Pré-impressão: Fotocompográfica
ISBN: 978-989-722-138-5
Quetzal Editores
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- Era em alemão !
- Era, querida . Mas isso não quer dizer nada - disse
a rapariga, cruzando as pernas. - É que por acaso os poemas
foram escritos pelo único grande poeta do século, disse ele.
E disse que eu devia ter comprado uma tradução ou assim.
Ou ter aprendido alemão, nem mais nem menos.
- Um horror, um horror. É triste, no fundo, é mais isso .
O teu pai ontem à noite disse . . .
- S ó u m segundo, mãe - disse a rapariga. Foi buscar os
cigarros ao banco da j anela, acendeu um, e voltou a sentar-se
na cama. - Mãe ? - disse ela, exalando o fumo.
- Muriel. Agora, ouve uma coisa . . .
- Estou a ouvir.
- O teu pai falou com o doutor Sivetski.
- Ah ? - disse a rapariga.
- Ele contou-lhe tudo. Pelo menos, foi o que ele disse . . .
Sabes como é o teu pai. As árvores. Aquela história com a j a
nela. Aquelas coisas horríveis que ele disse à avó, quando lhe
perguntou se já tinha planos para o funeral dela. O que ele fez
com aquelas belas fotografias das Bermudas . . . Tudo.
- E então ? - disse a rapariga.
- Então, diz ele que para já foi um verdadeiro crime
o Exército tê-lo deixado sair do hospital. . . Dou-te a minha pa
lavra de honra. E disse muito claramente ao teu pai que havia
uma probabilidade . . . uma grande probabilidade, disse ele, de
o Seymour perder completa mente o controlo. Dou-te a minha
palavra de honra.
- Há um psiquiatra aqui no hotel - disse a rapariga.
- Quem? Qual é o nome dele ?
- Não s e i . Rieser o u coisa a s s i m . D izem que é muito
bom.
- Nunca ouvi falar dele.
- Bem, dizem que é muito bom, pelo menos.
NOVE HISTÓRIAS 15
- Não !
- Lamento - disse ele, e empurrou o colchão para a praia até
Sybil poder sair. Depois levou ele o colchão o resto do caminho.
- Adeus - disse Sybil, e correu sem olhar para trás em
direção ao hotel.
- Qual delas ?
- Não sei. Aquela que andava no nosso curso de Psicolo-
gia, que estava sempre . . .
- Andavam a s duas n o nosso curso d e Psicologia.
- Bem, aquela que tinha uma incrível. . .
- A Mareia Louise. Também a encontrei u m a vez. Fala
que nunca mais se cala.
- Poça, é mesmo. Mas queres saber o que ela me disse ?
Que a doutora Whiting morreu. Disse ela que tinha recebido
uma carta da Barbara Hill a dizer que a Whiting tinha apanha
do um cancro no verão passado e que morreu e assim. Pesava
só trinta quilos. Quando morreu. Não é terrível ?
- Não.
- Eloise, estás a ficar com um coração de pedra.
- Mm. Que mais disse ela ?
- Oh, tinha acabado de regressar da Europa. O marido
estava na tropa na Alemanha ou coisa assim, e ela estava com
ele. Tinham uma casa com quarenta e sete quartos, disse ela,
só para eles e mais um casal, e uns dez criados. Ela tinha o seu
próprio cavalo, e o moço de estrebaria deles tinha sido o mes
tre de equitação privado do Hitler ou coisa assim. Ah, e co
meçou a contar-me que esteve quase a ser violada por um sol
dado de cor. Começa-me a contar isto ali em pleno rés do
chão do Lord & Taylor's . . . Sabes como é a Jackson . D isse
que ele era o motorista do marido e que a tinha levado ao
mercado ou coisa assim nessa manhã. Disse que ficou tão as
sustada que nem sequer . . .
- Espera u m segundo - Eloise ergueu a cabeça e a voz.
- És tu, Ramona ?
- Sou - respondeu uma voz de criança.
