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drummond

lúcio costa

L
juscelino

sérgio buarque
Lúcio Costa,
Gregori Warchavchik
e Roberto Burle Marx:

C
18
síntese entre
arquitetura e natureza
tropical
ABILIO GUERRA

REVISTA USP, São Paulo, n.53, p. 18-31, março/maio 2002


ABILIO GUERRA
é professor da Faculdade
de Arquitetura e
Urbanismo da PUC-
Campinas, ex-editor da
Óculum, atual editor de
Vitruvius e co-autor de
Rino Levi – Arquitetura e
Cidade (Romano Guerra).
“A solução colonialista que
L úcio Costa (1902-98) faria 100 anos

em 2002, ano em que se sucedem

merecidas homenagens a um

dos principais intelectuais do

Brasil. Já são significativos também os es-

forços analíticos enfocando sua obra, rea-

lizados por intelectuais de porte, como Yves


O presente artigo é amplamente
baseado em: Abilio Guerra, Lúcio
Costa: Modernidade e Tradição.
Montagem Discursiva da Arquite-
tura Moderna Brasileira, tese de
doutorado, Campinas, Unicamp,
2002.

condenara a grande palmeira


Bruand, Carlos Martins, Hugo Segawa,
imperial não fizera mais do Otília Arantes, Margareth da Silva Pereira,
que copiar os jardins Sophia da Silva Telles e outros. Nossos es-

românticos, avant la lettre, do tudos pessoais têm se voltado para a

elucidação do processo de montagem dis-


fim do século XVIII. Burle
cursiva da arquitetura moderna brasileira,
Marx mostrou o caráter falso
processamento artificial de conferir retros-
dessa pretensa solução ao ir pectivamente uma suposta organicidade a

buscar o material de que um processo histórico que passa a ser con-

carecia nas fontes verdadeiras, siderado, a partir dessa ótica, como a sín-

tese entre o ideário moderno europeu e as


isto é, na vegetação brasileira
raízes da cultura brasileira. Montagem em
de recursos inesgotáveis, que, certamente, o pensamento de Lúcio
desde a floresta amazônica, de

C
Costa é peça-chave. No nosso entendimen-

onde nos trouxe espécimes em to, o juízo proferido por Lúcio Costa – na

realidade uma interpretação e adaptação


todo o esplêndido vigor de sua
pessoal do ideário forjado pelo modernis-
selvajaria, aos fundos das
mo paulista, em especial por Mário e
casinhas de caboclo ou à beira Oswald de Andrade – de tão repetido tor-

dos caminhos, onde foi nou-se um axioma intocável há até bem

apanhar plantas e flores pouco tempo. Como diz Otília Arantes, a

versão do arquiteto carioca comporta-se


abandonadas, desprezadas,
como uma “história exemplar de forma- 1 Mário Pedrosa, “Arquitetura e
mas familiares à ambiência da ção”, uma espécie de “conto bem urdido”,
Atualidade”, in Dos Murais de
Portinari aos Espaços de
Brasília, São Paulo, Perspecti-
roça brasileira, como os cães uma “fantasia exata que veio desde então va (coleção Debates, n. 170),
1981, p. 267.

vagabundos, sem donos, dos assumindo proporções mitológicas, tal o 2 Otília Beatriz Fiori Arantes,
“Lúcio Costa e a Boa Causa
sucesso com que cada obra da Moderna da Arquitetura Moderna”, in
fundos de quintal” Otília Beatriz Fiori Arantes e
Paulo Eduardo Arantes, O Sen-
Arquitetura Brasileira, grandiosa ou não, tido da Formação. Três Estu-
(Mário Pedrosa) (1). dos sobre Antonio Candido,
reforçava a fábula de sua própria origem Gilda de Mello e Souza e Lú-
cio Costa, São Paulo, Paz e
miraculosa” (2). Terra, 1997, p. 126.

