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A Primeira

Carta de
Pedro
Um comentário exegético-teológico

Reinhard Feldmeier

Editora

SiNODAL J>EST
A Primeira

Carta de
Pedro
Um comentário exegético-teológico

Reinhard Feldmeier

o tema da IPedro é a autocompreensão dos cristãos e a sua relação com o


mundo dentro de uma sociedade que os rejeita e, por isso mesmo, os faz sofrer.
Nesse sentido, ela é inicialmente um importante documento histórico para a intera­
ção do cristianismo primitivo e seu entorno com a cultura helenístico-romana.

Ao mesmo tempo, esta “carta pastoral” atualiza tradições bíblicas e extrabí-


blicas, colocando-as a serviço de uma melhor orientação para a vida e o comporta­
mento dos cristãos. A IPedro transforma-se, dessa maneira, num testemunho elo­
quente das características assumidas pela teologia do cristianismo emergente em
meio aos processos de reorientação religiosa ao final do século I d.C. Nesse senti­
do, a carta adquiriu grande importância tanto para a “praxis pietatis” dos que vie­
ram a crer quanto para a formação dos dogmas na igreja, importância essa que exce­
de em muito o seu contexto histórico imediato.

A preocupação da carta em subsidiar os cristãos com diretrizes de fé e com­


portamento que não os colocassem à margem do mundo nem inserido'
mente em sua lógica fez e faz com que a IPedro apresente teologia con
prática na melhor acepção da palavra.

ISBN 978-85-233-0922-0

jí!)ESt 11
9 788523 309220
A Primeira Carta de Pedro
Um Comentário Exegético-Teológico

Reinhard Feldmeier

Editora
FACULDADES 2009 _
EST S iN O D A L
Traduzido do original “Der erste Brief des Petrus” - Theologischer
Handkommentar zum Neuen Testament, 15/1 © 2005 by Evangelische
Verlagsanstalt GmbH, Leipzig, Alemanha.

Direitos para a língua portuguesa pertencem à


Editora Sinodal, 2009
Rua Amadeo Rossi, 467
Caixa Postal 11
93001-970 São Leopoldo/RS
Tel./Fax: (51) 3037 2366
editora@editorasinodal.com.br
W W W . editorasinodal. com. br

Tradução: Uwe Wegner


Revisão: Brunilde Arendt Tornquist

Produção editorial e gráfica: Editora Sinodal

Publicado sob a coordenação do Fundo de Publicações Teológicas/Pro­


grama de Pós-Graduação em Teologia da Faculdades EST.
Tel.: (51) 2111 1400 Fax: (51)2111 1411
est@est.edu.br www.est.edu.br

F312p F e ld m e ie r, R e in h a r d
A P r i m e i r a C a r t a d e P e d r o : u m c o m e n t á r io e x e g é t ic o -
t e o ló g ic o / R e in h a r d F e ld m e ie r; [tra d u ç ã o d e] U w e W e g n e r. -
S ã o L e o p o ld o : S in o d a l/ E S T , 2 0 0 9 .

2 4 6 p . ; 1 5 ,5 x2 2 ,5 cm .
T itu lo o rig in a l: D e r e r s te B r ie f d e s P e tr u s T h e o lo g is c h e r
H a n d k o m m e n ta r z u m N e u e n T e s ta m e n t.
IS B N 9 7 8 -8 5 -2 3 3 -0 9 2 2 -0

1. B ib lia . 2. N o v o T e s ta m e n to . I. W e g n e r, U w e. II. T itu lo .

C D U 22 5

Catalogação n a publicação: Leandro Augusto dos Santos Lim a - CRB 10/1273


Para Myrta
GRATIDÃO
Devo aos estudantes em Koblenz, Bayreuth e Gõttingen, que, sem
consideração à relevância dos exames, deixaram-se interessar por
esta carta em preleções e seminários, tendo incentivado - por meio
da sua reflexão e trabalho conjuntos - bem mais a presente interpre­
tação do que possivelmente lhes é consciente. Devo gratidão também
aos meus colaboradores, Sra. Dr®. Francês Back, Sr. Dr. Rainer Hirsch-
Luipold e, em especial, ao Sr. Dr. Jan Dochhorn, que leram o manus­
crito e sempre me obrigaram, por suas perguntas criticas, a ler a Pri­
meira Carta de Pedro de forma ainda mais exata. Felix Albrecht pre­
parou o manuscrito para a impressão com louvável minuciosidade e
competência. A ele, bem como ao tradutor Dr. Uwe Wegner, à revisora,
Sra. Brunilde Arendt Tornquist, e ao Fundo de Publicações Teológi­
cas da Faculdades EST, que acolheu a obra em sua série de comentá­
rios exegético-teológicos, sou igualmente grato.
Dedico este livro à minha filha mais nova, Myrta, que compartilha
comigo do amor pelo Brasil.

Reinhard Feldmeier
SUMÁRIO

Abreviaturas ................................................................................... 9

INTRODUÇÃO ................................................................................ 15
§ 1: “Fogo ardente” (IPe 4.12). A situação do sofrimento............. 15
§ 2: “Forasteiros” (IPe 1.1; 2.11).
A interpretação teológica da situação................................... 25
§ 3: “Exortando e testificando” (IPe 5.12).
A composição da carta........................................................... 28
§ 4; “Renascimento” e “povo de Deus”. A sobreposição
das dimensões vertical e horizontal da soteriologia.............. 33
§ 5: “Porque está escrito: [...]!” (IPe 1.16). A IPedro e a tradição... 35
§ 6: “Pedro”, apóstolo de Jesus Cristo (IPe 1.1).
Questões introdutórias.......................................................... 38
a) Unidade..............................................................................38
b) Form a.................................................................................39
c) A u tor..................................................................................42
d) Data de composição........................................................... 46
e) Local de redação................................................................ 47
í) Destinatários...................................................................... 49
§ 7: História da interpretação........................................................ 50

INTERPRETAÇÃO...........................................................................53
I. Pré-escrito. Os destinatãrios como forasteiros
e povo de Deus (1.1-2)............................................................... 53
II. Ã razão da existência como forasteiros (1.3 - 2.10).
O renascimento e o povo de Deus............................................. 63
1. O renascimento (1.3 - 2 .3 )....................................................... 63
1.1 Eulogia introdutória: renascimento e alegria no
sofrimento (1.3-12)............................................................. 63
1.1.1 Louvor pelo agir salvífico deDeus(1.3-5)..................... 64
Excurso 1: Esperança................................................................... 67
Excurso 2: “Incorruptível, sem mácula e imarcescível” - recepção
e transformação de predicados metafísicos de Deus na 1 Pe ....... 73
1.1.2 Ãlegria e provação (1.6-7)..........................................77
Excurso 3: Tentação/ireLpaonóç....................................................... 79
1.1.3 Crer sem ver (1.8-9)................................................... 82
Excurso 4: Alma e salvação das almas na IPe ............................. 84
1.1.4 Os profetas (1.10-12) ................................................. 87
Resumo (IPe 1.3-12)..................................................................... 90
1.2 Renascimento e nova conduta (1.13- 2 .3 )..........................91
1.2.1 “Esperança comprometedora”(1.13) ...........................93
1.2.2 Obediência como correspondência ã santidade
de Deus (1.14-16) ..................................................... 95
Excurso 5: As paixões............................................................. 96
1.2.3 O Pai e Salvador como contraparte de uma
existência de fé(1.17-21)...........................................100
Excurso 6: Deus como j u i z ....................................................... 101
1.2.4 Amor como comprovação da nova vida (1.22-25)...... 110
1.2.5 Renascimento e recomeço (2.1-3) ..........................114
Excurso 7; Renascimento.............................................................115

2. Os renascidos como povo de Deus (2.4-10)...........................119


2.1 A edificação como casa espiritual (2.4-8).........................120
2.2 Os forasteiros como povo de Deus (2.9-10).......................125
Resumo........................................................................................ 128

III. A comprovação em terra estranha (2.1 - 5.11).......................130


1. Exortação e consolo (2.11 - 4.11)........................................... 130
1.1 Vivendo como forasteiros(2.11-12)....................................130
1.2 A comprovação na sociedade (2.13 - 4.6) ........................135
1.2.1 Subordinação à autoridade como testemunho
(2 .1 3 -3 .1 2 ).............................................................135
Excurso 8: O contexto das exortações ã subordinação.............. 137
A. Submissão ã autoridade (2.13-17)...............................141
B. Submissão e valor dos escravos (2.18-25).................. 148
C. A exortação ãs mulheres e aos homens (3.1-7)........... 157
D. As exortações finais a todos (3.8-12)............................163
E. Síntese (IPe 2.11 - 3.12)............................................. 166
Excurso 9: Cidadão submisso e emancipado...............................167
1.2.2 Hostilizações do entorno como desafio (3.13 - 4.6) . 169
A. A bem-aventurança dos que sofrem (3.13-17)............ 169
B. A fundamentação cristológica (3.18-22)......................174
C. A “estranheza” em relação aos estranhos - O escândalo
de ser-diferente (4.1-6)................................................ 184
1.3 Exortações para o amor mútuo (4.7-11)............................189

2. Consolo e exortação (4.12 - 5.11)........................................... 194


2.1 Sofrimento como comunhão com Cristo(4.12-19)............. 194
2.2 Domínio e serviço na comunidade (5.1-5)....................... 201
Excurso 10: “Humildade”/TcnTeLyo4)poaiJvn......................................209
2.3 Exortação final e consolo (5.6-11).....................................211
2.3.1 A exortação final (5.6-9) ..........................................211
Excurso 11: Diabo/Satanás......................................................... 214
2.3.2 Encorajamento e doxologia finais(5.10-11)..............217

IV. Final da carta (5.12-14) ......................................................... 219

Literatura.....................................................................................223
ABREVIATURAS
1. Escritos Canônicos do Antigo e Novo Testamentos

As abreviaturas dos livros canônicos e o uso de pontuação nas referências aos diferentes
textos seguem o sistem a u sado p ela Sociedade B ib lica do B rasil e in corporado n a
versão da tradução de Alm eida.

2. Apócrifos (cãnon de Lutero)


IB ar = IB aru qu e Sab = Sabedoria de Salom ão
Jud = Judite Sir = Jesus Siraque
IM a c = IM acab eu s (Eclesiástico)
2M ac = 2M acabeus Tob = Tobias

3. Literatura parabiblica (pseudepigrafos)

A pM ois = Apocalipse de M oisés 3EN = 3Enoque


Ed./Trad. J. Dochhom (Enoque hebreu)
A ris = C arta de Aristeias Trad. H. H offm ann
Trad. N. M eisner JosA s = José e Asenet
A scis = A scensão de Isaías Ed./Trad. Ch.
Ed. P. Bettiolo Burchard
2Bar = 2Baruque Jub = Livro de Jubileus
(Baruque siriaco) Trad. K. Berger
Trad. A. F. J. lüijn 3Mac = 3M acabeus
3Bar = SBaruque Ed. A. Rahlfs
(Baruque grego) 4M ac = 4M acabeus
Ed. J.-C. Picard Ed. A. Rahlfs;
4Bar = 4Baruque Trad. H.-J. Klauck
(Paraleipom ena OdSal = Odes de Salom ão
Jerem iae) Ed. H. Charlesw orth
Ed. R. A. Kraft/ SlSal = Salm os de Salom ão
A.-E. FTirintun; Trad. S. Hohn-Nielsen
Trad. B. Schaller T estJó = Testam ento de JÓ
E pJer = E pistola de Jerem ias Ed. S. P. Brock;
= BAR 6 Trad. B. Schaller
V ulgata /Lutero T e s tX lI = Testam ento
Ed. J. Z iegler dos D oze Patriarcas
4 ED = 4Esdras T estB en = Testam ento
Ed. R. W eber de Benjam im
Trad. J. Schrein er T estD ã = Testam ento de D ã
lE N = 1 Enoque TestG ade = Testam ento de Gade
(Enoque etiope) T estiss = Testam ento de Issacar
Trad. S. U hlig T e s tL e v i = Testam ento de Levi
2EN = 2Enoque TestRub = Testam ento de Rúben
(Enoque eslavônico) Ed. M. De Jonge;
Trad. Ch. B ottrich Trad. J. B ecker
4. Autores pseudo-helenistas

Sib = Oráciolos sibilinos


Ed. J. G effcken
Trad. H. M erkel

5. Literatura de autores judeus-helenistas

Filo = Filo LegGaj = Legatio ad Gajum


Abr = De Abraham o Eld. Cohn-Wendland VI;
Ed. Cohn-Wendland IV; Trad. F. W. Kohnke
Trad. J. Cohn M igrAbr = De M igratione
A gric = De Agricultura Abraham i
Ed. Cohn-Wendland II; Ed. Cohn-W endland II;
Trad. I. H einem ann Trad. R. Posner
C h er = D e Cherubim MutNom = De Mutatione Nominum
Eld. Cohn-W endland I; Eld. Cohn-Wendland III;
Trad. L. Cohn Trad. W . T h eiler
C o n fL in g = De Confusione O m nProbLib = Q uod O m nis Probus
Linguarum Liber sit
Eki. Cohn-Wendland II; Eld. Cohn-Wendland VI;
Trad. E. Stein Trad. K. Borm ann
Congr = De Congressu OpM und = De O pificio M undi
Eruditionis Gratia Ed. C ohn-W endland I;
Ed. Cohn-Wendland III; Trad. J. Cohn
Trad. H. Lew y P la n t = De Plantatione
D ecal = De Decalogo Ed. Cohn-W endland II;
Eld. Cohn-Wendland IV; Trad. I. H einem ann
Trad. L. Treitel PosterC = De Posteritate Caini
D etPotIn s = Q uod D eterius Potiori Ed. Cohn-W endland II;
Insidiari Soleat Trad. H. Leisegang
Ed. Cohn-W endland I; QuaestEx = Quaestiones in Exodum
Trad. H. Leisegang Trad. R. M arcus:
Deusim m = Q uod D eus sit Exodus
Immutabüis QuaestG en = Q uaestiones in
Ed. Cohn-Wendland II; G en esin
Trad. H. Leisegang Trad. R. M arcus:
Ebr = D e Ebrietate G en esis
Ed. Cohn-Wendland II; R erD ivH er = Quis Rerum Divinarum
Trad. M. Adler H eres sit
Fug = De Fuga et Ed. Cohn-Wendland III;
In ven tion e Trad. J. Cohn
Eld. Cohn-Wendland ID; SacrAC = De Sacrificiis Abelis
Trad. M. A dler et Caini
G ig = De Gigantibus Ed. C ohn-W endland I;
Ed. Cohn-W endland II; Trad. H. Leisegang
Trad. H. Leisegang Som = De Som niis
Jos = De Josephe Ed. Cohn-Wendland III;
Ed. Cohn-Wendland IV; Trad. M. A dler
Trad. L. Cohn SpecLeg = D e Specialibus Legibus
L eg A ll = Legum Allegoriae Ed. Cohn-W endland V;
Ed. C ohn-W endland I; Trad. I. H einem ann
Trad. I. H einem ann

10
V it Cont =De V ita Contem plativa Ap • C ontra A pionem
Ed. Cohn-Wendland VI; B e ll ^ De Bell. Jud.
Trad. K. H erm ann V it ^V ita
Jos = Flavius Josephus Ed. B. Niese
Ant = Antiquitates

6. Qumrâ

CD =E scrito de Dam asco G ruta 1


Ed. F. G arcia Martinez; Ed. F. G arcia M artinez
Trad. M aier (v. 1) Trad. M aier (v. 1)
4 Q Flor = F loiilégio, G ruta 4 1 Q pH ab = ComentEirio de
(= 4Q174) Habacuque,
Ed. F. G arcía M artinez G ru ta 1
Trad. M aier (v. 2) Ed. F. G arcia M artinez
IQ G e n A p o k r = G ênesis Apócrifo Trad. M aier (v. 1)
G ru ta 1 1 QS = Regra d a Com unidade
Ed. F. G arcia M artinez Ed. F. G arcia M artinez
Trad. M aier (v. 1) Trad. M aier (v. 1)
1 QH = Hodayot (Rolo dos 4 Q ApoerJerC = A pócrifo de Jerem ias
Hinos) G ruta 4 (=4Q385B)
G ru ta 1 Ed. F. G arcia M artinez
Ed. E. G arcia M artinez Trad. M aier (v. 2)
Trad. M aier (v. 1) 6 QD = Fragm entos, G ru ta 6
1 QM = M ilcham ah (=6Q15)
(Rolo d a Guerra), Ed. F. G arcia M artinez
Trad. M aier (v. 1)

7. Literatura rabínica

18-preces = O ração das 18 preces mAV = Mishna, Tratado de Avot


(Sem one Esre) Eds. Trads. K. Marti/
Ed. W. Staerk G .B eer
bBer = Talm u d Babli, Tratado TJon = Targu m Jonathan
B erakhoth sobre Jr. Ed. A.
Trad. Goldschmidt (v. 1) Sperber
bSan = Talm u d Babli, Tratado Trad. R. H ayw ard
S an h ed rin TN = Targum Neoph 3rti 1
Trad. G oldsch m idt Ed./Trad. A. Diez
( V . VIII-IX) M acho
jM S h = Talm u d Yerushalm i, TPsJon = Targu m Pseudo-
Tratado M aaser Sherd Jonathan
Trad. R. U lm er Ed. G insburger
jS an = Talm u d Yerushalm i, tSan = Tosefta, Tratado
Tratado Sanhedrin S an h edrin
Trad. G. A. W ew ers Trad. B. Salom onsen

8. Pais apostólicos

Barn = C arta de Barnabé 2 Clem = 2 C arta de Clem ente


Ed./Trad. K. W engst Ed./Trad. K. W engst
IC lem = 1 C arta de Clem ente D id = D idaquê
Ed./Trad. J. A. Fischer Ed./Trad. K. W engst

11
Herrn = Pastor de Hernias Ed./Trad. J. A. Fischer
m = M andam entos Ig n P o I = C arta de Inácio a
s = Sim ilitudes P olicarpo
V = Visões Ed./Trad. J. A. Fischer
Ign E p h = C arta de Inácio aos IgnRom = Carta de Inácio aos
E fésios Romanos
Ed./Trad. J. A. Fischer Ed./Trad. J. A. Fischer
IgnM ag = C arta de Inácio aos Pol = C arta de Policarpo
M agnésios Ed./Trad. J. A. Fischer

9. Apócrifos (NT)

ActJ = Atos de João


Ed. M. Bonnet

10. Literatura da igreja antiga

A ctS cil = A cta Scilitanorum Eds. S. Brandt/


Ed. R. Knopf; G. von Laubm ann
Trad. H. Rahner M artPol = M artírio de Policarpo
Ed. R. K n op f
Athenag, Suppl = Athenagoras, Min, Oct = M in u ciu s Felix,
Supplicatio Octavius
Ed. E. J. G oodspeed Ed./Trad. B. Kytzler:
Aug, Pec = Aurelius Augustinus, Octavius
De Peccato O rig = O rigenes
Eds. K. F. Urba/ Cels = C on tra Celsum
J. Zych a Ed. P. Koetschau
ClAl, Strom = TFIavius Clem ens CommMt = C om m entariorum in
A le x a n d rin u s , M atthaeum Series
Stromata Ed. O. StäHin Ed. E. K losterm ann
T ert = Q Septim ius Florens
Eus = Eusebius T ertu llia n u s
H istE ccl = H istoria E cclesiastica Apol = Apologeticum
Eds. E. Schw artz/Th. Ed. E. Dekkers
M om m sen Cor = D e Corona
P ra ep E v = Praeparatio Evangéhca Ed. E. K roym ann
Ed. K. M ras Marc = Adversus M arcionem
Iren = Irenaeus Ed. E. K roym ann
H aer = Adversus H aereses R esu rC am = D e Resurrectione

Ed. A. Rousseau C arnis


E pid = E p id eix is Ed. J. G. Ph. B orleffs
Ed. A. Rousseau ScapuI = A d Scapulam
Just, A pol = Justinus M artyr, Ed. E. Dekkers
A pologia Ux = A d Uxorem
Ed. E. J. G oodspeed Ed. E. Kroym ann
Lact, MortPers = Lactantius, De Mortibus Th eoph il, A u to l = T h eoph ilu s, A d
Persecutorum A utolicum

12
11. Autores pagãos

A pu l = Apuleius Ed. A. T h ierfeld er


DeD eo = D e Deo Socratis Ed./ Ovid, M etam = PO vidius Naso,
Trad. M. Baltes M etam orfoses
Met = M etam orphoses Eds./ Exi./Trad. M. v. Albrecht
Trads. E. Brandt/ Plat = Plato
W. Ehlers: Apuleius Gorg = Gorgias
Aristot = A ristóteles Leg = Leges
Gael = De Caelo Ed. D. J. AUan P h ileb = Philebus
Oec = O econom ica Ed. / P o lit = Politicus
Trad. U. Victor Symp = Sym posium Ed./Trad.
Cic = M Tullius Cicero K. H ülser
NatD eor = D e N atura D eorum Plin , Ep = C Plinius Caecilius
Eds./Trads. O. G igon Secundus, Epistulae
L. Sttatrme-2jrnmerrnann Ed./Trad. H. Kasten
D eLeg = De Legibus Plu t = Plutarchus
Ed. C. B üchner Am at = Am atorius
CorpHerm = Corpus H erm eticum Ed. H. G örgem anns
Trad. J. H olzhausen DeCap = D e C apienda ex
DiodS = D iodorus Siculus In im icis U tilitate
Ed./Trad. C. H. Eds. Paton (v. 1) et al.
O ld fath er E D elp h = D e E apud Delphos
Epic, M en = Epicurus, Eds. W. Sieveking/
A d M enoeceum H. G ärtner
Ed./Trad. H.-W. Krautz F acL im = De Facie in Orbe Lunae
E pict = Epictetus Eds. C. H u bert et al.
D iss = D issertationes G en Socr = De Genio Socratis
Ed./Trad. W. A. Eds. Paton (v. 2) et al.
O ld fath er IsEtO s = De Iside et Osiride
E n ch = E n c h irid io n Eds. W. Nachstädt et al./
Ed. J. Schw eighaeuser Trad. H. G örgem anns
Hes = H esiodus Num = V itae ParaUelae:
Op = O pera et Dies Lycurgus et N u m a
Ed./Trad. A. von Pom p iliu s
S ch irn d in g Ed. K. ziegler
Th eog = T h eogon ia PraecC on iu g = Praecepta C oniugalia
Ed./Trad. A. von Eds. Paton (v. 1) et al.
S ch irn d in g P yth O r = De i ^ h i a e O raculis
Horn, 11 = H om erus, llias Eds. W. Sieveking/
Ed./Trad. H. Rupé H. G ärtner
L iv = Titu s Livius SerN um V ind = De S era Num inis
Ed./Trad. H. J. HiUen V in d ita
Luc = Lucianus Eds. Paton (v. 2) et al.
A le x = A lexan der sive Trad. H. Görgem anns
Pseudom antis Superst = De Superstitione
Ed./Trad. H arm on Eds. Paton (v. 1) et al.;
PergrM ort = De Peregrini M orte Trad. H. G örgem anns
Ed. P ilh ofer Polyb = Polybius
M Ant = M arcus Aurelius Trad. H. Drexler:
A n to n in u s Polybios
Ed./Trad. Ch. R. Haines P o rp h yr = Porphyrius
M en and = M enander A d vC h rist = Adversu s Christianos

13
Ed. A. V . H arnack Suet = CSuetonius TranquiUus
Marc = AdM arcellam Caes (Claudius)= D e V ita Caesarum ,
Ed. A. Nauck sobre: Claudius
P s P la t ^ Pseudo-Plato Caes (Domitian)= D e V ita Caesarum ,
A ie ^ Alkibiades sobre: D om itian
Ax ^ A xioch u s Caes (Nero) = De V ita Caesarum ,
Ed./Trad. K. H ülser sobre: Nero
Sallust, DeD eis ■ Sallustius, De Deis et Ed./Trad. M artinet:
Mundo Suetonius
Ed./Trad. A. D. N ock Tac, A n = Cornélius Tacitus,
Sen, Ep = LAnnaeus Seneca, A n a les
Epistulae Ed./Trad. E. H eller
Ed./Trad. F. Loretto Th eogn = Th eogn is, Elegie
Soph, Ant = Sophocles, Antigone Ed. D. You ng
Ed. A. C. Pearson; Xenoph, M em = X enophon,
Trad. R. W oerner M em orabilia Socratis
Ed./Trad. P. Jaerisch

12. Inscrições e papiros

AP = A ram aic Papyri TA D 1 = Textbook o f A ram aic


Ed./Trad. A. C ow ley D ocum ents, v. 1
SIG = SyUoge Inscriptionum Eds./Trads. B. Porten/
Graecarum A. Y ard en i
Ed. W. D ittenberger

13. Outras abreviaturas

A .C . = antes de Cristo séc. = século


a = Áquila s/ss = segu inte/s
ar. = aram aico sin g. = singular
cf. = confira sir. = siriaco
d.C. = depois de Cristo a Symachus
Ed./Eds. editor/res; 0 Teod ócio
edição/-ções TM = Texto m asorético
esp. = especialm ente trad./trads. tradutor/es;
fo l = folha tradução
hebr. = hebraico V. = veja; vide
IDEM ; V. 1. = va ria lectio
id. = 0 m esm o autor V. = versículo/s
i.e. = id est, isto é V u lg = V u lgata
in scr. = in s c rip tio / in s c riç ã o ib id e m = no m esm o lugar
lat. = latim /latino s/ss = seguinte/s
LXX = Septuaginta séc. = século
M PG = Patrologia, Ed. Migne,
= Series G raeca O bras m aiores (com pêndios, antologias.
n. = nota etc.) e revistas estão abreviadas segundo
nr. = núm ero S C H W E R IN E R , S. In te rn a tio n a le s A b k ü r­
P- = página/s z u n g s v e r z e ic h n is f ü r T h e o lo g ie u n d
p a r./pair, paralelo/s G re n z g e b ie te (lATG). 2. ed. B erlin /N ew
resp. = respectivam ente York, 1992.
SC. = s d lice t,
a saber, qu er dizer

14
INTRODUÇÃO
“Pedro, apóstolo de Jesus Cristo, aos eleitos estrangeiros na disper­
são (diaspora) do Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia [...]” - Esse
modelo de abertura com dados sobre o remetente e os destinatários já
é indicação para o caráter especial deste escrito que, em sua forma
exterior, é uma carta e designa como seu autor Pedro, “um apóstolo
de Jesus Cristo”. Os destinatários são cristãos residentes numa área
que corresponde mais ou menos ao tamanho dos Estados de Santa
Catarina e Rio Grande do Sul, ao sul do Brasil.^ Mais incomum que o
endereço amplo, testemunhado^ também em outras partes da litera­
tura cristã primitiva, é a invocação dos destinatários como “estran­
geiros da dispersão (diáspora)”. A dupla referência ao status dos re­
ceptores como minoria e marginalizados, que além disso ainda é re­
forçada pela designação de “estrangeiros”, já permite visualizar o pro­
pósito especial deste escrito, qual seja, interpretar esse ser estrangei­
rojustamente como uma característica cristã essencial. Consoante a isso,
essa introdução ilumina inicialmente a situação dos primeiros cris­
tãos na medida em que ela também corresponde a dos destinatários
da carta, segundo o seu próprio testemunho. Diante desse pano de
fundo é que serão então esboçados temática e estrutura, bem como o
perfil teológico da IPe. O final é formado pela discussão das pergun­
tas de introdução^ bem como por algumas indicações sobre a história
da interpretação.

§1: “Fogo ardente” (IPe 4.12)


A situação do sofrimento

“Amados, não estranheis o fogo ardente que surge no meio de vós [...]
como se alguma coisa extraordinária estivesse vos acontecendo” (IPe
4.12) - Essa declaração é reveladora em dois sentidos: como descrição
da situação e como interpretação da situação. Em relação ã primeira, a
metáfora do “fogo ardente” já permite prever quão aflitiva é essa situa­
ção. Tanto assim que, com exceção de Jó, nenhum escrito bíblico pos­
sui - proporcionalmente ao seu tamanho - tantas e tão variadas refe­
rências ao sofrimento como a IPe. Em primeiro lugar, esse sofrimento
reside nos problemas resultantes das hostilidades da sociedade pagã
contra a comunidade cristã, sendo que a discussão dessa problemáti-

' Sobre os dados dos destinatários, cf. na p. 49.


^ A IP e pode ser lida como um a combinação de Tg 1.1 (“Tiago [...] às doze tribos na
dispersão”) e Ap 1.4 (“João, às sete comunidades na Ásia”).
^ Cf. sobre isso também FELDMEIER, R. D ie Christen als Fremde. Die Metapher der Fremde
in der antiken Welt, im Urchristentum und im 1. Petrusbrief. Tübingen, 1992.

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ca determina todo o escrito. E não são, em primeiro lugar, as autorida­
des que fomentam esse conflito; elas, nesse contexto, são apresenta­
das antes de maneira positiva (cf. 2.13s). Os cristãos têm dificuldades
sobretudo com seu contexto imediato, que “estranha” o novo compor­
tamento de seus concidadãos (4.4), difamando e marginalizando, por
essa razão, a comunidade cristã, inclusive inimizando-se com ela e
denunciando-a (2.12, 23; 3.14-17; 4.4,14-16). Essa situação é típica
para o cristianismo primitivo, desde os seus inícios até a metade do
século III. Já no mais antigo escrito cristão conservado, ITs 2.14, fala-
se, tanto em relação a cristãos judeus como a cristãos gentílicos, sobre
o “sofrimento por parte dos próprios conterrâneos”. De acordo com a
apresentação dos Atos dos Apóstolos, o procedimento das autoridades
contra Paulo originava-se sempre de cidadãos furiosos."^ Também a
perseguição de Nero, aparentemente o exemplo típico de um procedi­
mento estatal contra os cristãos, num exame mais atento, revela-se
como manobra de poder político, com a qual Nero desviou a ira popular
pelo incêndio de Roma por ele provocado para aqueles “que eram odia­
dos pelo povo devido ãs suas ignomínias e denominados por ele de
cristãos”.® O imperador, portanto, não toma iniciativas contra os cris­
tãos por impulso próprio; ele usa o ódio existente contra eles para des­
viar as agressões de si próprio - e com sucesso.® Esse ódio que chega
até o mais íntimo parentesco é também testemunhado pelos ditos de
perseguição.^ O perigo que isso podia representar mostram jâ as narra­
tivas dos Atos dos Apóstolos: a discriminação social representava uma
constante ameaça e incluía, por parte da população, desmandos vio­
lentos e incontrolados. Contudo, enquanto que no tempo inicial nar-

At 14.4s; 16.19-22; 17.8, 13; 19.23-40; 21.27-40.