- Fecha a porta quando entrares, faz favor - gritou Eloise.
- É a Ramona ? O h , estou morta por a ver. É que não
a vejo desde que ela teve o . . .
32 J.D. 5ALINGER
barriga era tão linda que merecia que entrasse algum oficial
e o mandasse pôr a outra mão fora da j anela. Disse ele que há
coisas que tem de se pagar por elas. Depois tirou a mão e dis
se ao cobrador para endireitar os ombros. Disse-lhe que se
havia coisa que não podia aguentar era um homem que pare
cia não ter orgulho no uniforme que vestia. O cobrador só lhe
disse que voltasse a dormir. - Eloise refletiu um momento
e depois disse: - Não era tanto o que ele dizia, mas a manei
ra como o dizia, percebes ?
- Alguma vez falaste nele ao Lew . . . Quer dizer, alguma
c01sa.
- Oh - disse Eloise -, uma vez comecei a contar. Mas
a primeira coisa que me perguntou foi qual era a patente dele.
- Qual era a patente dele ?
- Bah ! - disse Eloise.
- Não, queria só dizer . . .
Eloise desatou-se a rir subitamente, u m riso que lhe vinha
do diafragma. - Sabes o que é que ele disse uma vez ? Disse
que sentia que estava a avançar no Exército, mas numa dire
ção diferente dos outros todos. Disse que quando fosse pro
movido, em vez de lhe darem galões haviam de lhe arrancar
as mangas. Dizia ele que quando chegasse a general havia de
estar completamente nu. Não havia de ter mais nada do que
um botãozinho com o emblema da infantaria no umbigo. -
Eloise virou-se para Mary Jane, que não se ria. - Não achas
piada ?
- Acho. Mas porque é que não dizes nada ao Lew sobre ele?
- Porquê ? Porque ele é bestialmente pouco inteligente,
é só isso - disse Eloise. - E mais. Ouve bem o que te digo,
mulher de carreira, se alguma vez voltares a casar, não contes
nada ao teu marido. Estás-me a ouvir ?
- Porquê ? - disse Mary Jane.
NOVE HISTÓRIAS 39
com os esqu1mos
- Ná. Larguei.
- Ah, estava na tropa?
- Ná . - Com o cigarro na mão, o irmão de Selena deu
uma palmada no lado esquerdo do peito. - O relógio - dis
se ele.
- O coração, é isso ? - disse Ginnie. - Que é que tem ?
- Sei lá que raio tem ele. Tive febre reumática quando era
puto. Umas dores do caraças no . . .
- Então, não devia deixar d e fumar ? Quer dizer, não de
via deixar de fumar e assim ? O médico disse ao meu . . .
- Ah, eles dizem uma data d e coisas - disse ele.
Ginnie aguentou um instante sem dizer nada . Um curto
instante. - Que estava a fazer no Ohio ? - perguntou.
- Eu? Estava a trabalhar no raio de uma fábrica de aviões.
- Estava ? - disse Ginnie. - E gostava ?
- « E gostava ? » - arremedou ele. - Adorava. Adoro
aviões. São tão giros.
Ginnie nesta altura estava demasiado lançada para se sen
tir afrontada. - Quanto tempo trabalhou lá ? Na fábrica de
aviões ?
- Sei l á eu, caraças. Trinta e sete meses. - Levantou-se
e foi à j anela. Olhou para baixo para a rua, coçando as costas
com o polegar. - Olhe para eles - disse. - Parvos do caraças.
- Quem ? - disse Ginnie.
- Sei lá. Todos.
- O seu dedo vai começar a sangrar outra vez se o tiver
assim para baixo - disse Ginnie.
Ele pareceu dar-lhe ouvidos . Pôs o pé esquerdo em cima
do banco da j anela e poisou a mão na coxa, agora na hori
zontal. Continuou a olhar para a rua em baixo. - Vão todos
para a merda do serviço de recrutamento - disse ele. - Da
próxima vez vamos combater contra os esquimós. Sabia ?