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Tal fenômeno só foi possível por estar valor originário – de que o jardim é um ar-
Lúcio Costa dos dois lados do tapume: no tifício que deve reintegrar o homem à sua
terreno da prática, como o líder primeiro paisagem natural.
dos jovens arquitetos brasileiros que dari- Os ensinamentos que recebeu ainda
am ao mundo o primeiro “arranha-céu” mo- muito jovem de Lúcio Costa se incrusta-
derno segundo os princípios corbusianos – ram de tal forma em seu modo de ver o
o edifício-sede do Ministério da Educação mundo que parecia não se dar conta do fato.
e Saúde Pública, no Rio de Janeiro; e no Nas diversas entrevistas dadas – que é o
terreno das idéias, como principal teórico material que dispomos diante de sua atitu-
do grupo e autor intelectual da visão que de refratária ao texto teórico –, as referên-
entende a história da arquitetura tupiniquim cias de Burle Marx ao velho mestre são
como um religio dos liames quebrados entre sempre simpáticas, mas se restringem, em
o moderno e a tradição. Durante o período geral, ao comentário do episódio de sua
em que seus postulados vigoraram como iniciação profissional nas artes do paisa-
verdades históricas, poucas vezes se en- gismo e à rica experiência da convivência
trou no mérito dos compromissos assumi- pessoal, mas sem entrar no mérito das cla-
dos que, de tão extensivos e profundos, da- ras influências intelectuais. “Quando jo-
vam à arquitetura um protagonismo decisi- vem, vivia na mesma rua que Lúcio Costa.
vo na própria história do país. As demandas Ele me conheceu quando eu tinha 14 ou 15
3 Roberto Burle Marx, “Depoi- de responsabilidade dos arquitetos corres- anos e esse fato contribuiu para minha car-
mento”, in Alberto Xavier (org.),
Arquitetura Moderna Brasileira: ponderiam a um extenso arco, que ia da reira. Ele viu o jardim que eu realizava em
Depoimento de uma Geração,
São Paulo, ABEA/FVA/Pini, materialização estética da racialidade até a minha própria casa e, como naquele tempo
Projeto Hunter Douglas, 1987, instalação adequada do homem brasileiro construía a residência de uma família
pp. 300-4. Entrevista publica-
da originalmente em: Damián no território tropical. É justamente sobre a Schwartz, convidou-me a fazer também
Bayón, Panorâmica de la
Arquitectura Latino-Americana,
participação de Lúcio Costa neste último aquele jardim” (3). Contudo, não há, no
Barcelona, Editorial Blume, aspecto, atuação pouco conhecida e explo- nosso entendimento, como compreender a
1977, pp. 40-63. Em entrevis-
ta a Ana Rosa de Oliveira, rada, que nos deteremos aqui. Ao contrário fundo a obra paisagística de Roberto Burle
muitos anos depois, ele volta a de outros acontecimentos e desenvolvimen- Marx sem levar em conta o tributo devido
dizer praticamente a mesma
coisa: “Eu tive sorte porque tos históricos em que sempre ocupou papel a Lúcio Costa.
Lúcio Costa morava na mesma
rua que a minha família. Eu o principal, no caso específico da constitui- É recorrente nos textos sobre Burle Marx
conheço desde os 9 anos. Se ção de um pensamento paisagístico moder- o papel decisivo que teve em sua vida a
hoje tenho 82 e ele tem 90
anos… Isso lhe mostra o que o no brasileiro ele terá um papel menos desta- descoberta das plantas brasileiras apresen-
convívio com pessoas que co-
nhecem… Uma lição de arqui-
cado, mas não menos decisivo, pois caberá tadas como espécimes exóticos em jardim
tetura do Lúcio é uma lição de a ele a formação do principal protagonista. berlinense. O episódio foi elevado à condi-
mestre”. Roberto Burle Marx,
“Roberto Burle Marx Entrevista- O arquiteto-paisagista Roberto Burle ção de mito formador pelo próprio paisa-
do por Ana Rosa Oliveira”, in Marx (1909-94) cumprirá, na evolução da gista, que se referiu ao fato diversas vezes:
Vitruvius, São Paulo, Entrevista,
fev./1992, <www.vitruvius. arquitetura moderna brasileira, um papel de “Fiz uma viagem à Alemanha em 1928,
com.br/entrevista/burlemarx/
burlemarx.asp>. primeira grandeza, não só pelo seu reconhe- onde vivi um ano e meio em Berlim. Essa
4 Roberto Burle Marx, “Depoi-
cido talento pessoal, que resultou numa obra viagem me influenciou muito. No Jardim
mento”, op. cit. Em outra oca- inovadora, mas também pela função-chave Botânico de Dahlem, que era um jardim
sião, afirmou quase o mesmo,
mas dando os créditos ao botâ- que desempenhará na legitimação dos exem- extraordinário, vi pela primeira vez uma
nico responsável: “Em Berlim, plares arquitetônicos como verdadeiros es- grande quantidade de plantas brasileiras,
freqüentei assiduamente o Jar-
dim Botânico de Dahlem. Esse, pécimes brasileiros. Ao longo de sua exten- usadas pela primeira vez com objetivos pai-
cujas coleções de plantas, agru-
padas por Engler sob critérios sa vida profissional – em que teve a oportu- sagísticos. Nós, brasileiros, não as usáva-
geográficos, foram para mim nidade única de formar dupla com Lúcio mos, por considerá-las vulgares. Compre-
vivas lições de botânica e eco-
logia. Foi ali onde pude apreci- Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo endi então que, em meu país, a inspiração
ar pela primeira vez, de forma
sistemática, muitos exemplares
Reidy, Rino Levi, Vilanova Artigas e outras deveria se basear, sobretudo, nas espécies
da flora típica do Brasil. Eram estrelas de primeira e segunda grandeza de autóctones” (4). O quanto essa lembrança
espécies belíssimas quase nun-
ca usadas em nossos jardins”. nossa arquitetura – Roberto Burle Marx é fidedigna ou uma memória fabricada re-
Roberto Burle Marx, “Roberto percorreu caminhos variados, fez experiên- troativamente não temos – infelizmente –
Burle Marx Entrevistado por Ana
Rosa Oliveira”, op. cit. cias diversas, mas sempre mantendo um como estabelecer. Mas é pouco provável

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Parque do
Flamengo, vista
do Jardim do
Aquário, Rio
de Janeiro
(RJ). Roberto
Burle Marx,
1969.
Abaixo, Jardim
da Casa Forte,
perspectiva,
Recife (PE).
Roberto Burle
Marx, 1934-37

que em 1928 as impressões de encantamen- pioneirismo no transplante para o Brasil dos


to com as plantas autóctones brasileiras princípios da arquitetura moderna européia,
tivessem levado Burle Marx à convicção teríamos dois elementos que atestam a preo-
de uma utilização necessária. Afinal, há um cupação com a tradição nacional e com a
passo a ser dado aqui: não é uma valoração paisagem nativa – a varanda posterior e os 5 Gregori Warchavchik era
concunhado do pintor russo
plástico-paisagística que condiciona uma jardins. A questão já foi abordada anterior- Lasar Segall. Ambos judeus,
utilização exclusivista, mas sim um julga- acabaram se casando com as
mente por Agnaldo Farias: irmãs Mina e Jenny, da rica e
mento mais fundo de conveniência, que culta família Klabin. O paren-
tesco e o compartilhamento do
acreditamos só ter sido possível na sua “A fachada posterior, com sua varanda ideário modernista os coloca-
experiência ao longo dos anos 30. formada pelo telhado esparramado, apre- ram no circuito das discussões
em curso e que tinham nos
Sua primeira obra profissional, o jar- senta certa familiaridade com as constru- Andrades suas figuras de proa.
dim da casa de Alfredo Schwartz, de 1932,
colocou-o em contato mais íntimo não só
com Lúcio Costa, mas também com Gregori
Warchavchik (1896-1976), sócio do arqui-
teto carioca na ocasião. O arquiteto russo já
havia anteriormente, em projetos residen-
ciais construídos em São Paulo, dado gran-
de importância ao jardim, contando aqui
com a colaboração de sua esposa, Mina
Klabin. Demonstrando que sua condição de
migrante estrangeiro não o deixou imune às
discussões em curso no modernismo paulis-
ta (5), acabou se enfrentando com o tema da
brasilidade, mas de uma forma subsidiária
pois lhe faltava tanto a vivência como o es-
tudo sistemático em relação às questões
abordadas. Já na mítica casa da Rua Santa
Cruz, de 1927-28, marco histórico de

