que absolutamente dominam nosso tempo, além de possibilitar que se conectem
uns aos outros.

Do lado dos usuários de redes sociais, especialmente no caso do FB, é com


bastante frequência que se podem ver as pessoas se queixando das horas que passam
diante do aplicativo ou escreverem sobre aquilo que deveriam estar fazendo e não estão,
pois preferem estar nas redes sociais. É como se elas dissessem para si: “aqui está algo
que me fascina de um modo que eu não consigo ter controle” ou “isso me gera
satisfação”. Outras, quando estão demasiadamente ocupadas com os afazeres da vida do
trabalho, optam por se desconectar do FB, ‘desativar’ a sua conta, tentando colocar um
[149]

limite no que lhe parece ser tão imperativo, sedutor e demandante: “eu desativei minha
conta durante esta semana, pois tenho muito trabalho e recebo muitas informações e
mensagens por lá”. Poderíamos trazer inúmeros fragmentos destes acontecimentos, mas
não temos como objetivo quantificar ou analisar as construções. O que nos interessa de
fato é justamente apontarmos onde e por qual razão se é capturado, de acordo com nossa
perspectiva de constituição e estruturação de sujeito. Sim, trata-se de uma leitura
específica, na qual elegemos um objeto e também a via pela qual interpretamos ser o
acesso, mas certamente existem outros caminhos na própria psicanálise que poderiam
contribuir com a discussão, como nos apontaram especialmente os trabalhos de Doris
Rinaldi e Carmem Gallano, sobre os quais nos dedicamos no capítulo anterior.

Ainda, não levantamos aqui que seja ‘culpa’ ou ‘consequência’ do uso de


gadgets ou do FB, tampouco que esta seja a única razão que faz com que os sujeitos se
interessem pela tecnologia. O que gostaríamos de evidenciar é justamente que essas
tecnologias e aplicativos funcionam enquanto facilitadores de gozo e, no caso
específico, estamos considerando o gozo escópico pelas razões que levantamos. Nosso
objetivo, além disso, é ratificar que todas as transformações culturais que vemos ocorrer
e que de fato ecoam em diversas esferas da vida, isto é, a incidência do próprio
capitalismo tardio e seus desdobramentos no campo do Outro, não fazem emergir um
‘novo sujeito’, pois não se pode dizer de um ponto de ruptura. O que vemos, ao
contrário, é algo da estrutura que se articula aos novos aparatos facilitadores.

No Seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964),


Lacan retorna a questão do olhar como objeto a e tensiona a função do olho e de olhar,
partindo das elaborações de Maurice Merleau-Ponty em O Visível e o Invisível (1964),
no que ele ultrapassa sobre a questão da forma. Em Fenomenologia da Percepção
(1945) Merleau-Ponty se remete à regulação da forma, enquanto em Visível e Invisível
ele introduz que há uma preexistência de um olhar que, no entendimento de Lacan não
seria possível, uma vez que, como sugere a leitura de Quinet, “não há nenhum tempo do
fenômeno perceptivo que seria anterior à sua apreensão na rede de linguagem. Pois todo
fenômeno é estruturado pela linguagem, a qual comporta ‘todos os poderes da reflexão
pelos quais se confundem sujeito e consciência’, diz Lacan (...)” (2002/2004, p.44).

Ainda, vemos neste mesmo seminário e, entendemos que para marcar uma
diferença à concepção de Merleau-Ponty, que Lacan prefere ‘olho’ e ‘olhar’ à visível e
[150]

invisível, que utilizava no seminário anterior: “O olho e o olhar, esta é para nós a
esquize na qual se manifesta a pulsão no nível escópico” (Lacan, 1964/1985, p.74).
Sendo olhar aquilo que ‘escorrega, passa, se transmite’ diante das figuras de
representação.

Assim, ao olhar é estabelecida a sua função de mancha, enquanto aquilo que


comanda o campo escópico e que, ao mesmo tempo, escapa à captura, isto é, há sempre
algo que se encontra elidido:

(...) somos seres olhados no espetáculo do mundo. O que nos faz


consciência nos institui, do mesmo golpe, como speculum mundi. Não
haverá satisfação em estar sob esse olhar (...) que nos discerne e que,
de saída, faz de nós seus olhados, mas sem que isso se mostre?
(Lacan, 1964/1985, p.76)

Lacan coloca que o mundo é onivoyeur, numa perspectiva platônica de ser absoluto com
a qualidade onividente – é saber que se é olhado sem que isso se mostre. No entanto,
essa característica do mundo não o faz exibicionista (no sentido de provocar o olhar),
pois ao provocá-lo evoca-se um sentimento de estranheza. Ou seja, se o mundo passa a
ser exibicionista, ele mostra alguma Outra coisa, algo que vem do Outro, que não
corresponde à imagem do espelho. É possível pensarmos que alguma coisa mancha esta
imagem do espelho, quebra, evidenciando o ‘vazio’ do sujeito. Por isso a estranheza. No
sonho o isso mostra vem antes, diz Lacan, e a posição do sujeito é a de ser aquele que
não vê:

O sujeito não vê onde isso vai dar, ele segue, ele pode até mesmo
oportunamente se destacar, dizer para si mesmo que é um sonho, mas
não poderia em nenhum caso se apreender dentro do sonho à maneira
como, no cogito cartesiano, ele se apreende como pensamento.
(Lacan, 1964/1985, p.76)
[151]

O que fica oculto no campo escópico é aquilo que há de ‘anterior’, que está velado e que
causa enquanto sujeito. O sujeito é olhado pela mancha, por aquilo que faz mancha no
mundo e não pela imagem ou representação. Com o exemplo da ‘latinha’ (lata de
sardinhas que boiava na superfície das ondas na ocasião de uma pescaria), Lacan traz
essa cisão de ver e olhar, indicando que a latinha não vê, mas revela que olha. Isto é,
nesta cena a lata aparece enquanto uma mancha, um corpo estranho que tem relação
com o sujeito e que desvela, ou seja, que denuncia o objeto a no campo escópico. A
inversão encontra-se justamente aí: o sujeito é tirado do seu lugar de mestria, não é mais
ele quem olha, mas sim quem é olhado: a mancha “representa o olhar, ela mancha o
espetáculo narcisista do mundo, desvendando o segredo da imagem” (Quinet,
2002/2004, p. 137) ou, ainda: “o real mortífero da pulsão escópica pode se manifestar
como ruptura na harmonia do mundo especular, que então se decompõe e o espelho
deixa de exercer sua função de véu. Sua presença é incompatível com a manutenção da
imagem narcísica” (ibid., 139). Neste sentido, o estranhamento causado pela instância
do olhar não se relaciona com o eu do sujeito, com a imagem narcísica do estádio do
espelho, mas justamente se contrapõe a isso, no sentido de furar a imagem especular.

Quando o olhar visa o sujeito desvela o real de seu ser, isto é, aquilo que
estava vetado pela imagem, causa uma desorganização no cheio de sentido, nas
identificações simbólicas, nos seus pontos de referência, fazendo com que “o lugar que
o sujeito havia encontrado para si no Outro, seu ‘lar’, seu Heim, se tornará então
Unheim, estranho” (ibid., p.140).

Diante disso, questionamos: é admissível pensar que na dinâmica do FB


exista lugar para o olhar enquanto ponto do qual o objeto visualiza o sujeito? O objeto,
de algum modo, devolve o olhar para o sujeito? Ou estamos diante de um dispositivo
que encarna exclusivamente a função de velar?

Colette Soler (2012) ressalta que o desejo visual é o que melhor mascara a
angústia de castração e também pensamos na relação entre a fantasia e os modelos
visuais, na medida em que se articula ao objeto, fazendo crer em uma totalidade. Se
fizermos uma conexão exatamente com a gestalt, a imagem do espelho, pensando nas
características do FB, será possível pensar que a apreensão por essa modalidade de gozo
na contemporaneidade indica certa tentativa de mascarar a angústia em ‘tempos
angustiantes’ do discurso do capitalista, justamente porque este discurso tenta,
[152]

implacavelmente, fazer semblante de possibilidade ao colocar o sujeito em relação


direta com os objetos?

No discurso do capitalista o outro não é o detentor do saber, como no


discurso do mestre. Aqui, ele está reduzido ao seu lugar de gozo. Quando S1 se
endereça a S2 produz os gadgets (mais-de-gozar) que supostamente satisfazem o saber
que está agora reduzido ao gozo. Diferentemente do discurso do mestre, no discurso do
capitalista é possível ‘acessar’ esse gozo, uma vez que a castração está foracluída e o
sujeito, então, em sua posição de sujeito do gozo. O que entendemos ser uma posição
causadora de angústia, já que há uma oferta inquietante de objetos que fazem semblante
e perseveram em aparecer no lugar do objeto a.

Poderíamos levantar como hipótese que a lógica da captura pela modalidade


de gozo escópica como vemos no FB, por exemplo, faz parte dessa trama do discurso do
capitalista, na medida em que corrobora com o tamponar da falta, mantendo a castração
foracluída, a partir desse excesso de imagens que indiscutivelmente legitimam a relação
especular constituinte do sujeito naquilo que ela tem de alienante em sua relação com o
Outro e com as outras relações invariavelmente regidas pelas identificações imaginárias.
Assim, como o ‘olho’ ou a ‘visão’, o discurso do capitalista oculta a perda de gozo
imanente dos sujeitos inseridos na cultura. Neste sentido, é possível pensarmos que a
dinâmica de uma rede social como o FB também articula essa tentativa de apagar o
sujeito. Mas será que podemos pensar que mesmo nessa lógica há algo que escapa? Ou
seja, o objeto olha para o sujeito?