NOVE HISTÓRIAS 57
faço, a não ser num sentido muito vago, intuitivo), mas no en
tanto não podia estar mais convencido de que Mary Hudson
deixara para sempre a equipa dos Comanches. Era o género de
certeza total, ainda que independente da soma dos factos em
que assentava, que pode tornar o andar às arrecuas mais arris
cado do que o normal e fui de encontro a um carrinho de bebé.
Depois de mais uma entrada, já não havia luz para conti
nuarmos. Acabámos o j ogo e começámos a recolher o equipa
mento. A última vez que olhei para Mary Hudson, ela estava
perto da terceira base a chorar. O Chefe tinha-lhe agarra
do a manga do casaco de castor, mas ela afastou-se dele. Saiu
a correr pelo campo fora para o caminho asfaltado e conti
nuou a correr até que deixei de a ver. O Chefe não foi atrás
dela. Limitou-se a ficar a vê-la desaparecer. Depois deu meia
-volta e desceu para a marca de lançamento e apanhou os
nossos dois tacos; deixávamos sempre os tacos para ele levar.
Aproximei-me e perguntei-lhe se ele e Mary Hudson se ti
nham zangado. Ele disse-me para meter a fralda da camisa
para dentro.
Como sempre, nós, Comanches, fizemos a correr os últi
mos cinquenta metros até ao sítio onde tinha ficado o auto
carro, aos berros, aos encontrões, às rasteiras uns aos outros,
mas todos cientes de estar outra vez na hora d' « O homem
que ri » . Ao atravessar a Quinta Aveni d a , alguém deixou
cair uma camisola que trouxera a mais ou que tinha tirado
e eu tropecei nela e estatelei-me no chão. Ainda corri o resto
do caminho, mas os melhores lugares já estavam ocupados
e tive de ficar sentado a meio do autocarro. Aborrecido com
o acontecido, enfiei uma cotovelada nas costelas do rapaz
à minha direita, depois olhei em volta e vi o Chefe a atraves
sar a avenida. Ainda não estava escuro, mas já tinha começa
do a cair aquela obscuridade das cinco e um quarto. O Chefe
atravessou a rua com a gola do sobretudo levantada, os tacos
debaixo do braço esquerdo, e a atenção centrada na r u a .
NOVE HISTÓRIAS 81
- O papá.
Ainda acocorada, Boo Boo passou a mão pelo «V» forma
do pelas pernas, tocando as tábuas do pontão para manter
o equilíbrio. - O teu papá é bom tipo - disse ela - mas é se
calhar o maior marinheiro de água doce que eu conheço .
É absolutamente verdade que quando estou desembarcada
sou uma senhora, isso é verdade. Mas a minha verdadeira vo
cação é, foi e será navegar nos . . .
- Não é s nada almirante - disse Lionel.
- Como ?
- Não és nada almirante. És uma senhora sempre.
Houve um breve silêncio. Lionel aproveitou-o para mudar
novamente a rota da embarcação - segurava o leme com as
duas mãos. Usava uns calções caqui e uma T-shirt branca, la
vada, com um desenho, a toda a largura do peito, de Jerome,
o Avestruz a tocar violino. Estava bastante bronzeado, e o ca
belo, quase exatamente igual ao da mãe na cor e no aspeto,
estava um pouco descolorido pelo sol na parte de cima.