Tac, An XV,44,2 : [...] quos perfla gitia invisos vulgus Christianos appellabat. Mesmo que
deva ser levado em conta que Tácito escreve esse relato cerca de 50 anos após os
eventos e que sua avaliação por isso mesmo é influenciada também por sua época e
pelo comportamento do círculo em torno de Trajano, não há razão para duvidar, em
princípio, da veracidade dessas afirm ações.
Esse ódio não estava restrito à multidão, como mostra o próprio juízo de Tácito, que,
apesar de identificar em seu relato sobre o procedimento de Nero a manobra imperial,
ou seja, não acreditar na culpa dos cristãos, concorda com sua execução como sendo
pelo interesse na salvaguarda do bem público (Tac, An XV, 44,5fln; cf. para essa
tradução e interpretação de utilita te pu blica , WLOSOK, A. R om u n d die C hristen. Zur
Auseinandersetzung zwischen Christentum und röm ischem Staat. Stuttgart, 1970.
p. 22, 26): OS cristãos seriam culpados (sontes) e sua cruel execução num espetáculo
público, ju stificad a X V ,44,5; “eles foram condenados mais em virtude do ódio que
nutriam por todo o gênero hum ano do que pelo incêndio crim inoso propriam ente
dito” (An XV,44,4; (...) haud p ro in d e in crim ine incendii qu a m odio hum ani generis convicti
su n fj. Que Tácito não representa um a exceção com essa condenação dos cristãos
m ostra Suetõnio, o qual, em sua biografia sobre Nero, conta o seu procedim ento
contra esse “gênero humano que havia se entregue a uma nova e nociva superstição”
(Nero 16,2) entre as proveitosas ações do imperador.
Cf. Mc 13.9-13; Mt 10.17s; Lc 21.12-17. Mesmo que tais ditos originalmente diziam
respeito a um contexto judaico-cristão, podiam ser também aplicados sem dificuldade
ã situação pagã.

16
rado em Atos as autoridades ainda intervinham em defesa dos cris­
tãos, a partir da segunda metade do século I esses conflitos termina­
vam geralmente à sua custa. Se no início do século II o procurador
Plinio já via como suficiente para levantar um processo contra os cris­
tãos e levá-los ã execução “as ignomínias ligadas ao nome [cristãos]”®,
então isso significa que o nome “cristão” já virara sinônimo de crimi­
nosos - uma incriminação do cristianismo, como também é sugerida
em IPe 4.12ss (esp. 4.14, 16). J. Molthagen® defende, com embasa­
mentos consideráveis, a hipótese de que o procedimento de Plinio só é
imaginável - tanto em relação ao seu caráter como á elevada cultura
romana do direito - na medida em que para ele houvesse um fundamen­
to jurídico. O procedimento de Nero provavelmente levou a uma pri­
meira incriminação (local) do cristianismo, que, mais tarde, soh
Domiciano, foi expandida por todo o império “para arranjar uma solu­
ção para as múltiplas desordens que sempre de novo eram incitadas
entre a minoria cristã na sociedade”.E sp ecia lm en te casos de de­
núncia por parte de uma pessoa privada possibilitavam um procedi­
mento legal das autoridades contra cristãos, como Plínio o testemu­
nha. Esse procedimento legal, contudo, permaneceu reativo até o ter­
ceiro século. O imperador Trajano afirma taxativamente em sua res­
posta a Plínio que os cristãos não deveríam ser investigados pelas au­
toridades por iniciativa própria.“

A origem dos desmandos contra os cristãos residia, portanto, na no­


tável e ferrenha aversão aos mesmos que perpassava todas as cama­
das da população. Indicadores para tanto são as insinuações de “ig­
nomínias”, repetidas de forma estereotipada e que aparentemente
estavam ligadas ao nome dos cristã o s.N essa s incriminações, por
via de regra completamente sem fundamento, expressa-se a estigma-
tização social dos cristãos. Já as acusações de ateísmo^®, de misan-

Cf. a pergunta de Plínio ao im perador Trajano, em Plínio, Ep X,96,2; an [...] n om en


ipsum, s i ß a g itiis careat, a n fla g itia cohaerentia n o m in ip u n ia n tu r (“se [...] o próprio nome,
quando não acompanhado de ignomínias, ou se as ignomínias ligadas ao nome deveríam
ser punidas”).
MOLTHAGEN, J. Die Lage der Christen im römischen Reich nach dem 1. Petrusbrief.
Zum Problem einer domitianischen Verfolgung. H istoria 44, p. 422-458, esp. p. 451ss,
1995; IDEM. “Cognitionibus de Christianis interfui num quam”. Das Nichtwissen des
Plinius und die Anfänge der Christenprozesse. Z T h G 9, p. 112-140, esp. p. 128ss, 2004.
“ M OLTHAGEN, J. “Cognitionibus de Christianis interfui numquam”. Das Nichtwissen
des Plinius und die Anfänge der Christenprozesse. Z T h G 9, 2004, p. 129.
' Plin, Ep X ,9 7 ,l: conquirendi non sunt.
^ Plin, Ep X,96,2: fla g itia co h a e re n tia n om in i; sem elhantem ente, Tac, XV,44,2; um a
noção dessas in sinuações oferece o discurso de C aecilius em Min, Oct 8ss, que
atribui aos cristãos praticamente todas as más ações imagináveis - desde o sacrifício
ritual de crianças até a prom iscuidade sexual, incluindo o incesto.
^ Como acusação direta, ele se encontra, p. ex., em Luc, PergrMort 13; Orig, Cels VULU;
Min, Oct 8,1-9,2; no martírio de Policarpo (Eus, HistEccl IV ,15,6) e frequentemente.
Para o todo, veja também o estudo de HARNACK, A. von. D e r V orw u rf des Atheism us in

17
tropia^'^, de orgulho insuportável e de tumulto'® revelam algo adicio­
nal sobre as causas mais profundas desse conflito. Em última análi­
se, trata-se da incompatibilidade entre o monoteísmo exclusivo do
cristianismo'® e a sociedade antiga, que se fundamentava de forma
sacramental. Pois, no Império Romano, a religião oficial está
entrelaçada firmemente com todos os setores da cultura e sociedade.
Mais ainda: ela não é nada menos que o fundamento espiritual da
sociedade e ideia de Estado romanas.'^ O Estado e suas estruturas
chegam a ser instituições sacras.'® Assim se explica a aparente con-

d e n e rs te n d re i J a h rh u n d e rte n . Leipzig, 1905 e SCHÄFKE, W. T. Frü hch ristlicher


W iderstand. In: A N R W . Berlin; New York, 1979. v. 11/23/1, esp. p. 627-630.
Assim, como primeiro, Tac, An XV,44,4; cf. Tert, Apol 37,8: hostes [...] generis humani.
WLOSOK, 1970, p. 21 mostra muito bem a relação entre essa acusação e o isolamento
dos cristãos (religiosamente condicionado): os cristãos “[...] estavam isolados do mundo
pagão em virtu de da sua religião exclu siva e da organ ização com u n itária. Eles
necessitavam recusar, por motivos de fé, a participação na vida púbhca, pois esse era
o lugar em que, onde quer que fossem, seriam confrontados com o culto pagão. Esse
era o caso, inclusive, em eventos aparentemente apolíticos, como teatro, jogos abertos,
refeições comuns, sem falar das celebrações públicas, desfiles e compromissos que se
relacionavam diretamente com o culto. Além disso, os cristãos estavam organizados
em comunidade. Frente ao seu ambiente, eles pareciam ser adeptos de uma comunidade
que se exclui, que rejeitava por princípio e de forma corporativa a participação na vida
pública. E isso, da perspectiva romana, só podia redundar num a acusação de delito
contra o Estado e a comunidade. O dium hum ani generis é, dessa forma, ‘atitude hostil
à comunidade’, uma acusação moral e política”.
Para Celso, por exemplo, o tumulto é a origem e a essência do cristianismo (Orig, Cels
III,5ss; cf. III, 14; VIII, 2 entre outros), residindo seu efeito no estabelecimento do caos
(Orig, Cels VIII,68). O cristianismo é a “teologia do tumulto” (ANDRESEN, C. Logos und
N om os. Die Polem ik des Kelsos w ider das Christentum . Berlin, 1955. p. 221), eie
destrói “o mundo da ordern divina” (ibidem, p. 222); cf. Tert, Apol 35,1: p u b lici hostes.
' Cf. S ob re isso a g o ra o estu d o de K LA U C K , H .-J. “ P a n th e is te n , P o ly th e is te n ,
M onotheisten” - eine Reflexion zur griechisch-röm ischen und biblischen Theologie.
In: IDEM . R eligion und G esellsch aft im früh en C hristentum . N eu testam entlich e
Studien. Tübingen, 2003. p. 3-53.
Assim julga Políbio no século II a.C.: “A maior vantagem da organização da vida romana
[...] me parece residir em sua concepção dos deuses e no fato de constituir para ela o
fundamento do Estado romano o que em outros povos é tido como um a censura, a
saber, um temor quase que supersticioso dos deuses. Ê praticamente inimaginável o
papel desempenhado pela religião, tanto na vida pública quanto privada, e a importância
que se lhe atribui” (Polyb V I,56,6-8; traduzido por DREXLER, H. Polybios, Geschichte.
Zürich; Stuttgart, 1961. v. 1.). De m aneira sem elhante ju lga Cícero (NatDeor 11,8),
exatamente cem anos mais tarde, quando faz remontar a superioridade de Roma sobre
os outros povos exclu sivam ente à ven eração esp ecialm en te fiel aos deuses: “ Se
quisermos comparar nossas condições com as de povos estrangeiros, haverá de mostrar-
se que lhes somos somente iguais ou até inferiores em outras áreas, mas no que
concerne à religião, isto é, à veneração dos deuses, lhes somos m uito superiores
(multo superiores)”. O discurso de Caecüius na obra Octavius, de autoria de Minucius
Felix e redigida provavelmente no início do século III, apresenta o mesmo quadro: a
estabilidade de Roma fundamenta-se na prática conscienciosa da religião (Min, Oct
6,2) - um a convicção contra a qual o ceticism o filosófico defendido por Caecüius
curiosamente não pode contrapor absolutamente nada!
* Cf. Sobre isso, veja as observações de WLOSOK, 1970, p. 56ss; de forma semelhante,
ALFÖLDY, G. R öm ische Sozialgeschichte. 3. ed. Wiesbaden, 1984. p. 38: “O fundamento
espiritual dessa ideia de Estado era a religião” .

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tradição de que os romanos claramente não eram intolerantes^® em
questões religiosas, nem na Itália tampouco nas províncias, mas que
essa generosidade tinha seu claro limite ali onde não mais era con­
cedido o devido respeito à legitimação religiosa do Estado e das insti­
tuições so ci a is .E s s e era o motivo pelo qual, independentemente de
convicções pessoais, religiosas ou filosóficas, em que cada um podia
se sentir perfeitamente livre, era solicitada pelo menos lealdade em
relação à religião praticada publicamente, pois não se tratava só de
religião em nosso sentido de convicção pessoal de fé; religião e polí­
tica eram, antes, “both [...] parts of a web of power”.^^ Era nessa “rede
de poder” que os cristãos se emaranhavam, pois negavam, em meio a
toda a sua sempre reiterada fidelidade ao Estado, o reconhecimento
aos cultos legitimadores da ordem social, o que, por sua vez, acabava
por ser compreendido como atentado contra o fundamento dessa or-
dem.22 Da perspectiva do mundo circundante, as perturbações da paz
social provocadas pelos cristãos confirmam esse juízo. Os cristãos
eram “inimigos do gênero humano” pelo fato de se ligarem, com uma
exclusividade incompreensível para o mundo antigo, à sua religião
especial à custa da c o m u n i d a d e . E s s a incompatibilidade podia
manter-se em segundo plano na vida do dia-a-dia por espaços de tem­
po maiores ou menores: “Muitas comunidades citadinas estavam apa­
rentemente dispostas e em condições de se adaptar às pessoas que
viviam à sua margem, valendo o mesmo para essas em relação àque­
las”. M a s qualquer crise podia trazê-la muito rapidamente à tona
de novo.^^ Isso valia tanto mais porque essa incompatibilidade tam-

Cf. SHERWIN-WHITE, A. N. The Letters o f Plin y! A Historical and Social Commentary.


Oxford, 1998 (= 1966). p. 776.
Cf. O procedimento contra os ritos bacânticos, testemunhado em Liv XXXIX, 8-19.
PRICE, S. R. F. Rituais and Pow er. The Roman Imperial Cult in Asia Minor. Cambridge,
2002 (= 1986). p. XI.
Também o fato de que os cristãos aguardavam para breve o fim deste mundo, ansiando-
o inclusive, não contribuiu para tom á-los mais populares. Cf. a polêm ica de Celso
contra essa concepção em Orig, Cels IV,6ss, 23; V, 14 e outros; ideia sem elhante
também pode ser encontrada em Octavius (Min, Oct l l , l s s ) .
Os judeus também tiveram que sofrer com mesmas acusações e pelos mesmos moti­
vos. Eles, porém, eram bem mais tolerados, pois podiam se reportar a um a velha
tradição, além de se imiscuir bem menos ofensivamente que o cristianismo m issio­
nário na sociedade pagã devido à circuncisão e aos mandamentos relacionados com
com ida (sobre as sem elhanças e diferenças, v. FELDMEIER, 1992, p. 127-132). O
procedimento contra outras sociedades religiosas era, ao contrário, raro, limitado e
tinha (como no escândalo dos bacanais) motivos concretos. É provável que a proibi­
ção dos druidas gálicos não se deva unicamente à sua prática de sacrifícios hum a­
nos, mas à periculosidade politica dessa influente casta; sobre a proibição dos druidas,
cf. Suet, Caes (Claudius) 25,5 e Tac, An XIV, 30.
24 V IT T IN G H O F F , F. “ C h ristia n u s su m ” . Das “V e rb re c h e n ” von A u ß en seitern der
röm ischen Gesellschaft. H istoria 33, p. 333, 1984.
Cf. Tert, Apol 40,2: Si Tiberis ascendit in moenia, si Nilus non ascendit in arva, si
caelum stetit, si terra movit, si fames, si lues, statim: Christianos ad leonem. (“Se
o Tibre inunda os muros, se o Nilo não inunda as plantações, se o firmamento não

19
bém tinha consequências sociais^®, podendo reconduzir sempre de
novo a tensões no dia-a-dia. Por isso a recusa cristã de qualquer ve­
neração a deuses dificultava, impedia até, a participação em festas de
comunidades e associações; a mera proibição de consumo de carne
sacrificada já dificultava uma refeição em comum com gentios^'^, o
que podia causar indignação, sobretudo nas festividades, tão impor­
tantes para a comunidade^®. Escândalo causavam também as tradi­
ções diferenciadas de enterro^® e os diferentes locais de sepultamen-
to®°. A situação agravava-se quando, devido à difusão do cristianis­
mo, eram feridos interesses eeonõmicos.®^ Não por último, o cristia­
nismo dava a impressão de ser socialmente subversivo aos olhos dos
conterrâneos pelo fato de essa nova “superstição” e a nova comuni­
dade por ela formada se infiltrarem nas relações sociais existentes,
ameaçando desintegrá-las.®^

Os cristãos, aliás, tinham plena consciência do que estavam fazendo.


De forma até meio agressiva, em Mt 10.34-37, ao final do sermão so­
bre o envio, são eontrapostos a ligação a Cristo e os laços familiares:
“Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espa­
da. Pois vim causar divisão entre o homem e seu ped; entre a filha e
sua mãe e entre a nora e sua sogra. Assim, os inimigos do homem

se move, se a terra se move, se fome, se peste, imediatam ente [se diz]: ‘os cristãos
aos leões’!” . Segundo SCHÃFKE, 1979, p. 649, aqui “fica visível [...] um a estrutura
fundam ental do pensam ento religioso antigo: infelicidade terrena é consequência
de um co m p o rta m e n to errô n eo em re la ç ã o aos deu ses. Os cris tã o s , qu e não
reverenciam nem sacrificam aos deuses antigos, são p or isso m esm o sem pre de
novo responsabilizados por terrem otos, carência de alim entos, guerras e guerras
civis, epidem ias, enchentes e secas” .
Esse isolamento dos cristãos na vida diária ê expresso com muita clareza por Caecilius
no Octavius, de Minucius Felix, quando ele acusa: “ [...] vocês mantêm distância de
todo divertimento, mesmo dos mais decentes. Vocês não visitam jogos, não participam
dos desfiles, rejeitam as refeições públicas; vocês desprezam os jogos em honra aos
deuses, a carne e o vinho sacrificados nos altares [...] Vocês não enfeitam as cabeças
com flores, não tratam o vosso corpo com essências aromáticas; vocês usam aromas
só para os mortos e sequer coroas possuem para vossas sepulturas” (Min, Oct 12,5s;
tradução de KYTZLER, B. (Ed.). M in u ciu s Felix, O ctavius. Lateinisch-Deutsch. 3. ed.
Stuttgart, 1993).
Cf. já IC o 8.
Um exemplo é o ódio nutrido pela mãe do imperador Galêrio contra os cristãos, que,
segundo Lact, MortPers 11, se desenvolveu pelo fato de eles não participarem das
refeições sacrificiais que ela festejava quase que diariam ente em sua cidade natal.
Cf. Min, Oct 38,3, em que Octavius nega o uso de coroa sobre os mortos cristãos, e
Min, Oct 38,4, onde destaca o fato de os cristãos enterreirem seus mortos da mesma
forma discreta como também costumam viver.
Tert, Scapul III.
Isso já ê mostrado pelo levante dos ourives em At 19.23ss. Também o procedimento
de Plínio contra os cristãos parece ter como causa, no mínimo, também problemas
econ ôm icos en volven do os ven ded ores de carne (cf. SH ERW IN-W H ITE, 1998, p.
709, em relação a Plin, Ep X,96,10).
Essa “propensão para os tum ultos” é reiteradam ente tem atizada por Celso em seu
escrito polêm ico contra os cristãos, cf. Orig, Cels V III,2 e III,5.

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serão os da sua própria casa. Quem ama seu pai ou sua mãe mais do
que a mim não é digno de mim; quem ama seu filho ou sua filha mais
do que a mim não é digno de mim”. Também a IPe deixa entrever
que, em virtude da nova ligação com o cristianismo, as ligações de
família e de vizinhança eram colocadas em perigo ou então destruídas
(cf. 3.1ss). Como a grande família, com inclusão da criadagem, o olkoç,
constituía a pedra fundamental da sociedade antiga, a missão cristã
teve que ser compreendida também como ataque aos fundamentos
sociais (cf. IPe 2.18ss). As acusações de “ateismo” (àGeóniç), respecti­
vamente de “superstição” (ôeLaLÔaLnoví,a/supersíiíío) por um lado, bem
como de “ódio contra o gênero humano” {[iíaavQptíT\ía/odium humani
generis) por outro, são, portanto, os dois lados da mesma medalha. De
uma perspectiva pagã, a primeira acusação caracteriza a singulari­
dade religiosa®® e a segunda, seus efeitos sociais. Aqui pessoas se
enredavam em sua “superstição” especifica e, simultaneamente, se
distanciavam e desligavam das demais pessoas - de acordo com a
acusação de Celso, que julgava poder perceber nesse monoteísmo
exclusivo a “voz do tumulto”.®‘* Nesse contexto, seguramente também
não representava propriamente uma recomendação que o fundador,
do qual essa religião inclusive levava o nome, tivesse sido executado
de morte na cruz por um procurador romano como insurreto.®® Mes­
mo que a atitude em relação aos cristãos costumasse oscilar e hou­
vesse tempos de relativa tranquilidade, a fé cristã e o modo de vida
expressado por ela sempre podiam de novo ser sentidos como viola­
ções provocativas dos fundamentos da vida em sociedade.®® Numa
palavra: os cristãos colocaram-se conscientemente fora do ambiente
de vida religiosamente determinado, tomando-se “estranhos” a ele.®'^
De forma correspondente, apesar de múltiplas interações com a socie-

^ Cf. WILKEN, R. L. D ie frü h e n C hristen. Wie die Römer sie sahen. Graz, 1986. p. 79:
“Quando os romanos dizem que o cristianismo é uma superstição, isso não significa
um sim ples preconceito ou a consequência de um desconhecim ento; representa,
sim, a expressão de uma determinada sensibilidade religiosa. Quando Tácito escreveu
que o cristian ism o é ‘in im igo do gên ero h u m a n o ’, ele não quis d izer com isso
unicamente que não gostava dos cristãos e que os sentia como escândalo (mesmo que
isso seguram ente era correto), m as que eles representavam um a ofensa para seu
mundo social e religioso” .
Orig, Cels VI1I,2: oráoÊcoç (tíoví). Se de acordo com Plutarco ê característico da superstição
“não compartilhar com o resto do gênero humano nenhum mundo em comum” (Plut,
Superst 166C), então isso vale para os cristãos de forma bem especial.
Esse aspecto defende com in sistên cia VITTIN G H OFF, 1984. Sua tese de que, em
virtude da pessoa do seu fundador crucificado, os cristãos eram “desde o início,
crim inalizados de form a generalizada” (p. 336) não convence.
Significativa é a m otivação da sentença em itida contra os m ártires cilitanos: eles
teríam se afastado do m os R om a n oru m (ActScil 14).
Tertuliano, em seu A pologeticu m , acentua com veemência e agressividade o contraste
com várias esferas da vida em geral e, nesse contexto, caracteriza de form a incisiva
a relação dos cristãos com a opinião pública. Cf. Tert, Apol 38,3: noí>is[...] n e c ulla
magis res aliena q u a m p u b lica (“a nós [...] não há coisa mais estranha do que o Estado”).

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dade antiga e suas instituições^®, eram percebidos, em última análi­
se, como um corpo estranho, cuja simples existência já bastava para
questionar seus fundamentos e que, em razão de sua expansão, per­
turbava a paz e a ordem, atuando de forma desintegradora.®® Notórias
nesse sentido são também as metáforas, empregadas em diversos con­
textos, para doença, peste e epidemia''®, as quais teriam igualmente
acometido o império. Pode até ser que a massa das pessoas não esti­
vesse em condições de caracterizar de forma tão incisiva os fenóme­
nos como o faziam os historiadores e filósofos - sua percepção, no
entanto, seguramente era bem semelhante: nas calúnias, nas sus­
peitas bem como nos deboches, fica clara em todo lugar a distância
que o entorno pagão sentia em relação aos cristãos. Quando, por últi­
mo, é negado aos cristãos inclusive o direito ã existência - “vocês
não devem existir!”'“ -, então isso não é senão a consequência de tal
alienação. De uma perspectiva cristã, o Jesus do discurso apocalíptico
formula a mesma questão: “Sereis odiados por todos por causa do meu
nome” (Mc 13.13par.). Se isso já vale de forma bem geral para os cris­
tãos do Império Romano no final do século I e início do século II,
parece que a referida situação se agravou mais uma vez de forma es­
pecial na Ásia Menor, onde os destinatários da IPe moravam. Por
razões históricas, a Asia minor encontrava-se relacionada de forma

HARLAND, Ph. A. A s socia tion s, S yn a goges, a n d C on grega tion s. Claim ing a Place in
Ancient Mediterranean Society. Minneapolis, 2003, procura mostrar que o antigo sistema
de associações em geral e que as associações judaicas e cristãs em especial interagiam
de forma especialmente positiva com a sociedade e suas instituições. Como critica ao
estereótipo de um difundido “sectarian o r tensioncentered approach” (ibidem, p. 267), essa
modificação, fundam entada também em testem unhos epigráficos, é justificada (mas
confira também VITTINGHOFF, 1984, esp. p. 333ss). A tendência de Harland, contudo,
é, em contraposição, subestimar as tensões entre os cristãos e a sociedade, já que é
justamente a IPe que por ele é elevada à testemunha-chave de uma tal “positive interaction”
(ibidem). Que a IPe, em certos casos, com certeza almeja uma tal interação positiva será
demonstrado nos respectivos textos. O escrito como um todo, porém, pressupõe antes
um a alienação elementar sofrida pelos cristãos na sociedade.
Notório é, nesse contexto, como Suetônio, Caes (Nero) 16,2 enumera o procedimento
do imperador contra os cristãos entre suas providências para a limitação do luxo e
seus procedimentos contra os exageros dos corredores de provas, colocando-o, portanto,
em conexão direta com outras decisões do imperador, julgadas como úteis por Suetônio.
Já Paulo é designado como peste [ÀoLyóç) em At 24.5. Plínio, Ep X,96,9 refere-se à
epidemia (contagio) da superstição cristã, que se alastra por toda parte. Porfirio queixa-
se que Roma tenha sido tomada de tal forma pela doença do cristianismo, a ponto de
os deuses estarem distantes (Porphyr, AdvChrist, Frgm. 80 = Eus, PraepEv V,l,9s).
Na critica ao cristianismo feita por Celso, esse uso metafórico encontra-se no sentido
da doença (vóooc) do tumulto, que teria contaminado os cristãos, representando, dessa
forma, um perigo para toda a sociedade (Orig, Cels VIII, 49).
Tert, Apol 4,4; N o n licet esse vos. Logo no inicio do seu A pologeticu m (1,4), Tertuliano
fa la do generalizado o d i[u m ] e rg a n o m e n C h ris tia n o ru m (“ódio contra o nom e dos
cristãos”). A referência ao ódio do povo, testemunhada já sob Nero (Tac, An XV,44,2),
com prova que sua existência não rem onta unicam ente ao tempo de Tertuliano. O
direito à existência é negado aos cristãos também em Orig, Cels VIII,55, e em Just,
Apol Appendix 4,1 é transm itida a furiosa solicitação para a extinção: “M atai-vos
todos juntos, apressai-vos para viajar até Deus e não nos deis mais trabalho”.

22
especialmente estreita com a casa imperial romana, razão pela qual
certamente não é casualidade que aqui o cristianismo se depara da
maneira mais clara com resistência."*^

Os rom anos chegaram à Ásia Menor em 133 a.C., depois que Atraio III, de
Pérgamo, lhes legou testamentariamente seu reino. Após a repressão de um
movimento contestatório, formaram na região, a partir dessa transação, a Pro-
vincia da Ásia, entre os anos de 129-126 a.C., que compreendia sobretudo a
região costeira a oeste. Essa, no ano de 116 a.C., foi mads u m a vez acrescida
para o leste e sul pelos territórios da Frigia e Caria. A transform ação dessa
região num a província rom ana teve um grande impacto também econômico na
vida da Ásia Menor. Em 123 a.C., membros da ordem dos cavaleiros receberam o
direito de arrecadar impostos. Eles faziam isso com tanta eficácia, a ponto de a
Ásia necessitar ser protegida contra o total espólio pelo propretor Mucius Scaevola
nos anos 90. Mesmo assim, os altos tributos faziam com que cada vez mais
território fosse penhorado ou vendido aos romanos. A partir disso é perfeita­
mente compreensível que Mithridates fV, de Ponto, em su a guerra contra Roma,
tenha sido inicialmente saudado como libertador e que su a convocação para
m atar todos os rom anos encontrasse praticantes solícitos. D urante su a pri­
meira guerra contra Roma, entre 89-84 a.C., ele aliviou inicialmente o peso
tributário incidente sobre as cidades da Ásia Menor. Após su a derrota arrasado­
ra n a Grécia, porém, necessitou de dinheiro para um segundo exército, o qual
foi airrecadado ã força da Ásia Menor. A oposição que se lhe levantou devido ao
fato, ele reprimiu com crueldade. Depois de Methridates ter sido vencido pela
primeira vez por Sulla e ser expulso da Ásia, foram novamente os romanos que,
em contrapartida, infringiram u m pesado castigo às cidades dissidentes. As
cidades deveriam, simultaneamente, fornecer mantimentos às tropas - u m a
solicitação que as levou pela primeira vez à falência. Seguiram -se ainda duas
guerras contra Mithridates, mas que proporcionalmente atingiram pouco a Ásia;
a Bitínia e o Ponto, os reais campos de batalha, sofreram m ais diretamente.
Durante a guerra civil entre Pompeu e César, entre 49-48 a.C., Pompeu reque­
reu tanto dinheiro, que o endividamento da província duplicou em dois anos. A
situação se acalmou por pouco tempo sob César, que procurou melhorá-la atra­
vés de benefícios e privilégios, o que lhe rendeu extraordinariam ente m uita
gratidão. Tanto é que, num a inscrição em Éfeso, datada de 48 a.C., por exemplo,
ele foi glorificado como “D eus revelado e salvador geral da vida hum ana” (0eòç
ènL(t)avf|ç roC ßiou ouif|p, SIG, Nr. 760). Um agravamento da situação ocorreu ime­
diatamente de novo sob os assassin os de César, que haviam se transferido
para o leste. Cassius determinou um a tributação tão alta, que os representan­
tes das cidades disseram mais tarde não ter entregado unicamente todo o seu
dinheiro, m as tam bém as joias, os talheres e dem ais utensílios das casas.
Enquanto que Marco Antônio, após a vitória do triunvirato, ainda deu continui­
dade ao saque, cobrando os tributos concernentes a nove anos em apenas dois,
com Otaviano (Augusto) veio a derradeira m udança para melhor. Ele se esforçou
pelo bem -estar das cidades, auxiliando-as, inclusive, com privüégios e dinhei­
ro. A impressão que isso causou nas cidades da Ásia Menor é testemunhada
enfaticamente por várias inscrições conservadas, que se sobrepujam no louvor
e na glorificação ao imperador. Até o início do ano foi transferido, por decisão
das cidades gregas (provavelmente em 9 a.C.), para 23 de setembro, a data de
aniversário de Augusto. É praticamente impossível dizer com mais clareza que

Cf., além da IPe, também os Atos dos Apóstolos, o Apocalipse de Joao ou a Carta de Plínio.