Žižek (2006a) aponta que os pós-teóricos (numa referência aos críticos


cognitivistas da teoria cinematográfica psicanalítica) condenam o ‘olhar ausente’ (o
terceiro olhar) da psicanálise enquanto uma entidade mítica impossível de se encontrar
na realidade do espectador – numa referência ao cinema. E, com efeito, o olhar pode
realmente ser apreendido enquanto ‘olhar ausente’, justamente porque seu estado é
sempre fantasmático. Ainda, Žižek questiona: “¿Y no descubrimos esta misma
necesidad de la Mirada fantasmática del Outro como garantia del ser del sujeto em la
reciente moda de las páginas ‘-cam’, em las que se hace realidade la lógica de El Show
de Truman(...)?” (2006a, p.98). Žižek coloca como uma ‘necessidade’, mas
perguntamos se isso poderia ser deslocado para certa ‘demanda’ de olhar. Entendemos a
‘garantia de existência do sujeito’ enquanto algo que é causado pelo olhar, no sentido de
[153]

mostrar algo do sujeito, assim sendo, a interrogação de Žižek é cabível se a entendermos


como uma possibilidade de demanda deste olhar do Outro fantasmático, nisso de sua ex-
sistência, isto é, desse seu caráter que se mantém estando de fora.

Žižek ainda traz o filme Janela Indiscreta de Alfred Hitchcock (1954) para
nos falar do que ele descreve como uma inversão da relação entre sujeito e objeto,
fundamental para a concepção da cisão entre olho e olhar. Para relembrar, nesta película
o fotógrafo L.B. Jeffries está com a perna fraturada e por isso precisa ficar confinado a
uma cadeira de rodas dentro de seu apartamento. Sem ter muito que fazer, ele resolve
passar seu tempo ‘vendo’ a vida de seus vizinhos pela sua janela com a ajuda de uma
lente fotográfica. Antes de tudo, a estratégia hitchcockiana, a partir de uma câmera
quase ‘subjetiva’, é de colocar o espectador na cena, provocando o ‘empuxo a ver’ dos
sujeitos. Através da janela conhecemos outros personagens do filme, como um casal
com cachorro, um pianista, uma mulher solitária e um vendedor que Jeffries suspeita ter
matado a esposa. Basicamente, o suspense gira em torno daquilo que o protagonista vê e
como é olhado pelos espectadores, o que leva Žižek a afirmar que o olhar é
protagonista. Estes eventos são tramas triviais, que poderíamos assistir na sociedade e,
certamente, por isso mesmo Hitchcock consegue fisgar o espectador – isto é, por essa
perspectiva de que ali transitam ‘seres humanos’ semelhantes a nós: identificação
imaginária, tal como podemos ver, em analogia, na timeline do FB. Entretanto, se a
‘câmera subjetiva’ faz com que vejamos através dos olhos de Jeff, por outro ela coloca
em cena a questão da estranheza do olhar onipresente, ou seja, a ideia de que estamos
sendo olhados pelo mundo:

Posso me sentir olhado por alguém de quem não vejo nem mesmo os
olhos, e nem mesmo a aparência. Basta que algo me signifique que há
outrem por aí. Esta janela, se está um pouco escuro, e se eu tenho
razões para pensar que há alguém atrás, é, a partir de agora, um olhar.
A partir do momento em que esse olhar existe, já sou algo de
diferente, pelo fato de que me sinto eu mesmo tornar-me um objeto
para o olhar de outrem. Mas, nessa posição, que é recíproca, outrem
também sabe que sou um objeto que se sabe ser visto. (Lacan, 1953-
1954/1986, p.246)
[154]

A fantasia, diz Žižek, não é o que atrai o fascínio, mas é o olhar


imaginado/inexistente que a observa. A cena fanstasmática mais elementar não é uma
cena que exista para ser olhada, mas a ideia de que ‘alguém está olhando para nós’: “no
es ningún sueño, sino de la idea de que ‘somos los objetos del sueño de otro’ ” (2006a,
p.97). E isso é algo que tem seu aspecto fascinante e ao mesmo tempo angustiante
diante desses tantos aparatos que tentam resgatar/enquadrar ou, quem sabe, responder a
isso.

Uma cena freudiana paradigmática também pode ser retomada para que se
possa entender melhor a ‘ausência’: trata-se do Fort-Da, apresentado por Freud no Além
do Princípio do Prazer (1920). No texto, o autor refere-se a uma criança de 18 meses,
que sabemos seu neto, que não chorava quando sua mãe o deixava por algumas horas,
mesmo sendo bastante ligado a ela. A criança tinha um hábito “ocasional e perturbador”
de pegar objetos e atirá-los, emitindo um som (‘o-o-o-ó’) – interpretado por Freud e a
mãe do bebê como fort, que significa ‘ir, partir’ – e de expressão de interesse e
satisfação. O psicanalista compreendeu que se tratava de um jogo que a criança fazia,
usando seus brinquedos para ‘ir embora’ junto a eles. Quando o brinquedo foi um
carretel, Freud observou que ele o jogava repetidas vezes em direção a uma cortina,
onde o brinquedo ‘desaparecia’ e, puxando-o pelo cordão ele reaparecia, sendo recebido
pelo bebê com a interjeição da (ali). Esse jogo é interpretado por Freud como um modo
de simbolizar o ‘desaparecimento e retorno’ do objeto:

Ele se relacionava à grande realização cultural da criança, a renúncia


instintual (isto é, a renúncia a satisfação instintual) que efetuara ao
deixar a mãe ir embora sem protestar. Compensava-se por isso, por
assim dizer, encenando ele próprio o desaparecimento e a volta dos
objetos que se encontravam a seu alcance. (Freud, 1920/2006, p.26)

Lacan (1964/1986) retoma esta passagem freudiana e nos diz que o carretel não
representa a mãe: “o jogo do carretel é a resposta do sujeito àquilo que a ausência da
mãe veio criar na fronteira de seu domínio – a borda de seu berço – isto é, um fosso, em
torno do qual ele nada mais tem a fazer senão o jogo do salto” (p.63). Já a compreensão
de Georges Didi-Huberman (1998/2010), filósofo e historiador de arte francês, marca
[155]

que o olhar está no jogo do carretel: “até o momento em que o que ela vê de repente se
abrirá, atingido por algo que, no fundo – ou do fundo, isto é, desse mesmo fundo de
ausência - , racha a criança ao meio e a olha. (...) puro ataque, pura ferida visual” (p.79).
E, além disso, completa afirmando que “o carretel só é ‘vivo’ e dançante ao figurar a
ausência, e só ‘joga’ ao eternizar o desejo, como um mar demasiado vivo devora o
corpo do afogado, como uma sepultura eterniza a morte para os vivos” (p.82-83). O que
faz sentido se pensarmos que para Lacan o carretel é uma ‘coisinha’ que se destaca do
sujeito, mas que ainda é dele, que ele segura, e com o seu objeto salta as fronteiras desse
domínio que é fenda, dando início a encantação pelos objetos. Pacheco Filho (2010)
sintetiza que:

Da hiância/fenda/fosso em que o sujeito se cria auto-mutilado pelo


buraco originado a partir do que dele se destacou (o objeto causa de
desejo), surge o traçado centrífugo da pulsão, que o impele, ao longo
da vida, na direção dos objetos do mundo. Nunca totalmente
absorvido, mas nunca totalmente à parte deles: ex-sistente! (Pacheco
Filho, 2010, p.38)

Ainda, Pacheco Filho destaca que é aí que se inicia tanto o envolvimento do sujeito com
o mundo, quanto a sua alienação estrutural, em duplo sentido: o desejo enquanto desejo
do Outro e o desejo tendo como causa um objeto, como destacamos no capítulo que nos
dedicamos ao sujeito. Além disso, a repetição, inerente ao circuito pulsional de contorno
do objeto, demanda o novo e o deslizamento metonímico do desejo sustenta a própria
‘encantação’ dos sujeitos pelos objetos, no entanto: “vela o verdadeiro segredo do
lúdico, do jogo, da metáfora que constitui o sujeito e criou a marca que o representa no
simbólico e dele se desprendeu o objeto que o designa no real (...), que constitui a
repetição em si mesma” (ibid., p.39). Com o fato de os objetos pulsionais não serem
suficientes para a hiância, a repetição insiste na renovação e tudo que nela varia é
alienação de seu sentido. Para Pacheco Filho, a repetição incessante “fornece a base
estrutural e transistórica sobre a qual podem se assentar as diferentes ordenações sociais
do gozo, dispostas pela multiplicidade histórica de configurações dos discursos, como
formas do laço social” (idem).
[156]

E essa pode ser a leitura que condensa o que articulamos ao pensarmos no


sujeito capturado pelo gozo escópico na condição da sociedade contemporânea que
tentamos abordar aqui. Nesse sentido, a articulação dos laços que percebemos no FB,
deriva-se de uma conjuntura que se alinha à estrutura e também à contingência
histórica/social, atualizando o que já estava em Freud: um não se dissocia de outro e,
além, um incide sobre outro. Além disso, acreditamos que a dinâmica escópica do
objeto analisado, naquilo que se mostra enquanto ‘veladora’ da falta, encaixa-se
sobremaneira no laço que se ‘é possível’ no capitalismo tardio. Como exposto no
matema do discurso do capitalista, que abordamos no capítulo anterior, ele também visa
tamponar a falta, pois faz semblante de que é capaz de realizar isso. Neste sentido, as
relações dos sujeitos numa rede social como o FB – com o próprio objeto e também
com os outros – podem vir a se associarem a esta série metonímica convocada por
aquilo que é pulsional do sujeito. É pensando deste modo, que não podemos afirmar que
a trama cibernética se dê apenas na dimensão do campo imaginário. Por detrás desse
quadro há o que ‘resta’ e, além disso, a pulsão impulsiona desde sempre o sujeito –
causado pela sua falta – que se alia magistralmente a esta quota de satisfação dessa
convocação de gozo escópico que o FB, por exemplo, oferece. Gozo fácil, rápido,
disponível o tempo todo, em quase todos os lugares do mundo. Mas e a mancha?