- Muita gente pensa que não sou almirante - disse Boo
Boo, observando-o. - Só porque não ando por aí a dar com
a língua nos dentes. - Sem perder o equilíbrio, tirou um cigar
ro e fósforos do bolso dos jeans. - É muito raro estar virada
para falar com alguém sobre a minha patente . Em especial
com rapazinhos que nem sequer olham para mim quando falo
com eles. Expulsavam-me a toque de caixa do raio da Mari
nha. - Sem acender o cigarro, pôs-se em pé de repente, perfi
lou-se extremamente direita, formou uma oval com o polegar
e o indicador da mão direita, levou essa oval à boca e, como
se tocasse um instrumento de sopro, fez soar qualquer coisa
parecida com um toque de clarim. Lionel levantou os olhos
de imediato. Era mais do que provável que tinha consciência
de ser a fingir, mas no entanto parecia profundamente exitado,
NOVE HISTÓRIAS 93
vez e fez força para dar mais um arroto, mas não lhe saiu à al
tura. Veio-lhe à cara uma ponta de apreensão. - Eh, antes que
me esqueça . Amanhã temos de n o s levantar às cinco e ir
a Hamburgo ou a um sítio desses. Vamos buscar blusões Eise
nhower para todo o destacamento.
X, fitando-o com hostilidade, disse que não queria ne-
nhum blusão Eisenhower.
Clay pareceu surpreendido, até um nada magoado.
- Olha que são bons ! Têm bom ar. Porque não ?
- Por n a d a . Porque t e m o s de n o s levantar à s cinco ?
A guerra acabou, caraças.
- Não sei . . . Temos de estar de volta antes do almoço. Re
ceberam mais uns impressos que temos de preencher antes do
almoço . . . Perguntei ao Bulling porque é que não os preenchía
mos hoje à noite ... Ele tem a merda dos impressos em cima da
mesa. Mas não quer abrir j á os envelopes, o filho da mãe.
Ficaram os dois calados uns instantes, maldizendo Bulling.
Subitamente, Clay olhou para X com renovado - maior -
interesse. - Ei - disse ele. - Sabias que tens o raio de um
lado da cara todo aos saltos ?
X disse que estava farto de saber, e tapou o tique com a
mão.
Clay ficou a olhar para ele um bocado e depois disse, com
uma certa vivacidade, como se fosse o mensageiro de notícias
excecionalmente boas: - Escrevi à Loretta a dizer que tu es
tavas com um esgotamento nervoso.
- Sim ?
- Sim. Ela tem um interesse do caraças por toda essa tre-
ta. Está a especializar-se em psicologia. - Clay estendeu-se na
cama, sapatos incluídos. - Sabes o que ela disse ? Disse que
ninguém apanha um esgotamento nervoso só por causa da
guerra e tal. Diz ela que se calhar tu já eras instável, o raio da
vida toda.
1 22 J.D. SALINGER
RUA . . . . . . . . . , N . 0 1 7
. . . . • . • . • . • • . . , ÜEVON
7 DE JUNHO D E 1 9 44
CARO SARGENTO X,
Espero que me desculpe ter demorado 38 dias para dar iní
cio à nossa correspondência, mas tenho andado extremamente
ocupada, pois a minha tia contraiu estreptococos na garganta
e esteve à beira da morte e tenho-me visto j ustificadamente so
brecarregada com uma responsa bilidade a seguir à outr a . No
entanto tenho pensado em si com frequência e na tarde extre
mamente agradável que passámos na companhia um do outro
no dia 30 de abril de 1 944, entre as 3 h45 e as 4h 1 5 , caso não
o tenha presente.
Estamos todos tremendamente entusiasmados e subj ugados
com o Dia D e só esperamos que ele traga uma pronta conclu
são da guerra e de um método de existência que é ridículo para
não dizer mais . Charles e eu estamos bastante preocupados
consigo; esperamos que não estivesse entre aqueles que fizeram
o primeiro assalto inicial na península de Contentin. Estava ?
Por favor, responda o mais prontamente possível. As mais calo
rosas lembranças à sua mulher.
Com amizade,
ESMÉ
O LÁ O LÁ O LÁ O LÁ O LÁ
O LÁ O LÁ O LÁ O LÁ O LÁ
BEIJ O S E ABRAÇOS
CHALES
- Sim. Sei lá. Poça, não te deixo dormir. Porque não vou
mas é cortar a . . .
- Ouve u m minuto - disse o homem de cabelo grisalho.