23
com esse soberano teve início um novo período histórico! Como exemplo pode
ser citada um a inscrição de Halicarnasso (conservada só parcialmente). Apesar
de toda bajulação, inerente a tais inscrições e por trás da qual também segura­
mente se esconde um cálculo político, não se pode deixar de perceber que as
palavras aqui u sadas retratam gratidão sincera e veneração honesta, u m a vez
que a própria situação apresentou m elhoras significativas por intermédio do
imperador:
“Considerando que a natureza eterna e imortal do universo presenteou as
pessoas com o sumo bem através de abundantes benefícios, um a vez que
fez surgir César Augusto para ser um a bênção em nossas vidas, o pai de
sua terra natal, a deusa Roma, o Zeus Patroos e salvador de todo o gênero
humano, cuja previdência não só cumpriu as orações de todos, mas ainda
as superou - pois os territórios e o m ar estão em paz, as cidades desenvol­
vem-se num estado de direito correto, em concórdia e progresso, todo bem
vem repleto de florescência e fruto, as pessoas estão repletas de boas
esperanças no futuro, cheias de ânimo alegre em relação ao presente

Observando esse período da história, é possível subdividir a relação


entre a Ásia Menor e o Império Romano elaramente em duas fases dis­
tintas: os primeiros cem anos durante a república foram um período de
opressão e saques constantes, que levaram as cidades da Ásia Menor à
ruína. Em última análise, a Ásia acabou financiando a guerra civil
romana. Paz, progresso, justiça e bem-estar estão, ao contrário, intima­
mente relacionados com o período subsequente dos imperadores, a
começar por César, no qual também a cultura floresceu em proporções
até então ainda desconhecidas. Não por último, isso se mostra nas di­
versas construções erigidas no referido período. Nesse contexto, a dis­
tância geográfica em relação a Roma resultou em rica bênção, consi­
derando que os traços negativos de imperadores como Calígula ou Nero
exerciam um grau de influência restrito na Ásia (unicamente os rou­
bos de objetos de arte por Nero foram percebidos negativamente). E,
justamente para o período em que a IPe deve ter sido redigida, Suetônio
testemunha que o governo de Domiciano, apesar de ter representado
uma pesada sobrecarga para o seu entorno e para Roma, em especial
para a classe alta de Roma, não se constituiu em nenhum prejuízo
para as províncias. Pelo contrário, o imperador “cuidou”, assim
Suetônio, “de forma especial também para que as autoridades das ci­
dades e os procuradores nas províncias fossem supervisionados para
atuar dentro da ordem, o que fez com que nunca houvesse funcioná­
rios mais comedidos e justos que naquela época”"’'^. Isso levou, não por

A in scrição fo i ed ita d a p or G. H irsch feld em N E W TO N , C. T. T h e C o lle c tio n o f


A n c ie n t G reek In s crip tio n s in th e B ritis h M u s e u m IV, 1. London, 1893. p. 63-65 (Nr.
894). Sobre a tradução, cf. LEIPOLD, J.; GRUNDMANN, W. U m w elt des Urchristentum s
n. Texte zarm neutestam entlichen Zeitalter. Berlin, 1972. p. 107 (Nr. 131).
Suet, Caes (Domitian) 8; tradução de MARTINET, H. (Ed.). C. S u eton iu s Tranquilhis,
D ie K a iserviten, D e Vita C aesarum , B e rü h m te M änner, D e Viris Illu stribu s. Lateinisch­
deutsch. 2. ed. Düsseldorf; Zürich, 2000.

24
último, a que justamente a florescente Ásia no século I depois de
Cristo se transformasse num centro do culto ao imperador"^®, fato que
também na tradição judaica foi assinalado com repulsa (cf. 4Esr 15.46­
49). O Apocalipse de João retrata em diversos textos essa polêmica
contra o culto ao imperador (2.13; 13.1ss) e as tensões relacionadas
com o mesmo, incluindo até martírios isolados (cf. 2.13; 6.9s; 17.6).
Mas também a IPe, a despeito de sua solicitação para a submissão às
autoridades estatais“*®, documenta uma rejeição maciça por parte da
população.

§ 2 “Forasteiros” (IPe 1.1; 2.11)


A interpretação teológica da situação

“Amados, não estranheis o fogo airdente que surge no meio de vós (...)
como se alguma coisa extraordinária estivesse vos aeontecendo.” Essa
declaração de IPe 4.12 é também notória pelo fato de contestar, em
contraste provocativo ã tentação dos destinatários, que os sofrimentos
“extraordinários” dos crentes fossem algo “(essencialmente) estranho”
aos cristãos. Tal “fogo ardente” seria, antes, a consequência natural da
existência dos cristãos, que justamente são “forasteiros da dispersão”,
como afirmado logo no início da carta e retomado em 2.11, no início da
segunda parte principal, com a dupla predicação de “peregrinos e fo­
rasteiros” (cf. adiante, em 1.17). Essa invocação, de certa forma
incomum, expressa a situação há pouco descrita dos cristãos: eles são
marginalizados, marcados, corpos estranhos. Mas, como jã foi dito, essa
invocação também é reveladora de situação. Pois com a referida termi­
nologia, a IPe retoma propositalmente uma pequena tradição vetero-
testamentéiria judaica que compreendia a existência de forasteiros, vi­
vida pelos patriarcas ou também pelo povo, como o reverso da eleição.“**'
A particularidade da IPe reside, contudo, em primeiro lugar, no fato
de que a carta transforma essa categoria, que na tradição veterotesta-
mentária judaica era antes marginal, no termo-chave para a existên­
cia de fé na sociedade. De uma forma absolutamente consequente,
inédita na tradição judaico-cristã, aqui o estigma social transforma-se
num momento decisivo da identidade dos crentes. Já com isso a IPe
desencadeou uma enorme história de interpretação.“*®

■*= Cf. PRICE, 2002, p. 78-100.


Isso é muito pouco considerado na pesquisa de HARLAND, 2003, em especial, p. 213ss.
V eja a in terpretação em 1.1; u m a apresen tação exaustiva disso en contra-se em
FELDMEIER, 1992, esp. p. 39-74.
Veja a história da interpretação, p. 50.

25
Deve-se observar atentamente, no entanto, que, diante de várias ex­
planações errôneas nessa história interpretativa, no sentido de êxodo
do mundo, a alienação provocada pelo contexto não recebe, na IPe,
seu perfil, em primeiro lugar, da negação do mundo, mas é interpre­
tada como o reverso da pertença a Deus, acentuada ao longo de toda
a carta; em 1. Is e 2.4, 9s por meio do motivo da eleição como incorpo­
ração ao povo de Deus; em 1.3s, 23 e 2.2s por meio da concepção do
renascimento como renovação escatológica da existência. Isso mos­
tra: mesmo que a invocação como “forasteiros” esteja condicionada
pela situação social conflitiva, “a existência dos cristãos como forastei­
ros, em sua essência, não é derivada da sua objeção à sociedade“^^, mas
da afinidade para com Deus e da pertença à sua nova comunhão”. Com
isso naturalmente a oposição ao mundo circundante não cessa de
existir, mundo esse cujo estado de morte e de nulidade sempre de
novo ê ressaltado. Salvação significa que os crentes tenham sido cha­
mados “das trevas para a sua maravilhosa luz” (2.9). Mesmo assim,
esse antagonismo não é absoluto, no sentido de um dualismo, de
forma que a negação como tal já representasse uma posição. O ser
forasteiro ê, ao contrãrio, somente o reverso da vitória da alienação
de Deus já realizada nos cristãos: assim como a morte de Cristo abriu
o acesso para Deus (3.18), os crentes, diferentes das “ovelhas desgar­
radas”, estão convertidos “ao Pastor e Bispo de suas almas” - confor­
me a conclusão da segunda confissão cristológica (2.25). Isso explica
por que, na IPe, a autodesignação específica dos cristãos como foras­
teiros não leva a um distanciamento sectário da realidade, permitin­
do, antes, descobrir um novo acesso ao mundo cincundante.

Os cristãos, assim a mensagem da IPe, são forasteiros nessa socieda­


de - e ê justamente isso que eles devem ser. Por essa razão, devem
corresponder ã sua vocação e, ao mesmo tempo, dar com isso teste­
munho da “esperança que há em vós”.^° Uma outra especificidade da

Curiosamente não é indicado o local em que eles são forasteiros, ou seja, o mundo (mau),
o cosmo ruim, ou semelhante, se bem que a categoria do ser-forasteiro praticamente
requer essa especificação. Isso já se mostra no fato de que muitas traduções se viram
forçadas a acrescentar ainda uma indicação de lugar às declarações petiinas relacionadas
com o ser forasteiro (cf. Bíblia de Jerusalém: “peregrinos e forasteiros neste mundo”; A
Bíblia na Linguagem de Hoje: “estrangeiros de passagem por este mundo”; Nova Versão
Internacional: “estrangeiros e peregrinos no mundo”). Uma lista reveladora nesse sentido,
relacionada a traduções da Biblia para o inglês, encontra-se também em ELLIOTT, J. H.
Um lar p a ra quem não tem casa. Interpretação sociológica da Primeira Carta de Pedro. São
Paulo: Paulinas, 1985. p. 44-46 - provavelm ente como consequência da “p ilgrim ’s
theology”, defendida de forma especiahnente intensa em territórios de fala in^esa; cf.,
p. ex., BARBIERI, L. A. First and Second Peter. Chicago, 2003 (= 1977). p. 34.
’ Cf. sobre isso, FELDM EIER, R. Die Außenseiter als Avantgarde. G esellschaftliche
A u sgren zu n g als m ission a risch e C h ance nach dem 1. P etru sb rief. In: va n den
HORST, P. W. et al. (Eds.). P ers u a s io n a n d D is s u a s io n in E a rly C h ristianity, A n cie n t
Jud a ism , a n d H ellen ism . Leuven, 2003. p. 161-178.

26
invocação de forasteiros, que a IPe compartilha com Hb 11-13®S é seu
clímax escatológico: os cristãos são “forasteiros” porque foram renasci­
dos (assim 1.3, 23; 2.2). De acordo com a IPe, isso significa que foram
redimidos do modo de vida futü de seus pais e incorporados em um
novo contexto de vida (cf. 1.18). Por essa razão, eles têm agora um futu­
ro que aponta para além®^ deste mundo passageiro. Existência cristã ê
existência nascida de novo (1.3, 23; 2.2), é vida a partir da “esperança
viva”®® e, assim, radicalmente diferenciada da autocompreensão do
mundo circundante; a existência de forasteiros tem como fundamen­
to, em última análise, a existência escatológica dos crentes.®"^

Se isso, porém, é assim, então os problemas resultantes da referida


distância também não precisam mais causar estranheza, “[...] como
se alguma coisa extraordinária estivesse vos acontecendo” (4.12); ao
contrário, é possível até se alegrar com eles, já que representam o
reverso da pertença a Deus.®® A situação de exclusão e perseguição
social pode assim, sendo compreendida como consequência da per­
tença a Deus, ser interpretada positivamente e, com isso, aceita. Isso
é confirmado também ao final do escrito, onde o autor constata em
5.12 que ele escreveu essa carta “exortando e testifieando, de novo,
que esta é a genuína graça de Deus”. Essa frase podería ser parafra­
seada da seguinte forma; o sofrimento resultante do eonfiito com a
sociedade não é expressão de abandono de Deus, mas confirma, ao

Característico para a compreensão de existência da Carta aos Hebreus é a existência


apátrida sobre a terra, decorrente da orientação em direção à futura cidade de Deus:
cf. 11.9s; l l . l S s ; 11.16 e 13.14.
Cf. os três a-prívativos, com os quais em 1.4 é destacado o caráter supramundamo da
“herança” cristã “nos céus” .
Cf. 1.3: “nos regenerou para um a viva esperança” ; 1.13: Teleíox; èlirícaTe èirí [...]; em
1.21 é constatado conclusivamente, como resultado da obra redentora, que, por meio
dela, possibilitaram-se aos cristãos fé e “esperança em Deus”; as mulheres que têm
esperança em Deus são os exem plos exaltados (3.5) e, segundo 3.15, os cristãos
devem dar razão, não da sua fé, mas da “esperança que há em vós” às outras pessoas.
Esperança é, na IPe, um elemento essencial, senão até o elemento constitutivo da
existência cristã (cf. abaixo o excurso 1: Esperança, p. 67ss].
Cf. GOPPELT, L. D e r erste Petrusbrief. 8. ed. Gõttingen, 1978. p. 155: “Ser forasteiro
é o sinal dos cristãos na sociedade, pois é a expressão sociológica para o caráter
escatológico de sua existência” .
A IPe, contudo, não afirma que os cristãos devam sofrer. Diferentemente de certos
adeptos de seitas, que procuram pela oposição dos outros e para os quais o sofrimento
só viria confirmar sua excepcionalidade, essa carta fala de maneira muito cuidadosa
das tensões, ligando as referências ao sofrim ento a restrições características: “ se
necessário” (1.6: ci. ôéov èoríy), “se for da vontade de Deus” (3.17: d ôéÃoL rò 0€lr||ia roO
9eo0 emprega aqui o poten cia lis, um modo verbal muito raro no Novo Testamento). A
carta quer dizer que a vida cristã a partir da esperança sempre de novo vai poder
levar a tensões com um mundo que se compreende a partir da realidade dada, e que
não há nada de extraordinário nisso. O sofrimento não é, portanto, instrumentalizado
como m eio de afirm ação própria. Trata-se, pelo contrário, da nova qualificação de
experiências a partir da perspectiva do futuro de Deus, já principiado com Cristo.

27
contrário, a pertença a ele. Isso também é fundamentado cristologi-
camente de diversas formas ao longo de toda a carta. Já 1.11 estabe­
lece uma relação entre o sofrimento de Cristo e a glória que o segue.
1.18-21 mostra como os redimidos são colocados numa relação criti­
ca com seu contexto de vida presente por causa do sacrifício de Cris­
to. Em 2.4-8, a simultânea rejeição por parte das pessoas e a eleição
por parte de Deus representam nada menos que a caracteristica da
“pedra viva”, Cristo (2.4, 6), em cujo discipulado®® os crentes, por sua
vez, se transformam igualmente em tais “pedras vivas” (2.5). E 2.21­
25 apresenta o Cristo sofredor, o qual, justamente por ter suportado
os sofrimentos que vicariamente tomou sobre si, deixou aos cristãos
“exemplo para seguirdes os seus passos” (2.21). Por meio dessa acei­
tação consciente do ser forasteiro e de suas consequências, a
marginalização social é de tal forma integrada na identidade cristã,
que as experiências que até então tentavam e ameaçavam a fé (cf. 1.6;
4.12) podem transformar-se, agora, até num momento de certeza da
fé. Dessa forma, o conceito de forasteiro, claramente negativo, consi­
derando-se seu signifícado original, adquire como expressão de uma
singularidade cristã uma repercussão positiva, sim, elitizada.®^ A IPe
consegue ainda mais com isso: justamente por meio da distinção dos
“forasteiros” em relação ao seu entorno, adequada ã situação, ela pre­
tende libertar os cristãos também da fíxação no sofrimento (cf. 4.12ss),
franqueando-lhes com isso, a partir da fé, a liberdade para um com­
portamento aberto e responsãvel em meio aos contextos sociais
conflitivos. É para isso que servem as exortações muitas vezes mal­
entendidas da IPe. A interpretação que segue mostrará como, atra­
vés dessa explicação da situação, os destinatários são capacitados
para uma orientação de vida e de comportamento diferente no trato
com seu entorno hostil e os sofrimentos daí resultantes. Ao lado da
dimensão eclesiológica e escatológica, o discurso sobre o ser foras­
teiro na IPe tem, portanto, também uma dimensão ética.

§ 3 “Exortando e testificando” (IPe 5.12)


A composição da carta
A tentativa de encontrar uma composição clara na IPe depara-se com
dificuldades - como, aliás, também em outros escritos cristãos primi­
tivos semelhantes (Tiago, IJoão, Bamabé, 2Clemente). Seguidamen­
te alternam-se apresentações teológicas fundamentais com indica-

Cf. 2.4a: “Chegando-vos para ele [...]” .


Isso é ressaltado tam bém pelo adjetivo ékXektóç em IP e 1.1, que destaca o reverso
positivo do ser-forasteiro no sentido da IP e (cf. CALLOUD, J.; GENUYT, F. La Prem ière
É p ítre d e P ierre. Analyse sémiotique. Paris, 1982. p. 33).

28
ções parenéticas. Coisas já ditas são retomadas com pequenas nuan­
ças; nenhum tema é concluído em definitivo e uma progressão con­
vincente do pensamento não é reconhecível.®® A isso eorresponde
que, neste escrito, praticamente não se encontram divisões formais.
Os diversos trechos são relacionados por meio de partículas e con­
junções; raramente há delimitações claras.®® Apesar dessas dificul­
dades, o escrito permite identificar temas centrais, sendo possível uma
subdivisão em duas partes principais. A primeira parte (1 .3 -2 .1 0 ) e a
introdução da carta que eonduz a ela (1.1-2) giram em torno do novo
ser dos cristãos, da sua esperança e da estreita relação entre salva­
ção, santidade e santificação. Trata-se da fundamentação teológica
da existência cristã.Correspondentemente, domina uma concei-
tuação que reproduz a salvação iniciada bem como o novo ser e o
novo status dos cristãos daí resultantes.®^ Os temas que dominam nas
outras partes da carta, a situação aflitiva dos crentes e a parênese são
reportados de maneira genérica e fundamental, mas continuam su­
bordinados ao tema prineipal e estruturante da esperança e eleição
(sobretudo 1.3-12; 2.4-10).“ 1.3 - 2.10 compreende, dessa forma, a
primeira parte principal, a fundamentação, na qual se trata menos de
um tema inicial, mas se interpreta mais a existência cristã ã luz da

Certos trechos são, por um lado, relativamente autônomos, mas, por outro, parcialmente
conectados entre si, só que de maneira mais solta. É bem verdade que na literatura
sempre de novo se encontram tentativas - significativamente bastante diferenciadas
- de estruturar o conjunto da carta, mas um exame mais atento revela que se trata
unicamente de ordenar detalhes de conteúdo. Em subtrechos, como a interpretação
ainda haverá de mostrar, é perfeitamente possível precisar em que dependência lógica
certas partes se encontram em relação a conteúdos anteriores e posteriores, bem como
determ inar a sua im portância nos diferentes contextos. Em relação ao conjunto do
escrito, no entanto, essa mesma tarefa é bem mais difícil.
59 Cf. sobre isso, FELDMEIER, 1992, p. 134.
5° Cf. Os títulos em pregados para essa prim eira parte: “Base e essência da existência
cristã na sociedade” (GOPPELT, 1978, p. 89); “O fundamento teológico na obra salvífica
de Jesu s Cristo e no batism o” (FRANKEM ÕLLE, H. 1. P e tr u s b r ie f 2. P e tru s b rie f,
Judasbrief. Würzburg, 1987. p. 32).
5' No resumo comparativo que damos a seguir, o primeiro número dã a quantidade de
vezes em que o respectivo term o aparece na já referida prim eira parte da carta,
enquanto que, para efeitos de comparação, o número em parênteses aponta para o
total das vezes em que o termo aparece em toda a IPe: ocoT-ripLa 4 (4); KÀTipovofiía 1 (1);
ilm ç 2 (3); iríoTiç 4 (5), bem como a figura do renascimento 3 (3); lepáieupa 2 (2); Àaóç e
eOvoç para os cristãos como novo povo de Deus 4 (4); ayioç como predicado dos cristãos
5 (5); áYLaopóí; 1 (1); éKA.6KTÓç para os cristãos 2 (2; ainda duas vezes como designação
para o próprio Cristo; como designação para a comunidade cristã é mais um a vez
incluido no h a p a x legom enon ouveKlcKTÓç no final da carta, em 5.13).
“ O fato explica que o sofrimento dos cristãos é referido de forma só breve em 1.6s com
“várias provações” , nas quais a fé se p reserva e apesar das quais os crentes se
alegram. Em termos de importância isso ainda se distingue nitidamente da segunda
parte, que se entretém de form a detalhada com o sofrimento, refletindo-o teologica­
mente em relação com o sofrimento de Cristo, assim especialmente em 4.12ss - cf.
2.18-24; 3.13-18. D a m esm a form a, tam bém em 1.13-17 e 2. Is a referência ao
comprom isso com um a conduta de vida decorrente da salvação presenteada é feita
de forma só genérica e fundamental; trata-se aqui, por assim dizer, da relação entre

29
relação com Deus®®, de maneira que se coloca o fundamento teológi­
co para as explicações parenéticas e poimênicas que se seguem. Em
outras palavras: trata-se de mudar a perspectiva das pessoas que no
presente estão sendo tentadas recorrendo ã salvação de Deus que, já
agora, se concretiza.®'*

Em IPe 2.11, o autor principia mais uma vez. Com a invocação “ama­
dos” («yanTiToí), dirige-se mais uma vez diretamente a seus destinatá­
rios e os designa novamente de “forasteiros”, uma expressão com duplo
sentido. Aqui ele também, pela primeira vez, se dirige a eles de forma
pessoal (irapaKaÀu), sinalizando com isso simultaneamente o tema se­
guinte, a exortação. Nesta, ele debate amplamente a situação de amea­
ças dos cristãos e dã instruções detalhadas sobre a maneira de se
comportar, tanto para grupos isolados quanto para a comunidade em
seu conjunto. É bem verdade que, também nesse trecho, podem ser
encontradas explanações teológicas fundamentais, especialmente nas
passagens hinológicas que exalteim a obra redentora de Cristo (2.21­
25; 3.18s). Elas têm aqui, porém, sem exceção, função fundamentadora;
encontram-se, portanto, formalmente subordinadas®®- mesmo que,
consoante ã maneira menos sistemática e mais pastoral, orientada
nos leitores da IPe, elas possam - nutridas por certa dinâmica pró-

indicativo e imperativo, do novo ser em geral, ainda não da própria parênese con­
creta, como na segunda parte. Correspondentem ente, aqui âyi-oí; é o term o-chave
decisivo, que aparece nada menos que sete vezes nesse curto trecho (bem como uma
vez áyiaopóç), enquanto que no restante da carta só é atestado mais um a vez como
atributo das mulheres veterotestamentárias (bem como um a vez ayLaieiv).
“ Cf. DELLING, Q. Der Bezug der christlichen Existenz au f das Heilshandeln Gottes
n ach dem ersten Petru sbrief. In: BE TZ, H. D.; SCH O TTR O FF, L. (E ds.). N e u e s
T estam ent u n d ch ristliche Existenz. (FS H. Braun). Tübingen, 1973. p. 109; de forma
s e m elh a n te, C L É V E N O T , M. V e rs u c h e in e r L e k tü re des 1. P e tru s b rie fe s . In:
POLEDNITSCHEK, T. (Ed.). Z u r R ettu n g des Feuers. Münster, 1980. p. 49: “ [...] aqui
[sc. em 1. 1 3 - 2.10] o povo é convocado [...]. A carta propriamente dita ainda não
começou”. Apesar de aspectos isolados interessantes, porém, o ensaio de subdivisão
geral da obra efetuado por Clévenot não consegue convencer.
^ O caráter introdutório e fundam ental desse trecho mostra-se form alm ente também
pelo fato de que todo esse fundamento nada mais é do que a continuação da eulogia
principiada em 1.3, que, apesar de term inar em 1.12, encontra-se ligada ao que
segue por meio do 6ló causai. É só em 2.10 que o trecho chega a um término definitivo,
ao qual corresponde em 2.11 um claro novo inicio, sinalizado pela dupla menção aos
destin atários e pelo em prego da p rim eira pessoa do p lu ral em p rim eira mão. A
passagem colocada entre as partes permite, por sua vez, ser também ainda subdividida
- o que será m ostrado logo a seguir -, faltando, contudo, m arcos divisórios mais
claros; as exposições isoladas de conteúdo são ligadas por meio de conjunções e,
principalm en te, p or in term édio de particíp ios associados (cf., em especial, 1.22;
2.1, 4). Isso é também tipico em outras ocasiões, em que trechos, na concepção do
autor, encontram-se estreitamente ligados e os quais ele costura entre si por meio de
correspondente simultaneidade (cf. para a grande parênese de 2.13 - 3.12 a mesma
form a de conexões em 2.18; 3.1, 7, 9).
Cf. sobre isso, LOHSE, E. Parãnese und Kerygm a im 1. Petrusbrief. Z N W 45, p.
85ss, 1954; TA LB E R T, C. H. O nce again: Th e Plan o f 1 Peter. In: ID EM . (Ed.).
P ersp ectives on F irs t Peter. Macon, 1986. p. 149s.

30
pria - tornar-se independentes em relação ao contexto. IPe 2.11 -
5.11 forma, por essa razão, a segunda parte principal deste escrito.

Que em 2.11 encontra-se um a importante cesura não é contestado pelos intérpre­


tes. Discutida é, ao contrário, a exata extensão desse trecho. A maioria dos intér­
pretes divide o escrito em três partes principais, sendo que suas respectivas deli­
mitações novamente são incertas: enquanto que para a maioria, com a clara cesura
entre 4.11 e 4.12, em 4.12 inicia um novo trecho, outros deixam a passagem ir até
4 .1 9 *, ainda outros só até 3.12.®^ Não há dúvida de que a segunda parte, a partir de
2.11, permite ser ainda mais subdividida, o que fica particularmente clairo em 4.12
(vide abaixo). Mas persiste também um a clara relação entre as diversas partes por
meio da repetição de membros similares bem como por intermédio dos dois temas
centrais: vida e sofrimento. Mesmo que, visto em seu todo, o tema do sofrimento
adquire importância cada vez mais central só no final da carta, ele já é referido
claramente em passagens anteriores, como no caso da bem-aventurança aos que
sofrem (3.14; 4.14) e do pensamento central de que a aflição representa participa­
ção no sofrimento de Cristo*; inversamente, a parênese que é dominante em 2.11
- 4.11 retoma em 5.1-5 (resp. 5.1-9).* A partir disso, não é aconselhável postular o
inicio de um a nova parte principal em 4.12, em analogia a 2.11.™ Considerando-se,
porém, o fato de que claramente está demarcada um a cesura, pode-se iniciar no
4.12 o segundo subtrecho da segunda parte principal. Nesse, não é propriamente
abordado um tema novo, senão que o centro das explanações se desloca da parênese
para a discussão sobre o sofrimento. Analogamente, intitula-se aqui - dependendo
da prioridade assumida - o primeiro subtrecho com “exortação e consolo”, e o se­
gundo com “consolo e exortação”. Tal decisão é confirmada, de resto, também por
aqueles intérpretes que dividem a carta em três partes principais, relacionando,
em termos de conteúdo, a parte 2 com a parte 3 - frente ã parte 1 -, documentando,
dessa forma, sua pertença mútua mais estreita.’^'

SELW YN, E. G. T h e F irs t E p is tle o f St. P e te r. Th e G reek T ex t w ith In trodu ction ,


Notes and Essays. London, 1949. p. 227; SPICQ, C. L e s É p itre s d e S a in t P ie rre .
Paris, 1966. p. 131; FRANKEM ÖLLE, 1987, p. 21.
DALTON W. J. C h rist’s P rocla m a tion to the Spirits. A Study o f 1 Peter 3:18-4:6. 2. ed.
Rom, 1989. p. 72ss; COM BRINK, H. J. B. T h e S tru c tu re o f 1 P e te r. Stellenbosch,
1975. p. 43, 53ss.
* 4.13s, preparado em 2.21 e 3.14-18; cf. também as bem-aventuranças aos sofredores em
3.14 e 4.14, bem como a atribuição do sofrimento à vontade de Deus em 3.17 e 4.19.
“ Parcialm ente introduzida com o verbete únoiáooeoSai (2.13, 18; 3.1; 5.5).
™ O pressuposto de que a partir de 4.12 esteja sendo feita referência a um a situação
c o m p le ta m e n te d ife re n te , de qu e, p o rta n to , se tra te em 4.1 2 - 5.1 4 de um
complemento e que se dirige, não mais aos novos batizandos, interpelados até aqui,
mas agora a toda a comunidade, não convence. Assim , no entanto, pesquisadores
como PERDELW ITZ, R. D ie M y s te rie n re lig io n u n d da s P ro b le m d es 1. P etru s b rie fe s .
E in lite ra r is c h e r u n d r e lig io n s g e s c h ic h tlic h e r V ersu ch . G ieß en , 1911. p. 26;
V IE LH AU E R , Ph. G e s c h ic h te d e r u rc h ris tlic h e n L ite ra tu r. E in leitu n g in das Neue
Testam ent, die Apokryphen und die Apostolischen Väter. 4. ed. Berlin; New York,
1985. p. 584s. Cf. a posição contrária em KÜMMEL, W. G. E in le itu n g in das N e u e
T estam ent. 21. ed. Heidelberg, 1983. p. 369ss; SCHELKLE, K. H. D ie P e tru s b rie fe ,
d e r J u d a s b r ie f. 5. ed. Freiburg, 1980. p. 5; BALZ, H.; SCHRÄGE, W. D ie “K a thoüschen”
B rie fe . D ie B riefe des Jakobu s. Petrus. J ohan nes und Judas. 4. ed. G öttingen;
Zürich, 1993. p. 62; BROX, N. D e r e rs te P e tru s b rie f. 4. ed. Zürich; N eu k irch en ­
Vluyn, 1993. p. 33s; FRANKEM ÖLLE, 1987, p. 64s. M aiores detalhes, v. abaixo.
Se, por exem plo, GOPPELT, 1978, p. 42 in titu la sua parte final de intensificação
concreta das explanações de 2.11 - 4.11, FRANKEM ÖLLE fala, reportando-se ás
partes 2 e 3, das “duas partes parenéticas da carta” ou VIELHAUER, 1985, p. 581

31
A parte introdutória concentrou-se em ressaltar a relação de Deus
com as pessoas’'^ e suas consequências para a existência dos cren-
tes^^, portanto, a autocompreensão das comunidades cristãs. A segunda
parte principal trata de sua relação para com os de fora, tanto no que
se refere ao lado ativo do comportamento cristão no mundo, quanto ao
lado passivo do sofrimento cristão causado pelo mundo. Corresponden­
temente, aqui dominam, por um lado, palavras e campos semânticos
que se referem ã situação aflitiva dos destinatários^"^, e, por outro, a
conceituação da parênese.^® As duas partes principais podem ser
subdivididas da seguinte forma;

1.1-2 Pré-escrito (os destinatários como forasteiros e povo de Deus)


1.3-2.10 O motivo do ser forasteiro: o renascimento e o povo de Deus
1.3-2.3 O renascim ento
1.3-12 Eulogia de entrada:
renascim ento e alegria no sofrim ento
1.1 3-2.3 Renascim ento e nova conduta
2.4-10 Os renascidos como povo de Deus
2.11-5.11 A salvaguarda em ambiente estranho
2.11-4.11 Exortaçao e consolo
2.11-12 A conduta como forasteiro
2.13-4.6 A salvaguarda na sociedade
2.13- 3.12 Subordinação à autoridade como testemunho
3.13- 4.6 Hostilidade do entorno como desafio
4.7-11 Exortações ao amor mútuo
4.12-5.11 Consolo e exortação
4.12-19 Sofrimento como comunhão com Cristo
5.1-5 Autoridade e serviço no seio da comunidade
5.6-11 Exortações finais e consolo
5.12-14 Final da carta

intitula sua segunda parte de “parênese” e a terceira, de “repetição atualizada da


parênese” , eles mostram que suas partes 2 e 3 pertencem mais estreitamente juntas
do que a relação dessas com a parte 1.
Significativo para isso é já desde o início IP e 1.3-5 que, em estilo hínico e por meio
de particípios passivos, exalta a ação de Deus nos e para os crentes.
Isso fica particularmente claro ao final desse trecho, em 2.5, 9s.
No que segue, o primeiro número novamente designa a quantidade de vezes em que
um a palavra aparece na segunda parte principal, em IP e 2.11 - 5.11. O segundo
número, entre parênteses, mostra a quantidade de vezes que a referida palavra aparece
no conjunto da obra da IPe: ráoxM 12(12), Trá6r|[ja 3(4), I úttti 1(1), iríípcooiç 1(1), bem como
(3Àaac()riiiC(j 1(1), óveiôíCoiiaL 1(1) e KcaaXaliu) 2(2) para as hostilidades do entorno.
napaKaléco 3(3), úiroTáooco 6(6), TaireLi/óç, TaiTEi.vo<j)poaúvTi, TaTT6i.vó())pa)v, taiTELvóoo 4(4); (como
conduta visada dos cristãos); èiueiipía (3(4) (como força contrária que aliena de Deus e
que deve ser combatida) e a justaposição de conduta e ação boas e más (àYaSoiroLÈCú 4(4),
áYa9oiioi£a 1(1), áYa0Oíioióç 1(1), àyaQói 7(7), KaKoiroLÉu 1(1); KaKorOLÓç 3(3), KaKÓç 5(5).
E sp ecia lm en te em re la ç ã o ao ú ltim o , en co n tra m -se co n e ctad os os dois tem as
principais da segunda parte, na medida em que os cristãos são, por um lado, difamados
e caluniados (cf. 2.12, 20; 3.13, 16s; 4.19) apesar da sua boa conduta de vida -
parcialm ente até por causa dela (cf. 4.4) - e, por outro, pelo fato de, considerando
justamente essa situação, serem aconselhados a um a vida que contradiga as referidas
difam ações (2.12, 15; 3.1, 15s).