3. Recorte: Disconnect

O filme Disconnect (Rublin, 2012) traz narrativas que se baseiam em fatos


reais e envolvem questões relativas ao uso da tecnologia do FB e outras redes sociais. A
temática do filme discute, de modo geral, os crimes cibernéticos – como os sites
eróticos que exploram menores, o cyberbullying e roubo de dados. No entanto,
acreditamos que ao longo de seu percurso podemos também perceber fragmentos que
ilustram a discussão paradoxal que permeia o dispositivo, além de indicativos de como
o olhar pode se apresentar a partir deste aparato. Se por um lado é possível evidenciar as
[157]

armadilhas nas quais se podem cair nas redes sociais, por outro o filme coloca em xeque
a ideia de que aquilo que vai para a rede se dissocia da vida offline.

Três dramas o circundam: uma jornalista que se envolve afetivamente com


uma fonte que denuncia uma rede aliciadora de menores para site eróticos; um casal
vitima de fraudes em seus cartões de crédito supostamente a partir de trocas de
mensagens em um site de salas virtuais de um grupo de ‘apoio emocional’ e dois
adolescentes que praticam cyberbullying, acarretando em uma tentativa de suicídio do
adolescente vítima. Sim, é também possível apreendermos a tentativa de uma crítica à
sociedade contemporânea excessivamente conectada e suas ‘consequente’ falha na
comunicabilidade ou à interferência das novas tecnologias nas ‘relações presenciais’,
mas definitivamente não é isso que nos interessa aqui. Em nosso entender, nenhum dos
conflitos que são apresentados se inicia por causa de gadgets. Eles já estavam
engendrados nas relações compostas.

Destacamos duas das histórias. Em uma delas o casal (Cindy e Derek) perde
seu filho e desde então vivem problemas conjugais. Eles não falam entre si sobre sua
perda e se distanciam enquanto casal. Ele não a olhava, nem a tocava. O marido, infeliz
em seu trabalho, está sempre viajando e se diverte fazendo apostas em salas virtuais de
poker. A esposa, por sua vez, passa a frequentar salas de bate papo em busca de um
apoio emocional na tentativa de poder compartilhar sobre sua angústia e acaba se
envolvendo emocionalmente com um homem que igualmente teve uma perda. No
entanto, o casal têm seus cartões e identidades roubados na internet e,
consequentemente, suas contas bancárias são invadidas e ‘limpas’. Eles contratam um
detetive especializado em crimes cibernéticos que acaba revelando aquilo que Cindy e
Derek não sabiam sobre o outro: que ele fazia apostas online e que ela entrava em salas
de bate-papo e estava se envolvendo com alguém. Com a demora para que qualquer
prejuízo fosse reparado judicialmente, o casal decide resolver à sua maneira e segue
atrás do ‘acusado’.

Na segunda história, dois adolescentes ‘descolados’ (Jason e Frye) decidem


fazer um perfil fake no FB para se relacionar com um caricato nerd (Ben): antissocial,
depressivo, adora música e não se relaciona com ninguém, tampouco com sua família.
O pai de Ben, Rich, é um advogado extremamente ocupado com sua carreira, sempre
acompanhado por seu smartphone e quase nada interessado em seus dramas familiares.
[158]

O pai de Jason é viúvo, detetive particular de crimes cibernéticos e aparentemente tenta


proteger seu filho dos perigos online, sempre insistindo para que Jason estude quando
ele aparece nas cenas conectado a qualquer gadget. Jason e Frye criam Jessica Rhony e
iniciam uma sequencia de troca de mensagens com Ben, partindo do elogio de suas
composições, algo valioso para ele. Com a aparente intimidade que se estabelece, Jason
(mesmo se passando por Jessica) parece se identificar com Ben e acaba partilhando
algumas de suas angústias, como a morte de sua mãe e a relação medíocre com o pai.
Mesmo assim, em parceria com Fryer, eles enviam uma suposta fotografia de Jessica
nua e pedem para que Ben faça o mesmo. E ele o faz, escrevendo em seu corpo desnudo
slave of love (escravo do amor). Como consequência, como tantas outras histórias que já
vimos noticiadas, a foto de Ben é rapidamente difundida pelo colégio através das redes
sociais e o adolescente, absolutamente envergonhado com todos os olhares dirigidos a
ele, se enforca. A partir daí, aparecem as questões não ditas das relações entre os pais e
os filhos e é, então, que o pai de Ben finalmente se interessa pelo filho.

No nosso entendimento, em ambas as histórias podemos perceber como a


mancha surge no quadro. Isto é, de que modo o olhar denuncia aquilo que não estava no
campo do visível, embora atuasse. As críticas sobre o filme sempre tendem a indicar
que a tecnologia acaba fazendo com que as pessoas ‘conectadas’ se ‘desconectem’ uma
das outras em suas vidas offline, mas não é desta forma que entendemos o que está
posto. As histórias que trazemos enquanto recorte independem dos aparatos
tecnológicos, mas se transformam por aquilo que eles explicitam e talvez este seja uma
possibilidade de leitura do modo como o objeto revela algo do sujeito. O casal que mal
se comunicava só se ‘(re) conecta’ ao dar-a-ver aquilo que não queriam saber um do
outro, justamente quando se encontram com os silêncios transformados em ‘outra coisa’
via rede social: como por exemplo, na amizade ou nos jogos – por mais caduca que seja
e se transforme a relação.

Algo parecido acontece na segunda trama. As provocações dos dois


adolescentes a Ben via FB retornam a Jason e o divide, causando-lhe um mal-estar na
continuação da farsa e trazendo a tona questões particulares. Jason se identifica com
Ben e estabelecem uma relação através das mensagens que trocam online. Mas, é
quando ocorre a tentativa de suicídio de Ben que, em nosso entender, podemos
apreender que algo acontece. O pai de Ben é convocado, a partir da passagem ao ato do
filho, a se deparar com o olhar, isto é, com esse algo que escorrega e se transmite. Isso
[159]

acontece quando Rich busca nas redes sociais do filho entender o que aconteceu,
encontrando com um ‘desenquadre’ que o revela. A despeito de todas as causas
particulares dessa relação entre pai e filho, Rich se depara com a sua castração, que lhe
coloca diante de seu fracasso como ‘pai’. Rapidamente, Rich trata de tirar a mancha do
quadro e mergulha numa busca frenética por uma razão ou por um ‘culpado’ do ato do
filho, isto é, diante de sua angústia, Rich atua no sentido de tentar novamente camuflar
qualquer indicativo de sua falta, de algo que se volte ou coloque questões para ele. E
assim ele age e o faz, numa tentativa de escamotear qualquer indicativo que o tire de seu
lugar fantasiado.

Em Disconnect, o ‘desconectar’ pode então ser entendido não enquanto um


forçoso ‘sair das redes’ e se dedicar ‘mais e melhor’ às relações ‘reais’, como sugerem
os críticos, mas como algo que aparece enquanto um furo, isto é, enquanto fora da
ordem que questiona e movimenta as conexões estabelecidas e enrijecidas que estas
pessoas estabeleceram entre si. E esta pode ser uma dimensão do olhar, naquilo que ele
se apresenta enquanto externo ao campo do visível e, portanto, da esfera
simbólico/imaginária.

4. A Sociedade Escópica no contexto de rede

Diante de tantas frentes que se ocuparam em dar um nome a sociedade


contemporânea pensamos que nosso trajeto pode ser melhor esclarecido ao revisitarmos
a proposta de Antônio Quinet (2002/2004), que a nomeia de ‘Sociedade Escópica’,
atrelando sua elaboração aos conceitos de ‘Sociedade do Espetáculo’ e ‘Sociedade
Disciplinar’, de Guy Debord e Michel Foucault, respectivamente. No entanto,
procuramos desmembrar sua articulação por acreditarmos que desse modo sua
construção possa contribuir ainda mais para nosso debate. Da sociedade escópica nos
interessa muito de onde parte Quinet e afirma que ela é comandada pelo olhar:
[160]

É o olhar, excluído da simbolização efetuada pela cultura sobre a


natureza, que retorna sobre a civilização, trazendo o gozo do
espetáculo e o imperativo do supereu de um empuxo-a-gozar
escópico: um comando de dar-a-ver, seja mostrar-se inocente, seja
tornar-se visível. De toda forma, na sociedade escópica, para existir é
preciso ser visto pelo Outro. E assim se instaura a renovação do velho
cogito religioso: o Outro me vê, logo eu existo. (Quinet, 2002/2004,
p.280)

Quinet diz, especialmente a partir de suas considerações sobre os reality shows, que a
sociedade escópica parece ter se reduzido ao ser-visto. Uma espécie de compilação
entre a visão e os avanços científicos, no que diz respeito às novas parafernálias que
capturam e reproduzem visões. A visão pode então ser considerada um sentido
privilegiado da sociedade contemporânea e o olhar retornaria ao mundo sobre o
imperativo do Veja! Ou Mostre-se! – quando se trata de não poder vê-lo.