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ções tradicionais brasileiras, que não se ter tropical, em redor da casa, contém toda
pode advertir contemplando-se apenas a a riqueza das plantas típicas brasileiras” (9).
fachada principal. Warchavchik alega que
justamente ali estaria, além do paisagismo A tênue preocupação com a tradição –
realizado por sua esposa, Mina – paisagismo tênue mas não desprezível, se levarmos em
que, aliás, estaria sempre marcando uma conta a presença da telha colonial de obras
expressiva presença nas obras futuras do muito posteriores de arquitetos brasileiros
arquiteto –, um exemplo da sua tentativa de – vai ser abandonada em suas obras seguin-
construir uma arquitetura que se harmoni- tes, mas não a importância dada aos jar-
zasse com a tradição do país” (6). dins, que passam a ser considerados um
contraponto que acabariam valorizando
Estas observações estão fundadas em pelo contraste as formas geométricas do
alguns depoimentos da época e foram de- projeto arquitetônico. Em carta datada de
vidamente registradas por Geraldo Ferraz, 1930 e enviada ao arquiteto Sigfried
responsável pelo primeiro estudo impor- Giedion, secretário-geral do Ciam,
tante realizado sobre o arquiteto russo. Em Warchavchik explica a função da vegeta-
1928, Couto de Barros, redator-chefe do ção em seus projetos: “os nossos aliados
Diário Nacional, assinala a consonância mais eficientes, pelo menos no Brasil, são
entre a arquitetura e o jardim da Casa Mo- a natureza tropical que emoldura tão favo-
dernista, destacando a autoria de Mina ravelmente a casa moderna com cactos e
6 Agnaldo Aricê Caldas Farias,
Gregori Warchavchik: Introdu- Klabin na concepção do arranjo de cactos outros vegetais soberbos e a luz magnífica,
tor da Arquitetura Moderna no e palmeiras que “dão ao conjunto uma nota que destaca os perfis claros e nítidos das
Brasil, Campinas, dissertação
de mestrado, IFCH-Unicamp, feliz de tropicalismo e disciplina” (7). No construções sobre o fundo verde escuro dos
1990, p. 16.
ano seguinte, o pedagogo e idealizador do jardins” (10). Esse papel dado à vegetação
7 R. Couto de Barros, Diário Na-
cional , 17/7/1928. Apud conceito de escola-parque Anísio Teixeira – de moldura tropical para o edifício mo-
Geraldo Ferraz, Warchavchik destaca em entrevista a brasilidade da obra: derno – tem um alcance muito restrito e
e a Introdução da Nova Arqui-
tetura no Brasil: 1925 a 1940, “nunca tive uma impressão mais forte da obteve nas mãos do casal Warchavchik um
São Paulo, Museu de Arte,
1965, p. 26.
casa brasileira […] como quando visitei a desenvolvimento acanhado, principalmente
sua residência de linhas fortes e claras, se compararmos anacronicamente com as
8 Anísio Teixeira, “Como a Inteli-
gência Nova do Brasil vê São construída toda de cimento, ferro e vidro, posteriores soluções paisagísticas de Burle
Paulo”, in Diário da Noite, 22/
10/1929, apud Geraldo dentro de uma moldura de gigantescos cac- Marx. Contudo, a utilização da flora nativa
Ferraz, op. cit, p. 27. tos nacionais. A obra era brasileira porque com a clara intenção de acomodação regio-
9 Gregori Warchavchik, in Cor- era um consórcio inteligente entre o espíri- nal da arquitetura moderna internacional,
reio Paulistano, 8/6/1928,
apud Geraldo Ferraz, op. cit., to do homem e as características da terra” mencionada em diversas ocasiões pelo ar-
p. 27. (8). Mas será o próprio arquiteto, em artigo quiteto russo e visível para os intelectuais
10 Idem, ibidem, p. 51. para o Correio Paulistano, que falará com da época, foi solapada da compreensão
11 Geraldo Ferraz, “Falta o Depoi- mais propriedade das próprias intenções: evolutiva de nossa arquitetura com o claro
mento de Lúcio Costa”, in Diá-
rio de São Paulo, 1/2/1948. intuito de reforçar a versão posterior de
Republicado em: Lúcio Costa,
Sobre Arquitetura (org. Alberto
“Não querendo copiar o que na Europa está Lúcio Costa para o surgimento da “Arqui-
Xavier), Porto Alegre, Centro se fazendo, inspirado pelo encanto das pai- tetura Moderna Brasileira”.
dos Estudantes Universitários de
Arquitetura, 1962, pp. 119- sagens brasileiras, tentei criar um caráter Um avanço no tempo se faz necessário.
22. Em 1947, organizado pela de arquitetura que se adaptasse a esta re- Em 1948, Geraldo Ferraz irá contestar o
revista Anteprojeto dos estudan-
tes da Faculdade Nacional de gião, ao clima e também às antigas tradi- epíteto de pioneiro da arquitetura contem-
Arquitetura, foi publicado um
álbum – Arquitetura Contempo- ções desta terra. Ao lado de linhas retas, porânea no Brasil atribuído a Lúcio Costa
rânea no Brasil – que reunia nítidas, verticais e horizontais, que consti- e cobra do arquiteto carioca um depoimen-
fotografias de projetos e obras
construídas, procurando, em tuem, em forma de cubos e planos, o prin- to para desfazer o que chamou de “falsea-
linhas gerais, mostrar o traba-
lho dos arquitetos brasileiros,
cipal elemento da arquitetura moderna, fiz mento informativo” e “escamoteação da
principalmente a partir de uso das tão decorativas e características verdade histórica” (11). Em tom panfletário,
1940. Era dedicado “ao ar-
quiteto Lúcio Costa, mestre da telhas coloniais e creio que consegui idear Ferraz advoga a primazia de Gregori
arquitetura tradicional e pionei- uma casa muito brasileira, pela sua perfeita Warchavchik e Flávio de Carvalho, que
ro da arquitetura contemporâ-
nea no Brasil”. adaptação ao ambiente. O jardim, de cará- num ambiente cultural sem cultivo e hostil,