32
A composição sugere que a carta aborda os principais temas, de diversos
lados, de modo mais poimênico-pastoral, a fim de tomar compreensíveis
seu consolo e suas orientações. Em primeiro plano não estão o discurso
teológico, o tratado rigoroso e claro de certos temas, mas o esforço em
permitir aos destinatários uma nova orientação na percepção de si pró­
prios e de seu mundo, influenciando dessa forma seu comportamento.
“Estmturada” a IPe está unicamente a partir de sua intenção pastoral,
de - numa determinada situação difícil - fundamentar teologicamen­
te a forma da existência cristã e exercitá-la pareneticamente.'^® Isso
não significa de forma alguma que o autor deste escrito não tenha tido
um plano, que não haja progressão ao longo da carta. Só que essa não
pode ser comprovada numa disposição formal, mostrando-se antes por
meio do progressivo esclarecimento e da nova qualificação da situa­
ção. A IPe é uma oferta de identificação para cristãos oprimidos e ten­
tados. Talvez seja justamente esse procedimento pastoral e menos
discursivo, orientado mais num discurso livre, a razão da grande im­
portância desta carta para a vida comunitária até hoje.'^’’

§ 4 “Renascimento” e “povo de Deus”


A sobreposição das dimensões vertical
e horizontal da soteriologia

Como pode ser depreendido do que foi exposto até agora, a IPe é um
escrito poimênico, no qual, porém, justamente no interesse da práxis,
há uma reflexão original, intensiva e teológica. A interpretação have­
rá de comprovar isso em muitos exemplos. Aqui deverão ser esboçadas,
para efeitos de orientação, as linhas-mestras teológicas que caracte­
rizam o fundamento na primeira parte principal;

1. Uma linha-mestra é o discurso sobre o renascimento, que é sucessi­


vamente desenvolvido no trecho de 1.3 - 2.3. Essa metáfora e o seu
desenvolvimento arrojado a partir da geração de uma semente
incorruptível, passando pelo nascimento e chegando até a amamentação
com o “leite da palavra” (1.3s, 23-25; 2.2s), documentam o esforço da
IPe em tomar plausível a existência escatológica dos cristãos num novo
contexto. Pois a IPe já não fala mais do reino de Deus, também não
mais de uma nova criação, antes personaliza a mensagem salvífica cristã
da entrada do éschaton com a metáfora de um novo nascimento no

BROX, 1993, p. 37; cf. KÜMMEL, 1983, p. 368ss; UNNIK, W. C. van. Christianity
According to I Peter. E T 68, p. 8 Ís , 1956/57; FURNISH, V. P. Elect Sojourners in
Christ: An Approach to the Th eology o f I Peter. P e rk in s J o u rn a l 28, p. 11, 1975,
entre outros.
Veja abaixo. História da interpretação, p. 50.

33
sentido de uma transformação da existência terrena; uma metáfora
que não se encontra no Antigo Testamento, nem em Jesus ou Paulo,
mas que se dissemina sempre mais intensamente desde o tempo do
principado, seja na religiosidade judaica, seja na pagã, seja, finalmen­
te, também depois no cristianismo primitivo Em geral, com essa fi­
gura parcialmente drástica, a redenção é interpretada como vitória sobre
as condições de existência colocadas com o primeiro nascimento. De
forma correspondente, a IPe caracteriza sua mensagem salvífica como
resgate do fútil contexto de vida (1.18s) e como superação da transito-
riedade (1.23-25). Aos eleitos é garantida, através da regeneração divi­
na, a participação na plenitude de vida divina e indestrutível.^®

2. Essas explanações em 1.3 - 2.3 encontram-se emolduradas por


l . l s e 2.4-10, que destacam, com alusões a tradições judaicas vete-
rotestaraentárias, que os renascidos são simultaneamente o povo elei­
to de Deus®°. Já a invocação “aos eleitos que são forasteiros da dis­
persão” dirigiu-se aos destinatários como membros do povo de Deus
com todos os três motivos (ser forasteiro, eleição, dispersão). Também
o acréscimo à invocação no v. 2 intensifica essa relação com a temática
do povo de Deus por meio dos motivos da obediência e da aspersão do
sangue, que se reportam ao pacto no Sinai (Êx 24.7s). Essa temática
retrocede em 1.3 - 2.3®^ para reaparecer tanto mais claramente no
trecho final da primeira parte principal (2.4-10).®^

A temática do povo de Deus desempenha, portanto, um papel dominan­


te no início da carta e em sua parte final, emoldurando, dessa forma, o
referido bloco de 1.3 - 2.3, que está determinado pelas afirmações sobre

Veja abaixo, excurso 7; Renascimento, p. 114ss.


Veja abaixo em 1.23-25, com o excurso: “Incorruptível, sem mácula, imarcescível” -
recepção e transformação de predicados metafísicos de Deus na IPe, p. 73ss. Nesse
sentido, a form ulação singular de 2Pe 1.4 no Novo Testam ento, que interpreta a
redenção presenteada na vocação com o participação da natureza divina, expressa
mais ou menos de forma adequada em tom o do que gira o renascimento na IPe.
Para “Israel” como metáfora para a compreensão da nova comunhão de fé na Primeira
Carta de Pedro, cf. ACHTEMEIER, P. J. 1 Peter. Hermeneia. M inneapolis, 1996. p.
69-73.
Ela ainda ressoa na metáfora da heramça (1.4), na referência às predições proféticas
(1.10-12; cf. 1.24s), bem como na solicitação praa uma santificação que corresponda
a Deus (1.15s), onde é citado Lv 11.44s, no resumo do capítulo sobre prescrições
alimentares, que separam o povo de Deus do seu entorno.
Isso ocorre em 2.4 com as alusões à comunidade como casa espiritual de Deus e seu
sacerdócio, em 2.6-8 com a referência ao fundamento da construção sobre o Sião,
mas principalm ente em 2.9s, em que, além de “geração eleita” e “sacerdócio real” ,
aplica-se três vezes à com unidade o conceito h istórico-salvífico de laáz, n a LXX
praticamente sempre usado como sinônimo de Israel, e um a vez, o de êevoç ayiov (o
conceito que, no contexto da teofania de Deus no Sinai, é em pregado para o laóç
normal [Êx 19.6]). Também a formulação de que Deus “vos cham ou das trevas para a
sua maravilhosa luz” (2.9) alude à eleição.

34
o renascimento. Esse entrelaçamento dos dois motivos, ambos explici­
tamente atribuídos ã misericórdia divina (1.3; 2.10), toma claro que eles
se encontram correlaãonados e se complementam na IPe. Enquanto o
discurso sobre o renascimento coloca o acento na dimensão divina, “ver­
tical” da soteriologia como superação da miséria da condido humana por
meio da ação “regeneradora” de Deus no crente, o recurso à temática
veterotestamentária judaica do povo de Deus destaca que os forasteiros
desacreditados e incriminados pela sociedade são membros de uma
comunidade: os que renasceram para uma “viva esperança” são, simul­
taneamente, “pedras vivas” na “casa espiritual” de Deus (2.5). Além dis­
so, essa comunhão tem suas raízes na antiga aliança e se relaciona com
as promessas proféticas; está, pois, localizada na história da salvação. E,
por fim, os “forasteiros eleitos” recebem com isso também uma forma
social visível e uma tarefa na sociedade, que passa a ser então desenvol­
vida na segunda parte principal da carta. Essa moldura é, simultanea­
mente, contrária a um mau entendimento da salvação no sentido indi­
vidualista, anistórico ou de êxodo do mundo, cuja “transcendência” (li­
bertadora!) é tão maciçamente realçada por meio de renascimento e de
teologúmenos correspondentes (“salvação das almas”).

§ 5 “Porque está eserito: [...]!” (IPe 1.16)


A 1Pedro e a tradição

A IPe, interessada em comunicar sua teologia, pode trilhar esse ca­


minho relativamente arrojado da tradução de sua mensagem salvífica
para a situação e cultura dos seus destinatários também pelo fato de
ela, por outro lado, absorver tradições veterotestamentárias, do judaís­
mo incipiente e cristãs primitivas numa densidade sem paralelos no
Novo Testamento, unificando-as - aparentemente sem grande esfor­
ço - num todo renovado.

Em primeiro lugar, merecem ser citados, nesse contexto, os escritos do


Antigo Testamento. Só na Carta aos Hebreus e no Apocalipse encontra-
se uma densidade comparável de citações e referências ao Antigo Tes­
tamento. Ao contrário da Carta aos Hebreus, as citações não são expli­
citamente identificadas como tais, com exceção das passagens de 1.16
e 2.5; a linguagem dos escritos bíblicos insere-se como que organica­
mente nas explanações da carta, evidenciando-se, assim, como ponto
de referência e base decisivos de sua argumentação. Assim como Pau­
lo, o autor da IPe tem uma nítida predileção pelo profeta Isaías®^; se-

Is 40.6s em 1.24; 40.8s em 1.25; 28.15 em 2.5; 8.14 em 2.8; 43.21 em 2.9; 10.3 em
2.12; 53.9 em 2.22; 53.4,12 em 2.24; 53.5 em 2.24; 53.5 em 2.25; 8.12s em 3.14s;
11.2 em 4.14; cf. adiante as alusões a Is 52.3 em 1.18 e 28.16 em 2.4.

35
guem-se - claramente distaneiados - os Salmos®"^ e os Provérbios.®^ O
último proeedimento é raro, e, dado que também os citados salmos têm
parcialmente características da sabedoria (cf. IPe 3.10-12, em que é
citado o SI 34.13-17), essa escolha de palavras da Escritura revela algo
sobre a tendência da carta, a saber, de tomar plausível a vida a partir
da promessa por meio de uma simultânea descoberta de experiência
de mundo correspondente. É acrescentada ainda uma série de cita­
ções e alusões ao Antigo Testamento®®, mereeendo destaque que na
IPe só em 1.16 aparece uma citação direta da Torá (Lv 11.44s; 19.2), de
importância central para o judaísmo da época.

O mediador dessas tradições é o judaísmo inãpiente, sobretudo o ju ­


daísmo helenista. Isso já se mostra pelo fato de os escritos bíblicos
serem citados segundo a versão da Septuaginta ou também - como
no livro de Daniel - na versão do (Proto-)Teodócio.®'^ Além disso, en­
contram-se na IPe alusões a outros escritos do judaísmo incipiente,
como a lEnoque®® e à Sabedoria de Salomão.®® Decisiva é essa in­
fluência do judaísmo da diáspora nos teologúmenos que desempe­
nham papel central na IPe, em especial a autodesignação de foras­
teiros®® e o tema do renascimento® h mas também a imortalidade como
predicado soteriológico®^ e o discurso sobre a alma®® têm seus para­
lelos mais próximos no judaísmo helenista.

Ao lado disso, a IPe também acolheu amplamente a tradição cristã pri­


mitiva. Seguidamente o autor da IPe recorre a fórmulas confessionais
(cf. 1.18-21; 2.21-25; 3.18s) e à tradição dos catálogos domésticos
(2.18 - 3.7; cf. 5.1-5). Na IPe, forma-se uma “teologia apostólica” que
em parte conduz diretamente ao Credo Apostólico®"^. O caráter inte­
grador dessa carta “católica” mostra-se também no fato de ser o único

Sl 33.9 em 2.3; 118 [117].22 em 2.7; 34.13-17 em 3.10-12; 22.14 em 5.8; cf. as
alusões ao Sl 118.22 em 2.4; 39.13 em 2.11; 89 [88].51 em 4.14; 55.23 em 5.7.
Pv 10.12 em 4.8; 11.31 em 4.18; 3.34 LXX em 5.5; cf. adiante as alusões a Pv 17.3
em 1.7 ; 31.17 em 1.13; 24.21 em 2.17 e 3.25 em 3.6.
Gn 23.4 em 2.11; 18.12 em 3.6; 7.13ss em 3.20; Êx 24.7s em 1.2; 19.6; 23.22 LXX em
2.9; Lv 11.44s; 19.2 em 1.16; Os 1.6,9; 2.25 em 2.10; Ez 22.25 em 5.8; Jó 1.7 em 5.8.
Dn 4.1 6; 6.26 0 em 1.2; 6.27 0 em 1.23.
lE n 1.2 e 16.3 em IP e 1.12; eventualm ente lE n 9.10; 10.11-15 em IP e 3.19.
Alusões a Sab 1.6 em 2.25; Sab 12.13 em 5.7.
V. acima, bem como FELDMEIER, 1992, p. 39-74, 95-104.
V. abaixo, excurso 7: Renascimento, p. 114.
V. ab aixo, excu rso 2: “In co rru p tív el, sem m ácu la, im a rc e s c ív e l” - R ecepção e
transform ação de predicados divinos metafísicos na IP e, p. 73.
V. abaixo, excurso 4: Alma e salvação das almas na IPe, p. 83, bem como FELDMEIER,
R. Seelenheil. Überlegungen zur Soteriologie und Anthropologie des 1. Petrusbriefes.
In: SCHLOSSER, J. (Ed.). 77re C a th olic E p is tle s a n d th e Tradition. Leuven, 2004. p.
291-306.
V. abaixo. História da interpretação, p. 50.

36
escrito do Novo Testamento que, em proporção considerável, acolheu,
combinando e revisando®® de maneira perfeitamente independente,
as duas correntes traditivas fundamentais do cânon neotestamentá-
rio: a tradição sobre Jesus dos evangelhos®® e a tradição paulina.®'^ A
IPe revela-se, assim, como um escrito que une afirmações e metáfo­
ras teológicas inovadoras (como “forasteiros”, “renascimento”, “sal­
vação para as almas”, “pedras vivas”, etc.) intensivamente vinculadas
à tradição da Bíblia, do judaísmo incipiente e do cristianismo primiti­
vo. Remontar-se à linguagem e ãs tradições conhecidas produz apro­
vação e serve como legitimação adicional para o que é dito.

Recentem ente H ERZER, J. P e tru s o d e r P a u lu s ? Studien ü ber das V erhältnis des


Ersten Petrusbriefes zur paulinischen Tradition. Tübingen, 1998, procedeu a uma
detalhada revisão da tese do paulinism o da IPe. Mesmo que o destaque dado por
Herzer à autonomia da IP e em relação à tradição paulina soe parcialmente forçado
diante da m ultiplicidade de correspondências teológicas constatáveis, seu m érito
reside em ter demonstrado, na comparação direta com a tradição paulina, a autonomia
teológica desta carta, reiteradamente constatada.
A in flu ência do Evangelho de M ateus sobre IP e é apresentada com detalhes em
METZNER, R. D ie R ezep tion des M a tth ä u seva n geliu m s im 1. Petrusbrief. Studien zum
traditionsgesch ich tlichen und theologischen Einfluß des 1. Evangelium s a u f den
1. Petrusbrief. Tübingen, 1995.
O paulinismo da IP e mostra-se exemplarmente na fórmula Iv Xpiorcö, comum tanto ao
corpo paulino como à IPe; cf. também as concordâncias entre IP e 1.4 e Rm 12.2,
IP e 2.13-17 e Rm 13.1-7, bem com o entre IP e 3.9 e Rm 12.17. Na pesquisa, o
paulinism o da IP e foi e ainda é sempre de novo ressaltado há quase um século e
meio: “ Se o nome estivesse faltando no pré-escrito, estar-se-ia, antes, inclinado a
atribuir esse escrito à escola paulina [...]” (SCHRÖGER, F. Die Verfassung der Gemeinde
des ersten Petrusbriefes, ln: MAINZ, J. (Ed.). K irch e im Werden. Studien zum Thema
Am t und Gemeinde im Neuen Testament. München, 1976. p. 239, nota 1). Uma boa
visão sobre a relação entre a IP e e as cartas paulinas é dada por SCHELKLE, 1980,
p. 5-7 (que acha provável um conhecimento da Carta aos Romanos pelo autor de IPe)
e BROX, N. Der erste Petru sbrief in der literarischen des Urchristentum s. K a iros
NF 20, p. 183, 1978; cf. o parecer de Brox em seu comentário: A IP e “é tão claramente
paulina em muitos aspectos, que, como já várias vezes foi afirmado, se não constasse
o nome em 1.1, a gente certamente tenderia a atribuir a sua autoria a um discipulo
de Paulo, não ao apóstolo Pedro” (1993, p. 45s). Isso, é bem verdade, sempre de novo
é contestado, em bora os argum entos não convençam: a problem ática da lei, típica
para Paulo, não falta só em 2Co, mas também na deuteropaulina de Efésios. ALAND,
K. Das Verhältnis von Kirche und Staat in der Frühzeit. A N R W . Berlin; New York,
1979. v. 11/23/1, p. 201 sublinhou mais um a vez com ênfase esse caráter paulino
do escrito, justam ente diante do pano de fundo dos escritos dos pais apostólicos e
do desenvolvimento da literatura teológica do século II: “ (...) a opinião divergente de
alguns estudiosos do Novo Testam ento explica-se pelo fato de não terem tom ado
suficientem ente em consideração os escritos dos pais apostólicos e as linhas do
desenvolvimento teológico da literatura do século II fora do Novo Testamento” (ibidem).
P u ra esp ecu lação p arece-m e con stitu ir, porém , a opin ião de SCH EN KE, H .-M .;
FISCHER, K. M. E in le itu n g in d ie S c h rifie n des N e u e n T e sta m en ts I. Die Briefe des
Paulus und Schriften des Paulinismus. Berlin, 1978. p. 203, segundo a quäl a IP e
teria constituído originalmente um a carta (pseudepigráfica) de Paulo.

37
§6 “Pedro”, apóstolo de Jesus Cristo (IPe 1.1)
Questões introdutórias

a) Unidade

Em seu modo pouco sistemático de apresentação, a IPe constituiu-


se num gratificante objeto para operações crítico-literárias. Isso não
precisa ser apresentado aqui em detalhes.®® Nas várias soluções, são
dois os argumentos que sempre retornam: o primeiro baseia-se nas
explanações impessoais e genéricas de IPe e na falta de característi­
cas de uma carta, razão pela qual se lhe nega o caráter de carta e se
considera como secundária a moldura de IPe l . l s e 5.12-14. Nesse
contexto, geralmente também é atribuído um papel especial ao batis­
mo na IPe e tenta-se determinar, sobretudo, 1.3 - 4.11 como alocução
batismal ou algo semelhante. O segundo vê em 4.11 uma conclusão
e encontra pressuposta, a partir de 4.12, uma situação completamen­
te diferente da que é retratada nos capítulos anteriores: enquanto
que em 1.3 - 4.11 o assunto girava em torno da possibilidade do sofri­
mento, a partir de 4.12 a realidade desse estaria agora pressuposta.

Quanto às características de uma carta, não convém usar as cartas


paulinas como critério único para determinar o gênero “carta”. Em
comparação com outras cartas antigas, a IPe seguramente pode ser
considerada como tal (veja abaixo). Para a remoção da moldura ne­
nhum argumento da crítica literária é válido; as partes da moldura
estão claramente interligadas com suas partes subsequentes®®, em que
as relações, por sua vez, são terminologicamente de tal forma autôno­
mas, que a suposição de uma assimilação consciente não convence. A
isso acrescente-se que com IPe 1.3ss inicia uma eulogia, também típi­
ca de outras cartas (cf. sobretudo 2Co 1.3ss; Ef 1.3ss), de modo que,
também considerando-se a forma, 1.3ss está diretamente ligado a l.ls .
As referências ao batismo são introduzidas de outras cartas, sendo que
a noção central do renascimento na IPe (1.3, 23-25; 2.2s) é identificada
com o batismo devido a Jo 3.5 e Tt 3.5. Nesse contexto, ignora-se que a
IPe mesmo não efetua essa identificação, mas fala sobre o renascimento
sem nenhuma relação com o batismo e do batismo sem qualquer rela­
ção com o renascimento (3.20s). Mesmo que seu discurso sobre o

Um a am pla discussão pode ser encontrada, p. ex., em BROX, 1993, p. 19ss.


1.1 com 1.17 e 2.11 por meio do tema do forasteiro, l . l s com 1.15; 2.4, 6, 9, 21; 3.9
e 5.10 por meio da ideia da eleição, 1.2 com 1.14, 22 por meio do termo “obediência”,
com 1.12, 15, 16; 2.5, 9; 3.5, 15 por meio do campo semântico “santo/santificação”;
da mesma forma 5.12, com o discurso determinado sobre a graça, refere-se a 2.19s;
5.13 refere-se novam ente à eleição e, eventualm ente com “B abilôn ia” , tam bém à
dispersão.

38
renascimento estivesse fazendo alusão ao batismo, o que de forma al­
guma pode ser considerado simplesmente como provado, não se trata­
ria do batismo como tal, mas da renovação escatológica da existência
de fé, razão pela qual a suposição de tratar-se de um tipo de alocução
batismal não convence de forma alguma. Quanto à cesura entre 4.11 e
4.12, uma doxologia semelhante também se encontra em outro lugar
dentro de uma carta'°°, sem que lhe marcasse o término. A afirmação
de que na primeira parte só se conta com a possibilidade do sofrimento
contradiz declarações como as de 1.6; 2.12; 3.16 e 4.4, que partem do
pressuposto de que as aflições já estejam ocorrendo no presente. Por
outro lado, as nítidas concordâncias apresentadas pelas duas partes
que supostamente deveriam ser separadas, falam claramente contra
uma tal separação crítico-literária, pois essas, longe de se restringirem
unicamente a temas teológicos como eleição, respectivamente voca­
ção, graça ou glória, abrangem também a valorização do sofrimento e
como lidar com ele: tanto aqui como lá discriminações e denúncias do
entorno constituem a razão do sofrimento (2.12; 3.16; 4.4, 14). Esse
sofrimento, porém, ocorre segundo a vontade de Deus (3.17; 4.19; cf.
1.6) e é compreendido como provação a ser superada (1.6; 4.12). Em
razão de sua pertença a Deus, a expectativa em relação aos crentes é
que consigam se alegrar jã em meio ao presente sofrimento (1.6, 8;
4.13); os que sofrem por causa de sua fé serão bem-aventurados (3.14;
4.14; cf. 2.19s). Aos cristãos também é solicitado que revidem as acu­
sações de serem malfeitores com bom comportamento (2.12, 15, 19s;
4.15s, 19; cf. 3.10s, 16), e assim, no sofrimento, santifiquem a Cristo e
glorifiquem a Deus (3.15; 4.16). As explanações de 4.12ss inserem-se,
portanto, bem organicamente no contexto dos capítulos precedentes.
As diferenças de intensidade na descrição do sofrimento explicam-se
a partir da intensificação da abordagem desse problema mais para o
final da carta, como já foi dito acima. Não há, portanto, motivo para se
duvidar da unidade da IPe.

b) Forma

Com a rejeição das hipóteses de divisão crítico-literárias, tomam-se


inválidas também todas as classificações quanto ã forma que se ba­
seiam no fato da IPe, ou seja, seu conteúdo central, representar - sob

Cf. Rm 1.25; 11.36; E f 3.20s. Na IClem , um a tal doxologia aparece, inclusive, num
total de nove vezes (20.12; 32.4; 38.4; 45.7; 50.7; 58.2; 61.3; 64; 65.2). ACHTEMEIER,
1996, p. 292 chama a atenção para o fato de que tal doxologia é empregada bem mais
frequentemente no interior do corpo de um a carta do que em seu final.

39
negação de seu caráter de carta - um “ensaio homilético”*®^ uma
“homilia edificante”^“ , uma “alocução batismal”^“^, inclusive datada
na Semana Santa^®"^, uma “carta circular por ocasião da festa da Pás-
coa”i°5, a ordem de culto para uma celebração batismal da igreja ro­
mana^“® ou hipóteses semelhantes.^“ A IPe contém as característi­
ca s'essenciais de uma earta, desde o pré-escrito (l.ls ) e a eulogia
(l.Sss) até o final da carta com notícias pessoais, saudações e votos de
paz (5.12-14), devendo ser vista, portanto, formalmente como tal.^°®
Este escrito, entretanto, eomo já sinalizado, em nenhuma parte entra
diretamente na situação individual de uma determinada comunida­
de, falando tão-somente de uma forma bem geral de problemas e tare­
fas dos cristãos. Ele já tem em vista, portanto, de eerta forma, a “igre­
ja”. Também não se fala nada sobre a relação entre remetente e desti­
natários. O motivo disso reside no fato de - como jã mostram os dados
relativos aos destinatários - o escrito estar concebido como carta cir­
cular, comum também em outros manuseritos da literatura veterotes-

HARNACK, A. v. D ie C h ron ologie d e r a ltk irch lich en L ite ra tu r bis E usebiu s, Bd. 1: D ie
C h ro n o lo g ie d e r L ite ra tu r b is Ire n ä u s . Nebst einleitenden U ntersuchungen. 2. ed.
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W INDISCH, H. D ie K a th o lis ch e n B riefe. Dritte, stark um gearbeitete Auflage von H.
Preisker. 3. ed. Tübingen, 1951. p. 156ss.
Demais sugestões são apresentadas em BROX, 1993, p. 20 e FRANKEMÖLLE, 1987,
p. 19; ali também com crítica detalhada a essas determinações de gênero.
Cf. FRANKEMÖLLE, 1987, p. 17s: “Na antiguidade, também no judaísmo, realmente
cada com unicação era form ulada em form a de carta, de modo que não é a carta
privada (como usual na literatura paulina) que fornece o pretenso modelo-padrão,
segundo o qual todas as demais cartas devam ser medidas. Considerando-se o todo,
a proximidade das cartas paulinas (até a Carta aos Romanos) com cartas privadas é
u m a ex ceçã o - d eterm in a d a pelo co n h ecim en to p e s s o a l que P au lo tin h a dos
destinatários. Tipos de carta diferenciados eram consequência de diferentes situações
de comunicação. Uma visão geral sobre as cartas helenistas (para um a exposição
sumária de sua crítica formal e de género, cf. BERGER, K. Hellenistische Gattungen
im Neuen Testam ent. A N R W . Berlin; New York, 1984. v. II/25/2, p. 1326-1363),
bem como judaicas (Jr 29; Bar 6; IM ac 5.10-13; 12.6-12; 2Mac 1.1 - 2.19) mostra
não ter tido a antiguidade conhecimento de regras normativas para sua composição.
Suas form as eram determ in adas p ela variedade do conteú do e pelas in tenções
pragmáticas subjacentes (carta privada, carta comercial, carta política ou filosófica,
etc.). Tam bém a recepção de gêneros e form as m enores (provérbios, exem plos da
natureza e história, agradecimento e louvor aos deuses, entre outros) é normal, sendo
até recomendada em reflexões sobre como se deveria escrever cartas (assim, p. ex.,
em Demétrio, Filostrato, Cícero, Quintiliano). A IP e de forma nenhuma transgride a
p rática antiga quando seu autor reelabora tábuas dom ésticas, hinos e fórm ulas
confessionais, provérbios e exortações padronizadas. Mesmo que nem sempre haja
referências diretas aos destinatários no interior da carta, as tradições foram escolhidas
considerando-se a concreta situação pela qual esses passavam. Nesse sentido, as
diferentes form as linguísticas, prosaicas e poéticas contidas na carta têm relação
direta com os destinatários, devendo ser interpretadas de forma pragmática” .

40
tamentária e judaica^°®, bem como neotestamentáriadi° Reiteradas
vezes foi feita referência a certa proximidade da IPe com as cartas
aos exilados da Babilônia (Jr 29.4-23; 2Bar 78-87).^^^ L. Döring tor­
nou essa determinação formal plausivel por meio de uma série de
novas comprovações textuais.“ ^ Em seu estudo, distingue duas tra­
dições: enquanto que a primeira, em conexão com Jr 29(36), está re­
lacionada com a expressão “Jeremias como autor de cartas”^^^, as
demais compõem-se de cartas administrativas à diáspora.“ "^ A
multiplicidade das comprovações textuais fala em favor da suposição
de que realmente existia, no judaísmo incipiente, um gênero distin­
to de “cartas ã diáspora”. Já a menção explícita da “diáspora” no en­
dereço torna provável que a IPe, como escrito autoritativo do cristia­
nismo primitivo, tenha se orientado conscientemente nessa forma de
cartas à diáspora do judaísmo incipiente. Argumenta em favor disso
eventualmente também a referência à Babilônia como local de envio
(v. abaixo), bem como a proximidade para com a Carta de Tiago. Tanto
em Tg como na IPe manifestam-se figuras apostólicas proeminentes
do cristianismo judaico da Palestina em forma de uma carta circular
episcopal a comunidades locais, que viviam bastante separadas umas
das outras. Essa forma de carta implica possivelmente também um
destaque frente à tradição paulina: enquanto do missionário dos po­
vos conheciam-se eartas do gênero de carta privada, associava-se com
o grande apóstolo de Jerusalém antes a forma “oficial” de cartas cir­
culares judaicas. Certamente é possível discutir se a IPe realmente
foi enviada como carta ou se somente fez uso de sua forma literária.