Consideramos que aludirmos a Debord (1967/2003) em sua crítica à


‘Sociedade do Espetáculo’ seja inevitável, tamanha lucidez e atualidade de sua obra.
Nela ele afirma que a vida nas sociedades modernas se anuncia enquanto uma
acumulação de espetáculos, isto é, de representação, numa espécie de instrumento de
unificação social, mas que pode ser compreendida enquanto a linguagem de uma
separação generalizada. O espetáculo, portanto, não se refere a um conjunto de imagens,
mas a relação social entre as pessoas que é mediatizada por imagens, desenhando suas
diferenças, inclusive sociais.

A obra de Debord é exaustivamente difundida e debatida desde sua


publicação e destacamos que sua crítica é direcionada ao modo de produção capitalista.
Para o autor, o espetáculo afirma as escolhas previamente proferidas pela produção que
são retificadas pelo consumo e, neste sentido, as pessoas são tragadas passivamente
pelos raios de sol do espetáculo que asseguram que aquilo que é bom ‘aparece’ ou que
aquilo que aparece é ‘bom’. Sem julgarmos ser necessário nos aprofundarmos,
confirmamos que Debord se utiliza de algumas categorias do marxismo, realizando um
deslizamento metonímico para dizer de fases do capitalismo, passando do ser para ter e
[161]

depois para ‘parecer’, enfocando a alienação histórica e também o fetichismo de


mercadorias.

Esta lógica se associa especialmente bem – mesmo sendo anterior – às


novas tecnologias, no que diz respeito à apropriação da ‘coesa’ utilização dos
dispositivos para esse tempo de sociedade especular, que tem a visão enquanto sua
principal produção. Se a crítica de Debord se insere num contexto no qual ele enfatiza a
passividade (e alienação) dos sujeitos humanos diante do espetáculo, será que isso se
modifica na atualidade, quando ‘idealmente’ acreditamos que não se recebe
passivamente (quase) todas as informações – em um contraponto entre os self media e
os mass media?

Aí nos parece estar mais uma evidencia da ‘armadilha’ do discurso do


capitalista, quando se acredita que se é senhor, mas se está alienado de sua própria
liberdade. Se pensarmos nos aplicativos da internet, por exemplo, podemos encontrar no
próprio Facebook como isso se dá: escreva o que está pensando, publique fotos, faça
álbuns, compartilhe vídeos, compartilhe ideias, curta páginas, curta comentários e
publicações de seus ‘amigos’, etc.. Então, cabe à pessoa seguir as regras para entrar
nesse jogo de cartas dadas e marcadas. É só se enquadrar ao espetáculo para ‘aparecer’:

Fonte: http://www.cafecomsociologia.com/
[162]

Assim, a sociedade do espetáculo pode ser compreendida enquanto uma máquina que
vela a relação entre as demandas do capitalismo para sustentá-lo e as pessoas que se
tornam, em certo sentido, reféns da maquinaria que ele dispõe. O sujeito, novamente,
não sabe o que é da ordem do seu desejo, daquilo que lhe é singular. Ele encontra-se
imerso no discurso que lhe diz quais são as suas possibilidades de ‘querer’, ‘ter’ e se
‘satisfazer’. Então, o ‘amo’ do discurso do capitalista é o próprio capital e, o campo do
visível enquanto simulacro, véu da verdade, pode auxiliar a sustentação deste discurso –
combinado a tudo aquilo que é da estrutura do sujeito e que trouxemos no item anterior.

E como afirma Quinet, não estamos falando só do ‘belo’, que encobre a falta
e fascina o sujeito com seu brilho:

O show da guerra filmada, chocante em Apocalipse Now, está hoje


banalizado. Orgias de sangue, bacanais de membros despedaçados
invadem nosso cotidiano com os “aqui e agora” das atrocidades live.
São imagens do espetáculo que trazem o gozo do olhar que acorda o
espectador com um horror excitante. A pulsão escópica se satisfaz no
imaginário por sua face silenciosa e trágica, retraçando imagens que
permanecem, que não se apagam. São imagens indeléveis inscritas na
pulsão de morte, coladas ao olhar letal do real libidinal. (Quinet,
2002/2004, p.281)

Ou seja, no espetáculo há também o mal-estar na cultura, aquilo que advém do real e


atinge o sujeito. Em 2013, um vídeo publicado e disseminado no Facebook causou uma
discussão que ilustra esta passagem. Trata-se de imagens de uma mulher sendo
decapitada por traficantes no México. Nas imagens se vê uma mulher de joelhos à frente
de um homem mascarado que está com uma faca na mão e avisa que aquilo é o que
acontece com os membros do Cartel do Golfo, em nome dos Los Zetas, referindo-se a
dois cartéis de drogas rivais. Com as denúncias dos próprios usuários da rede social o
FB introduziu uma proibição em maio de 2013 da veiculação dessas imagens,
posteriormente liberou e em novembro voltou a proibir. Em matéria do site BBC
(Kelion, 2013) podemos ver alguns argumentos daqueles que defendem a proibição:
[163]

“São necessários apenas alguns segundos de exposição a este tipo de material para
deixar um traço permanente, principalmente na mente de um jovem”; “Remova este
vídeo! Jovens com mentes inocentes não devem ver isso!”; “Isso é absolutamente
horrível, desagradável e precisa ser removido... há muitos jovens que podem ver isso.
Tenho 23 anos e estou muito perturbado depois de assistir dois segundos”;
“Gostaríamos de ver medidas sendo tomadas para tentar proteger as pessoas de verem
tal conteúdo”; “Esses vídeos vão abastecer inúmeros pesadelos entre os jovens e os mais
sensíveis”; etc.. A proibição do FB, em contrapartida, gerou a crítica de ativistas que
defendem a liberdade de expressão, sugerindo que a responsabilidade não seria da
empresa, mas dos pais dos jovens. Quando o site voltou a liberar as imagens justificou-
se que o vídeo estava sendo compartilhado para condená-lo e que o próprio site oferecia
às pessoas o controle do que gostariam ou não de ver. Não entraremos no mérito da
proibição ou liberdade, mas apontamos esse ‘descortinamento’ indicativo do mal-estar
na cultura, que as pessoas não querem ver/saber. O vídeo da decapitação é sim da ordem
do horror, ele vem fazer a mancha no quadro, revelando aquilo que não é belo e que está
fora do enquadre. Há outras dezenas de imagens desta ordem que circulam por ali. É por
isso também que ele causa esta perturbação, discussão e condenação, como se estivesse
sendo dito “não queremos ver, deixe no invisível”. Não estamos defendendo que todas
as cenas dessa ordem deveriam estar para serem acessadas, numa forma de delatar a
‘crueldade’ do mundo, mas tentando entender porque é que nem tudo ‘pode’ circular. E,
nesse caso, acreditamos que imagens com esse teor não fazem parte do jogo escópico
das imagens fascinantes, belas e brilhantes, que capturam o ‘navegante’ e colaboram
para sustentar a fantasia imaginária.

Quinet associa que na sociedade escópica há um paradoxo do gozo que “faz


com que cada homem queira fazer de seu próximo um ator e um espectador de um
espetáculo obsceno e feroz à altura do supereu que vigia e pune” (2002/2004, p.285). O
supereu, no entanto é considerado um ‘paradoxo da lei’ – por ser uma lei sem objeto, de
acordo com Kant e não deixar de tê-lo, de acordo com Lacan, considerando o objeto
como a. Assim sendo, o objeto a se apresenta neste contexto enquanto um olhar de
vigilância da lei, na medida em que a conjunção entre S1 (lei como máxima pura) e a lei
como vigilância (a), em sua conjunção S1/a “faz do Outro o Um que vigia, julga e
pune” (idem). Na cultura, nos afirma Quinet, o a da lei se apresenta na estrutura
panóptica da sociedade, isto é, no olhar do Outro fazendo lei.
[164]

É exatamente essa ideia que está exposta na construção arquitetônica do


Panóptico de Jeremy Bentham (1791), utilizado por Michel Foucault para formular a
sociedade disciplinar e representado por esta imagem:

Figura 23 - O esquema Panóptico

Foucault (1975/1996) assim o descreve:

(...) na periferia há uma construção em anel; no centro, uma torre: esta


é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a
construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda
a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior,
correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior,
permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar
um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente,
[165]

um condenado, um operário ou um escolar. (Foucault, 1975/1996,


p.190)

O efeito dessa arquitetura, diz Foucault, está na indução de um estado ‘consciente’ de


que se é visto, o que assegura o funcionamento automático do poder. É uma vigilância
permanente que sustenta a relação de poder, que deve ser visível e inverificável:
“Visível: sem cessar o detento terá diante dos olhos a alta silhueta da torre central onde
é espionado. Inverificável: o detento nunca deve saber se está sendo observado; mas
deve ter certeza de que sempre pode sê-lo” (ibid., p.191). Como esclarece Quinet, o
‘vigilante’ não precisa estar efetivamente na torre, basta a ideia de que esteja para que se
faça existir o olhar. Ao dissociar o par ver-ser visto o panóptico faz do sujeito um ser
que não vê, isto é, o sujeito é um ser visto pelo olhar do Outro, “engaiolado na pirâmide
visual do Outro” (Quinet, 2002/2004, p.286). Deste modo, Quinet sugere que este é um
sistema paranoico, pois localiza o gozo escópico no Outro do poder e faz crer que este
Outro, de fato, pode ver tudo o que o sujeito faz e, quem sabe, até o que pensa. É aí
também que se localiza a ideia da sociedade disciplinar que para ter controle sob os
indivíduos os faz ‘visíveis’ enquanto o Olho está invisível, dando lugar ao objeto olhar.
Neste sentido, “são manchas no quadro da norma – presentificação do mais-de-gozar”
(idem).