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enfrentando a ignorância sórdida dos detra- chômage (13), a maior parte não construí-
tores, teriam conseguido pensar e construir dos, são resultados, segundo sua própria
as primeiras edificações modernas no país. opinião, do estudo sistemático que faz dos
Seriam eles, ainda no final dos anos 20, os baluartes da arquitetura moderna européia:
legítimos representantes brasileiros das “a clientela continuava a querer casas de
vanguardas européias, cabendo a eles por- estilo – francês, inglês, colonial – coisa que
tanto a homenagem de pioneirismo. Lúcio eu então não conseguia mais fazer. Na falta
Costa não fugiu da provocação. Sua res- de trabalho, inventava casas para terrenos
posta, contudo, foi desconcertante. Aban- convencionais de doze metros por trinta e
donando a polidez que lhe era característi- seis – Casas sem Dono. E estudei a fundo
ca, desloca por completo a argumentação as propostas e obras dos criadores, Gropius,
ao afirmar que “arquitetura não é Far- Mies van der Rohe, Le Corbusier” (14).
West”, não adiantando, portanto, “perde- Observando os projetos das casas sem
rem tempo à procura de pioneiros” (12). A dono, de Mies van der Rohe, pouco se vê –
questão essencial não estaria em se saber talvez apenas o caráter introspectivo, se-
qual foi o primeiro edifício moderno ou melhante ao presente nas casas-pátio da dé-
qual arquiteto sofreu mais com a hostilida- cada de 30 –, mas os desenhos mostram um
de conservadora ou reacionária, mas em Lúcio Costa familiarizado com o arsenal
verificar onde residia a colaboração quali- corbusiano, em especial os pilotis, e tam-
tativa e diferenciada que daria à arquitetura bém com a rigorosa geometria de Gropius, 12 Lúcio Costa, “Carta Depoimen-
moderna uma trajetória peculiar em nosso mas no registro dado por Warchavchik – os to”, datada de 20 de fevereiro
de 1948 e publicada n’O Jor-
país. Surge aqui uma nuance que fará car- volumes simples e homogêneos contras- nal, de 14 de março de 1948.
Republicada em Lúcio Costa,
reira vitoriosa nas cenas crítica e histórica tando com a vegetação tropical adotados op. cit., pp. 123-8; e posteri-
brasileiras – de um lado, a arquitetura nas suas casas paulistas. Nas três casas sem ormente em idem, Lúcio Cos-
ta: Registro de uma Vivência,
moderna realizada no Brasil, segundo os dono de Lúcio Costa temos a presença as- São Paulo, Empresa das Artes,
1995. Trata-se de uma respos-
princípios estabelecidos na Europa, que sinalada e, em duas delas, temos redes pre- ta ao artigo de Geraldo Ferraz,
foram importados e aplicados em bloco, e sas em pilotis, tal como adotaria em “Falta o Depoimento de Lúcio
Costa”, de 1/1/1948.
que poderia muito bem ter acontecido em Monlevade, em 1934, e três décadas de-
13 Chômage, em francês, signifi-
qualquer outro país do mundo; de outro, a pois, no Pavilhão do Brasil na 13a Trienal ca tanto a situação de desem-
arquitetura moderna brasileira, algo inu- de Milão, em 1964 (15). Ainda nos anos 30 prego como a de inatividade.
Lúcio Costa dá ao termo um sig-
sitado e surpreendente, que vicejou única e projetaria para seu cunhado a chácara Coe- nificado muito próximo ao do
ócio criativo defendido pelos
tão-somente aqui, encontrando formas e lho Duarte segundo o mesmo encaminha- modernistas Mário de Andra-
soluções plásticas inusitadas, ganhando por mento, mas já demonstrando um visível de e Oswald de Andrade.

este motivo o interesse e os elogios da crí- maior controle dos elementos formais 14 Lúcio Costa, “Chômage 1932–
36”, in Lúcio Costa: Registro
tica estrangeira. modernos e utilizando pela primeira vez o de uma Vivência, op. cit., p.
Nas duas décadas que separam os pas- recuo do fechamento na planta inferior para 83.

sos iniciais da introdução da arquitetura a criação de uma varanda, fórmula repetida 15 Guilherme Wisnik faz interes-
sante ilação sobre a presença
moderna no Brasil e a instauração da visão com grande êxito no Park Hotel São Cle- das redes no Pavilhão Brasilei-
ro para a Trienal de Milão: “A
histórica de Lúcio Costa ocorreu o soter- mente vários anos depois. rede, no Brasil, é ao mesmo
ramento das intenções de “abrasileiramen- Roberto Burle Marx ensaia seus primei- tempo lugar de descanso e
reflexão. É também um objeto
to” defendidas por Gregori Warchavchik. ros passos profissionais justamente nesse artesanal dos mais finos, cuja
Mas, ao que tudo indica, tal formulação momento de incertezas e mudanças pelo tessitura denota um saber cons-
trutivo paciente e rigoroso.
original não passou desapercebida ao jo- qual passava Lúcio Costa, do qual, inevita- Suspensa pelo tensionamento
de cabos, ela parece revelar,
vem arquiteto Lúcio Costa. Recém-saído velmente, compartilhou. Convidado pelo como num ready-made às aves-
das hostes neocoloniais, não havia ainda próprio arquiteto carioca para ser profes- sas, a possibilidade de um lu-
gar artístico em que a
encontrado um caminho seguro a seguir sor da Escola Nacional de Belas Artes e gratuidade significa, ao mes-
mo tempo, empenho, e em que
dentro da cena moderna, e no qual vai dar para ser seu sócio em escritório no Rio de chômage quer dizer produção
os primeiros passos em 1934, com os cro- Janeiro, Gregori Warchavchik acaba exer- e criatividade” (Guilherme
Wisnik, Lúcio Costa. Entre o
quis e memorial para a Vila Monlevade. Os cendo sobre Lúcio Costa uma ascendência Empenho e a Reserva, São
projetos desses anos incertos, que Lúcio momentânea, mas significativa e certamen- Paulo, Cosac & Naify, cole-
ção Espaços da Arte Brasilei-
Costa chama significativamente de te menosprezada pelos críticos e historia- ra, 2001, p. 49).

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dores. Mais do que informar ao anfitrião
carioca sobre soluções concretas da rela-
ção entre arquitetura moderna e paisagem
brasileira, a experimentação já em curso
do arquiteto russo assinalava o enorme
desafio envolvido – tanto no aspecto con-
ceitual como nos conhecimentos científi-
cos necessários –, desafios para os quais
não estava preparado e jamais viria a estar.
Com o passar do tempo, questões propos-
tas pelo casal Warchavchik e que merece-
ram um tímido desenvolvimento – tradi-
ção brasileira e natureza tropical – vão se
tornar centrais em Lúcio Costa e vai caber
a seu pupilo, o jovem Burle Marx, o papel
principal de enfrentamento de um dos de-
safios – integrar a arquitetura moderna na
paisagem tropical. Coincidência ou não, em
seu primeiro projeto paisagístico de maior
significação cultural, Burle Marx vai se
valer dos cactos – tão apreciados por Mina
Warchavchik (16) – para obter o tão alme-
jado selo de brasilidade em seu jardim.
Em 1935, na condição de diretor de
Parques, subordinado à Diretoria de Ar-
quitetura e Construções da cidade do Reci-
fe, Burle Marx vai projetar o Cactário
Madalena para a Praça Euclides da Cunha.
Essa e outras propostas de jardins para
Casa sem Dono Recife causaram uma enorme celeuma jun-
nº 1, nº 2 e nº 3. to às elites locais e contavam com a simpa-
tia dos intelectuais modernos recifenses –
Lúcio Costa, Gilberto Freyre, Joaquim Cardozo, Cícero
década de 30 Dias e outros. Os conservadores, liderados