Cf. 2Mac 1.19; 1.10 - 2.19.


110 C f o decreto apostólico em At 15.23-29, mas também as Cartas de Tiago e Hebreus.
111 G O P P E L T , 1978, p. 45; B E R G E R , K. F o r m g e s c h ic h te d e s N e u e n T e s ta m e n ts .

H eid e lb erg , 1984. p. 366; c f A N D R E S E N , G. Zum F o rm u la r frü h c h ris tlic h e r


Gemeindebriefe. Z N W 56, p. 236, nota 12; 243, 1965. Sobre a Carta de Tiago como
carta da diáspora escreve detalhadamente POPKES, W. D e r B r ie f des Jakobus. Leipzig,
2001. p. 61-64.
DÖRING, L. D e r E rste P e tru s b rie f ais frü h ch ris tlich e r D iasporabrief, p a p e r n ã o publicado
para o sem inário “K atholische Briefe und A p osteltradition en ” [Cartas católicas e
tradições apostólicas] da SNTS, Bonn, 2003.
EpJer; Tjon Jer 10,11; 2Bar 78-87; 4Bar 6,17-23; 4QApocrJerC.
A evidência docum ental m ais antiga é o assim denom inado Papiro da Páscoa, de
Elefantina (AP Nr. 21, resp., TAD I,54s); a isso somam-se as duas cartas introdutórias
no Segundo Livro de M acabeus (2Mac 1.1-9; 1 . 1 0 - 2 . 1 9 ), bem com o cartas na
literatura rabínica, entre as quais três cartas aramaicas do Rabban Gamaliel (tSan
11,6; jS an 1,2; jM Sh V,6; bSan foi. 1 Ib), que testemunham claram ente a existência
de cartas au toritativas de conteúdo haláquico e relativo a calendários, tanto em
áreas mais distantes do território de Israel como na diáspora.

41
c) Autor
Apesar da clara identificação do autor, a autoria de Pedro é questio­
nada desde o início do século XIX. Os motivos apresentados para o
questionamento são relevantes, mesmo que não de forma tão clara
como se costuma afirmar.

Contra u m a autoria petrina são apresentados os seguintes argumentos;


1. A carta é escrita num grego culto. Para um pescador gaUleu, que, segundo o
testemunho biblico, é um ãYpáirnaToç (At 4.13), isso parece estranho.
2. O Antigo Testamento é citado com exclusividade segundo a Septuaginta. Num
judeu palestino esperar-se-ia pelo menos u m a influência de seu conhecimento
da Bíblia hebraica.
3. Caso Babilônia, como indicação do local ao final da carta, se refira a Roma (v.
abaixo, p. 47), isso indicaria um a datação depois de 70, já que é somente após
essa data que, em razão do paralelo da destruição do templo"®, a identificação
entre Roma e Babilônia pode ser comprovada. Nesse caso, porém, a autoria da
carta ter-se-ia dado claramente depois da provável morte de Pedro (64 d .C .)."’’
4. Os dados contidos no endereço de IPe 1.1 pressupõem que o cristianismo já
esteja difundido em toda a Ásia Menor. Isso, no entanto, é concebível somente
“a partir de meados dos anos 60, mas com certeza por volta dos 80”"®, apontan­
do, dessa forma, igualmente para o tempo depois da morte de Pedro.
5. A relação de forte tensão entre as com unidades e a população em geral,
pressuposta n a carta, transformou-se num a situação permanente, englobando
todos os crentes no Império Romano (cf. 5.9), que eram agora também conheci­
dos pela nova designação de “cristãos” (4.16). Isso combina antes com o tempo
dos últimos dois ou três decênios do século I, com u m a época em que os cris­
tãos já se encontravam tão amplamente disseminados e em tão grande número,
que passaram a cham ar maior atenção sobre si e foram colocados em todo o
império sob maior pressão por parte da população e, por seu intermédio, tam­
bém por parte das autoridades.

É bem verdade que também outros autores cristãos, como Paulo e Mateus, que de
casa eram bilíngues (resp., trilingues, se adicionarmos o hebraico), frequentemente
citaram a Septuaginta; ao lado disso, no entanto, são constatáveis justamente neles
sem pre de novo passagens em que se reportam com au tonom ia ao texto bíblico
hebraico. Surpreendentemente isso falta por completo na IPe, mesmo que seu autor,
caso tivesse sido Pedro, deveria ter tido o aramaico como língua materna, sendo-
lhe. portanto, mais facilm ente atribuível o recurso ao Antigo Testam ento hebraico
do que ao bilíngue Paulo.
Cf. HUNZINGER, C.-H. Babylon als Deckname fü r Rom und die Datierung des 1.
P etru s b riefes. In; G RAF R E V E N TLO W , H. (Ed.). G o tte s W o rt u n d G o tte s L a n d .
Göttingen, 1965. p. 71.
Sobre a estadia de Pedro em Roma e a sua provável morte em conexão com a perseguição
de N ero, cf. A LA N D , K. D er T od des P etru s in Rom . B em erk u n gen zu sein er
Bestreitung durch Karl Heussi. In: IDEM. K irchengeschichtliche Entw ürfe. Alte Kirche.
Reformation und Luthertum. Pietismus und Erweckungsbewegung. Gütersloh, 1960.
p. 35-104; LIETZMANN, H. Petrus röm ischer Märtyrer. In: IDEM. K le in e S ch rifte n
1. Studien zur spätantiken Religionsgeschichte. Berlin, 1958. p. 100-123.
GOPPELT, 1978, p. 29; ali também com fundamentação mais detalhada; de form a
semelhante, GUNKEL, H. D e r erste B r ie f des Petrus. 3. ed. Göttingen, 1917. p. 248­
292; BROX, 1993, p. 27.

42
6. Caso 4.12ss se refira a medidas tomadas por autoridades legalmente consti­
tuídas contra os cristãos, que ocorriam pela simples razão de su a pertença ao
cristianismo"®, isso dificilmente seria concebível antes da perseguição desen­
cadeada contra os cristãos por Nero, u m a vez que também a distinção entre
esses e os judeus tornou-se gradativamente consciente aos de fora somente a
partir dessa épocad^®
Ao lado dessas principais objeções, há ainda um a série de outros indícios que
sugerem não ser o apóstolo Pedro o autor da carta. É notório que o escrito não
deixa transparecer nada da estreita relação do seu autor com Jesus^^h conheci­
da a partir dos evangelhos'^^. Em seu escrito, o autor acolhe diversas tradições
da igreja influenciada pelo helenismo'^^, o que tom a provável que aqui não está
falando u m a pessoa ligada aos primórdios do cristianismo.'^'* Isso é especial­
mente válido pelo fato de IPe retratar um a tradição paulina (v. acima), o que
igualmente fala antes contra um a autoria petrina.'^^ Fato é que também nada
sabemos sobre um a relação do apóstolo Pedro com as comunidades destinatá­
rias da IPe. Questionável é, além disso - especialmente depois das controvér­
sias na G alácia - , se Pedro pode dirigir-se autoritativamente a com unidades
que estejam na esfera missionária de Paulo, e sem fazer a mínima referência a
ele.'^® O fato parece apontar mais p ara um tempo posterior, quando Pedro se
tornou a autoridade apostólica por excelência (Mt 16.18s).
Digno de nota nesse contexto é também a falta completa dos problemas envol­
vendo cristãos ju deu s e gentíhcos, que, p. ex., encontram-se em evidência na
Carta aos Gálatas. Aliás, as perguntas sobre a lei e a missão dos gentios, ambas

Cf. Plin, Ep X,96,2, que pondera a ação contra os cristãos unicamente com base no
nom en ipsum : v. acima, p. 2, nota 8 (edição alemã).
Cf. GOPPELT, 1978, p. 62.
IP e 5.1 provavelmente não esteja pensando em testemunho ocular (mesmo porque
o Pedro histórico dificilm en te teria podido designar-se com o testem unha ocular
dos sofrim entos de Jesus). A referência a tal testem unho ocular não teria sentido
nesse contexto. Diferente é o caso se o autor tem participação nos sofrimentos de
Cristo em form a de sofrimentos vividos pessoalm ente como “testem unha de ação”,
em favor do que também já fala a seleção de palavras (cf. o Koivwváç em 5.1 com o
K01VCÜVÛV de 4.13). Só assim também permanece “ [...] a correspondência soteriológica
claram ente pretendida entre sofrimento e glória (cf. 4.13s); além disso, o autor só
se encontra autorizado a emitir suas ‘exortações’ na situação de perseguição nesse
caso, por não ser mero expectador, mas um próprio “participante’ na necessidade do
sofrim ento” . (BROX, 1993, p. 229).
Segundo BROX, 1993, p. 45, a IP e é “[...] de tal forma verdadeira em relação a toda
a originalidade nesse tocante, que isso pesa como argumento” .
G O PPE LT, 1978, p. 67; BROX, 1993, p. 45: “A ca rta não dem on stra nenhum
conhecim ento prim ário por parte do autor a p artir de seu testem unho histórico,
mas sua dependência de diversas tradições eclesiásticas [...]” .
Isso vale especialmente em relação aos ditos de Jesus, que o autor toma da tradição,
cf. BROX, 1978 (T ra d ition ).
Cf. BROX, 1993, p. 46: “[...] de acordo com as informações que podem ser depreendidas
de G1 2 e dos Atos dos Apóstolos, não pode ser admitido que Pedro tenha pensado
e falado de forma tão paulina como o faz a IP e ” . Brox aponta, nesse contexto, para
o fato de que, quanto a isso, não se pode cavar um a vala funda entre Pedro e Paulo,
de m aneira que se precisasse declarar como impossível um a eventual aproximação
de Pedro ã teologia paulina. Cham a a atenção, contudo, que justam ente as idéias
teológicas paulinas do conflito entre Pedro e Paulo não estejam presentes na IPe,
oferecendo ela, portanto, “um a tradição paulina sem o referido conflito” (ibidem). De
resto, isso corresponde ao estágio de desenvolvim ento das deuteropaulinas.
' Compare-se isso com a m aneira como Paulo escreve a um a comunidade que lhe é
estranha (sobretudo Rm 15.14ss).

43
pontos nevrálgicos nos tempos fundantes do cristianismo, aparentam não ter
(mais) importância aqui. Tradições judaicas, especialmente o pensamento sobre
o povo de Deus, central n a IPe, são também transferidas surpreendentemente
sem questionamentos a comunidades cristãs compostas em bom número por
cristãos gentílicos, sem que isso ainda seja fundamentado especificamente (cf. o
contrário em E f 2.11ss).^^'^ Esse fato aponta mais para um a composição após 70,
em que especialmente a autoridade do cristianismo judaico palestino havia sido
quebrada. A admoestação de IPe 5.2 para que não se aceite cargos de direção por
motivo de “sórdida ganância” impüca pagamento pelo exercido de cargos, o que
igualmente sugere um estágio posterior de ordem eclesiástica.^^® Além disso, as
comunidades interpeladas na IPe mostram um estágio de desenvolvimento que
aponta para um tempo posterior ainda por outras razões. Faltam, p. ex., também
problemas específicos de novas comunidades emergentes, como encontradas nas
cartas paulinas; em certo sentido, os interpelados já se tomaram “igreja”. Da
mesma forma, as referências à constituição da comunidade ainda apresentam,
como única carta depois de Paulo (com exceção de Atos dos Apóstolos, que, no
entanto, faz isso em retrospectiva), u m a recordação dos antigos ministérios
carismáticos (4.1 Os), que, porém, já se apresenta sobreposta por u m a antiga for­
ma de constituição presbiterial (5.1-5).*®° Também em relação às autoridades es­
tatais, IPe 2.13ss aproxim a-se claramente de Rm IS .ls s , em bora formule de
forma essencialmente mais comedida o que escreve sobre a dignidade religiosa
das autoridades.*®* Por outro lado, cham a a atenção também o caráter catequético
do escrito, sua rotina pastoral. “Que Pedro, como pessoa da primeira geração e na
situação das primeiras experiências eclesiais, tivesse redigido um a carta circular
formal no tocante à maneira e ao conteúdo, n a qual é tematizada ‘a ’ situação do
ser cristão como tal (não a situação momentânea de um a igreja concreta, como
nas cartas paulinas) é, pelo menos, altamente improvável.”*®^ Como argumento
adicional ainda pode ser mencionada, finalmente, a conceituação usada, bastan­
te influenciada pelo pensamento helenista. *®®
Como já foi dito, nenhum desses argumentos é, por si só, de tal maneira deci­
sivo como geralmente se admite. No tocante á situação dos cristãos. Tácito (An
XV,44,2) testemunha, pelo menos sobre Roma, que ali existia, jã durante a vida
de Pedro, u m a comunidade relativamente numerosa*®"* e u m a correspondente
rejeição maciça da comunidade cristã por parte da população (v. acima). Mais
cedo ainda, ITs 2.14 pressupõe o sofrimento infringido pelos próprios com pa­
triotas como um fenómeno já altamente difundido. O dominio muito bom de
u m a língua estrangeira - também sem a possibilidade de um a formação especial
- é surpreendente, m as não tão impossível como se gosta de afirmar*®®, u m a vez

™ Compare-se só IP e 2.4s, 9s com Rm 9-11.


Cf. ACHTEM EIER, 1996, p. 37.
Cf. CHEVALLIER, M. A. Condition et vocation des chrétiens en diaspora. Remarques
exégétiques sur la 1*^® épître de Pierre. R e v S R 48, p. 388, 1974.
C f GOPPELT, 1978, p. 64.
C f a àv0p(jûiTLvr| Kxiaiç em IP e 2.13 corn o Beoû ÕLáKovoç em Rm 13.4.
BROX, 1993, p. 46.
Cf. a “teologia n egativa” n a descrição da “heran ça” em 1.4, o discurso sobre a
“presciência” de Deus em 1.2, etc.
Segundo Tac, An X V ,44,4 (que, no entanto, escreve no início do século II), um a
“m u ltitu d o in g e n s ” foi executada sob Nero.
Contra isso já fala o fato de existirem n a A ntiguidade escritores de procedência
semitica, como, p. ex., Luciano de Samosata, um dos melhores estilistas gregos. De
época mais recente pode ser citado o exemplo do polonês J osep h C onrad (em verdade
seu nome era J o s e f Teodor N a lecz K orzen iow sky), que somente em idade adulta iniciou
seus estudos de inglês (e isso como m arinheiro!), tornando-se, mesmo assim, um

44
que igualmente deve ser levado em consideração'^® o uso simultâneo de duas
línguas n a Palestina'^'" durante esse período. O emprego exclusivo da Septuaginta
podería representar u m a consideração para com as tradições dos seus destina­
tários. Fenômeno semelhante permite ser constatado também em Paulo, que
provavelmente teve su a formação em Jerusalém'^®, conhecendo assim possivel­
mente o hebraico. O argum ento com a Babilônia pressupõe que esse termo
realmente se refira a Roma, e não que se esteja somente fazendo referência a
um símbolo do exílio (aliás, perfeitamente adequado à temática da terra estra­
nha).'®® E mesmo que o significado seja Roma e sua identificação com a Babilônia
esteja atestada só após 70, esse argumentam e silentio não pode excluir com
certeza (tendo em vista os muitos escritos perdidos) que essa tradição não seja
ainda mais antiga, haja vista que já no livro de Daniel o conflito com o Império
Selêucida foi revestido da roupagem histórica de um conflito com a Babilônia.
U m a dificuldade a mais representa o fato de que, em contraposição ãs cartas de
Paulo, não possuímos nenhum escrito que seja absolutamente certo de Pedro
com o qual pudéssemos realizar comparações. Algumas perguntas também per­
manecem abertas, como; qual a razão de ser mencionado justamente o colabo­
rad or de Paulo, Silvano? O u: como se deve im aginar a difusão do escrito
pseudepígrafo justamente dentro da área para qual é endereçado?'''®

Apesar dessas perguntas críticas, cujo sentido é o de levar a um pou­


co mais de modéstia em relação a juízos emitidos de forma apodítica,
a totalidade das objeções levantadas fala com probabilidade maior
contra o apóstolo Pedro como autor desta carta, já que a pseudepigraíia
encontrava-se disseminada também em outras partes do cristianis­
mo primitivo. Incerta permanece - no caso da pseudepigraíia - a in-

dos grandes mestres estilistas da literatura inglesa; cf. também NEUGEBAUER, F.


Z u r D eutung und B edeutung des 1. Petrusbriefes. N T S 25, p. 72, 1980: “Como
pode escrever de tal maneira um simples pescador do mar da Galileia? Quem assim
p ergu n ta supõe con h ecer m uito, p. ex., que um p esca d or do m ar d a G a lileia
necessariam ente tenha que ter um quociente de inteligência m enor e dificuldades
no aprendizado da linguagem, abstraindo de uma eventual coparticipação de Silas.
Argumentações como essa baseiam-se num imaginário académico falso e possivelmente
são o resultado da falta de contato com as assim chamadas pessoas simples” .
Cf. sobre isso, HENGEL, M. The “H e lle n iz a tio n ” o f J u d a ea in th e F irs t C entury a fle r
Christ. In Collaboration with Ch. Markschies. London; Philadelphia, 1989. p. 7ss.
Tam bém o Pedro histórico pode ter tido já em sua juventude a oportunidade para
aprender os fundamentos da língua grega, por exemplo em Betsaida [=Julias\).
Cf. At 22.3; a form ação farisaica, da qual ele mesmo dá testem unho em Fp 3.5,
indica igualm ente para isso.
Cf. abaixo, p. 217s.
Segundo BROX, N. F a ls ch e V erfa ssera n ga ben . Zur Erklärung der frühchristlichen
Pseudepigraphie. Stuttgart, 1975. p. 62, esse problema pertence “às perguntas m e­
nos resolvidas de toda a pseudepigrafia”. BROX aponta ainda (p. 65s) para o fato de
que falsificações não constituíam de forma alguma simplesmente uma evidência acei­
ta por todos, como interpretam apologetas hodiernos, mas que também não eram
avaliadas necessariamente como ultraje moral. BROX, contudo, concede o seguinte:
o seguinte: “Parece-m e, entretanto, tam bém diante desse pano de fundo, não ser
possível nenhuma descrição realmente plausível do ‘start’ de um escrito pseudepígrafo
(ibidem, p. ex., pseudapostólico)” (ibidem, p. 65). NEUGEBAUER, 1980, p. 67 apon­
tou de maneira insistente para esse problema. É por essa razão que ele, em última
análise, acredita ser mais provável que este escrito tenha sido redigido pelo próprio
apóstolo (ibidem, p. 72).

45
tenção por trás dessa indicação de autoria, especialmente ligada com
a menção de Silas, o acompanhante de Paulo. Uma resposta clássica
constitui a assim chamada hipótese de secretário, segundo a qual
Silvano teria redigido a carta por solicitação de P e d r o . D e s s a ma­
neira seria mais fácü explicar a proximidade com a tradição paulina.
Isso pressupõe, obvisimente, que a origem seja numa época em que
Pedro estava vivo e, pelo menos, uma autenticidade indireta da carta,
o que, como já mostrado, é antes improvável. Outra possibilidade de
interpretação da expressão Ypá(j)eLv ôiá tlvoç, também amplamente ates­
tada, seria a referência ao portador da carta. Também não se deve­
ria descartar por completo a possibilidade de discipulos de Pedro te­
rem, após a sua morte, trabalhado dentro de uma linha de ação que
lhe fosse característica. A notícia (controvertida, é verdade) de Papias,
fornecida por Eusébio (HistEccl 111,39,15), descreve Marcos, ao qual
parece se referir IPe 5.13, como tradutor de Pedro, e uma possível
relação entre essas duas figuras do cristianismo primitivo não é tão
enganosa como várias vezes se afirmou (v. abaixo em 5.13). De qual­
quer forma, a difundida suposição de que as referências a Marcos e
Süvano não teriam nenhum apoio numa realidade histórica não pas­
sa de mera afirmação. É de se avaliar seriamente se aqui tradições -
eventualmente transmitidas por antigos colaboradores de Pedro - não
desempenharam um papeP“^^, mesmo que não se possa provã-lo. O
motivo para uma coletânea de “tradições” apostólicas podería residir
numa reação ã coletânea das cartas paulinas.^"^"^ Essa tendência con­
tinua na coletânea das “cartas católicas”, que se apresenta como gran­
deza própria ao lado dos evangelhos e do Corpus Paulinum.

d) Data de composição

A pergunta pela autoria é importante, não por último, em conexão com


a problemática da datação, da qual, por sua vez, depende a situação
histórica mais precisa que se pode presumir como pano de fundo para
a IPe. Caso se parta do pressuposto de que o autor deste escrito não foi
o próprio Pedro, fica provável uma composição depois de 70, pelas ra-

ZAHN, Th. E in le itu n g in das N e u e Testa m en t. 3. ed. Leipzig, 1924. Bd. 2, p. 16s;
RAD ERM ACH ER, L. Der erste P etru sb rief und Silvanus. M it einem Nachw ort in
eigener Sache. Z N W 25, p. 293, 1926.
“*2 Cf. KÜMMEL, 1983, p. 374; BROX, 1993, p. 242s.
Cf. G O PPE LT, 1978, p. 348, que aven ta a p ossib ilid ad e de “represen tan tes da
com unidade de Rom a estarem repassando, por interm édio da carta, um a tradição
influenciada por Pedro e Silvano”. C f também ACHTEMEIER, 1996, p. 42; BORING,
M. E. The fir s t E p is tle o f Peter. Michigan, 1990. p. 25-30.
Essa sugestão advém de um a conversação mantida com Martin Hengel.

46
zões já aludidas acima. No que se refere ao terminus ad quem, já o
testemunho da IPe na Carta de Policarpo (por volta de 120) indica que
a IPe dificilmente teria sido escrita após o término do século 1. Na
mesma direção aponta também o emprego da IPe por Papias^"^®, bem
como pela 2Pe, que já pressupõe a IPe como escrito autoritativo (2Pe
3.1). Além disso, a IPe ainda conhece, como único escrito pós-paulino,
a constituição carismática da comunidade (4.10s; cf. Rm 12.6ss), mes­
mo que essa já esteja claramente sobreposta por uma forma primitiva
de constituição presbiterial. Considerando que Inácio, por volta de 110,
na Ásia Menor, já defende o episcopado monárquico, pelo menos como
a constituição comunitária mais apropriada^"^^, a IPe, que mostra um
estágio de desenvolvimento da constituição comunitária claramente
anterior, deveria ter surgido antes da virada do século. Para uma
datação mais precisa não existem indícios, se bem que a falta de uma
referência a martírios, como no caso do Apocalipse de João, igualmen­
te dirigido à Ásia Menor (cf. Ap 6.9; 17.5s), indique antes para o período
inicial de Domiciano (entre 81 e 90).

e) Local de redação

A carta não fornece informação direta sobre sua redação; tão-somente a


saudação por meio “daquela (comunidade) também eleita em Babilô­
nia” (5.13) pode ser entendida como indicação nesse sentido. Conside­
rando que não se conhece nada sobre uma relação de Pedro com as
Babilônias mesopotâmica e egípcia, parece ser mais razoável ver nesse
nome um simbolo, em cujo sentido também é usado mais frequente­
mente na literatura do judaísmo incipiente e do cristianismo primitivo.
Para tanto são consideradas duas possibüidades interpretativas. A pri­
meira vê nele um código para Roma. Isso é bem possível, já que a Babilô­
nia é testemunhada como criptograma para Roma desde a destruição de
Jerusalém pelos romanos, tanto na tradição cristã^'^® como na judaica.

Isso vale, em especial, por causa da identificação entre Rom a e B abilônia e fala
contra GOPPELT, 1978, p. 64s, que sugere os anos 55-80 como data de composição.
Segundo Eus, H istEccl 111,39,15.
Jã nas cartas pastorais destacam -se ativos presbíteros como E p is co p o i a partir do
presbitério (IT m 3.1s; Tt 1.5-9). IC lem 54.2; 57.1 pressupõe condições semelhantes
às das cartas pastorais em Roma; quanto à posição da IP e na história dos ofícios
eclesiásticos, cf. GOPPELT, 1978, p. 64s.
'‘'® Argumento a favor disso também poderia ser a relação aparentemente não-problemãtica
com as autoridades (IP e 2.13-17), que parece apontar para o tem po anterior aos
ú ltim os anos do rein ado de D om iciano. Na época, sobrevieram p ersegu ições a
diversos grupos, que também podem ter atingido os cristãos (assim, p. ex., GOPPELT,
1978, p. 63), mesmo que, em relação a esses últimos, não tenhamos dados claros
referentes a um a perseguição em maior escala durante o tempo de Domiciano.
Cf. Ap 14.8; 16.19; 17.5; 18.2, 10, 21.
Sobretudo na literatura apocalíptica, como em 4Ed e no apocalipse siríaco de Baruque;
outras evidências em HUNZIGER, 1965, p. 71ss.

47
Com isso combina que, desde o término do século I, segundo tradição
eclesiástica unânime (IClem 5.3s; IgnRm 4.3), Pedro é colocado em
relação com Roma. A outra possibilidade seria de ver na alusão ã Babi­
lônia, no final da carta, uma correspondência com a diáspora referida
em 1.1. “Babilônia” como local do exílio seria, assim, símbolo para a
existência do povo de Deus (cf. 2.9s) em terra estranha e na disper­
são. Um argumento em favor disso seria que essa situação de diáspora
em 5.13 - como também em l . l s - encontra-se ligada com o pensa­
mento de eleição e, dessa forma, com a tradição do povo de Deus.

As duas interpretações - criptograma para Roma e símbolo para a dis­


persão - não precisam ser excludentes. É perfeitamente plausível que
a IPe tenha assumido a tradicional possibilidade de usar Babilônia
como codinomt para Roma, embora o fizesse ao contrário do Apoca­
lipse de João, hostil a Roma, ou seja, sem tê-la escolhido (primaria­
mente) para, por seu intermédio, acentuar a hostilidade de Deus em
relação a Roma como “prostituta Babüônia” (e, simultaneamente, para
codificar essa perigosa crítica junto a não-cristãos), senão como cifra
para o viver na diáspora da comunidade romana. Essa interpretação é
aceitã aqui como a mais provável. Caso, portanto, na referência de IPe
5.13 ã “Babilônia”, Roma pelo menos também esteja incluída, como já
pressupõe Eusébio (Eus, HistEccl II, 15,2), fica a pergunta pela razão de
ter sido registrado esse local de composição nesse provável escrito
pseudepígrafo. Serve esse local de composição unicamente ã ficção do
autor, uma vez que o martírio de Pedro deve ter ocorrido em Roma^®^,
ou o escrito provém mesmo de Roma? Isso é tido aqui como o mais
provável, já que argumentos em favor de Roma como local de composi­
ção também são a proximidade linguística da IPe com outros escritos
compostos em Roma (sobretudo com IClem^®® e, em relação a alguns

Isso conjetura, p. ex., K. Berger com referência à “tradição ju d aica das cartas da
diáspora, especialmente testificada nos profetas Jeremias e Baruque” ; ali Babilônia
“não é avaliada negativam ente como em escritos apocalipticos, sendo em pregada
antes para designar - como nas cartas de Jeremias e Baruque - o que se pensava
ser o centro da diáspora” (BERGER, 1984, p. 366). De forma semelhante, os escritos
de Q um rã aparentam em pregar D am asco com o sím bolo para sua existên cia de
forasteiros (cf. MAIER, J. D ie Texte vom Toten M eer. München; Basel, 1960. Bd. 2;
Anm erkungen, p. 49s; GASTER, Th. W. T h e D e a d S ea S crip tu re s . 3. ed. Garden
City, 1976. p. 5). Também HERZER (1998, p. 264-266) problematiza a identificação
de Babilônia com Roma, querendo identificar naquela, pelo menos preferencialmente,
um simbolo para a situação de diáspora, caracteristica da carta.
O m artirio de Pedro geraim ente costum a ser deduzido já de dados in diretos de
IC lem 5.3s e IgnRm 4.3; claramente atestado ele se encontra sõ a partir da segunda
metade do século II (cf. GOPPELT, 1978, p. 33s).
Cf. Sobre isso LONA, H. E. D e r erste Clem ensbrief. Göttingen, 1998. p. 56 e as listas
em ELLIOT, J. H. 1 Peter. A New Translation with Introduction and Commentary.
New York, 2000. p. 138-148.

48
conceitos raros, também com o Pastor de Hermas*®“*) e o fato de os mais
íntimos contatos entre a IPe e a tradição paulina recaírem sobre a Car­
ta aos Romanos. De qualquer maneira, se a localização (também) se
referir a Roma, a IPe seria o primeiro escrito do cristianismo primitivo
que - de maneira fictícia ou real - teria agora tomado o caminho em
direção contrária daquele trilhado pelo cristianismo: do oriente para o
ocidente^®®, também assumido pela missão e pela primeira literatura
cristã primitiva (cf. a Carta aos Romanos). Não se deveria, entretanto,
tirar desse fato conclusões inadequadas em relação a uma posição de
destaque da comunidade romana.

f) Destinatários

É possível deduzir claramente da carta que a comunidade compõe-se


predominantemente - mesmo que não com exclusividade - de cris­
tãos gentílicos. A desqualificação religiosa do passado da comunida­
de como fútil procedimento (1.18) e comportamento idolãtrico (4.3;
cf. ainda 1.14; 2.25; 3.6) ou afirmações como a de 2.10, de que os
interpelados antes não eram povo de Deus, dificilmente podem se
referir a um passado judaico. Mesmo que ainda não haja consenso
quanto ao local de composição (v. acima) - hã pouca dúvida quanto
ao fato de que a IPe, como mostra seu endereçamento (1.1), foi
redigida para a Ásia Menor e ali também chegou. No século II d.C., ela
é citada lá por Policarpo.^^^ Sem maiores detalhes, Eusébio^®® infor­
ma que, na Frigia, Papias de Hierápolis “referiu-se a testemunhos da

'A y (x9 ottoléco encontra-se 4 vezes em IP e e em Hermas; à66A.(j)ÓTTiç 2 vezes em IP e e 1,


em Hermas; za-n^iváiipwv encontra-se só em IP e no NT, além de Hermas 43.8 m XI,8.
Cf. GOPPELT, 1978, p. 353; “Mediante a saudação em 5.13, nossa carta torna-se o
prim eiro escrito cristão conhecido que constrói a ponte do contato eclesial entre
Roma e Ásia Menor, que se tornou a base da igreja católica no século H” .
Isso vale, p. ex., para a suposição de que aqui, também devido aos contatos com a
capital mundial (caso esse dado deva ser considerado histórico), possam ser percebidos
os prim eiros passos de pretensões romanas crescentes; assim, p. ex., BAUER, W.
R ech tglä u b igk eit u n d K etzerei im ältesten C hristentum . 2. durchgesehene Auflage mit
einem Nachtrag herausgegeben von G. Strecker. 2. ed. Tübingen, 1964. p. 105. Também
GOPPELT, 1978, p. 66 aventa essa possibilidade: “Por trás da carta encontra-se a
comunidade da capital mimdial que, devido á ação movida por Nero, tomou-se a primeira
comunidade mártir e, por meio do martirio dos dois mais proem inentes apóstolos,
representante do seu legado. A carta principia, de acordo com todos os indícios, a série
dos escritos ecum ênicos da com unidade rom ana, dirigidos para o leste” . Pouco
convincente é a suposição de VIELHAUER, segundo a qual Paulo estaria sendo aqui
“claramente submisso a Pedro” ; a tendência do remetente Pedro/Silvano teria sido,
por isso, “ [...] o estabelecim ento da autoridade de Pedro tam bém sobre as regiões
missionárias paulinas” (VIELHAUER, 1985, p. 589).
Pol 1.3 (IP e 1.8); 2.1 (IP e 1.13); 2.2 (IP e 3.9) e 8.1 (IP e 2.24); cf. ainda as alusões
à IP e em Pol 5.3; 7.2 e 10.2.
‘ 5« Eus, H istEccl 111,39,17.