Se trouxermos esta dinâmica para a sociedade contemporânea,


especialmente a digitalizada, podemos pensar que esta ‘vigilância’ se faz presente. As
discussões levantadas a partir das denúncias de Julian Assange, ocorridas em 2010,
podem ser entendidas como delatoras do olhar. Assange (2012) denomina essa
vigilância de ‘militarização do ciberespaço’:

Quando nos comunicamos por internet ou telefonia celular, que agora


está imbuída na internet, nossas comunicações são interceptadas por
organizações militares de inteligência. É como ter um tanque de
guerra dentro do quarto. É como ter um soldado entre você e a sua
mulher enquanto vocês estão trocando mensagens de texto. Todos nós
vivemos sob uma lei marcial no que diz respeito às nossas
[166]

comunicações, só não conseguimos enxergar os tanques – mas eles


estão lá. (Assange, 2012, p.53)

Independente das causas políticas e comerciais que servem como pano de


fundo para ‘justificar’ a espionagem dos usuários (sejam eles pessoas importantes ou
comuns) na rede, agora é sabido que os dados de navegação são armazenados pelas
empresas que dominam essas tecnologias e que podem sim serem comercializados para
fins dos mais diversos. A empresa Cyveillance, subsidiária da americana QinetiQ, é
especializada em monitoramento 24 horas da internet e, segundo matéria divulgada na
revista Carta Capital (05/09/2013):

A brochura da empresa, vazada pelo WikiLeaks, mostra bem o uso


dessa tecnologia: uma foto traz manifestantes portando bandeiras num
protesto. O texto explica: “Protestos, boicotes e ameaças contra seus
empregados, oficinas e escritórios causam caos na sua organização”.
Por meio de monitoramento 24 horas por dia, sete dias por semana, a
empresa afirma que resolver ameaças requer incorporar inteligência à
segurança (s/p.).

Outra justificativa fortemente utilizada, especialmente pelo governo americano, diz


respeito ao monitoramento de possíveis ameaças terroristas. O que satisfaz a sociedade
do medo ou do risco, que vive às sombras do evento ocorrido em 2001. Entretanto, já
se sabe que a vigilância se dá globalmente e de forma que às vezes nos parece
extremamente banal. Um exemplo disso pode ser experimentado por qualquer um: à
parte das artimanhas capitalistas desse processo, quando você busca na internet algum
produto ou mesmo alguma pesquisa particular de assuntos igualmente privados,
imediatamente surgirão propagandas que remetem aos termos buscados. O mesmo
vale para as contas de e-mail que ficam ‘inteligentes’ e te indicam quais são os e-mails
relevantes da sua lista ou, no caso do Facebook, te indicam páginas que você ‘deveria’
curtir, amigos que você ‘deveria’ adicionar, etc.. Obviamente tudo isso é feito por uma
combinação própria da tecnologia da informática, mas que diretamente coloca em
pauta a questão da liberdade e privacidade dos cidadãos.
[167]

O modo como esse discurso é incorporado nos pareceu evidente numa foto
compartilhada por um ‘amigo’ de FB. Na imagem, o usuário aparece segurando e
apontando uma arma (que particularmente sabemos ser de chumbinho e legalizada,
utilizada para esporte). Alheios às particularidades que o levaram a postar tal foto,
chamou-nos a atenção as retaliações que imediatamente lhe foram feitas. Um dos
comentários diz: “NSA got you now”, em uma referência direta a Agência de
Segurança Nacional dos Estados Unidos, uma das protagonistas da questionável
espionagem das redes. Horas depois de receber palavras que desaprovavam a imagem,
o sujeito que a postou retirou – posteriormente a postou novamente – e teceu uma
crítica à vigência do discurso do ‘politicamente correto’ – que, de fato, também se faz
massivamente presente. Entretanto, o que nos parece manifesto aqui é exatamente a
imagem do panóptico (ou da sociedade disciplinar) disseminando que ‘estamos sendo
vigiados’ não só pelo governo, pelas empresas, mas também pelos próprios comparsas,
ou seja, agora todos sabem e fazem vigorar a ideia de que existe um olhar, que faz lei
em sua invisibilidade, que censura e determina aquilo que pode e o que não pode
circular. Esta é uma dimensão do olhar em rede que não podemos perder de vista,
valendo-nos do trocadilho.

Deste modo, embora não fosse nosso objetivo primordial, esperamos ter
contribuído para introduzirmos que caminhos também podem ser percorridos diante
das problemáticas que emergem na sociedade capitalista contemporânea, tendo a
questão do olho e do olhar no que vai além da estrutura do sujeito e sua captura pela
modalidade de gozo escópico, como apresentamos e desenvolvemos no segundo item
deste capítulo e que se configura enquanto nossa tese principal. Em nosso
entendimento, a sociedade escópica contribui para a discussão quando a
desmembramos e a entendemos enquanto uma armadilha do discurso do capitalista,
que a partir de seus meios se utiliza da internet para efetivamente fazer (ainda mais) a
sua voracidade e acidez transitar.

Em contrapartida, destacamos que existe todo um movimento na própria


rede que se ocupa – quase aos moldes de um ato histérico – em apontar estes essas
dinâmicas que destacamos aqui. Não nos ocuparemos em discuti-los, e eles são
inúmeros, mas gostaríamos de salientar o papel primordial do WikiLeaks, ao qual nos
referimos algumas vezes, e gostaríamos de nos aludirmos ainda ao coletivo ‘Fora do
Eixo’, especialmente no seu desdobramento ‘mídia NINJA’(Narrativas Independentes,
[168]

Jornalismo e Ação), fundamental na disseminação de informações outras (divergentes


daquelas que circulavam em rede nacional de televisão ou nos informativos da
internet) nas mobilizações sociais ocorridas no Brasil em 2013 e que continuam
interrogando e denunciando a vigência e operação do discurso do mestre moderno.
Este contraponto nos mostra duas faces que estão na rede e evidenciam que o ‘poder
absoluto’ não reina em todos os espaços. Na internet, especialmente em suas redes
sociais, é possível, mesmo quando sabemos estar sob o olhar do Outro, construirmos
coletivos e encaminharmos a angústia do mal-estar em uma direção que seja, de fato,
transformada em ato.
[169]

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que


se torna imagem (Debord, 1968/1997, p. 214).

O capitalismo tardio confere à sociedade características e dinâmicas


pontuais que incidem, em última instância, nos laços sociais. Todas as transformações
que ocorreram a partir da passagem do feudalismo para o capitalismo e, portanto, a
partir de um giro discursivo do mestre para o universitário, como sugere Lacan, são
fundamentais para que entendamos os laços que se estabelecem a partir de um discurso
favorecido e regente de um tempo.

Como vimos no primeiro capítulo da tese, ao procuramos evidenciar


algumas das particularidades da sociedade atual remetemos ao seu constructo e nos
deparamos com uma enormidade de leituras que apontam que as transformações sociais
incidem também nos sujeitos humanos. Quando nos propusermos apresentarmos
alguma perspectiva da atualidade num contraponto entre o pensamento daqueles que a
pensam enquanto modernidade e da construção que a toma enquanto pós-moderna,
entendemos que marcar um posicionamento frente a estas duas vertentes é quase
determinante para o encaminhamento do restante do trabalho. Há uma distinção que
solidifica conceitos: por um lado os modernos indicam que a partir do século XX
vivemos o terceiro estágio da modernidade, numa espécie de apogeu que traz a
globalização e o capitalismo tardio enquanto seus maiores representantes; por outro os
pós-modernos indicam que a partir do final do século XIX existiram modificações na
estrutura social capitalista e, principalmente, na estrutura do sujeito.