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por “Mário Melo, do Instituto Arqueológi- natureza e, com elas, construir jardins fei-
co do Recife, reagem ao que entendem ser tos pelo e para o homem” (22). Muitas vezes
uma tentativa de devolver a cidade para a pode haver um grande prejuízo quando o
selva”. Numa contenda em que os dois la- autor do jardim não consegue compreen-
dos querem ocupar a mesma trincheira de der a realidade natural do local, aquilo que
defesa da brasilidade – repetindo curiosa- não foi elaborado pelo homem, o que o
mente o confronto entre modernos e impossibilitará de criar algo devidamente
neocoloniais na década anterior –, as ar- relacionado com o preexistente. É o que
mas usadas são muito distintas: enquanto ocorreu, segundo Burle Marx, com um pai-
Melo apela para o passado heróico local sagista japonês contratado para realizar o
ofendido com a retirada de um monumento jardim do Palácio da Alvorada, a residên-
comemorativo, Burle Marx vai se defender cia oficial do presidente da República em
dizendo que está “semeando a alma brasi- Brasília, que não teria compreendido a pai-
leira e divulgando o senso de brasilidade” sagem brasileira, dando ao local um cará-
16 “Os cactus, sem dúvida, junta-
(17). ter paisagístico japonês (23).
mente com a vegetação
A defesa que Burle Marx faz da utiliza- No entanto, as reações aqui e acolá con- parcimoniosa do paisagismo
de Mina Warchavchik, iriam
ção dos cactos no Recife não se baseia ape- tra os projetos de Burle Marx se fundam sempre valorizar as obras do
nas em suas qualidades paisagísticas intrín- em gostos arraigados, que esperam de um arquiteto. Funcionando como
esculturas, eles, com sua rigi-
secas, mas sobretudo na sua adequação por jardim algo que não se conhece, gosto que dez orgânica e sua aparência
áspera, fazem contraponto
ser nativa da região. Advoga, já na ocasião, mantém correspondência com o desenvol- com a assepsia geométrica da
a utilização quase exclusiva de espécimes vimento de tradições específicas do obra arquitetônica, como é o
caso desta residência localiza-
locais, abrindo exceção apenas para situa- paisagismo. Sempre haverá quem ache da na rua Itápolis, projetando
nas superfícies limpas e bran-
ções em que há grande semelhança entre o encantador a diferença – um parque exube-
cas o nanquim recortado das
clima original e o do transplante (18). Mas rante de plantas tropicais no meio de uma suas sombras” (Agnaldo Aricê
Caldas Farias, op. cit., p. 19).
no Brasil, onde o número de espécies au- cidade moderna de clima temperado ou
17 Apud Vera Beatriz Siqueira,
tóctones de árvores e arbustos é infindável, então um parque com vegetação européia Burle Marx. Paisagens Trans-
não haveria razão para uso de plantas exó- disciplinada com rígida geometria em meio versas, São Paulo, Cosac &
Naify (coleção Espaços da
ticas, cujo grande prejuízo é transformar o ao caos urbano de uma cidade de algum Arte Brasileira), 2001, p. 18.
caráter da paisagem (19). Sua atuação no país pobre e populoso. Cabe aqui uma per- 18 “A magnólia grandiflora é uma
exterior muitas vezes provocou estupor ou gunta que contém implicações diversas: por árvore da América do Norte.
Pode-se usá-la na Argentina
mesmo decepção ao adotar o mesmo prin- que um jardim deve utilizar necessariamen- porque existem algumas plan-
tas que vão bem com o clima
cípio, como é o caso do jardim que realizou te plantas nativas da região? Ora, qualquer e que dão a impressão que
em Viena em 1962 (20) e os jardins da que seja a resposta, ela não conseguirá se sempre existiram na paisa-
gem”. Roberto Burle Marx, “De-
Exposição Internacional de Caracas (futu- restringir a aspectos paisagísticos estritos, poimento”, op. cit., p. 309.
ro Parque del Este) na segunda metade da pois não há como justificar que uma ambi- 19 Idem, ibidem.
década de 50 (21). ência seja boa ou ruim, ou que as texturas 20 “Lembro-me de um jardim que
O princípio defendido pelo paisagista resultantes de uma certa composição fiz em Viena, no ano de 1962.
As pessoas ficaram desiludidas
não pode ser confundido com um naciona- vegetativa sejam bonitas ou feias apenas porque pensaram que eu ia
fazer – no centro da Europa –
lismo esquemático, pois prevê uma apro- pela preexistência ou não das espécies uti- um jardim tropical. Que eu ia
fundada observação do lugar específico lizadas na região. Os valores de onde se pôr orquídeas nos álamos, tre-
padeiras da selva subindo
onde será implantado o projeto paisagístico. irradia o julgamento de valor encontram- pelos pinheiros. É claro que
não fiz nada disso, porque
Então, dentro do mesmo país ou mesmo se em outro âmbito, do qual seria muito estou convencido de que cada
dentro de uma região geográfica pode ha- difícil nos ocuparmos caso fôssemos obri- clima tem a sua flora, cuja uti-
lização tem que estar de acor-
ver incompatibilidades, como explica o pró- gados a nos restringir às falas esparsas de do com o meio físico” (idem,
prio Burle Marx: “Eu creio que, para fazer- Burle Marx e caso não tivéssemos a límpida ibidem, p. 311).

mos um jardim, temos que começar por en- explanação de Mário Pedrosa, que dedicou 21 “Recordo um fato, quando eu
trabalhava no Parque del Este,
tender o ambiente, o meio ambiente. Se eu ao paisagista ao menos dois artigos. na Venezuela. Havia gente que
se aproximava para olhar, e
faço um jardim para o Amazonas, esse Num deles, chamado “Arquitetura Paisa- cujo único comentário era: Isso
mesmo jardim não pode servir para o Rio gística no Brasil” e publicado no Jornal do é puro mato!” (idem, ibidem).

de Janeiro ou São Paulo. Temos que com- Brasil em 9 de janeiro de 1958, Mário 22 Idem, ibidem, pp. 305-13.
preender que devemos utilizar plantas da Pedrosa lembra a péssima reputação da na- 23 Idem, ibidem, p. 308.