49
Primeira Carta de João e da Primeira Carta de Pedro”. Com esse
endereçamento também combina a situação dos destinatãrios, pres­
suposta na carta, como caracterizada essencialmente por sofrimento,
o que, como jã foi mostrado, era especialmente grave na Ásia Menor
no período inicial.^®®

§ 7 História da interpretação

A IPe oferece teologia como scientia eminens practica, como respon­


sabilidade pensante da fé, que coloca a realidade de seus destina­
tários sob nova luz, tornando dessa forma acessível a perspectiva da
esperança em meio ao sofrimento. Não é por acaso que - pelo que
conheço - a IPe foi acolhida, como nenhum outro escrito bíblico, na
série dos textos previstos para a pregação. Este escrito exerceu mui­
ta influência, assim, também numa área que, na exegese, muitas
vezes, é considerada de forma meramente marginal, a saber, na praxis
pietatis, em seus mais diversos aspectos, na qual ele, pelos acentos
mareantes que tem eolocado na descrição da existência cristã em
suas relações horizontais e verticais, desencadeou uma história
interpretativa de rara abrangência. Digno de nota é, por exemplo, a
categoria central do ser-forasteiro para a existência dos cristãos no
mundo, que se estende desde as comunidades cristãs primitivas'®®,
passando pelo monasticismo em suas diferentes variantes'®', pelos
movimentos de reavivamento e pela literatura de edificação'®^, e pelo
acervo hinológico cristão'®® até personagens atuais como Dietrich
Bonhoeffer'®'' ou João XXIII.'®® De efeito não menos poderoso foi seu
discurso sobre o renascimento como metáfora para a existência es-

Cf. o Apocalipse de João e a Carta de Plínio (Plin, Ep X,96).


HapoLKÍa resp. íKKiTioía iiapoiKoúoa - ou seja, “a terra estranha”, resp. a “comunidade em
terra estran h a” - torna-se ali um a designação própria, do que é derivado nosso
termo em português “paróquia” .
Isso abrange desde a A ntiguidade até a Era M oderna, sendo que se encontram
reflexos também no protestantismo; cf. FELDMEIER, 1992, p. 214s.
Cf. o P ilgrim s P rogress, de J. Bunyan e seus seguidores (Cf. FELDMEIER, 1992, p.
216, nota 38).
Cf. sobre isso, FELDMEIER, 1992, p. 211-218.
Cf. BO N H O EFFER, D. D is cip u la d o . 4. ed. São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 58s:
“Enquanto o mundo festeja, ficam à parte; enquanto o mundo chama: ‘Gozai a vida!’,
os discípulos choram. Sabem que o navio festivam ente engalanado já faz água. O
mundo sonha com o progresso, com o poder, com o futuro - os discípulos sabem do
fim, do juízo e da vinda do reino dos céus para o qual o mundo está nada apto. Por
e s ta ra zã o são os d is c íp u lo s e s tra n h o s ao m u n d o , h ó s p e d e s in d e s e já v e is ,
perturbadores que são rejeitados [...] São estranhos no poder daquele que era estranho
ao mundo ao ponto de esse o crucificar”.
Em vez de um acento unilateral sobre o ser da igreja, João XXIII, na Lu m en Gentium,
acolhendo a categoria da eccle s ia p e re g rin a n s , de Agostinho, destacou a igreja em
terra estranha, resp. seu e sta r a caminho.

50
catológica dos crentes. Marcantes foram também as metáforas ca­
racterísticas da IPe, a exemplo dos crentes como as “pedras vivas”,
de Cristo como o “supremo Pastor” ou de Satã como um “leão que
ruge” quando vai ã caça.

Surpreendente é a influência deste escrito, inicialmente de caráter


poimênico, sobre a formação do dogma. Em nenhum outro lugar do
Novo Testamento tantas partes integrantes dos símbolos antigos, so­
bretudo do segundo artigo, encontram-se reunidas num espaço tão
restrito como aqui: só aqui Deus não é unicamente denominado de
“Pai”, mas também de “Criador” (4.19); juntamente com isso é acen­
tuada sua (oni-)poténcia.^®® Do segundo artigo encontra-se, além da
paixão (3.18), também a descida de Cristo ao reino dos mortos (3.19;
4.6), sua ressurreição (3.18, 21), sua subida ao céu (3.22), seu estar
assentado à direita de Deus (3.22), seu retomo (àiTOKáA.u-rr\|íL(; 1.7, 13;
4.13), bem como seu juízo sobre os vivos e os mortos (4.5), sendo que
a descida ao reino dos mortos só se encontra na IPe; também a ex­
pressão Kplmi CãívxoLç Kttl yeKpoúc foi extraída de IPe 4.5.^®^ A isso acrescen-
te-se do terceiro artigo o Espírito que, como poder divino de vida (3.18),
é colocado tanto em relação ã ressurreição dos mortos (3.21) quanto
ao perdão dos pecados (2.24; 3.18, 21). Também a fórmula triádica no
início da carta ainda poderia ser acrescida nesse contexto.

A união de uma reflexão teológica original com a poimênica sempre


fascinou teólogos, entre os quais, não por último, Martim Lutero, para
quem “essa epístola de São Pedro” é “um dos mais nobres livros no
Novo Testamento e o reto e puro evangelho”. É por essa razão que a
carta é considerada por Lutero até como critério para o que pode valer
como evangelho: “A partir dela tu podes agora julgar todos os demais
livros quanto a serem ou não evangelho”.^®® O grande apreço que este
livro tem na teologia luterana é testemunhado também pelo maior
teólogo da ortodoxia protestante antiga, Johann Gerhard, a cuja in­
terpretação de quase mil páginas também o presente comentário é
grande devedor.

Mesmo que a IP e não em pregue o conceito TTavtOKpánop - esse, salvo um a exceção


(2Co 6.18, num a citação do Antigo Testam ento), só aparece em Apocalipse -, ela
exalta o eterno poder de Deus em suas duas doxologias (4.11; 5.11; cf. 5.6), o que,
em últim a análise, representa o mesmo.
Expressões sem elhantes encontram -se ainda em A t 10.42 e 2Tm 4.1, m as não
deixa de ser significativo que o simbolo faça uso literal da term inologia de IPe.
Extraído do prólogo de Lutero á Primeira Carta de Pedro, W A 12,260.

51
INTERPRETAÇÃO

I - Pré-escrito
Os destinatários como forasteiros e povo de Deus (1.1-2)

V. 1: Pedro, apóstolo de Jesus Cristo, aos eleitos forasteiros


na dispersão do Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia,
V. 2: [eleitos] segundo a predeterminação de Deus Pai^'^°
na santificação por meio^’^^do Espírito para a obediên­
cia e para a aspersão com o sangue de Jesus Cristo.
Graça (seja) convosco e paz em abundância.

* Literatura sobre IPe 1.1-2: BOCHER, O. Jüdische und christliche Diaspora im


neutestamentlichen Zeitalter. EvDia 38, p. 147-176, 1967; BROX, N. Tendenz
und Pseudepigraphie im ersten Petrusbrief. Kairos NF 20, p. 110-120, 1978;
CHEVALLIER, M. A. 1 Pierre 1/1 à 2/10. Structure littéraire et conséquences
exégétiques. RHPhR 51, p. 129-142, 1971; IDEM. Condition et vocation des
chrétiens en diaspora. Remarques exégétiques sur la 1''® épître de Pierre. RevSR
48, p. 387-398, 1974; DALTON, W. The Church in 1 Peter. Tantur Yearbook.
Jerusalem, p. 79-91, 1981/82; DELLING, G. Der Bezug der christlichen Existenz
a u f das Heilshandeln Gottes nach dem ersten Petrusbrief. In; BETZ, H. D.;
SCHOTTROFF, L. (Eds.). Neues Testament und christliche Existenz. (FS H. Braun).
Tübingen, 1973. p. 95-113, esp. p. 105-107; FASCHER, E. Verbete Fremder, ln:
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Die M etapher der Fremde in der antiken Welt, im Urchristentum u n d im 1.
Petrusbrief. Tübingen, 1992; FURNISH, V. P. Elect Sojourners in Christ: An
Approach to the Theology of I Peter. Perkins Journal 28, p. 1-11, esp. p. 2-6;
GAUTHIER, R. Meteques, Perieques et Paroikoi: Bilan et points d ’interrogation.
In; LONIS, R. (Ed.). I’Etranger dans le monde grec. (Travaux et mémoires: Études
anciennes 4). Nancy, 1988. p. 23-46; LAMPE, P. “Fremdsein” als urchristlicher
Lebensaspekt. Ref. 34, p. 58-62, 1985; MANTEY, J. R. U n u su al Meainings for
Prepositions in the Greek New Testament. Exp. 25, p. 453-460, 1923; IDEM. The
Causal Use of Eis in the New Testament. JBL 70, p. 45-48, 1951; MANTEY, J. R.
On Causal Eis Again. JBL 70, p. 309-311, 1951; MARCUS, R. On C ausal Eis. JBL
70, p. 129s, 1951; IDEM. The Elusive Causal Eis. JBL71, p. 43s, 1952; McCARTHY,
D. J. The Symbolism of Blood and Sacrifice. JBL 88, p. 166-176, 1969; IDEM.
Further Notes on the Symbolism of Blood and Sacrifice. JBL 92, p. 205-210,
1973; SÄNGER, D. Überlegungen zum Stichwort “Diaspora” im Neuen Testament.
EvDia 52, p. 76-88, 1982; UNNIK, W. C. van. “Diaspora” en “Kerk” in de eerste

Sobre a justificativa dessa tradução de irpóyvuou;, v. abaixo, p. 59s.


A dupla expressão 9eo0 tia-zpóç “muitas vezes é praticamente equivalente a um nome
de Deus” (BLASS; DEBRUNNER, 2001, § 254, nota 2) e é traduzida aqui, por essa
razão, com o “Deus P ai”. Isso im plica, na IP e , tanto a paternidade em relação a
Cristo quanto em relação aos crentes (v. abaixo em 1.3).
IIvíúpaToç é g e n itiv u s a u c to ris : cf. G O PPE LT, 1978, p. 86; B R O X, 1993, p. 57;
SCHELKE, 1980, p. 21.
O optativo como designação para um desejo que pode ser cumprido é formado com o
aoristo no Novo Testamento, à exceção de At 8.20 (cf. BLASS; DEBRUNNER, 2001,
§ 384).

53
eeuwen van het Christendom. In: BEEKENKAMP, W. H. (Ed.). Ecclesia. Eien bundel
opstellen. (FS J. N. B. van den Brink). Nijhoff, 1959. p. 33-45; W ALSER, G.
Flüchtlinge und Exil im klassischen Altertum, vor allem in griechischer Zeit. In:
MERCIER, A. (Ed.). Der Flüchtling in der Weltgeschichte. Ein ungelöstes Problem
der Menschheit. Bern, 1974. p. 67-93; W O LFF, Ch. Christ u n d W elt im 1.
Petrushrief. TTiLZ 100, p. 333-342, 1975.

Com a indicação do remetente e destinatário, bem eomo da sauda­


ção, esse inicio corresponde a um modelo de carta corrente da época,
como era usado tanto na correspondência pagã quanto também no
Novo T e s t a m e n t o . N a configuração desse modelo, o autor, no en­
tanto, se serve (ã semelhança do que faz Paulo em suas cartas) de
dicção cristã, já deixando ressoar por meio de uma linguagem pro­
fundamente densa - não há um único verbo finito; 75% das palavras
são s u b s t a n t i v o s ! - concepções teológicas centrais.

V .l Inicialmente o autor se apresenta como Pedro. Essa é a tradução


grega do nome de honra “Pedra”^^® conferido por Jesus a Pedro, que
cedo se transformou num cognome fixo, substituindo completamen­
te, por fim, no cristianismo primitivo de fala grega o nome anterior.
Esse nome causava efeito na igreja primitiva (cf. Mt 16.18), conferin­
do distinção a um escrito que se baseasse nesse Pedro. Como tam­
bém na maioria das cartas paulinas*^®, o nome é acrescido de uma
referência ao apostolado.

O título de honra “apóstolo”, por intermédio do qual u m a pessoa era credenciada


como “mensageiro” de Cristo, podendo, em razão disso, também reivindicar a u ­
toridade especial p ara si própria“’^’^, raramente é empregado nos evangelhos.
Onde isso acontece, ele designa os discipulos do Jesus histórico, sobretudo os
discipulos do circulo dos doze (Mc 3.14; 6.30; Mt 10.2; Lc 6.13; 9.10; 17.5; 22.14;
24.10).'’^® Em Paulo, o encontro com o ressurreto e o envio por ele constituem o
fundamento de su a autocompreensão como apóstolo, mesmo que ele próprio já
conceda, com a metáfora do “nascimento fora do tempo” (IC o 15.8) e com a
designação de ser “o menor entre os apóstolos” (IC o 15.9), que isso não deixava

Principalmente nas cartas pauünas, mas também em outras cartas cristãs primitivas,
como 2Pe, 2Jo, Jd, Ap, IC lem , Pol e MartPol.
24 de 32 palavras; a impressão de linguagem comprimida fica ainda mais acentuada
devido à falta de um a série de artigos.
Ki^ctíâç, aram. NS’ : : rocha, pedra. A forma aramaica é empregada só ainda por Paulo (e
um a vez por João, Jo 1.42); os evangelhos sinóticos só em pregam a form a grega
nérpoç.
E xceções são Fp e IT s e 2Ts (indicação de rem eten te acom pan hada de outras
pessoas que não são apóstolos).
Cf. RENGSTORF, 1957, p. 432.
Nesse sentido, também Lucas, em Atos dos Apóstolos, limita o conceito de apóstolo
estritamente aos doze e não designa Patáo de apóstolo (salvo um a vez em At 14.4,14
— fonte pré-lucana?). A tentativa de derivar o grupo dos doze das experiências pascais
é discutida por THEISSEN; MERZ, 1997, p. 200s e rejeitada com bons eirgumentos.

54
de ser c o n t r o v e r t i d o . N ã o é m ais possivel esclarecer ao certo quem exata­
mente recebeu esse título no cristianismo primitivo. Além dos “doze”, são dire­
tamente denominados como apóstolos ainda Tiago, o irmão do Senhor (IC o 15.7;
G1 1.19), B am abé (IC o 9.6; G1 2.9), bem como Andrônico e Júnia (Rrn 16.7).^®°
Isso j á mostra que o grupo era maior do que o círculo dos doze.

O título “apóstolo” pode, portanto, designar, por um lado, os discípu­


los do Jesus histórico e, por outro, as pessoas vocacionadas por meio
do ressurreto. Ambas as coisas condizem com Pedro, inclusive cada
qual de uma forma especial: segundo o testemunho dos evangelhos,
ele foi, junto com o seu irmão André, o primeiro discípulo de Jesus
(Mc 1.16-18par.), ocupando um lugar proeminente no círculo dos
doze, que também se mostra no fato de lhe ter sido conferido o nome
de honra “Pedro”; ao lado de Jesus como o protagonista do evange­
lho, ele é o mais citado, quem sempre se encontra citado por primeiro
nas listas dos discípulos e quem, dentro do círculo dos discípulos,
age com maior autonomia'®'; segundo o testemunho de todos os evan­
gelhos, foi a ele que Jesus reiteradamente se dirigiu com palavras
especiais de comissionamento, nas quais também se reflete a impor­
tância posterior de Pedro para o cristianismo p r i m i t i v o . P e d r o tam­
bém aparenta ter desempenhado um importante papel na ressurrei­
ção, o que é testemunhado não só pelos evangelhos (Mc 16.7; Lc 24.12;
Jo 20.2ss), mas também por Paulo, para quem ele foi o único destina­
tário da primeira aparição do ressurreto (ICo 15.5). Pedro é uma das
três “colunas” que dirigiam a comunidade primitiva de Jerusalém
(G1 2.9) e, não por acaso, é ele também o primeiro que Paulo veio pro­
curar em Jerusalém após sua experiência de vocação (G1 1.18). Por
flm, Pedro também foi ativo como missionéirio'®®, provavelmente com
preponderância também na diáspora'®"'; segundo At 10, ele inclusive
foi (apesar de G1 2.9) um decisivo precursor da missão entre os gentios.
Pedro é, por assim dizer, o apóstolo Kat èÇoxijv. Independentemente de

Cf. IC o 9.2; é por essa razão que Paulo sempre teve que lutar pelo reconhecimento
do seu apostolado (de forma mais clara em 2Co).
Sobre Jú nia como m ulher e, de m odo geral, sobre os testem unhos em relação a
m ulheres apóstolas, v. agora EISEN, 1996, p. 50-64.
Cf., em especial, sua confissão de Jesus como Messias em Mc 8.29 e a disputa com
Jesus que se seguiu logo após, em 8.32s; também Mc 9.5; 10.28; 11.21; 14.29, 54,
66-72. Seu fracasso é então tam bém destacado por Jesus (cf. Mc 14.30, 37). Os
evangelhos sinóticos paralelos acentuam essa função de realce por meio de cenas
nas quais Pedro aparece como ator independente (cf. M t 14,28-31; Lc 5.1-11; Jo
21.15-19); cf. FELDMEIER, 1983.
Além de Mc 1.17par., cf. ainda Mt 16.17-19; Lc 22.31s; Jo 21.15-17; cf. sobre isso,
BÕTTRICH, 2001, p. 91-96.
At 8.14ss; 9.32SS.
A estadia de Pedro em Antioquia está testemunhada por G1 2.11-14; IC o 9.5 atesta
as viagens de Pedro; IC o 1.12 podería sugerir um a missão em Corínto (cf. sobre
isso, BÕTTRICH, 2001, p. 189ss).

55
como se defina a autoria da IPe - para o seu ouvinte/leitor, a referida
notificação remete a autoria a Pedro, discípulo de Jesus e apóstolo.
Eles ouvem aqui a voz de uma figura normativa do cristianismo pri­
mitivo. Isso deve ser considerado na leitura.

A carta está endereçada a cristãos “na diáspora”. O termo ôiaoiropá


remonta à Septuaginta e descreve ali a situação de exílio sofrida pelo
povo de Deus disperso entre os povos e s t r a n h o s . O local da disper­
são é formado na IPe pelas cinco (resp. quatro) grandes províncias da
Ásia Menor, nas quais moram os destinatários.

É controverso o entendimento exato da referência ao local em IPe 1.1. Geral­


mente se pressupõe que a designação do local esteja se referindo a províncias
do Império Romano, não a regiões. Mas também nesse caso muitas coisas ain­
da permanecem obscuras: a parte oeste do Ponto era formava, desde Pompeu,
pelas províncias romanas da Bitínia e Ponto. A parte leste (Pontos Polemoniákos)
retornou diretamente ao domínio romano depois da morte de Polemon II (63
d.C.) e foi unificada num a só província inicialmente com a Galácia, mais tarde,
sob Trajano, com a Bitínia. Um mistério no endereço da carta é a menção sepa­
rada do Ponto e da Bitínia no início e ao final da enumeração. H á várias conje­
turas a esse respeito: o destaque consciente dessas províncias devido a alguma
urgência especial^®®, a rota de viagem de quem levava a carta^®’^ ou mesmo um
conhecimento geográfico insuficiente por parte do autor.'®®

A seguir, no entanto, haverá de ficar claro que essa dispersão (bem


como a invocação dos destinatários como “forasteiros”) não é enten­
dida unicamente em sentido geográfico.^®® À parte da pergunta se a
IPe de alguma maneira foi enviada como carta circular, o endereço
“católico” abrangente mostra que não se trata aqui de uma corres-
pondêneia em sentido estrito; trata-se, antes, de uma earta eireular
escrita por pessoa de renome “em vista de uma situação específica”.^®®
A referência ã situação, que seguramente desempenha um papel de-
eisivo na IPe, é de earáter geral; ela não diz respeito a uma úniea
comunidade, mas em jogo está a situação do conjunto das comuni­
dades da Ásia Menor, e, além disso, inclusive de toda “a irmandade
espalhada pelo mundo” (5.9).

Cf. Dt 28.25; 30.4; Ne 1.9; Jud 5.19; Is 49.6; Jr 13.14 v.l.; 15.17; 2Mac 1.27; cf.
van UNNIK, 1993, esp. p. 69-88.
186
G OPPELT, 1978, p. 28s.
187
SELWYN, 1950, p. 199.
188
SCHRÄGE, 1971, p. 63.
A indicação da herança dos cristãos no céu em 1,4 já deixa claro que a existência
como forasteiro é experim entada concretam ente na sociedade, em bora resida, em
últim a análise, num a diferença entre os crentes e a presente form a do mundo.
V. Introdução, p. 41ss.

56
Os destinatários são invocados como “forasteiros eleitos”. Nessa du­
pla expressão está contido o tema central da carta: existência cristã
entre separação por Deus e exclusão pela sociedade. A última é des­
tacada pelo emprego do termo relativamente raro napeiríôTuroç, caracte­
rístico para uma pessoa que permanece (geralmente por pouco tem­
po) em determinado lugar em que não mora nem pretende estabele-
cer-se du ra do u ra m en te .E ss a autodesignação de “forasteiro”, po­
rém, acolhe simultaneamente uma limitada tradição veterotestamen-
tãria e do judaísmo incipiente, que entendia a distância, e assim o
conflito com o mundo circundante, como consequência da eleição
por Deus e da pertença ao seu povo.

A existência seminômade dos patriarcas já podia ser concebida no Antigo Testa­


mento como um ser-forasteiro devido à separação por D eus (cf. G n 17.8; 23.4;
28.4; 35.27; 36.7; 37.1). N a m edida em que o ser-forasteiro implicava, dessa
forma e desde o início, um a relação especial com Deus, a designação jurídica e
social negativa pode ter sofrido u m a “reversão de pólos” religiosa, passando a
ser interpretada positivamente como expressão p ara dependência permanente
de D eus e necessidade de seu amparo. E ssa é a razão que explica um a ocorrên­
cia rara, segundo a qual a categoria do ser-forasteiro, socialmente excludente,
pela qual um grupo atesta a outro su a não-pertença, pôde vir a tornar-se, inclu­
sive, autodesignação do povo (IC r 29.10ss; cf. Lv 25.23), e de certos piedosos (cf.
SI 39.13; 119.19,54). E ssa tradição é, como já foi dito, limitada; ela aparenta ter
sido lem brada (com menção aos patriarcas) sobretudo em tempos de crise (p.
ex., no exílio babilónico). ^
Os dados no judaísmo incipiente são semelhantes. Enquanto que o mainstream
[corrente principal] da teologia do judaísmo incipiente coloca o acento em ques­
tões nacionais, chegando praticamente a reprimir a memória da existência dos
patriarcas como forasteiros*®^, o motivo do ser-estrangeiro desempenha curiosa­
mente um papel ali onde a fidelidadç' à tradição leva ao conflito com o restante da
sociedade. Isso é insinuado em.Qumrã, nas observações que conclamam a comu­
nidade ã oposição contra um povo que se toriiou impuro*®^, e é amplamente aco­
lhido em Filo de Alexandria, que, desenvolve sua filosofia da religião no contexto
de um a sociedade pagã gradativamente mais hostil, a qual destrói por completo a
esperança secular dos judeus de um a integração no Egito.*®"* Aqui se acha a união
entre terra estranha e eleição, que pode dar à conceituação um tom até elitizado.

Por meio da recepção consciente dessa tradição, a IPe possibilita aos


crentes colocarem as próprias experiências do ser-forasteiro em rela­
ção às de piedosos anteriores, situando-as dessa forma no contexto

Cf. FELDMEIER, 1992, p. 8-12.


Basta que se leiam as relevantes retrospectivas históricas de Jud 5.5-21 ou Jos, Ant
I,154ss.
Cf. CD VI,5s; também 1 QM I,2s.
Filo designa o “ sábio” em diversos escritos como forasteiro sobre a terra, ficando
claro, a partir do contexto, que com isso ele praticamente sempre está se referindo
à obediência á Torá, que educa para a maior virtude (cf., em especial. Filo, ConfLing
75-82; além disso. Filo, RerD ivH er 267.274; Agric 63ss; Som 1,45; Congr 22ss e
seguidamente). Especialmente instrutivo para o contexto da exclusão social é Filo,
QuaestG en IV, 39.

57
da história salvífica e interpretando-as também teologicamente. Essa
referência da invocação à tradição do povo de Deus ainda é intensifi­
cada por meio do atributo êKÀeKTÓç, “eleito”, que, como predicado dos
destinatários, se encontra só na IPe no início de uma carta, sendo
central justamente na primeira parte do escrito.

A palavra encontra-se quatro vezes na IPe - num total de 22 empregos em todo o


Novo Testamento; a isso acrescente-se ainda aw€KÍ.eKTá; em 5.13. Segundo Schrenk,
a IPe é “[...] o único escrito do Novo Testamento em que àcÀeKTÓç recebe importância
temática desde o início A declaração de eleição relaciona-se num primeiro
momento totalmente com Cristo: Ele é a “pedra (angular)” eleita por Deus (IPe 2.4,
6) - de modo significativo como correspondência antitética à rejeição pelos seres
humanos (IPe 2.4)! Constituída por Cristo como pedra angular (2.5), também a
comunidade é a “casa espiritual”, construída de “pedras vivas”. Por meio de Cristo,
portanto, o predicado da eleição em 2.9 é também transferido para os cristãos como
“raça eleita” (yévoç èKA,eKTOv), encontrando-se agora paralelo ao atributo de povo de
Deus; em 5.13, (ouv)6K^6KTr| é praticamente sinônimo de comunidade.

Eleição e ser-forasteiro são, portanto, termos correlatos; “eleição” de­


signa a separação por Deus, que encontra sua expressão social na
integração ao povo de Deus. Dessa resulta, por sua vez, a exclusão
social como “corpo estranho”, baseada na qual a IPe pode então as­
severar aos cristãos oprimidos - numa espécie de conclusão ao rever­
so - sua pertença ao povo de Deus, ã sua descendência, casa, sacer­
dócio, etc. A invocação “aos eleitos forasteiros na dispersão” deixa cla­
ro que a existência dos cristãos como forasteiros na sociedade e sua
especial ligação a Deus, bem como a integração na nova comunidade
por ele constituída, se condicionam reciprocamente.

V.2 A eleição é fundamentada na segunda parte do endereço'®^ por


meio da “presciência” de Deus, o Pai, que, contudo, de imediato é
acrescida pela santificação por intermédio do Espírito, bem como pela
obediência e aspersão com o sangue de Cristo; a ação de Deus nos
crentes é, portanto, explicada de forma triádica desde o início.

Antes de tudo encontra-se a “presciência” [assim upóyvoaiç, literal­


mente] de Deus, o Pai. Esse tema de uma predeterminação divina é
expressado explicitamente em 1.20 por meio do verbo irpoYiYi^^oico),
correspondente a ttpóyvwolç bem como - com um outro verbo - em 2.8.

SCHRENK, 1966, p. 195. ,


Sobre a relação entre eleição e o ser-forasteiro, cf. também FURNISCH, 1975.
A ou tra p ossibilid ad e seria a fórm ula triádica relacion ar-se com o apóstolo (cf.
CRAMER, 1967, p. 42: “ I6o0 Katà irpÓYvcúaiv Qeoü Ilarpòc éauTÒv ’ Anóoxolov úvópaoe”; essa
in te rp r e ta ç ã o ta m b ém p o d e ser e n c o n tra d a em o u tro s P a is d a Ig re ja , cf.
WOHLENBERG, 1993, p. 5). Tal indicação, no entanto, é improvável devido à clara
referência que o v. 2 faz ã tradição do povo de Deus, que jã em 1.1 ressoa com
nitidez na invocação êKleKtoi irapeirCôTipoi ôiaonopSí;.

58
A t r a d u ç ã o a b r a n d a d a d o te rm o irpÓYucoaLç p o r “p r o p ó s it o ”^®® n ã o fa z
j u s à im p o r t â n c ia t e o ló g ic a d a e x p r e s s ã o .

Isso também é confirmado por outros empregos desse termo relativamente raro.
Com D eus como sujeito, o verbo não se encontra nenhum a vez n a LXX, e só
três vezes no Novo Testamento, das quais duas vezes em Romanos (Rm 8.29 e
11.2) e a outra em nossa passagem de IPe 1.2. Resultado semelhante oferece o
substantivo TrpóyvcüOK;. Ele é empregado só duas vezes pela LXX no livro grego de
Judite, significando ali a predestinação divina do futuro.'®® No Novo Testamen­
to ele é empregado mais u m a vez pelo Pedro dos Atos dos Apóstolos n a sua
pregação de Pentecostes (At 2.23). Ali - como hendíade com o termo paralelo do
“determinado desígnio” - ele tom a claro que a morte de Jesus correspondeu a
um plano divino. E ssa conceituação pode, portanto, ser encontrada só a partir
dos séculos II e I antes de Cristo em escritos gregos do judaísm o incipiente
como designação da predeterminação divina; o cristianismo primitivo assum e
essa terminologia. Trata-se, provavelmente, da transformação judaico-cristã da
concepção (originalmente estoica)^"® de direcionamento do mundo por meio da
presciência (em grego: TrpóvoLa / em latim: prouidentia), disseminada no mundo
helenístico, a qual se tornara (de novo) atual justam ente n a época neotesta-
mentária, sendo proporcionalmente de grande importância não só n a doutrina
estoica imperial e no platonismo médio^®', m as também no judaísm o helenístico
da época^®^, embora não se encontre no Novo Testamento.^®® Isso com certeza
tem a ver com o fato de, por um lado, serem evitados em todos os escritos
bíblicos os termos clãssicos referentes ao destino^®'', bem como a ideia da pres­
ciência, de importância tanto n a religiosidade antiga quanto na moderna®®®, mas,
por outro, de haver progressiva necessidade de sistematização teológica em
con exão com a in c u ltu ra ç ã o n a c u ltu r a h elen ística. N e sse p ro c e sso , o
TTpoYiY''“ OKe'-r’ p assa a ocupar o lugar do irpovoeív, provavelmente como alusão
consciente à concepção veterotestamentária do “reconhecimento” de D eus como

BROX, 1993, p. 57; cf. FURNISH, 1975, p. 5.