De fato o que ocorre é que ambas tomam uma mesma época – entre o fim do
século XIX e a partir do século XX – e traçam considerações particulares. Entretanto,
em nossa concepção de cunho moderno, as transformações não se deram na estrutura. O
que nos parece ter ocorrido é que a verdade se ‘multiplicou’ a partir de ideologias que
[170]

buscam legitimá-la associando muito mais à eficiência ou eficácia, na medida em que o


discurso universitário fez cair o mestre da sua função de ordem. Esse é um mote que
atravessa toda esta pesquisa, não pelo contexto teórico, mas pela conjunção de teorias
que trazem seus arcabouços ideológicos. Não falamos de uma ou outra em particular,
mas de um modo geral atentamos para essa ‘babel de leituras’.

Em meio às diferentes frentes teóricas que apresentamos, procuramos trazer


aquelas que se dedicam mais abertamente a alguma crítica e propõem uma reflexão que
interligue a sociedade e os sujeitos humanos, tomando-os enquanto componentes que,
de algum modo, se sustentam. Igualmente, não poderíamos deixar de privilegiar aquelas
construções que enfatizam que há no sistema capitalista peculiaridades que devem ser
postas em discussão e, obviamente, que não se pode ignorar no contexto social atual a
relevância da tecnologia, especialmente daquelas concernentes à informática e, mais
precisamente, às redes sociais da internet.

Ao considerarmos isso, tomamos a própria teoria psicanalítica que, como já


expusemos exaustivamente, desde Freud relaciona sujeito e cultura ou Outro, como
sugere Lacan, indicando que há algo de historicidade no sujeito, na medida em que se
articula estrutura e história. Igualmente, para nossa tese, que propôs pensar a captura do
sujeito a partir de uma modalidade de gozo articulada à contingência específica das
redes sociais da internet, buscar compreender as artimanhas e problemáticas que
circundam a sociedade capitalista é sumário para que se possam apreender as diligências
que incidem sobre o sujeito.

O discurso do capitalista traz o imperativo do gozo e, nesse sentido, a


repressão ao gozo é transmutada para uma obrigação. Como ressalta Safatle (2005):
“devemos pensar aqui na tese de que a incitação e a administração do gozo
transformaram-se na verdadeira mola propulsora da economia pulsional da sociedade de
consumo (...)” (p.128), isto é, “com a incitação ao gozo como elemento central da lógica
de reprodução mercantil do capitalismo, o que proliferam são imagens ideais daqueles
que instrumentalizam seus fantasmas e pautam sua conduta pela exigência irredutível de
gozo” (ibid., p.129) ou a gratificação irrestrita, como demanda a pulsão. Ainda Safatle,
nos traz as articulações de Lacan, especialmente no Seminário 20: Mais, ainda (1972-
1973/1985) que a instância que ‘força’ alguém a gozar é o superego: “O superego é o
imperativo do gozo – Goza!” (Lacan, 1972-1973/1985, p.11). Deste modo, as teorias
[171]

que trouxemos e que se referem a uma provável falta de referência regulatória na


sociedade contemporânea – referimo-nos aqui especialmente à Hipermodernidade
(Lipovetsky) e à Sociedade Narcísica (Lasch) –, causadora de uma ‘possível’
transformação na estrutura do sujeito, se articulam a essa modificação nos processos de
socialização que ocorrem no decorrer do século XX e a tomam como transformadoras
dos sujeitos. Como argumentado, muito disso se deve, como ressalta Lacan (1938), ao
enfraquecimento da figura paterna, a imago. E o declínio da imago está justamente
associado às transformações que ocorreram (e continuam a ocorrer) nos processos de
socialização.

Como afirma Safatle, é preciso marcar que o declínio da imago não tem
como consequência um afrouxamento da pressão do supereu, mas há certa mudança em
sua força. Remetendo-se a Lacan em Mais, ainda, explica:

Lacan trabalhou 30 anos até chegar à explicação de que o declínio da


imago paterna abria espaço para o advento de figuras fantasmáticas de
autoridade que se assemelhavam ao pai primevo do mito freudiano de
Totem e tabu, ou seja, ao pai-senhor do gozo que pauta suas ações
pela procura incessante da satisfação imediata. Figura perversa, feroz
e obscena, como dizia Lacan, que pouco tem a ver com a figura
tradicional de um pai que converge imperativos de repressão e de
sublimação. Isto fez Lacan afirmar, por exemplo, que a verdadeira
versão do pai é uma père-version (Safatle, 2005, p.130).

Esta versão do pai, como conota o jogo de palavra feito por Lacan, assemelha-se a
resposta perversa ao pai e à castração simbólica. Neste contexto, a perversão se utiliza
da Verleugung, a denegação ou o desmentir da castração e da lei do pai. O significante
da castração é sabido pelo perverso que se renega em sabê-lo, desmentindo-o,
recusando-o, num jogo que no nosso entendimento, a vela e desvela. Essa estratégia é se
assemelha a dos sujeitos cínicos, que sabem e mesmo assim fazem como se não
soubessem. No entanto, a árdua tarefa do perverso acaba por colocá-lo diretamente
relacionado ao pai, na medida em que é preciso desafiar e transgredir sua Lei. E é
exatamente nessa dinâmica que ele busca seu gozo, insistindo em fazer o Outro gozar.
[172]

Ele está em busca do gozo absoluto, justamente contrapondo à amarração neurótica, que
através do recalque se submete à lei e à castração.

Se buscarmos alguma proximidade entre esta dinâmica e a do discurso do


capitalista, vemos que formam um belo par. Ambas atuam no sentido de ‘provocar’ o
gozo, velando a castração. Entretanto, vale marcar que não estamos apontando
generalização da estrutura perversa. A relação com esta busca incessante de gozo não é
característica única da estrutura perversa. O gozo fálico é, igualmente, um modo de
‘denegar’ a castração, devido a sua estratégia própria de deslumbrar pela promessa de
um objeto que poderia ser encontrado e que responderia ao desejo. É por isso também
que não se pode dizer de uma ‘perversão generalizada’, com acentua Askofarè:

La « perversion généralisée », si elle veut dire quelque chose en


psychanalyse, ne peut vouloir dire que « perversion généralisée du
champ de la jouissance ». Ni déviation, ni aberration, ni inversion de
normes et encore moins nouvelle norme sociale, elle est
fondamentalement la traduction clinique et conceptuelle de ce que le
champ de la jouissance du parlêtre se structure et s’ordonne autour
d’un impossible (Askofarè, 2005, s/p).

Ou seja, a ‘perversão generalizada’ é própria ao campo do gozo, ele está sempre


relacionado ao impossível, a essa busca incansável que prevalece. Acreditamos que é
justo neste enredo que se cria uma especulação sobre possíveis transformações na
estrutura do sujeito e, que como defendemos, isso não se afirma no campo da
psicanálise lacaniana.
Entretanto, essa demanda para que se goze, que se articula ao discurso do
Outro, engendra peculiaridades que, como trouxemos, repercutem nos sujeitos,
especialmente na sua faceta imaginária, que se representa pelo eu. Daí surgem o que
evocamos como ‘novos modos de sofrimento’, muito marcados pelas identificações, e
que possibilitam o ‘inflar’ do cheio de sentido. Essas ‘grandes novidades’ de doenças e
sintomas nos parecem que sempre serão companheiras das modificações no processo
histórico. Mas, não se trata de uma mudança epistêmica que, de algum modo, incida
naquilo que é da estrutura.
[173]

Em equidade, trazemos esta imagem irônica que nos revela, por exemplo,
uma similaridade com questões que atualmente são tomadas como absolutamente
relevantes e urgentes, como a causa ‘antissocial’ amplamente debatida como
consequência do uso das tecnologias e que, provavelmente em outra época, poderia ser
representada deste modo:

Fonte: http://postscarcityorbust.tumblr.com/post/68469548000

Não afirmamos que as novas tecnologias não tragam nada de novo, apenas ressaltamos
que a novidade sempre suscita perguntas e, mais ainda, quando se relacionam
diretamente às relações pessoais. E entendemos que os laços sociais contemporâneos
possuem elementos próprios, que derivam do discurso do capitalista. Não são os meios
de comunicação, necessariamente, que transformam o laço social. Essas ‘mudanças’ ou
diferenças provêm do capitalismo, que é também fruto da ciência, e que dificultam (ou
trazem implicações) para os laços sociais. É aqui que se insere o debate que levantamos
no segundo capítulo da tese, quando trazemos a fragilidade, liquidez e até mesmo
escassez dos laços. Portanto, não são os laços sociais virtuais que se tornam
[174]

enfraquecidos, é o modo de enlace, próprio ao discurso do capitalista, que serve como


pano de fundo desta cena.

Quando trouxemos elaboração de Sherry Turkle, por exemplo, que afirma


que cada vez mais na rede nos encontramos sozinhos, mesmo estando juntos – ‘alone
together’ – a ‘solidão em rede’ apresenta-se como expositora do modo de socialização
do capitalismo tardio. E, deste modo e de forma paradoxal, os ‘novos’ meios de
comunicação e, especialmente o Facebook que tomamos como ‘expoente’, podem nos
indicar uma tentativa de ‘dar conta’ disso, de compensar esse afrouxamento dos laços.
Não há indícios que esta tarefa seja executada e cumprida com êxito, como amplamente
apontamos, mas não há como negarmos que uns se direcionam aos outros, demandam
algo e, como sabemos, toda demanda é, em última instância, demanda de amor.