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tureza brasílica perante as gerações passa- sagem, que nos enchia de terror. A casa
das: “o fato é que essa natureza natural, isto brasileira, no princípio, não foi uma mora-
é, tropical e exuberante, não era bem vista da, mas uma espécie de trincheira” (25).
pelos nossos avós. Dela se tinha medo” (24). Esse “terror” provocado pelo ambiente
Pedrosa retoma aqui os argumentos desen- hostil seria uma constante na vida do colo-
volvidos por José Lins do Rego alguns pou- nizador, provocando uma sensação de pe-
cos anos antes no artigo “O Homem e a rene estranhamento, de não pertencimento,
Paisagem”, publicado na revista francesa que se materializa em uma acomodação no
L’Architecture d’Aujourd’hui. O literato território que reflete fielmente a dimensão
paraibano trata de maneira sintética a aco- psíquica – sítios protegidos por paliçadas,
modação do homem no território brasileiro muros e muralhas, mínimos territórios da
desde a descoberta e colonização pelos cultura e civilização humanas, resguarda-
portugueses. Em sua ótica, o que teríamos dos da natureza hostil e inclemente. A ar-
como constante na relação homem-paisa- gumentação de Lins do Rego, por sua vez,
gem em toda a história do Brasil seria uma recupera antiga concepção de Graça Ara-
reiterada impossibilidade de harmonia – “o nha, o terror cósmico diante da natureza,
homem se opunha à natureza”; “[vivia] em tratada com pretensões filosóficas no livro
permanente luta com a paisagem”; “nada ensaístico Estética da Vida (26), publicado
24 Mário Pedrosa, “Arquitetura
Paisagística no Brasil, 1958”, de carinho para com a terra”. A agressivi- em 1921, mas que já tinha sido suporte nar-
in Dos Murais de Portinari aos dade do meio, o predomínio da imponência rativo para seu famoso romance Canaã de
Espaços de Brasília, p. 282.
e exuberância da mata tropical, o temor 1902, em que as ações e as percepções dos
25 José Lins do Rego, “O Homem
e a Paisagem”, in Alberto Xavier frente ao nativo tapuia, esses e outro fato- personagens são condicionadas pelo meio
(org.), Depoimento de uma
Geração , op. cit., p. 301. res da mesma ordem teriam caracterizado natural:
Publicado originalmente em o habitat humano como um refúgio, um
francês na revista L’Architecture
d’Aujourd’hui (n. 42-43, Paris, abrigo, uma fortaleza, ou seja, uma espécie “A floresta tropical é o esplendor da força
ago/1952, pp. 8-14).
de locus apartado das avassaladoras forças da desordem. Árvores de todos os tama-
26 José Pereira Graça Aranha, A naturais e preexistentes. “Era preciso, por- nhos e de todas as feições; árvores que se
Estética da Vida, Rio de Janei-
ro, Livraria Garnier, 1921. tanto, viver em permanente luta com a pai- alteiam, umas eretas, procurando empare-

Praça Euclides
da Cunha,
Recife (PE).
Roberto Burle
Marx, 1935

26 REVISTA USP, São Paulo, n.53, p. 18-31, março/maio 2002


lhar-se com as iguais e desenhar a linha de
uma ordem ideal, quando outras lhes saem
ao encontro, interrompendo a simetria, entre
elas se curvam e derreiam até ao chão a
farta e sombria coma. […] Se por entre as
folhas secas amontoadas no solo se escapa
um réptil, então o ligeiro farfalhar delas
corta a doce combinação do silêncio; há no
ar uma deslocação fugaz como um relâm-
pago, pelos nervos de todo o mato perpassa
um arrepio, e os viajantes que caminham,
cheios de solidão augusta, voltam-se in-
quietos, sentindo no corpo o frio elétrico
do pavor…” (27).

A concepção mesológica abraçada por


Graça Aranha, de grande influência no fi-
nal do século XIX, adentra o século XX e
perpassa a produção intelectual e artística a força expressiva de um Lúcio Costa e um Casa da Rua
brasileira, inclusive a moderna. Ela aca- Niemeyer foi uma criação intrinsecamente
lenta um desejo de harmonia e correspon- nossa, algo que brotou de nossa própria vida.
Santa Cruz,
dência entre a natureza tropical e o homem O retorno à natureza e o valor que vai ser jardim com
que busca se aninhar em seu seio. O medo, dado à paisagem como elemento substan-
grupo de
o terror, precisava ser amainado e caberia cial salvaram nossos arquitetos do que se
à cultura e em especial à arte o trabalho poderia considerar formal em Le Corbusier” cactáceas, São
necessário para esse fim. Se em Graça Ara- (28). Paulo (SP).
nha temos um desejo ou uma promessa, em
Gregori
José Lins do Rego já temos uma constata- A constatação de Mário Pedrosa per-
ção. Ao primeiro coube participação desta- corre os mesmos argumentos. Durante o Warchavchik,
cada na Semana de Arte Moderna de 22, longo período que vai da colônia ao Impé- 1927-28
sendo um dos principais responsáveis pela rio, os jardins que foram plantados pelos
adesão modernista à convicção mesológica portugueses no Brasil refletiram a inade-
que supõe a íntima relação entre cultura quação e a falta de intimidade do coloniza-
humana e meio natural. O segundo, partici- dor com a natureza. Eles – os jardins – eram
pante da terceira fase do modernismo bra- “pedantes e artificiais, sem raça e sem vi-
sileiro, momento em que a ânsia vanguar- gor, sem a alma da terra que lá fora arreben-
dista já tinha sido substituída pela acomo- tava, pujante e luxuriante, nos arbustos e
dação da literatura regionalista de extrato plantas locais, nas flores selvagens dos
moderno, confere ao processo ocorrido campos e das florestas, as quais por vezes
dentro da arquitetura um final feliz. Entre vinham até a beira do caminho, ali pertinho,
um e outro – projeto de futuro e narrativa bem defronte dos grandes jardins” (29). O
do passado – acontece a visita do arquiteto questionável nos jardins exóticos não se
suíço-francês Le Corbusier ao Brasil e a encontra nas texturas, colorações, massas,
instauração da Arquitetura Moderna Bra- volumes ou dos odores que abrigam, mas
sileira. na inadequação que expressam entre ho-
mem e paisagem natural. 27 Idem, Canaã, Rio de Janeiro,
3a ed., Nova Fronteira, 1981,
“Le Corbusier foi, portanto, o ponto de par- Seguindo o receituário modernista de pp. 50-1.
tida para que a nova escola de arquitetura Mário de Andrade, e defendido por Lúcio 28 José Lins do Rego, op. cit., p.
303.
brasileira pudesse se exprimir com uma Costa no âmbito da arquitetura, Mário
grande espontaneidade e chegar a soluções Pedrosa entende que o paisagismo – tal 29 Mário Pedrosa, “Arquitetura
Paisagística no Brasil”, op. cit.,
originais. Como a música de Villa-Lobos, como as outras artes – só tem sentido e ganha p. 283.