Em Jud 9.5, irpÓYvcooiç designa a predestinação divina do juizo de Deus como consolo
na opressão dos inimigos; sem elhantemente também em Jud 11.19.
Na interpretação estoica do mundo, o pensamento da presciência “tom ou-se (...) um
dogma, sim, praticamente o centro de sua teologia“ (BEHM, J. Verbete irpovoáco k t I .
In; T hW N T. Stuttgart, 1942. v. IV, p. 1007).
No sécu lo I d .C ., são re d ig id a s duas a p o lo g ia s filo s ó fic a s do pen sa m en to da
providência: do estoico Sêneca, D e proiridentia, e do platônico médio e sacerdote em
Delfos, Plutarco, D e sera num inis vindicta (cf. sobre isso, FELDMEIER, 2003 (De sera).
A polêm ica de Filo com seu sobrinho Tiberiu s A lexan der, in icialm en te cético e
depois dissidente do judaísm o, constituiu-se de dois livros “ Sobre a providência” :
cf. também Ebr 199; LegGaj 336; RerDivHer 58; na literatura restante do judaísm o
incipiente, Sab 14.3; 17.2; Arist 201; 3Mac 4.21; 5.30; 4Mac 13.19; 17.22 e Josefo
(Ant IV ,47; X V III,309; B ell 111,391). Em term os de conteú do, o pen sam ento da
predeterminação divina também se encontra em Qumrã (1 QS 111,13 - rv,26), como
também Josefo o enfatiza em relação aos essênios (Ant XIII, 172 - ali sob o emprego
do termo tlpappévn).
Essa concepção é acolhida só na literatu ra do cristianism o prim itivo (cf. IC lem
24.5; Herm 3.4 v 1,30).
M itologicamente nas figuras dos mouros, resp. parses, filosoficam ente no conceito
do fa tu m ou da fo rtu n a (caeca), resp. da elpappévri ou da tú/ti.
Existem até igrejas dedicadas ã provid ên cia (como a Igreja da Providência, em
Heidelberg). A im portância dessa concepção, no entanto, vai além do cristianism o
(sobretudo em sua variante iluminista). Até um Hitler tinha predileção por falar da
providência!

59
a aceitação voluntária e a eleição do seu parceiro de diálogo^“®. De m aneira
correspondente, o em prego neotestam entário do conceito (do substantivo^
irpóyycoaiç em At 2.23 e IPe 1.2, bem como do verbo irpoYiycóoKeLv em Rm 8.29; 11.2'
e IPe 1.20) trata não do postulado filosófico de um direcionamento divino do
mundo (irpóvom), acessivel à razão (voOç), m as da convicção teológica de que a
eleição e a redenção ocorridas, por assim dizer, só recentemente, correspdmdem
a um plano salvífico divino consistente, que já era determinante nas profecias
do Antigo Testamento (IP e l.lO s ), sim, que j á estava determinado antes da
criação (IP e 1.20).

npÓYfcoot,ç designa aqui - também em conexão com a ideia da eleição


de 1.1 - a vontade graciosa de Deus atuante na eleição, sua predesti­
nação para a s a l v a ç ã o . É bem verdade que a IPe não permite reco­
nhecer nenhum interesse num desenvolvimento especulativo de uma
doutrina da predestinação com todas as suas implicações. Por outro
lado, existem alguns indícios nesse sentido^®® e sem dúvida IPe 1.2
e 1.20 deixam clara a necessidade de reconhecer a recém ocorrida
eleição para a salvação em Jesus Cristo como algo que já estava ope­
rando na ação divina na criação e na história até o presente momen­
to, correspondendo, por essa razão, a uma determinação divina pró­
pria, ocorrida antes do tempo. A caracterização mais exata de Deus
nessa passagem com a metáfora “Pai” sublinha que essa predetermi­
nação não é a determinação de um destino.

À predeterminação divina segue o enunciado kv ccYLaopcô irveúiiaToç. Essa


expressão pode ser traduzida de diversas formas: “na santidade do Es­
pírito” ou “na santificação por meio do Espírito”. Se a fórmula triádica
fundamenta a eleição por intermédio da ação (mediada) de Deus ao
destinatário, então praticamente só entra em cogitação o segundo sig­
nificado. A favor desse sentido também estã 2Ts 2.13, em que, com a
mesma expressão, é especificada a ação divina da “eleição para a sal­
vação”. Por fim, se bem que a IPe também conheça (como, aliás, tam­
bém costuma ser corrente em outras passagens no contexto bíblico)^®®

Os 5.3, LXX: íy ò iyvwv tòv E<j)paí(a; cf. também Am 3.2.


Cf. GERHARD, 1709, p. 32: “npÓYvuoLç ergo (...) significat non solum praevisionem
a e te rn a m c e rto ru m in d iv id u o ru m &, p e rs o n a ru m s a lv a n d a ru m , sed etia m
ordinationem mediorum, quibus DEUS homines salvare decrevit” (destaques meus).
A ind a mais adiante vai em tradição reform ada Th. BEZA. Novum Testam entum ,
que traduz Koxk T[pàyv(,iaiv por “ex praenotione Dei”, sugerindo como tradução alternativa
no Com entário “Ex antegresso decreto seu proposito D ei” , e acrescentando como
fundam entação: “Om nia enim ista sunt synonim a” (ibidem 11,424; cf. tam bém o
comentário ao oiiç irpoéYvu em Rm 8.29, ibidem, p. 57).
Cf. IP e 2.8 fin., onde tam bém o escândalo de Cristo é rem etido à determ inação
d ivin a.
É provável que originalmente designe tão-somente a religiosidade dinâmico-mágica,
aquilo que é poderoso, sejam objetos ou ocorrên cias, m as tam bém pessoas ou
sacrifícios consagrados (c f MÜLLER, H.-P. Verbete 3hp. In: THAT. 3. ed. Stuttgart,
1984. V . II, p. 594-597). O predicado, no entanto, passou a concentrar-se em JHWH;
c f O trisagion em Is 6.3 ou SI 99.3, 5, 9 (ibidem, p. 597ss).

60
a santidade como predicado de Deus (1.15), resp. de seu Espirito (1.12),
tais afirmações sempre são feitas unicamente em contextos
soteriológicos, ou seja, têm como meta a santidade da comunidade,
resultante da relação para com esse Deus santo (sobretudo 1.15s; cf.
também 2.5, 9; 3.5). O genitivo irveúiraroç deve ser interpretado corres­
pondentemente como genitivas auctoris (v. acima), sendo o Espírito o
sujeito lógico da e x p r e s s ã o . C o m o tal, ele designa o poder que toma
conta das pessoas e as une a Deus, de forma que elas próprias se
tornam santas na qualidade de propriedade de Deus.

Ambas as coisas são desenvolvidas pela terceira especificação adver­


bial que, depois da vontade salvífica de Deus Pai e do agir santificador
do Espírito, recorre agora à ação redentora de Jesus Cristo, o sujeito
lógico do terceiro membro da oração. Nesse contexto, a preposição elç
fornece a meta da eleição; a “consagração na comunhão salvífica fun­
damentada no sangue de Cristo”.^'' Há aqui uma clara alusão a Êx
24.7s, onde é tratado o estabelecimento da aliança de Deus com seu
povo. Êx 24.7s descreve inicialmente o autocompromisso do povo com
a obediência; a esse segue, em Êx 24.8, a aspersão com o “sangue da
aliança”. Aparentemente, segundo o entendimento da IPe, esta cena,
em que a nova relação com Deus estabelecida por meio do sangue
encontra-se unida ao autocompromisso do povo de Deus, se presta
bem como tipo para a nova realidade dos crentes inaugurada pelos
sofrimentos e morte de Cristo, os quais são integrados ao povo de Deus
(2.9s; ef. 2.4s) pela doação de vida redentora de Cristo ( cf. 1.19; 2.24;
3.18), sendo, dessa forma, herdeiros da promessa (1.10-12; cf. 1.4). A
aspersão com o sangue de Cristo é, por assim dizer, o novo pacto e a
IPe haverá de reclamar, em decorrência, com bastante naturalidade
os predicados de honra outrora reservados ao povo de Deus do Antigo
Testamento para a comunhão cristã (cf. esp. 2.4s, 9s). O que também
foi conservado pela IPe é o (anteposto) compromisso com a obediên-
cia.^^^ Dessa maneira, já no pré-escrito é sublinhada a relação entre

ELLIOT, 2000, p. 307, 318 traduz correspondentemente por “th rou gh the sa n ctifyin g
action o f th e S p irit” [através da ação santificadora do Espírito].
211
W INDISCH, 1951, p. 52.
212
Já que no v. 2 se encontra um a fórm ula triádica e a “obediência” parece não se
encaixar direito nela, sem pre de novo é discutido se o genitivo I tiooú XpioToO se
rep orta não u n icam en te à aspersão p o r m eio do sangue, mas tam bém a essa
o b ed iên cia . M as tod as as te n ta tiv a s de in te rp re ta ç ã o n essa d ireçã o veem -se
confrontadas com a dificuldade que, nesse caso, IrjooO XpLoroO teria que ser genitivas
objectivas em relação a ímaKoíí, enquanto que em relação ao sangue ele só pode ser
entendido como genitivas subjectivas. Não convincente é também a tentativa de uma
interpretação causai do eiç. A pergunta em que medida existe no Novo Testamento e
em outros escritos da época um elç causai foi objeto de controvérsia entre MANTEY,
J. R. (The Causai Use o f Eis in the New Testament. JB L 70, p. 45-48, 1951; IDEM.
On Causal Eis Again. JB L 70, p. 309-311, 1951) e MARCUS, R. (On Causal Eis. JB L
70, p. 129s, 1951; IDEM . Th e E lu sive C au sal Eis. J B L 71, p. 43s, 1952). Em

61
a salvação inaugurada pela morte de Cristo e o compromisso que dela
advém para uma nova conduta de vida. Isso é ainda explicado
detalhamente em 1.13 - 2.3, na primeira parte principal, sob recep­
ção da mesma terminologia^ sendo que também as demais partes
da carta se reportam reiteradamente a ela.

A introdução da carta, que à semelhança de um prelúdio deixa res­


soar os temas do escrito que segue, finaliza com um voto de paz, que
é simultaneamente promessa de graça. Do esquema tradicional^^"^ só
diverge a formulação no optativo do desejo de paz “em abundância”
(i:A,r|0uy0€[Ti) - uma expressão tradicional em introduções de cartas^^^,
talvez, ao mesmo tempo, uma alusão às condições pouco pacíficas
reinantes entre os “forasteiros da dispersão”.

verdade, nessa discussão IP e 1.2 ainda não havia sido entendido de form a causai.
A tentativa de AGNEW, F. H. (1 Peter 1:2. An Alternative Translation. C B Q 45, p.
68-73, 1983) de justificar também aqui um a interpretação causai devido à aparente
im portância da obediência de Jesus na IP e (cf. tam bém ELLIOTT, 2000, p. 319),
não convence. Na IP e não é falado sobre a obediência de Jesus, mas com relativa
frequência sobre a obediência dos crentes (1.14, 22; cf. 3.6); Agnew tam bém se
expressa de form a bastante velada sobre a “atitude obediente de Jesus” (ibidem, p.
72). Essa é a razão pela qual damos preferência aqui á interpretação da obediência
como sendo a que os eleitos prestam a Deus, por ser fllologicamente a mais provável.
Ela corresponde tanto ao sentido da tradição de Êx 24.7s aqui acolhida, em que
claramente se trata da obediência do povo às orientações de Deus, quanto também à
intenção da IP e de unir intimamente a promessa da salvação e a reivindicação dela
decorrente.
O temo ÚTOKoií é retomado no início e mais para o final (1.14, 22) das explanações (na
IP e ele não reaparece e no NT é empregado num total de 15 vezes). Entre os dois
encontra-se um trecho cristológico, redigido em prosa rítmica, que exalta a redenção
como resgate pelo aí|j,a XpioToü; cf. também a designação dos crentes como “filhos da
obediência” em 1.14 (cf. também em 1.22).
A mesma fórmula acha-se em 2Pe 1.2; semelhante em Jd 2. A unção de graça com paz
encontra-se ao final de todas as cartas autênticas e inautênticas de Paulo: cf. Rm
1.7; IC o 1.3s; 2Co 1.2; G1 1.3; E f 1.2; Fp 1.2; Cl 1.2; IT s l . l s ; 2Ts 1.2; IT m 1.2;
2Tm 1.2; Tt 1.4; Fm 1.3. Uma vez, porém, que essa fórmula não aparece em nenhum
lugar da literatura grega independente de Paulo, o seu emprego em IP e 1.2 é “an
indication o f direct influence from the Pauline letters” [uma indicação da influência
direta das cartas pauhnas] (BORING, M. E. 1 Peter. Nashville, 1999. p. 51).
Dn 4.1 9; Dn 6.25 9, bem como Dn 4.37c LXX; cf. também Dn 3.31 TM; 6.26 TM;
tSan 11,6.
V. supra. Introdução, p. 15ss.

62
II - A razao da existência como forasteiros (1.3-2.10)
O renascimento e o povo de Deus

1.3 - 2.10 forma a primeira parte principal da IPe. Como já foi mostra­
do na introdução (p. 28s), aqui é apresentado de forma fundamental o
que vem a ser o outro lado positivo da existência dos cristãos como
forasteiros. Nesse processo, dois motivos - um histórico-salviíico-
eclesiológico e outro escatológico - são entrelaçados e relacionados
complementarmente: a pertença ao povo de Deus, tão maciçamente
destacada em l.ls, é retomada mais uma vez em 2.4-10 e melhor
desenvolvida. Isso compõe a moldura do bloco 1.3 - 2.3, a explicação
da renovação da vida ao final dos tempos por meio da metáfora do
renascimento.

1. O renascimento (1.3 - 2.3)

Com a figura bastante drástica de um novo nascimento, desenvolvida


de forma ainda mais arrojada - partindo de um novo nascimento de
semente incorruptivel, passando pelo nascimento e culminando
numa amamentação com “leite-Logos” (1.3s, 23-25; 2.2s) -, a IPe
destaca nesse bloco sua mensagem salvífica como vida a partir da
esperança (1.3, 13, 21), fundamentada no resgate do fútil contexto de
vida (1.18s) e na superação da transitoriedade (1.23-25). Esse bloco,
por sua vez, encontra-se ainda subdividido em duas partes: 1.3-12
compõe a eulogia introdutória (excepcionalmente extensa); 1.13-2.3
apresenta em três seções a relação fundamental entre salvação e san­
tificação, promessa e compromisso.

1.1 Eulogia introdutória: renascimento


e alegria no sofrimento (1.3-12)

A carta inicia em 1.3-12 com uma eulogia, o hino de louvor a Deus


pela salvação futura por ele inaugurada.^*'^ A forma da linguagem é
tradicional - eulogias correspondentes encontram-se também no
Antigo Testamento e em textos do judaísmo a n t i g o . A atenção dos
destinatáirios é, dessa forma, canalizada em primeiro lugar para Deus
e a salvação por ele inaugurada, responsável pela radical transforma-

Sobre o gênero da eulogia, cf. SCHÄFER, P. Verbete Benediktionen I. Judentum. In:


TRE. Berlin; New York, 1980. v. V, p. 560-562; DEICHGRÄBER, R. Benediktionen
II. Neues Testam ent. In: TRE. Berlin; New York, 1980. v. V, p. 562-564.
Gn 14.20; Ex 18.10; 2Cr 2.11; 6.4; S1 65[66].20; 71[72].18; 123(124].6; 134.[135].21;
Dn 3.26; Tob 11.17; 13.1; SlSal 2.33, 37 (cf. ELLIOTT, 2000, p. 330, nota 10).

63
ção de suas vidas: eles foram “regenerados para uma viva esperança”
(1.3). A partir dessa perspectiva da esperança, aquilo que os oprime
aparece envolto numa nova luz: a tribulação atual é relativizada dian­
te da salvação vindoura, sim, é sobrepujada em brilho pela alegria!
Dessa forma, louvor a Deus, estimulo e consolo se entrelaçam. Uma
participação essencial nessa nova qualificação do tempo presente já
é mostrada na introdução.

1.1.1 Louvor pelo agir salvífico de Deus (1.3-5*)

V. 3: Louvado [seja] o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cris­


to, que, segundo a sua muita^^^ misericórdia, nos rege­
nerou para uma viva esperança, mediante a ressurrei­
ção de Jesus Cristo dentre os mortos,
V. 4: para uma herança imperecível, sem mácula e
imarcescível, reservada nos céus para vós,
V. 5: que sois guardados no poder de Deus por fé para a sal­
vação, [que] [se encontra] preparada [para] revelar-se ao
final do tempo.
* Literatura sobre IPe 1.3-5: COUTTS, J. Ephesians 1.3-14 and I Peter 1.3-12. NTS
3, p. 115-127, 1956-1957; DELLING, G. Der Bezug der christlichen Existenz a u f
d a s H e ilsh a n d e ln Gottes n ach dem ersten P etru sbrief. In: B E T Z , H. D.;
SCHOTTROFF, L. (Eds.). Neues Testament und christliche Existenz. (FS H. Braun).
Tubingen, 1973. p. 95-113; FURNISH, V. P. Elect Sojourners in Christ: An Approach
to the Theology of I Peter. Perkins Journal 28, p. 1-11, esp. 6-10, 1975.

Assim como o pré-escrito, também essa abertura da eulogia oferece teologia num a
linguagem altamente compacta. Isso se mostra de novo n a sintaxe: os v. 3-5
formam um a única sentença nominal coerente, na qual a cópula não é empregada
um a única vez. A sentença nominal é empregada, desde o tempo clássico, sobre­
tudo em linguagem selecionada e destacada - em hinos, por exemplo, mas tam­
bém em provérbios ou em decretos o f i c i a i s . D e s s a forma, só o estilo já repassa
a impressão de algo festivo, nobre, mas também de algo que é firme e válido. Em
linguas como a portuguesa ou alemã isso dificilmente pode ser expresso, razão
pela qual reproduzimos aqui os adjetivos verbais e particípios por meio de verbos
finitos. No V , 4, chama a atenção a troca para a segunda pessoa: enquanto antes
se falava em ter Deus nos regenerado, segundo o v. 4 a herança está reservada
nos céus para vós. Isso ajuda na intensificação da invocação.

Cf. HUTHER, J. E. K ritis ch exegetisch es H a n d b u ch ü b e r d en 1. B r ie f des Petrus, den


B r ie f des Ju d a s u n d den 2. B rie f des Petrus. 4. ed. Göttingen, 1877. p. 53: “Por meio
de H0ÀÚ é destacada a riqueza da misericórdia de Deus [...]” .
Cf. SCHWYZER, E. G riech isch e G ra m m a tik. A u f der Grundlage von K. B r u ^ a n n s
G riechischer Gram m atik. Syntax und syntaktische Stilistik. V ervollstän digt und
herausgegeben von A. Debrunner. München, 1950. v. 2, p. 623: a sentença nominal
pura transform ou-se ‘‘gradativam ente num arcaism o poético ou num a form a de
expressão com valor estilístico destacado ou, finalm ente, tam bém n um a form a
com pacta de linguagem oficial” .

64
V. 3 “Louvado [seja] o Deus” - uma abertura assim, com louvor a Deus
(ou a gratidão a ele), é mais do que mera convenção. Em um início
assim, com um louvor, fica claro que existência de fé não se funda­
menta em si própria, mas deve gratidão à afeição de Deus, que sem­
pre lhe antecede. Existência de fé é, por isso, fundamentalmente exis­
tência responsória, que corresponde ao Tu de Deus revelado no even­
to de Cristo (existência cristã é também existência responsável, mas
só em decorrência desse fato). Um dos atos centrais de legítima equi­
valência constituem o louvor e a gratidão, pois justamente neles não
está em primeiro plano o interesse próprio (seja individual, seja cole­
tivo), mas o outro a quem é dirigido o louvor.

O Deus louvado é definido mais precisamente como “Pai do nosso Se­


nhor Jesus Cristo”. A designação de Cristo como “nosso Senhor” subli­
nha a relação dos que creem com Cristo. A figura do renascimento
(1.3; cf. 1.23; 2.2s) toma claro que os que pertencem a esse Senhor
entram também na sua relação de Pai-Filho. O particípio aqui empre­
gado para a metáfora sobre a paternidade divina, à.vayívvxfia.Q, é um par­
ticípio aoristo; o modo de ação pontual significa que esse renascimento
não consiste numa “qualidade” de Deus que já sempre estava ativa,
mas implica fundamentar-se o renascimento num evento histórico sin­
gular. Esse evento é a ressurreição de Jesus Cristo, citada a seguir, por
meio da qual Deus venceu, neste mundo submetido ã transitoriedade,
a separação de si mesmo e, dessa forma, também o pecado e a morte,
possibilitando um novo começo. Enunciados semelhantes encontram-
se também em Paulo^^^. Na IPe, essa força de vida divina transmitida
pela ressurreição de Cristo é enfatizada pelo conceito do renascimento
em relação á existência dos que creem: como “aquele que regenerou”.
Deus é a origem e o poder determinante de sua nova vida, por assim
dizer, o seu princípio de vida, sendo, correspondentemente, também
invocado por eles como Pai (1.17; cf. 1.2).

A IP e acentua seguidamente a im portância da linguagem - mais precisamente, do


diálogo com Deus - para a constituição da existência dos “renascidos” . Em 1.14ss,
p. ex., ao KaÃelp divino corresponde o èiaKaA,elv das -zíkvo. toO ©eoO. Os que creem foram
renascidos pela palavra divina (1.23-25), sendo nutridos com o “leite da palavra”
(2.2), e podem, de maneira correspondente, fazer apologia, dar resposta à “esperança
que está neles” (3.15) também àqueles incrédulos que perguntam pelo seu Logos,
como, por outro lado, os não-cristãos são definidos ju stam en te pelo fato de não
confiarem na palavra (cf. 2.8; 3.1).
222 o apóstolo pode explicitar isso de diversas formas - como o agir justificador (cf. Rm
3.26; 4.5, entre outros) e reconciliador (cf. Rm 5.10; 2Co 5.18) de Deus, mas também
de maneira tal que Deus se revelou por meio da ressurreição de Cristo como “o que
chama à vida” (Rm 4.17; IC o 15.22, 45), de modo que em Cristo a “nova criação” já
passa a ser realidade (2Co 5.17; G1 6.15).

65
Esse agir de Deus no renascimento é definido mais precisamente de
três maneiras. Em primeiro lugar é indicado o motivo no próprio Deus,
por assim dizer, a motivação divina: a muita misericórdia de Deus.
Essa referência à misericórdia de Deus como motivação para o seu
agir corresponde ás formas biblicas de pensar e falar.^^^

No mundo pagão - pelo menos entre os letrados - , tal discurso sobre a misericór­
dia de Deus de forma algum a é natural, u m a vez que, em geral, se entendia afetos
como determinados por terceiros e, por isso mesmo, como algo de menor valor,
não compatível com aquilo que era verdadeiramente d i v i n o . P l a t ã o , em seu
Symposion, havia reconhecido ao Bros só o status de um Daimon, justamente por­
que o amor, como evidência de carência, não era compatível com o que é divino;
Bros é, por isso, “[...] entre o mortal e o imortal, um grande Daimon” (Platão, Symp
202d).^®^ Recorrendo a Platão, o platônico médio Apuleius frisava que o mais alto
Deus estava “livre de todas as amarras do sofrimento ou da ação, não se encon­
trando obrigado a nenhuma retribuição por qualquer tarefa”.^^® Mesmo que esse
“axio m a de a p a tia ”^^^ nem sem pre era reconhecido de m aneira totalmente
consequente na religiosidade vivida^^®, afetos eram de qualquer forma algo que os
deuses também podiam ter, embora não residisse neles a sua essência. Contras­
tando com isso, a essência do Deus bíblico reside no fato de se vincular a um
outro como dom gratuito, no fato de - assim a famosa formulação em IJo 4.8, 15
- ser a m o r . D e maneira análoga, Jesus Siraque 2.18 consegue ver na misericór­
dia de Deus nada menos que a differentia specifica entre Deus e o ser humano:
“Cairemos nas mãos de Deus, mas não nas mãos de seres humanos. Pois tama­
nha é a sua grandeza, tão grande é a sua misericórdia”.

Formulações semelhantes encontram-se na LXX, em Nm 14.19; Ne 13.22; SI 24.7;


50.3; 105.45; 108.26; 118.88, 149; Sir 16.12; 50.22; Lm 3.32; Dn 3.42; IM ac
13.46; no NT, em Tt 3.5. Sobre a relação entre a eulogia introdutória e as eulogias
de Paulo, cf. HERZER, 1998, p. 49-54.
Sobre o a xiom a de apatia, cf. as ex p lan ações de ELER T, W. D e r A u s g a n g d e r
a ltk irch lich en C h ristologie. Eine Untersuchung über Theodor von Pharan und seine
Zeit als Einführung in die alte Dogmengeschichte, aus dem Nachlaß herausgegeben
von W. Maurer und E. Bergsträßer. Berlin, 1957. p. 71-132.
A atribuição de afetos aos demônios, ao contráirio, é perfeitamente possível - só que
justam ente esse fato confirm a sua divindade destituída de poder.
Apul, DeDeo 1,124. Com argum entos correspondentes. Celso ataca o cristianismo.
™ Essa form ulação provém de ELERT, 1957, p. 74ss.
O próprio Apuleius, no 11. livro do seu “Asno de ouro” , permite que Isis apareça em
cena com o senhora do mundo, anunciando a redenção ao transform ado Lucius,
com a ju stificativa de ter sido “ sensibilizada” por seus pedidos (tu is co m m o ta [.. ]
p re d b u s ) e lhe prestar ajuda em razão de encontrar-se “tomada de compaixão” pelo
seu destino (Apul, Met X I,5,1.4). A distorção mais expressiva é a definição de E ros
como Deus em seu A m a toriu s (756Bss).
22^ S PIE C K E R M A N N , H. D ie L ieljes erk lä ru n g G ottes. E n tw u rf ein er T h eo log ie des
Alten Testaments. In: IDEM. G ottes Lieb e z u Israel. Studien zur Theologie des Alten
Testaments. Tübingen, 2004. p. 197-223 mostrou que isso não confere unicamente
em relação ao testemunho neotestamentário sobre Deus, mas que “a autodeterminação
de Deus para o am or” pode ser considerada com o constitutiva tam bém já para o
discurso veterotestam entário sobre Deus.

66
A expressão “segundo a sua muita misericórdia” torna claro que o
“renascimento” tem em Deus sua causa exclusiva. Não se trata, por­
tanto, nem ao menos de uma reação de Deus ã aproximação do seu
adepto, mas se fundamenta na essência de Deus, que, a partir de ini­
ciativa própria, volta-se para o outro, comunica-se com ele e, assim, o
transforma. A importância justamente desse motivo da misericór­
dia divina mostra-se no fato de a carta retomá-lo mais uma vez em
2.10, ao final da primeira parte principal, quando, em parallelismus
membrorum, iguala a constituição dos crentes como povo de Deus com
a misericórdia de Deus para com eles. Tanto o renascimento para
uma viva esperança quanto o chamado para o povo de Deus funda­
mentam-se na misericórdia de Deus. A misericórdia de Deus une, des­
sa forma, os dois conceitos soteriológicos centrais da IPe.

A segunda definição mais precisa do “renascimento” especifica, por


intermédio de elç, a meta, resp. o resultado do “renascimento”: a “viva
esperança”. O grande apreço teológico pela esperança é uma caracte­
rística da IPe^^^ e encontra-se em marcante contraste com a avaliação
da esperança como atitude humana ambivalente na cultura helenista.

Excurso 1: Esperança
“Ao longo de toda a nossa vida estamos repletos de esperanças”, diz Platão
(Phileb 39e). De fato, ter esperança representa um dos traços característicos do
ser humano. O ser humano antecipa seu futuro, ele se encontra à frente do seu
tempo. Por um lado, isso representa sua força - toda a cultura e o desenvolvimen­
to humanos só se explicam a partir da capacidade de desprender-se do contexto
imediato de estímulo-resposta e, com isso, da incorporação mais ou menos cons­
ciente no presente, e de imaginar-se o futuro e, assim, de planejar. Mas esse é
unicamente o lado positivo da medalha - o outro lado é proverbial: Spes saepefallit
- “esperar e perseverar pode a muitos abobalhar”. A esperança tem, portanto,
pelo menos dois lados. Por isso Sófocles (497-406/5) constata em sua Antígona
(Soph, Ant 615-619): “É verdade, a esperança que vagueia longe//É para muitos
um consolo na vida,//Mas para muitos também engano, alucinação de desejos
soltos!//Quem ela espia, esse nada suspeita,//Até que sobre fogo incandescente/
/Coloca seus pés” (traduzido por WOERNER, R. Sophokles, Tragödien. Aus dem
Griechischen übersetzt und mit einem Nachwort. Darmstadt, 1960. p. 134s). De
forma narrativa, essa am bivalência da esperança é desenvolvida no mito da
Pandora^^^, transmitido por Hesíodo (por volta de 700 a.C.), quando, ao lado dos

Cf. a 28“ tese de Lutero na Disputa de Heidelberg: “A m o r D e i n on in ven it sed crea t


s u u m d ü igib ile”. Esse amor criativo está em contraposição ao amor humano, que é
dependente de um objeto amado: “A m o r hom inis f it a suo d iligibili’’ (WA I, 365).
A vida cristã distingue-se pelo fato de estar determinada por esperança (IP e 1.13,
21; 3.5), e os cristãos devem dar aos não-crentes razão da “esperança em vós”, da ív
úpw ètríç (3.15).
Hes, Op 57-105; segundo a tradição paralela na Teogonia (Hes, Theog 570-613), a
m ulher m esm a representa o castigo divino.