Acreditamos que psicanálise colabora para a discussão também neste


sentido, pois ao articularmos a estrutura e a teoria dos discursos é possível
compreendermos melhor de que modo a estrutura do sujeito e a transistoricidade da
linguagem no âmbito da humanidade se relacionam com as formas de aparelhamento do
gozo e com a diversidade discursiva dos laços sociais. É aqui que se torna evidente que
os laços sociais marcam o impossível da relação sexual, uma vez que a linguagem
viabiliza o incessante contorno do objeto, tentando representar o que é da ordem do
impossível de representação. É também esta relação que se evidencia que, de fato, as
modificações históricas incidem sobre o sujeito, mas não em sua estrutura. O que ocorre
é que diante da indissociável relação entre um e outro, vemos a historicidade refletida
nas articulações simbólico/imaginárias, o que pode levar a creditarmos uma mudança de
estrutura, que não ocorre. Se isso fosse possível, diante da infinidade de precedentes que
levantamos, qual seria a melhor definição? Trata-se de sujeitos narcísicos,
hipermodernos, perversos? Levando em consideração o que apontamos sobre o
‘declínio da imago paterna’ ou sobre o modo como o discurso universitário ou o
discurso do capitalista viabilizam ou dificultam os laços sociais, nos parece evidente
que não há um giro discursivo que promova tal modificação estrutural no que tange os
sujeitos. O que há são novos modelos de se agenciar laços, mas que trazem em sua base
exatamente aquilo que é próprio do sujeito.

Ao elaborar sua teoria sobre o objeto a, a partir do Seminário 10, Lacan


justamente destaca a importância da imagem especular na relação imaginária e
[175]

representa por meio do esquema do buquê invertido que, por efeito da castração, o a
encontra-se enquanto um resto que não pode ser especularizado. Ele fica de fora, mas na
condição de algo que, enquanto furo, impulsiona o sujeito. Como a pulsão não pode se
satisfazer diretamente e tampouco totalmente e, ao mesmo tempo, busca a satisfação,
ela incessantemente se direciona em contornar o objeto e obter satisfações parciais.

Em meio à trama pulsional, nos interessamos justamente em tentar elaborar


de que modo isso pode ser capturado quando tomamos a pulsão em sua modalidade
escópica, entrelaçada à contingência social das redes sociais virtuais, partindo da
premissa de que o sujeito, nessa condição, é capturado por esse modo de gozo
específico. Como argumentamos, escolhemos fazer nossas considerações a partir do
Facebook, entendendo que ele se apresenta enquanto o maior expoente não só da
própria dinâmica das redes sociais virtuais, como também de um emaranhando que
conjuga peculiaridades do laço social no capitalismo tardio.

Prova disso é que inúmeras pesquisas têm sido realizadas e o trazem


enquanto um dispositivo capaz de produzir ‘efeitos’ na vida social e também na
particular das pessoas. Não abordaremos novamente este ponto, mas marcamos que o
FB, no jogo que proporciona entre as pessoas e as imagens, coloca em evidência a
relação que existe entre ambas e aponta que algo do gozo encontra-se aí. Como Freud
apontou, além da visão os olhos são fonte de prazer. E, completamos, quando
consideramos a existência de uma pulsão escópica, estamos também tomando o olhar
enquanto objeto a, tal como articulou Lacan.

Como sabemos, o objeto a encontra-se para sempre e desde sempre perdido,


é impossível de ser alcançado, e o que se coloca em seu lugar são tentativas exaustivas e
infindáveis de obtenção de satisfação: o que não implica, de modo algum, que sejam
incondicionalmente irrelevantes e sempre espúrias. Os meios de comunicação, que
estabelecem uma relação direta com as imagens, quase sempre estarão articulados a
uma possibilidade de obtenção de prazer, principalmente quando se articulam ao
capitalismo e servem como veículos de exposição das ofertas de objetos. Entretanto,
marcamos que há uma mudança na relação entre os media e seus receptores a partir da
internet. Entendemos que antes as imagens (e todas outras informações) chegavam de
forma passiva – o que, em nossa compreensão, sustenta a leitura de Debord da relação
direta entre o espetáculo das imagens e os modos de produção. Esse posicionamento
[176]

assinala a faceta alienante dos media e este é um ponto exaustivamente estudado na


academia. Todavia, o que gostaríamos de apontar é aquilo que diferencia a internet, que
é, justamente, essa ideia de que houve uma passagem da passividade para uma
possibilidade de atividade. Essa modificação nos releva que por de trás de toda a trama
da especularização existe algo que é próprio sujeito, isto é, o sujeito está implicado no
mundo especular.

Freud (1915) indicou que um dos destinos da pulsão era a reversão em seu
oposto, mudando-se da atividade para a passividade e, no caso da pulsão escópica, a
reversão se daria em sua finalidade, sendo o ato de ‘olhar’ substituído pela passividade
em ‘ser olhado’. Se pensarmos no caso da rede social FB, vemos que esse par encontra-
se aí. O que nos dá a ideia de uma transformação da passividade do olhar nos meios de
comunicação seria lido, a partir dessa colocação freudiana, como uma atividade. É o
sujeito quem olha alguma coisa, enquanto que aquilo que entendemos como atividade,
no sentido de colocar em ação alguma coisa, é a face ‘passiva’ de ser olhado pelo outro.
E, antecedendo essas funcionalidades, temos o narcisismo como ponto de partida.

No FB, ao se colocar enquanto objeto para ser olhado pelo outro – o ‘dar-se
a ver’ – convoca-se outro sujeito para o qual se exibe e para que se olhe o sujeito da
pulsão, o que, como efeito, faz do sujeito objeto. O sujeito, portanto, a partir da leitura
freudiana, ao se colocar para ser visto se reduz a um objeto a ser olhado e, portanto, se
faz desaparecer. Lacan desloca a questão indicando a distinção entre visível e invisível,
colocando o olhar enquanto objeto de gozo, isto é, o objeto é que olha para o sujeito.
Não existe, neste sentido, uma premissa que pressuponha que se possa ‘obter’ o olhar,
até mesmo porque ele se compõe enquanto um objeto que está fora do campo do visível,
no sentido de não poder ser visto e, portanto, tampouco capturado.

Assim, quando pensamos que o sujeito se coloca para ser visto no FB,
estamos trabalhando o campo do visível, alimentando o cheio de sentido próprio ao
espelho no qual o sujeito se constituiu. Aqui, o sujeito goza do sentido, na medida em
que se direciona ao Outro, buscando ‘alguma coisa’ – o que pode ser representado no
FB, como trouxemos no último capítulo desta pesquisa, pelas ‘curtidas’ e pelos
comentários dos outros. Ao mesmo tempo, tem-se acesso aos outros a partir dos perfis
que cada um define e sustenta em sua participação nesta rede. Como destacamos,
algumas vezes estes encontros virtuais revelam mais das pessoas do que nossas relações
[177]

fora dali, pois é como se neste palco imenso do FB coubessem pequenos fragmentos da
infinidade de identificações, que transcendem aquelas que se representa de acordo com
os nichos nos quais se circula e que ‘demandam’ semblantes específicos. Mas, como
ressaltamos, é possível pensar no olhar no FB, na medida em que algo pode retornar
para o sujeito – isto é, objeto olha para o sujeito e coloca em evidência aquilo que estava
oculto em razão do campo que vela, o visível. Trazer exemplos de como isso pode
ocorrer talvez não seja exatamente o melhor modo de dizer sobre. Tentamos fazê-lo por
meio do filme Disconnect, mas sabemos que o modo como o olhar pode retornar para o
sujeito é particular, no um a um. Entretanto, não é tudo que é ‘bem-vindo’ e belo no FB.
Parece-nos que aquilo que quebra, faz mancha nesse quadro ou contempla um mal-estar,
será sempre condenado – como no caso das imagens de decapitação. Aqui também
podemos nos referenciar a Deep web (a web oculta), que fica no invisível da Surface
web (web da superfície) – essa que todos podem acessar – e os conteúdos da ordem do
‘horror’ que podem ser acessados.

A Deep web é considerada o ‘outro lado’ da internet, composta de redes


anônimas que disponibilizam um conteúdo ‘escondido’ que, estando fora da web
‘tradicional’ – a ‘visível’ – não podem ser capturados por empresas e governos que
administram a rede, tornando seus usuários não-rastreáveis. Ela é acessível somente
com a utilização de navegadores com distribuição de acesso, como o TOR (The Onion
Route), possui conteúdos diversos (como a Surface web) e até mesmo uma moeda
própria: a criptomoeda bitcoin. Entretando, “tudo que existe na web, existe de maneira
muito mais agressiva na DW. Tanto pro bem quanto pro mal” (Mello, 2013, s/p.). Foi
em meio a esta rede de criptografia, por exemplo, que o WikiLeaks, surgiu:

Os cypherpunks originais, meus camaradas, foram em grande parte


libertários. Buscamos proteger a liberdade individual da tirania do
estado, e a criptografia foi a nossa arma secreta. Isso era subversivo
porque a criptografia era de propriedade exclusiva dos Estados, usada
como arma em suas variadas guerras. Criando nosso próprio software
contra o estado e disseminando-o amplamente, liberamos e
democratizamos a criptografia, em uma luta verdadeiramente
revolucionária, travada nas fronteiras da nova internet. A reação foi
[178]

rápida e onerosa, e ainda está em curso, mas o gênio saiu da lâmpada.