- Primeiro . . . agora estou a falar a sério . . . vai-te deitar e des-
cansa. Toma um bom copo para aconchegar e enfia-te debai
xo dos . . .
- Um copo ! Estás a brincar ? Poça, enfiei quase u m litro
no raio das duas últimas horas. Um copo! Estou com um tal
pifo que mal posso . . .
- Está bem. Está bem. Enfia-te n a cama, então - disse
o homem de cabelo grisalho. - E descansa . . . estás a ouvir ?
Diz a verdade. Serve de alguma coisa ficares para aí sentado
a ralar-te ?
- Pois é, eu sei. Eu nem sequer me preocupava, caraças,
mas não se pode confiar nela ! Palavra de honra. Palavra de
honra que não se pode. Confiar nela é o mesmo que atirar
uma . . . nem sei o quê. Oooh, de que é que serve ? Estou a per
der o raio da cabeça.
- Está bem. Deixa lá isso, agora. Deixa lá isso, agora.
Queres fazer-me um favor e ver se tiras tudo isso da cabeça ?
- disse o homem de cabelo grisalho. - Com o pouco que sa
bes, estás a fazer . . . Sinceramente acho que estás a ferver em
pouca . . .
- Sabes o que é que e u faço ? Sabes o que é que eu faço? Até
tenho vergonha de to dizer, mas sabes que raio me apetece fazer
todas as noites? Quando chego a casa ? Queres que te diga ?
- Arthur, ouve. Não é agora o . . .
- Espera u m segundo . . . vou-te dizer, porra. Praticamente
tenho de me controlar para não ir abrir o raio de todos os
roupeiros do apartamento . . . Palavra de honra. Todas as noi
tes quando chego a casa, estou meio à espera de descobrir um
bando de sacanas escondidos por toda a parte. Ascensoristas.
Marçanos. Polícias . . .
132 J . D . SALINGER
não gosto dela. Sei lá. Gosto e não gosto. Varia. Flutua. Poça !
Sempre qúe estou decidido a bater o pé, vamos j antar fora,
por uma ou outra razão, e eu vou-me encontrar com ela num
sítio qualquer e ela aparece-me com o raio de umas luvas bran
cas ou coisa assim. Sei lá. Ou começo a pensar na primeira
vez que fomos a New Haven ver o j ogo da Princeton. Tive
mos um furo mesmo à saída da Alameda, estava um frio de
rachar, e ela ficou a segurar a lanterna enquanto eu resolvia
o raio daquela treta . . . Sabes o que eu quero dizer. Sei lá. Ou
então começo a pensar . . . Poça, até tenho vergonha . . . Começo
a pensar no raio de uma poesia que lhe mandei quando come
çámos a andar juntos. « Rosa minha cor é e branco, Linda bo
ca e verdes meus olhos. » Poça, até tenho vergonha . . . mas fa-
zia-me pensar nela. Ela não tem olhos verdes . . . tem uns olhos
que parecem o raio de umas conchas, caraças . . . mas fazia-me
pensar nela, sej a como for. . . Sei lá. De que serve falar nisso ?
Estou a perder o juízo. Desliga, porque não desligas ? A sério.
O homem de cabelo grisalho clareou a garganta e disse:
- Não faço tenções de te desligar o telefone, Arthur. Mas
há uma coisa . . .
138 J . D . 5ALINGER
Dizia-lhe que a única razão por que lho perguntava era porque
essa informação me ajudaria a orientá-la de forma mais eficaz.
Virtualmente do mesmo fôlego, perguntava-lhe se estava auto
rizada a receber visitas no convento.
As últimas linhas (ou centímetros cúbicos) da minha carta
devem, acho eu, ser aqui retranscritas - com a sintaxe, a pon
tuação, e tudo .
- Como ?
- Podia-me dizer a que horas começa hoje o jogo ?
A rapariga fez-lhe um sorriso d� batom. - Que j ogo, meu
querido ? - perguntou ela.
- Sabe qual é. Aquele j ogo de palavras que houve ontem
e anteontem, em que tem de se dizer as palavras que faltam.