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um estatuto superior se interpretar de for- a arquitetura moderna brasileira encontrou
ma coerente o caráter nacional. O paisa- seu ambiente, sua integração na natureza.
gismo moderno brasileiro deveria expres- E as plantas nacionais plebéias, como, por
sar de forma harmônica a relação entre o exemplo, os crótons nativos de que temos
homem brasileiro e a natureza tropical, mais de uma dúzia de variedades, nos tons
recorrendo, como arte que é, a uma forma mais belos e transparentes, obtiveram carta
de expressão adequada, não se restringin- de entrada nos novos jardins. E o pintor,
do à aplicação de conhecimentos em Burle Marx, viu logo, na riqueza desses
especializados recentes de ciências como tons, o material ideal para inaugurar no país
botânica, biologia e ecologia, ou de práti- uma verdadeira arte paisagística” (30).
cas ancestrais de horticultura e jardinagem.
Assim como o conhecimento da língua Se a matéria-prima – no caso, a nature-
coloquial e do folclore regional permitiu za – é brasileira, as idéias estéticas são for-
ao escritor uma expressão literária superi- temente marcadas pela modernidade euro-
or, ou o inventário de modinhas e cantos péia. O conhecimento dos princípios for-
populares possibilitou ao compositor uma mais da abstração pictórica e a sólida com-
música elevada – casos exemplares de preensão dos valores defendidos pelas van-
Mário de Andrade e Villa-Lobos –, o co- guardas, aos quais Burle Marx teve acesso
nhecimento sistemático e abrangente da ainda na década de 20, o habilitaram a
flora brasileira e das especificidades eco- manipular e a codificar de forma apropria-
lógicas e climáticas constituiria uma con- da os elementos naturais orgânicos e
dição necessária, mas não uma condição inorgânicos, transcendendo a situação ori-
suficiente, para a elaboração de uma arte ginal de natureza intocada e obtendo uma
paisagística relevante e adequada. E esse paisagem transformada onde homem e
30 Idem, ibidem.
papel histórico necessário encontrou al- natureza se reencontraram. Assim, “o jar-
31 Ana Rosa de Oliveira, “A Cons-
trução Formal do Jardim em
guém que o encarnasse: dim de Burle Marx não se subordina à na-
Roberto Burle Marx”, in tureza, à arquitetura, ao lugar, à tradição,
Vitruvius, São Paulo, Texto Es-
pecial Arquitextos, n. 004, jul. “Foi então que chegou Burle Marx, jovem, mas sua identidade existe em equilíbrio com
2001, <www.vitruvius.com. robusto, nativo, revolucionário, e acabou eles” (31). Ou, agora nas palavras de Mário
br/arquitextos/arq000/
esp004.asp>. com todos esses preconceitos. Graças a ele, Pedrosa, Burle Marx “tende, antes a definir

Praça do
Museu de Arte
Moderna,
Aterro do
Flamengo, Rio
de Janeiro
(RJ). Roberto
Burle Marx,
década de 60

28 REVISTA USP, São Paulo, n.53, p. 18-31, março/maio 2002


Praça Salgado
Filho no Aterro
do Flamengo,
Aeroporto
Santos Dumont,
Rio de Janeiro
(RJ). Roberto
Burle Marx,
1938
o espírito do lugar. Estruturando os espa- comentário, entremeado por passagens re-
ços circundantes, procura o artista criar um tiradas do relatório da expedição:
contra-ritmo, que ao mesmo tempo isola a
unidade arquitetônica para que ela se defi- “O objetivo principal da expedição é am-
na e expanda, numa espécie de acentuação pliar o vocabulário jardinístico, através da
ou complementação de seu partido e de seu descoberta de novas plantas, além de valo-
programa, e a integra num todo com o meio rizar a flora brasileira, renovando o espí-
ambiente, o clima, a atmosfera, a luz, a rito dos viajantes europeus oitocentistas,
natureza, enfim” (32). tais como Von Martius, Saint-Hilaire e
O processo de criação artística em Gardner. A rotina austera de observação,
paisagismo mantém, portanto, uma com- coleta de espécies, documentação e catalo-
pleta simetria com as outras artes, segundo gação, embalagem das plantas vivas, 32 Mário Pedrosa, “O Paisagista
o velho esquema de Mário de Andrade: um prensagem e secagem do material de Burle Marx, 1958”, in Dos Mu-
rais de Portinari aos Espaços
primeiro momento de levantamento exten- herbário, aliada aos hábitos de dormir em de Brasília, op. cit., p. 287.
sivo da variabilidade de espécies existen- acampamentos nos postos de gasolina e de 33 A analogia do seu trabalho
fazer apenas duas refeições ao dia, contri- com a pintura e outras artes
tes em estado natural e uma pesquisa era usual no discurso de Burle
aprofundada das relações que elas mantêm buiu para acirrar o tom científico e aventu- Marx: “Não quero fazer um
jardim que seja somente pintu-
entre si e com o meio onde vivem; e um reiro da viagem” (34). ra. Mas também não posso
segundo momento de elaboração formal, deixar de reconhecer que a
pintura influiu muito em minhas
de criação estética, em que a matéria-pri- Colada na própria descrição do paisa- concepções de paisagismo.
Trata-se de certos princípios,
ma disponível se eleva ao estatuto de arte gista, a historiadora não se dá conta de que princípios gerais de arte, que
segundo valores subjetivos ou objetivos do as semelhanças entre as expedições são estão indissoluvelmente ligados
entre si. Essa é a coisa mais
artista (33). É exatamente por esse motivo grandes, mas também o são as diferenças. importante. Saber como esta-
belecer um contraste, como
que Burle Marx vai reeditar as velhas via- As viagens dos naturalistas estrangeiros utilizar uma vertical, a analo-
gens de estudos dos modernistas paulistas, eram missões científicas de levantamen- gia de formas, de volumes, a
seqüência de certos valores.
agora não mais para conhecer fazendas e tos, em que os envolvidos, quase sem exce- São princípios que se podem
igrejas esquecidas nas vilas coloniais, mas ção, objetivavam o trabalho de taxionomia aplicar à música, à poesia.
Sem esses princípios, creio
para descobrir orquídeas e bromélias. Co- das espécies encontradas, ou seja, a amplia- que, simplesmente, não se
pode praticar qualquer forma
mentando uma expedição científica reali- ção da classificação em curso dos seres de arte”. Roberto Burle Marx,
zada pelo paisagista à Amazônia – viagem vivos da natureza, no caso, vegetais. Evi- “Depoimento”, op. cit., pp.
307-8.
que dura 53 dias e passa, entre outros luga- dentemente os resultados seriam utilizados
34 Vera Beatriz Siqueira, op. cit.,
res, por Boa Vista, Serra do Caiapó, Cuiabá, nas mais diferentes áreas, inclusive a artís- p. 7. Em itálico, as passagens
Porto Velho, Manaus e Belém – a historia- tica, mas a finalidade das viagens, do ponto retiradas do relatório original
de Burle Marx e entre aspas no
dora Vera Beatriz Siqueira faz o seguinte de vista dos seus participantes, era muito texto da autora.