(Assange, 2012, p.22)

De certo modo, apesar de suas regras ou da ‘falta’ delas, a internet oculta faz frente a
toda captura – seja de dados, seja de leis – às quais se está sujeito na internet de
superfície. E, diante disso, desse olhar estrategicamente oculto, também se vê emergir
conteúdos ‘do mal’. A Deep web, nesse sentido, ficou popularmente conhecida – mas
não acessível a qualquer pessoa – por seus teores fora do eixo, entre eles: pornografia
infantil, comércio livre de drogas e armas, assassinatos, necrofilia, comunidades que
trocam informações sobre estupros, experimento com humanos e até mesmo contratos
de matadores de aluguel. É como se ali o olhar do Outro tivesse sido suspenso e,
portanto, fosse possível praticar coisas que estão fora desse crivo de redes sociais que
buscam, como o FB, colocar a versão idealizada de si para o outro. Na Deep web não é
isso que está em questão. Não se pode tomá-la do mesmo modo que a Surface web, pois
não parece haver jogo escópico – pelo menos não do modo como argumentamos:

Você não vai encontrar muita coisa bonitinha (fotos de gatinhos


trapalhões ficam restritas à web nossa de cada dia) tanto na estética
como no conteúdo: apenas listas com um layout de internet do século
XX, remetendo a tópicos desconcertantes, assombrosos ou
repreensíveis – pegue o adjetivo mais sombrio que lhe recorrer,
coloque-o em cima do ombro e se prepare para ser apresentado: “Oi,
eu sou a Humanindade e quando não tem ninguém olhando é isso que
eu faço”. (Mello, 2013, s/p.)

Assim, a Deep web aparece enquanto uma rota de fuga do controle das
armadilhas às quais estamos sempre expostos na internet e, ao mesmo tempo, ao excluir
o jogo escópico que favorece/sustenta o laço social, tem-se a propagação dessas cenas
outras. É prematuro elaborar algo mais sobre estas redes ocultas, pois não tivemos
acesso direto aos seus conteúdos, mas nos parece interessante evidenciar a existência
desse outro lado que promete enganar a vigilância e que, como efeito, aparece algo que
pode ter relação com o sintoma e, portanto, com o que aponta na direção do real.
[179]

A tecnologia, como sabemos, possibilita a vigilância de todas as


comunicações. É evidente que existem meios de utilizá-la de modo legítimo, como no
combate de crimes, etc., mas não se pode perder de vista que, em última instância, o
controle se estende aos cidadãos e, nesse sentido, há um problema político:

A vigilância patrocinada pelo estado é de fato um grande problema,


que põe em risco a própria estrutura de todas as democracias e seu
funcionamento, mas também há vigilância privada e a potencial coleta
de dados em massa por parte do setor privado. Basta dar uma olhada
no Google. Se você for um usuário-padrão, o Google sabe com quem
você se comunica, quem você conhece, o que está pesquisando e,
possivelmente, sua preferência sexual, sua religião e suas crenças
filosóficas (Zimmermann, 2012, p.71).

Em países que utilizam a censura às redes – Irã, Coréia do Norte e China – é a internet
oculta que possibilita alguma saída. Jérémie Zimmermann (2012), em conversa com
Assange (2012) e outros, sugere que a criação de um software livre que todos possam
entender e modificar, para que seja um modo de se constituir uma sociedade on-line
livre, “para termos o potencial de sempre controlar a máquina, não permitindo que ela
nos controle” (p.79). Entendemos e reconhecemos a sugestão de Zimmermann, mas nos
perguntamos: isso é possível?

Se a proposta é a de que mantenhamos dados sigilosos, que só


compartilhemos com quem acharmos que devemos, que não estejamos tão expostos
como nos encontramos na Surface web,... Pode ser que sejam poucos aqueles que
estejam de fato interessados em não serem vistos. Mesmo sabendo de toda espionagem,
roubo de dados e invasão que se pode sofrer ao navegar pela internet, ainda nos parece
que o jogo de imagens, que se sustenta pela captura do sujeito pela modalidade de gozo
escópico, se coloca acima destas questões políticas para nossos navegantes. É preciso
pistas do olhar.

De modo algum fazemos generalizações e, indiscutivelmente, condenamos


as políticas de Estados e empresas na captura de dados, entretanto, apesar de toda
[180]

potência que a internet pode viabilizar – como instrumento de mobilização de pessoas,


por exemplo – ainda nos parece que o mais interessante para a grande maioria é a
possibilidade de estar entre, com e para os outros.

Ainda, é importante marcarmos que mesmo diante de todas as contingências


que levantamos e que amarram os sujeitos às suas particularidades nas redes sociais
virtuais, há a possibilidade de esse encontro sair às ruas e produzir algo que seja similar
a um ato e de dimensão coletiva. Foi deste modo que apreendemos os acontecimentos
que eclodiram em várias partes do mundo, incluindo o Brasil, e que nos pareceram
promissores e também reveladores. A ‘promessa’ veio com o vazio criado pelas
manifestações, tal como sintetiza Žižek: “Sim, os protestos realmente criaram um vazio
– um vazio no campo da ideologia hegemônica –, e será necessário algum tempo para
preenchê-lo de maneira apropriada posto que se trata de um vazio que carrega consigo
um embrião, uma abertura para o verdadeiro Novo” (2012, p.18). É notório que as
pessoas foram convocadas a resgatar qualquer coisa que nelas engendrasse algum
compromisso ou causa política e são/foram tantas as questões levantadas, que gerou
uma impossibilidade de nomear isso que nos parece ter se transformado em um sintoma
do campo social. E, ressaltamos, que faz laço e que uniu a multidão.

A ‘revelação’ se deu pelo modo como fomos todos surpreendidos por essa
ocupação coletiva, que delatou o mal-estar social contemporâneo, ou o desencanto,
especialmente no que tangem as questões relacionadas, de algum modo e em última
instância, ao modo de produção do capitalismo tardio. Ao mesmo tempo, tornou-se
evidente que as redes sociais virtuais – seja o Facebook ou qualquer outra –, mesmo
quando as tomamos enquanto uma produção tecnológica que espelha o capitalismo,
pode se apoderar dessa função do olhar, manchando o cheio de sentido e fazendo-se
revelar o furo da ‘bela ordem’ capitalista e, mais ainda, da própria ideia burguesa de
democracia. A ‘ilusão democrática’, como sugere Žižek, nos leva a aceitar os
mecanismos democráticos como sendo uma moldura essencial para qualquer mudança
e, desse modo, ao se oferecer enquanto um molde, ela dificulta uma possível
transformação radical das relações capitalistas:

As multidões têm as respostas para as questões que ainda não foram


levantadas e a capacidade de sobreviver aos muros. As questões ainda
[181]

não foram feitas porque isso requer palavras e conceitos que soem
verdadeiros, e aqueles usados atualmente para nomear os fenômenos
se tornaram insignificantes: democracia, liberdade, produtividade etc.
Com os novos conceitos, as questões logo serão levantadas, pois a
história envolve precisamente esse processo de questionamento.
Logo? Em uma geração (Berger apud Žižek, 2012, p.25).

Assim, considera-se que nestes acontecimentos as redes sociais virtuais funcionaram


como uma espécie de pré-produção – ao reunir os personagens, produzir os textos,
definir as estratégias do espetáculo e escolher os espaços para as apresentações – para
que depois se ocupasse o palco: as vias, a televisão, os jornais, as universidades, entre
tantos outros. Fez-se de tudo isso um espetáculo também, transformando o desencanto
em imagem, trazendo para o campo do visível as articulações ‘invisíveis’ que são
possíveis ali, num para-além do frágil, transitório ou banal que alguns insistem em
qualificá-las:

Fonte: https://twitter.com/JornalOGlobo/status/346753824763019264/photo/1
[182]

Enfim, é preciso dizer que nos aventurarmos a investigar algo tão efervescente
como as redes sociais na atualidade, especialmente o FB e dentro disso a relação dos
sujeitos com uma modalidade de gozo particular, como o escópico, não foi, em
momento algum, uma direção única e sem variáveis. Enquanto nos atentamos para um
objetivo necessariamente específico, vimos surgirem outras redes e outros
acontecimentos que nos confirmaram que é preciso estar atento para o que essas novas
tecnologias podem explicitar sobre como a estrutura dos sujeitos se engendra no
discurso capitalista, de que modo isso aparece na relação entre o sujeito e Outro e
também na relação dos sujeitos com os objetos.

De fato, compreendemos que as leituras feitas sobre o contemporâneo quando se


toma a internet, possuem argumentações díspares que por vezes parecem se dualizarem
entre o ‘bem’ e o ‘mal’ – e, obviamente, distanciam-se de qualquer argumentação sobre
o desejo. É por isso que, em nossa compreensão, não se trata somente de identificar
modificações que têm efeitos nos laços sociais de modo a enfraquecê-los, desenlaçá-los
ou fazê-los outros, mas sim (e também) de tentar apreender de que forma isso se
relaciona aos sujeitos e à estrutura social e faz acontecer. Por vezes os argumentos
esbarram na trama estrutural e outras vezes na pulsional e, assim sendo, ainda cabe à
psicanálise participar mais ativamente para poder contribuir para uma compreensão
melhor de um acontecimento desta magnitude. Há muito a ser pesquisado. Este foi
apenas um caminho.
[183]

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