O mais importante é pôr tudo em contexto.
A rapariga deteve-se a meio de enfiar três folhas de papel
no agrafador. - Ah - disse ela. - Só lá mais para a tarde,
acho eu. Acho que é por volta das quatro. Não é um bocado
puxado de mais para ti, querido ?
- Não, não é . . . Obrigado - disse Teddy, e fez menção de
se afastar.
- Espera um bocado, meu querido ! Como te chamas ?
- Theodore McArdle - disse Teddy. - E você ?
- Eu ? - disse a rapariga, sorrindo. - Sou a alferes Mat-
hewson.
Teddy observou-a a pressionar o agrafador. - Sabia que
era alferes - disse ele. - Não tenho a certeza, mas acho que
quando lhe perguntam o nome devia dizer o seu nome com
pleto. Jane Mathewson, ou Phyllis Mathewson, ou o que for.
- Oh, a sério ?
- Como disse, é o que eu acho - disse Teddy. - Mas
não tenho a certeza. Pode ser diferente quando se usa unifor
me. Sej a como for, obrigado pela informação. Adeus! - Deu
meia-volta e tomou as escadas para o Convés de Passeio, no
vamente duas a duas, mas desta vez mais depressa.
Encontrou Booper, depois de a ter procurado algum tem
po com os olhos, mais acima no Convés Desportivo . Estava
num espaço ensolarado - uma clareira, quase - entre dois
cortes de ténis de convés que não estavam a ser usados. Aga
chada, com o sol nas costas e uma brisa ligeira a encrespar-lhe
os sedosos cabelos loiros, estava ocupada a empilhar doze ou
catorze discos de j ogos de convés em dois montes tangentes,
NOVE HISTÓRIAS
R e c o m p e n s a a d e q u a d a e a g r a d á vel a q u e m o e n c o n t r a r
e prontamente devolver a Theodore McArdle.
delas, em vez de outro aspeto qualquer que pode ser tão bom,
ou mesmo muito melhor do que esse . . . Não sei. Fazia-as só
vomitar o pedaço da maçã que os pais e os outros lhes tinham
dado a trincar.
- Não havia o risco de se estar a educar uma pequena ge
ração de ignorantes ?
- Porquê ? Não seriam mais ignorantes d o que o é um ele
fante. Ou um pássaro. Ou uma árvore - disse Teddy. - Só
porque uma coisa é de certa maneira, em vez de se comportar
de certa maneira, não quer dizer que seja ignorante.
- Não ?
- N ã o ! - d i s s e Teddy . - Além d i s s o , s e q u i s e s s em
aprender as outras tretas todas, nomes e cores e essas coisas,
podiam fazê-lo, se lhes apetecesse, mais tarde quando fossem
mais velhos. Mas eu gostaria que começassem por todas as
verdadeiras maneiras de olhar para as coisas, e não só da ma
neira como todos os outros comedores de maçãs olham para
as coisas, é isso que eu quero dizer. - Aproximou-se de Ni
cholson, e estendeu-lhe a mão. - Tenho de ir, agora. A sério.
Gostei muito . . .
- S ó u m segundo . . . sente-se u m minuto - disse Nichol
son. - Alguma vez pensou se iria gostar de fazer alguma coi
sa na investigação quando for crescido ? Investigação médica,
ou coisa do género ? Na minha opinião, com a sua capacidade
mental, podia vir a . . .
Teddy respondeu, mas sem s e sentar: - Pensei nisso uma
vez, há uns dois anos - disse ele. - Falei com um bom nú
mero de médicos. - Abanou a cabeça. - Era capaz de não
me interessar muito. Os médicos ficam demasiado à superfí
cie. Estão sempre a falar de células e coisas dessas.
- Ah ? Não dá importância à estrutura celular ?
- Dou, claro que dou. Mas os médicos falam sobre célu-
las como se elas só por si tivessem uma importância ilimitada.
210 J . D . SALINGER