REVISTA USP, São Paulo, n.53, p. 18-31, março/maio 2002 29


objetiva e específica. No caso de Burle Marx, exploratórias da tradição e da natureza, Vera
sua viagem é a primeira parte do seu traba- Beatriz Siqueira obtém um resultado mui-
lho – o trabalho de campo da coleta –, e a to limitado sobre a genealogia da operação
segunda, tão ou mais importante do que intelectual realizada por Burle Marx: ou
esta, se daria em prancheta, com desenhos ela não existe – seria ela uma geração es-
e croquis, e in loco na implantação do pro- pontânea ou uma invenção de sua lavra –,
jeto. Do ponto de vista cultural e histórico, ou ela simplesmente não tem importância.
as expedições dos estrangeiros, financia- Vale ressaltar que a historiadora aponta com
das direta ou indiretamente pelos governos clareza os dois momentos do trabalho do
centrais, constituem a ponta avançada e paisagista aos quais nos referimos anteri-
aparentemente neutra do colonialismo eu- ormente: “articulam-se, portanto, dois pro-
ropeu, enquanto as viagens do paisagista cedimentos: o ecológico e o lingüístico. Por
brasileiro fazem parte do esforço coletivo, um lado, observar e respeitar a relação da
empreendido pelas elites intelectuais dos planta com o seu hábitat, seus processos de
grandes centros urbanos, de desvendamento crescimento, germinação e florescimento;
da desconhecida realidade do imenso inte- por outro, transformar cada planta em sig-
rior do país. Se nos aspectos científico e no de um discurso plástico coerente” (36).
aventureiro as viagens se assemelham, o Como descrição do trabalho isolado de
mesmo não pode ser dito dos aspectos pro- Burle Marx, está perfeito!
fissional, histórico e simbólico. A obra do mais importante paisagista
Se for para fazer um paralelo, seria muito brasileiro vai passar por mudanças no as-
mais oportuno, em nossa opinião, compa- pecto expressivo, mas o cerne vai perma-
rar as viagens de Burle Marx com as reali- necer sempre – a predileção pela planta au-
zadas pelos modernistas paulistas na déca- tóctone. A hegemonia de uma visão mais
da de 20 e com as dos arquitetos do Sphan ecológica do início, e que tem no conjunto
a partir da década de 30. Vera Beatriz de jardins recifenses sua grande expressão,
Siqueira não faz qualquer ilação nesse sen- vai cedendo aos poucos espaço para as preo-
tido, como de resto não faz qualquer tipo de cupações formais cada vez mais alinhadas
paralelo entre o procedimento estético de com a evolução das artes plásticas moder-
Burle Marx e os princípios desenvolvidos nas na Europa. Já no início da década de 40,
por Mário de Andrade e Lúcio Costa nas quando se ocupa dos jardins do edifício-
suas buscas pela brasilidade na cultura e na sede do Ministério de Educação e Saúde,
arte brasileiras. Salvo engano de nossa Burle Marx abandona as formalizações
parte, o arquiteto carioca é mencionado uma mais clássicas em prol da abstração. O pró-
única vez – episódio do convite para o jar- prio paisagista tem consciência da trans-
dim na casa Schwartz (35) – e o escritor formação, apesar de insistir em coerências
paulista está ausente de seu livro. O que retroativas: “Inicialmente meus jardins ti-
não deixa de ser intrigante, afinal a discus- veram um enfoque ecológico. Mas esse
são sobre a opção preferencial pela planta enfoque é bastante relativo. Eu fiz, por
autóctone é uma presença constante na ar- exemplo, o jardim do MEC com umas
gumentação da historiadora e sua busca, manchas bastante abstratas, pois nessa épo-
em excursões ao ar livre, foi uma constante ca eu já conhecia Arp. De modo que não se
na vida do paisagista. pode dizer que meus jardins, mesmo nos
Em setembro de 1965, durante uma seus inícios, tivessem uma preocupação es-
expedição botânica no Morro do Chapéu, sencialmente ecológica” (37).
interior da Bahia, Burle Marx presenciaria O paisagista Fernando Tábora, seu co-
a morte do arquiteto paulista Rino Levi, laborador durante anos, tinha uma clareza
35 Idem, ibidem, p. 11.
com quem compartilhou durante anos da maior da trajetória do mestre: “seu salto
36 Idem, ibidem, p. 33. amizade e do prazer pelas viagens de estu- evolutivo do classicismo de Pernambuco
37 Roberto Burle Marx, “Roberto do e coleta. Ao não dar atenção aos víncu- para as amebas do MEC equivale aos mes-
Burle Marx Entrevistado por Ana
Rosa Oliveira”, op. cit. los intelectuais existentes entre as jornadas mos passos dados pelos arquitetos da épo-

30 REVISTA USP, São Paulo, n.53, p. 18-31, março/maio 2002


ca, tal como Lúcio Costa no Brasil e materializada com o trabalho sincero dos
Villanueva na Venezuela; do academicismo homens cultos, com os olhares sempre pos-
para a Modernidade. O valor de Burle Marx tos nos princípios herdados da tradição.
foi de ter dado o salto junto com eles” (38). Esta, por sua vez, era concebida como re-
A composição com formas livres, em geral sultante da interação entre o homem e o
ondas amebóicas coloridas que se expan- meio físico natural, portadora portanto da
dem e reverberam nas massas vegetativas, alma profunda de um povo. São convic-
passou a conviver com uma abstração geo- ções de extrato romântico que tiveram for-
métrica mais rígida a partir de meados dos te presença na cultura brasileira desde a
anos 50 e início dos anos 60. É bem prová- segunda metade do século XIX e das quais
vel que Burle Marx tenha assimilado, cons- nosso modernismo não escapou. A busca
ciente ou inconscientemente, a crítica cres- de uma arquitetura moderna que fosse es-
cente que se fazia na Europa – Max Bill e sencialmente brasileira é fruto dessas con-
Bruno Zevi, principalmente – à gratuidade vicções mescladas com o ideário moderno
da forma livre na arquitetura moderna bra- originário da Europa, do qual nos abstive-
sileira. O endereço principal da crítica era mos de falar pela restrição de espaço e por
Oscar Niemeyer, mas não seria de estra- ser por demais conhecido. A síntese busca-
nhar que o paisagista tivesse se incomoda- da por Roberto Burle Marx entre a brasi-
do com as observações ácidas e adotado lidade da flora e os princípios formais pre-
um novo arsenal formal, em que impera sentes na pintura moderna européia é aná-
um controle mais rígido do projeto. loga à integração entre tradição colonial e
Burle Marx passou a compartilhar com arquitetura moderna proposta por Lúcio
Lúcio Costa, desde o início da sua vida Costa. Simetria que, longe de se tratar de
profissional, um conjunto de valores cultu- uma coincidência fortuita, revela um pro-
rais que convergiam para a brasilidade, à fundo arraigamento no cenário arquitetô-
qual os intelectuais deveriam consagrar, nico brasileiro de idéias e princípios que 38 Entrevista de Fernando Tábora
a Ana Rosa de Oliveira, 8/1/
como um princípio ético, uma humilde obe- compartilharam, o paisagista como um dos 1997, apud Roberto Burle
diência. Uma brasilidade virtual em mui- mais ilustres materializadores, o arquiteto Marx, “Roberto Burle Marx En-
trevistado por Ana Rosa Oli-
tos aspectos, que deveria ser conquistada e como o mais importante forjador. veira”, op. cit.

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