67
males destinados ao castigo das pessoas, sobra como última coisa a esperança
n a jarra da Pandora.^^® Nas interpretações sempre se questionou se essa espe­
rança que sobrou para as pessoas representava igualmente um mal ou se - por­
que separada dos males - representava um bem. Já os autores antigos interpre­
tavam isso de forma antagônica: para uns, a esperança era a única deusa que
havia ficado com as pessoas, enquanto que para outros, representava um demô­
nio maléfico (Theogn 1135ss; 637s). As duas interpretações têm ferrenhos adep­
tos até os dias a t u a i s . O mito e seu entendimento da esperança permanecem
ambivalentes - e isso talvez não seja assim por acaso, já que pertence à essência
da esperança alternar entre engancP^^^ (prejudicial) e consolo (aliviador). Em sua tragé­
dia “O Prometeu acorrentado”, Esquilo (525-556 a.C.) sintetiza essa trágica
ambivalência da esperança quando m anda dizer aos titãs presos com grilhões
nas rochas - como castigo dos deuses - que ele, por causa do sofrimento, não
mais permitiría que os seres hum anos olhassem para o futuro. Em vez disso,
tería implantado em seus corações um a “esperança cega”.
O discurso biblico sobre a esperança é notoriamente diferente. E bem
verdade que também no Antigo Testamento a esperança pode adquirir conotação
negativa; esta, contudo, não se relaciona com a postura hum ana de esperança
em si, mas com o objeto em relação ao qual a esperança é formulada. Na medida
em que o ser humano deposita confiança em coisas passageiras, erra o alvo de
sua existência. Ao contrário disso, existe um a avaliação extremamente positiva

Sobre a m etáfora obscura nessa passagem , cf. o com entário de SCHMIDT, E. G.


Einführung. In; Hesiod, Théogonie, W erke und Tage. Griechisch-deutsch, herausgegeben
und übersetzt von A. v. SCHIRNDING, mit einer Einführung und einem Register von
E. G. Schm idt. 2. ed. D ü sseld orf; Zü rich, 1997. p. 199; “ Se a n arrativa fosse
conceptualmente correta, ela estaria querendo dizer que, segundo o intento de Zeus,
os seres humanos teriam sido privados de esperança (E lpis), apresentando-se suas
vidas sem esperança. Mas Hesiodo, provavelm ente, quer expressar ju stam en te o
contrário: mesmo que a situação das pessoas esteja m uito mal, pelo m enos lhes
sobrou a esperança! Ambos os detalhes da narrativa requerem, portanto, interpretações
diferenciadas: os males assolaram as pessoas por terem se evadido da jarra da Pandora;
a esperança encontra-se presente nas pessoas por ter p erm a n ecid o na jarra” .
O filósofo marxista Ernst Bloch decanta o grande hino à esperança como o “bem que
permaneceu” - assim o titulo do capítulo sobre o mito da Pandora em sua principal
obra, intitulada sugestivamente “O princípio E sperança” . Esperança é para ele a ne­
cessária correspondência subjetiva à convicção sobre o desenvolvimento da história
humana na direção de uma sociedade sem classes, ela é, a um só tempo, o “já agora”
no “ainda não”. Como antecipação do domicilio futuro, a esperança ajuda a resistir em
meio a um presente alienado e “não redimido”, que ainda não logrou chegar à sua
meta (BLOCH, E. D as Prinzip H offnung. In fünf Teilen. Frankfurt, 1959. Bd. 1: Kapitel
1-37, p. 389). Para Friedrich Nietzsche, ao contrário, a esperança não passa de vã
ilusão, contribuindo assim, em última análise, como toda mentira, unicamente para
uma potencialização dos males. De uma maneira pessimista análoga também se apre­
senta a interpretação que Nietzsche faz do mito: “O que Zeus queria, na verdade, era
que o ser humano, por mais atormentado que estivesse pelos outros males, não jogas­
se a vida fora, mas continuasse a deixar se atormentar indefinidamente. Para essa
finalidade ele dá às pessoas a esperança; ela, na verdade, é o pior dos males, porque
prolonga seu tormento”. (NIETZSCHE, F. Menschliches, Allzumenschliches I und II.
In: COLLI, G.; MONTINARI, M. (Eds.). F ried rich Nietzsche, Säm tliche Werke. Kritische
Studienausgabe. München, 1980. v. I, p. 71.)
Mais uma vez Hesiodo: “Muitas vezes, o desempregado, persistindo em vã esperança
por necessitar de alimento, deixa seu coração ser tomado por maus pensamentos.
Ora, a m á esp era n ça costu m a ser um acom pan h an te perm an en te de pessoas
necessitadas [...]” (Hes, Op 497-499; tradução de SCHIRNDING, 1997).

68
da esperança, n a medida em que essa confiança se orienta em Deus.^^® Tal
esperança não reside no fundamento instável das expectativas e dos temores
humanos, mas n a certeza da confiabilidade de Deus; ela n ã o se orienta e m a lg o
que se queira ganhar ou evitar, m a s e m D e u s , o f u n d a m e n t o e c o n te ú d o d a e s p e r a n ­
ça . Justamente nos salmos, as orações do Antigo Testamento, encontram-se
am iúde confissões como “o Senhor é a m inha esperança” e semelhantes (SI
13[12],6; 40[39].4; 61[60].3; 62[61].7; 71[70].5; 91[90].9; 142[141].6; 146[145].5), e
invocações confessionais como “em Ti eu confio/tenho confiado” (SI 7.2; 16[15], 1;
25[24].20; 31 [30].7, e vários outros). Quem deposita sua confiança em Deus não
será envergonhado (SI 22[21].6; 25[24].20; cf. Rm 5.5), m as bem-aventurado (SI
34[33].9; 84[83].13). D essa maneira, a esperança torna-se algo diferente da an­
tecipação do que se deseja; ela se toma, pelo contrário, em certo sentido, sinô­
nimo da relação com Deus.^^’' N a medida em que aquele que tem esperança não
espera por algo, mas por Deus, e confia nele, a esperança como tal pode passar
a representar um bem salvífico. S p e s e re s s p e r a ta coincidem - até o ponto em
que, por meio da esperança, j á ocorre u m a apropriação da vitória sobre a morte.
Segundo Sab, a esperança dos justos, ao contrário da “vã esperança” dos tolos
e Ímpios (3.11: Kgvf] èXiríç), é, n a qualidade de esperança fundamentada em Deus,
já ela própria “cheia de imortalidade” (3.4: fj èl-rrlç avxcòy àSavaoíaç irXripri;).
O Novo T estam en to re p o rta -se a esse entendim ento de e sp e ra n ç a
veterotestamentário e do judaísm o incipiente, um a vez que o momento da firme
confiança também aqui determina o conceito da esperança. E ssa esperança é
simultaneamente precisada no Novo Testamento pelo fato de que aquilo que é
esperado do futuro j á se eumpriu em Jesus Cristo. A esperança cristã funda­
menta-se, assim, na a ç ã o d e D e u s n a ressurreição de Cristo dentre os mortos,
pela qual ele se definiu como Criador a partir do nada e, com isso, como poder
de vida que vence a morte^^®, salvando dessa forma do pecado, da morte e do
desvanecimento. O futuro já está decidido em Cristo; e, com base no evangelho,
os que creem adquirem certeza sobre o seu futuro, sem que os “sofrimentos do
presente século” e os gemidos e angústias da criação (Rm 8 .18ss) fossem igno­
rados por essa razão: “Porque na esperança fomos salvos” (Rm 8.24: èaoS0T|p,ey).
Tal esperança é o penhor da confiança da fé; ela “não confunde” (Rm 5.5; cf. Rm
5.2-4; 8.23-25). Paulo pode, recorrendo a Abraão, designar a fé inclusive como
u m a esperança contra a esperança (Rm 4.18), i. e., como u m a confiança que é
mais forte do que as evidências aparentemente loucas do nosso mundo, como
as coisas que não existem e a morte (Rm 4.17). Possuir ou não possuir tal
esperança perfaz praticamente a d iffe r e n tia s p e c if ic a entre cristãos e não-cris­
tãos (IT s 4.13; E f 2.2); o Deus cristão é um “Deus da esperança” (Rm 15.13); a fé
cristã é “praticamente [...] um a re lig iã o d a e s p e r a n ç a ”

A IPe tem em comum com outros escritos do Novo Testamento, que


introduzem o cristianismo no mundo helenista^'^“, a ênfase na espe­
rança por vida como centro da existência cristã, sendo que na IPe -

Cf. JEPSEN, A. Verbete nOb. In: ThW AT. Stuttgart, 1973. v. I, p. 608-615.
Cf. BULTMANN, R. Verbete èliríç ktI. In: ThW N T. Stuttgart, 1935. v. II, p. 520: “A
diferença entre esperar e confiar desaparece [...]” .
Rm 4.17: Çuoitolüv xotç veKpotç Kal KaXcãv xà fiT) õvxa úç ovxa, cf. IC o 15.22, 45.
ECKSTEIN, H.-J. Z u r W ie d e re n td e ck u n g d e r H offn u n g . Grundlagen des Glaubens.
H olzgerlingen, 2002. p. 18.
Ao lado das cartas paulinas (e, entre elas, esp. Rm e ITs) e de Atos dos Apóstolos,
devem ser citadas as deuteropaulinas Ef, Cl e Tt, bem como Hb.

69
possivelmente em decorrência da forte opressão que se fazia presente
- percebe-se de forma ainda mais determinada do que em outros es­
critos a “atribuição de uma importância decisiva” ao f u t u r o . I s s o
provavelmente também tem ligação com o contexto religioso já ante­
riormente descrito, no qual o cristianismo de maneira crescente se
destacava como antítese ao mundo caracterizado por “nulidade” e
“transitoriedade” e, dessa forma, como religião de redenção. Como
antecipação em confiança da nova realidade, a esperança toma-se
aqui praticamente o princípio de vida da pessoa renovada. Exata­
mente esse aspecto destaca a descrição da esperança como “viva”. O
mesmo predicado qualifica o “Logos divino” em 1.23 e Cristo como a
“pedra viva” em 2.4. Todas as três grandezas qualificadas dessa forma
têm, no entanto, em comum o fato de estarem intimamente relacio­
nadas com a nova vida dos crentes: a viva esperança é meta do
renascimento (1.3), a “palavra viva de Deus” fundamenta a nova exis­
tência dos renascidos como “semente incoiruptível” (1.23-25); a “pe­
dra viva” é aquela pedra que faz renascer os que creem para a vida, de
maneira que eles próprios agora, transformados em “pedras vivas”, se
juntam a ela para, em sua companhia, serem edificados como “casa
espiritual” (2.4s). É provável que a qualificação da esperança, da pa­
lavra e da pedra como “vivas” deva ser entendida, nos três casos, como
inclusiva, i. e., de maneira que as grandezas assim caracterizadas
sejam qualificadas como formas de apareeimento do poder divino de
vida, que se comunica por seu intermédio aos que creem. “Vivo” qua­
lifica juntamente com o bem salvífico também os seus receptores, que
têm coparticipação na vida de Deus pela esperança, pela palavra divi­
na e pela “pedra viva”. Cristo, sendo por essa razão renascidos; a espe­
rança viva é esperança que vivifica.'^^'^

N a “v iv a e s p e ra n ç a ” n ã o se tra ta , p o rta n to , u n ic a m e n te d e u m a m e ra e n á la g e
(tro ca d e u m a trib u to n o g e n itiv o p o r a trib u to a d jetivo ), co m o su g e rid o p e la v a ria
le c tio à p a s s a g e m (èAirlç Coíli;). M a is p ro v á v e l é q u e se tra te d e u m a m e to n ím ia ,
u m a p o s s ib ilid a d e q u e j á B e za a v e n ta p a ra o e n te n d im e n to d e èlirlç ((Soa q u a n d o
co m p re e n d e a ex p re s s ã o “[j.6tcl)vi >plkc3ç p r o re s p e ra ta , u t in R o m . 8 .2 4 & á lib i s a e p é ’^ '^ .
N ã o o b sta n te, ta m b é m d e s s a m a n e ira n ã o se d á su ficie n te v a lo r ao fa to d e qu e

SCHWEIZER, E. Zur Christologie des Ersten Petrusbriefs. In: BREYTENBACH, C.;


PAULSEN, H. (Eds.). Anfänge der Christologie. (FS F. Hahn). Göttingen, 1991. p. 372.
GERHARD, 1709, nom eia dessa m aneira a esperança como reg en era tion is nostra e
ca u s a fo rm a lis , como causa do renascim ento, que sim ultaneam ente o “form a” e,
portanto, determ ina a sua essência.
Com a precisão que lhe é peculiar, GERHARD, 1709, p. 55 sintetizou apropriadamente
os diversos aspectos desse discurso sobre a viva esperança na IP e como um a força
divina criadora de vida, que preenche já a presente existência com alegria, dando
sim ultaneam ente participação na vida eterna de Deus e que, como tal, não está
unicamente em contraposição à nuUdade da esperança humana, mas também produz
a fé que é atuante no amor.
BEZA, 1528, p. 425.

70
todas as três grandezas qualificadas como “vivas” n a primeira parte principal da
IPe - esperança, palavra e a pedra, Cristo - evidenciam sua vivacidade ju sta­
mente por transmitir a vida (divina) aos que c r e e m . E m sentido comparável, o
salmista afirma que em D eus reside a fonte da vida (SI 35.10). Ainda mais clara­
mente, o Evangelho de João identifica o próprio Cristo como “a vida” (Jo 11.25;
14.5; cf. Jo 1.4; At 3.15), querendo expressar com isso exatamente que por meio
dele a vida (eterna) é transmitida (Jo 5.26; 6.33-35 e outros; semelhantemente,
2Co 4.10s). Sintomático é que em João se encontre também um emprego análo­
go do predicado “vivo”, quando o Cristo joanino se designa como “água viva” (Jo
4.1 Os), por intermédio da qual no receptor “surgirá u m a fonte de água viva a
jorrar para a vida eterna” (4.14), e também como “pão vivo”, por meio do qual,
aquele que dele comer, “viverá etemamente” (Jo 6.51). Também a qualificação
corrente do D eus bíblico como “D eus vivo” não se encontra unicam ente em
oposição aos ídolos “mortos”, m as se fundamenta, em última análise, na res­
surreição (IT s 1.9s) e refere-se, assim, ao poder de D eus com o qual ele trans­
mite a vida (eterna) (Jo 6.57); na ressurreição, o Deus vivo comprovou-se como
sendo o D eus vivificador (Rm 4.17; 8.11; IC o 15.22, 36, 45; Jo 5.21; cf. IPe 3.18).

V. 4 Enquanto que no v. 3 o acento residia na ação louvada de Deus,


no V. 4 é apresentada com maior precisão a natureza da esperança
para a qual os que creem foram renascidos: “para uma herança impe­
recível, sem mácula e imarcescível, reservada nos céus para vós”. Na
metáfora da aliança (KA.qpoyopía) entrecmzam-se diversos temas teoló­
gicos da IPe: (1) A KÀTipovopía [em hebraico nSm] designa originalmen­
te a terra prometida aos pais (Dt 12.9; 19.14; Js 11.23; 15.20 e outros);
origina-se, portanto, da tradição judaica veterotestamentária do povo
de Deus?'^ Dessa forma estabelece-se uma ponte para a recepção dessa
tradição na moldura da primeira parte principal (IPe l.ls; 2.9s). (2)
Essa “herança” transforma-se no judaísmo antigo^'^'^, bem como no cris­
tianismo primitivo^"^®, na metáfora para o bem salirífico escatológico da

0 paralelo mais próximo desse enunciado em relação à esperança é o já citado texto


de Sab 3.4, em que se diz que ètiríç é a àSavaoíaç ntf|pr|ç.
Em termos histórico-traditivos subjaz aqui como pano de fundo a idéia veterotesta­
mentária da “herança” de Israel, que no Antigo Testamento originalmente relaeionava-
se com a Terra Prometida. Essa concepção, porém, já foi escatologizada no judaísmo
incipiente, quando a terra é prometida aos eleitos como herança (cf. esp. lE n 5.6-8).
1 QS XI.7s afirma que os eleitos terão sua parte (de herança) na “sorte dos santós” .
SlSal 14.10 afirma que os piedosos herdarão uma “vida em alegrias”.
O Novo Testamento fala de uma “herança” da “vida eterna” (Mt 10.17par.), do reino
de D eus (M t 25.34; IC o 6.9s; 15.50; G1 5.21), da salvação (Hb 1.14), resp. da
“herança (eterna)” como a dádiva de salvação escatológica prometida aos cristãos (cf.
At 20.32; G1 3.18; E f 1.14, 18; 5.5; Cl 3.24; Hb 9.15). Segundo Mt 5.5, os mansos
herdão a yí!, o que sempre de novo é interpretado como se referindo á terra de Israel;
p o r ú ltim o , L A A K S O N E N , J. J e s u s u n d d a s L a n d . D as G e lo b te L an d in d er
Verkündigung Jesu. Abo, 2002. p. 353-372, que interpreta Mt 5.5 como sendo de
Jesus, e vê nesse texto a promessa da posse da Terra Prometida. Parece-me que teJ
in te rp re ta ç ã o co rresp o n d e, no m áxim o, a u m e stá gio p re lim in a r d es sa bem -
aventurança, caso ele tenha realm ente existido como tal (ela não se encontra na
tradição paralela das bem-aventuranças em Lc 6.20s). A prom essa paralela do céu
nas bem -aventuranças 1 e 8 (Mt 5.3, 10) torna mais provável que o fato deva ser
entendido no sentido da união, frequente em M ateus, de “céu e terra” , devendo
compreender-se yfi como referência a todo o mundo.

71
vida (eterna). A isso corresponde a qualificação da herança anterior­
mente efetuada por meio dos três predicados formados com a-priva-
tiuum, bem como sua paralelização com a “viva esperança”. (3) Ao
mesmo tempo, a metáfora da herança faz referência ao renascimento
no contexto da IPe. Como também em Paulo (cf. Rm 8.14-17; G1 4.6s),
ê a filiação de Deus que fundamenta a reivindicação à herança. (4) Na
metáfora da herança estã incluída também a sobreposição de presen­
te e futuro, característica para a existência dos cristãos “entre os tem­
pos”. Como “herança”, a salvação ainda é futura, mas, como crianças
renascidas por Deus, os cristãos jã têm direito à ela. Com isso a alu­
são ã “herança” também corresponde ao ser-forasteiro dos cristãos,
ressaltado em 1.1. A eterna morada junto a Deus^"^® por meio de elei­
ção e renascimento condiciona a existência como forasteiro. “Pois é
justamente a pátria prometida que toma apátrida” (D. Sõlle).

Essa herança é determinada mais exatamente por meio dos três pre­
dicados “incormptível, sem mácula e imarcescível”. Tal sequência
de adjetivos de negação, formados por a-privativum, é uma caracterís­
tica da teologia negativa da antiga m e ta fís ic a. T od os os três predi­
cados determinam o que é divino por meio do contrário daquilo que é
tido como a essência deste mundo, a saber, por intermédio da atra­
ção da transitoriedade, que se mostra em destmição, poluição e en­
velhecimento, levando ã mina tudo o que é belo e que vive. É provável
que a IPe recorra a esses predicados da antiga metafísica pela media­
ção do judaísmo da diáspora^®^ mas o que lá expressa a independên­
cia do divino daquilo que é terrenal e humano, aqui é prometido aos
“renascidos”. Na IPe, esses predicados que definem o que é divino por
meio da negação da realidade humano-terrenal transformam-se em pre­
dicados soteriológicos. Em relação a 1.4 isso significa; os predicados
tornam claro o que significa ter uma “viva esperança”. Por meio do

Cf. também 2.25, em que o retom o das ovelhas desgarradas “ao Pastor e Bispo das
vossas almas” é destacado como ponto alto do hino cristológico.
2=0 Cf. Aristot, Cael I,270a; I,277b; l,282ab; Plut, EDelph 19,392E; 20,393A e outros.
A origem não-biblica dos predicados já chamou a atenção de PERDELWITZ, 1911,
p. 45-50; ele obviamente os interpreta de tal forma que por seu intermédio o batismo
cristão acaba sendo destacado como antítese dos mistérios.
Em Füo encontram-se os predicados ànápavTOí; e sobretudo S(j)0apToç, aqui empregados
como predicados da realidade celeste. Disso não se pode concluir que a IP e tenha
sido diretamente dependente de Filo. Para tanto se perdeu um número muito grande
de testemunhos do judaísmo da diáspora. Poderia ter sido perfeitamente só o mesmo
ambiente da sinagoga da diáspora, cujas tradições tivessem influenciado Filo e a
IPe. Especialmente em relação a IP e 1.4, é notória, p. ex., a relação com Sab, na
qual todos os trés termos aparecem como predicados de grandezas celestes; cítfiGapToç
12.1, do Espírito divino; em 18.4, da luz da lei divina; àpíavroç 4.2, no contexto da
figura da competição como metáfora para um a vida virtuosa (“prêmio imarcescível”
para a vitória) e à|iápavtoç 6 . 1 2 , para a sabedoria.

72
renascimento divino, é concedida aos eleitos a participaçao na ple­
nitude divina de vida.^®^

Excurso 2: “Incorruptível, sem mácula e imarcescível”


- recepção e transformação de predicados
metafísicos de Deus na IPe
o primeiro predicado, que posteriormente desempenhará um papel ainda
mais importante no contexto do renascimento (1.23; cf. 1.18), é a imperecibili-
dade. O campo semântico de áijiGapTOí; e à<j)9apaLot não possui equivalente n a Bí­
blia Hebraica^®®, m as é característico para a religiosidade pagã. Um a predileção
declarada por esse predicado tem Epicuro^®“*, que, por seu intermédio (junta­
mente com o segundo predicado paKápLoç), expressa a total independência dos
deuses em relação ao mundo: eles são felizes e perenes por não se deixar afetar
de nenhum a maneira pelo mundo. Trata-se, portanto, de um predicado divino
exclusivo, que expressa o contraste entre transcendência e imanência. Tam ­
bém onde, ao contráirio de Epicuro, a comunicação entre o divino e o hum ano se
torna central, a n e g a ç ã o d a r e a lid a d e h u m a n o -te r r e n a l permanece normativa para
esse predicado, como mostra, p. ex., o final furioso do D e E a p u d D e lp h o s , de
Plutarco, que destaca o deus reluzente da existência contra o d a im o n escuro da
transitoriedade^®® como ser destituído de qualquer sorte de vir-a-ser ou vir-a-
morrer e que, por isso mesmo, também é ctíjieapToç, incorruptível e imperecível,
destacado nada mais nada menos do que três vezes nesse contexto. Em relação
ao ser humano, ao contrário, esse predicado é empregado relativamente pouco,
e quando isso ocorre (p. ex., no médio platonismo), então unicamente em rela­
ção ao divino dentro da pessoa, do qual ela participa através da alma, em oposi­
ção ao restante de su a existência terrenal.^®®
Filo dá testemunho da atratividade de tal teologia negativa também para
o judaísm o da diáspora quando denomina D eus simplesmente de ó ãcljGapToç^®^,
entendendo, portanto, a negação da finitude como sinônimo para o divino. Filo,
no entanto, também aplica esse predicado para o voOç de D eus (Filo, LegAll

V. abaixo sobre 1.23-25.


N a LXX, ele se en con tra u n icam en te em dois escritos h elen ísticos de datação
relativamente tardia, Sab e 4Mac (ãcjieapTOç e á<j)0OLpoía em 4Mac 9.22; 17.12; Sab 2.23;
6.18s; â(j)6 apT0i; em Sab 12.1; 18.4).
Em Platão ele ainda não se encontra. Aristóteles, em sua Metafísica, designa com
ele a total diferença apresentada pelos corpos celestes e seu movimento em relação
à Terra.
255 De E 393A - 394A. Em D e Isid e et Osiride, Plutarco chega a designá-lo inclusive de
KttKÒç ÔaipCúV.
255 Só muito raramente é feita alusão a uma imortalidade da alma (cf. Plut, SerNumVind
17,560B), o que, porém , pressupõe um processo de radical separação do mundo,
que Plu tarco chega a design ar até m esm o de m orte dupla: prim eiram en te deve
m orrer o corpo, depois a alma, até que o voOç divino, purificado de tudo o que é
terreno, possa novamente entrar no ser divino (cf. Plut, FacLun 28,943 A-E: dessa
form a, tam bém o ser hum ano - a partir da tricotom ia e da dicotom ia - passa a
tornar-se novam ente um a unidade).
252 Filo, LegAll 111,31.36; SacrAC 63.95; Deusimm 26; RerDivHer 15.118.205; cf. também
Filo, Gig 15.45.61; Ebr 110. Ele acentua expressamente que Deus mesmo está além
do tempo. Isso significa que os limites do tempo lhe estão subjugados, em outras
palavras: que ele está diretamente presente em qualquer tempo (Filo, Deusimm 32).

73
111,31), seu A.ÓYOÇ (Filo, HerDivHer 79; ConfLing 41) e para as forças divinas de
u m a maneira geral (Cher 51), portanto, para aspectos do ser divino relacionados
com o mundo e que agem dentro dele. A partir daqui não falta mais muito até a
apropriação dessa imperecibilidade por parte do ser humano. Ela se baseia na
criação do ser humano à imagem de Deus, por meio da qual ele era, como ideia
de Deus, “imperecível por natureza” (OpMund 134; ãtjjSapToç cj)úoei). Em virtude do
apego às coisas corporais - assim Filo compreende o relato da “queda” - essa
imperecibilidade do gênero perdeu-se como roupagem criacional (OpM und 152),
mas permanece conservada como finalidade destinada a cada pessoa, que deve
se esforçar p a ra “conseguir receber junto àquele que não se formou e que é
imperecível (i. e., junto a Deus) a vida incorruptível e destituída de corpo”.
Num sinergismo entre o esforço do ser humano e as “virtudes” - ou seja,
no cumprimento da Torá - e a ação apoiadora de Deus, a imperecibilidade toma-
se, dessa forma, um predicado soteriológico: “Sem graça divina”, assim Filo, Ebr
145, “não é possível nem escapar da esfera de poder do que é mortal, nem perma­
necer para sempre n a esfera de poder do que é imperecível”.^®® Essa “biblicízação”
da noção héTenista da incorruptibilidade encontra-se menos refletida em outros es­
critos do judaísm o helenista, mas, em compensação, com muito mais clareza.
Segundo a Sab, o ser humano como imagem de Deus estã destinado ã impereci­
bilidade (2.23), que pode, apesar de sua perda transitória em virtude da queda^“ ,
ser novamente assegurada pelo “cumprimento dos mandamentos” (6.18).
Para as lendas dos mártires de 4Mac, manter-se fiel ã Torã e ao D eus de
Israel em meio a um m undo pervertido e dominado pela morte significa vida
indestrutível, eterna; sim, aquele que em fidelidade permanece dedicado aos
mandamentos de Deus será transformado já na morte para a incorruptibilidade.^®^
No romance de conversão judaico-helenista “José e Asenet”^“ , o judeu, como
verdadeiro adorador de Deus, tem coparticipação na bênção e, com isso, na
imortalidade e incorruptibilidade (JosAs 8.5; 15.5; 16.16).^®® De forma análoga,
também a gentia convertida, como membro do povo de Deus, é presenteada com
imperecível juventude e beleza (16.16; cf. também 18.9).^®^

258 Qjg 1 5 - cf. Filo, RerDivHer 35; PosterC 135; Plant 44; Ebr 135 e outros.
Cf. Filo, RerDivHer 205; MigrAbr 18s; Abr 55; P la n t ll4 e outros.
Dessa forma provavelmente deve ser entendida a afirmação em 2.23s: “Deus criou o
ser humano para a incorruptibilidade e o fez à imagem de sua própria eternidade.
Mas foi por inveja do diabo que a morte entrou no mundo”.
261 Q 40 (jQg Macabeus, um relato algo exagerado de lendas de mártires judeus do
tempo dos selêucidas, provavelmente se originou no século 1 ou II d.C. e surgiu na
A ntioquia (DENIS, A.-M .; HAELEW YCK, J.-C. In tro d u ctio n à la littéra tu re religieu se
ju d é o -h e llé n is tiq u e I. Tu rnhou t, 2000. p. 561-573, esp. 571s; KLAUCK, H.-J. 4.
M a kk a b à erb u ch . Gûtersloh, 1989. p. 665-659). Em razão de sua perseverança, os
mártires teriam ganho participação na àc|)eapoLa (4Mac 17.12; como comparação já em
9.22). A fundam entação m istura pensam ento helenista com judaico: a vitória no
martírio interpretado como com petição é alcançada por virtude e em penho (áprrTj)
dos “atletas da legislação divina” (xf|ç Geíaç vopoSeoíaç aOltitaL, 17.16; cf. 17.15), que
nada mais é senão a sua piedade (9eooé(3€i.a). Segundo 4Mc 9.22, o jovem torturado até
a morte por causa de sua piedade será “transform ado p a ra a incorruptibilidade no fogo”
ainda em meio à morte (ev mipl prraaxTipaTiíópevoç elç à(|)0apaíay).
A datação também neste caso é incerta; ela oscüa entre o século I a.C. até o início do
século II d.C.
^®® As ocorrências corriqueiras como comer, beber e ungir recebem sua particularidade por
meio da bênção; cf. BURCHARD, C. J oseph u n d Aseneth. Gûtersloh, 1983. p. 604s.
Segundo BURCHARD, 1983, p. 604ss, essa transform ação num a criatura perfeita
deve-se unicamente ao fato de agora, como judia, pertencer à comunhão dos verdadeiros
adoradores de Deus e participar da bênção em virtude de viver em meio a esse contexto.

74
Aqui começa a se esboçar o que n a IPe é desenvolvido coerentemente, a
saber, que o p r e d ic a d o d a in c o r r u p tib ilid a d e , n o c o n te x to d e u m a te o lo g ia c u n h a d a
b ib lic a m e n te , te m c o m o s e u c e n tr o n ã o o c o n tr a s te o n to ló g ic o e n tre D e u s e s e r h u m a n o ,
m a s a c o n s e q u e n t e in c o r p o r a ç ã o d o s e r h u m a n o n a e s fe r a d iv in a d a v id a e a s u a
tr a n s fo r m a ç ã o c r ia tiv a d a í r e s u lta n te . Segundo Sab 4.10-13, o justo é arrebatado,
transformado e completado por Deus; JosAs descreve a renovação por D eus
como sendo transformadora de toda a pessoa (JosAs 16.16; 18.9). 4Mac 9.22 fala
diretamente de transformação. Neste sentido, m ais tarde, sobretudo no con­
texto de su a grande controvérsia com os que negavam a ressurreição em ICo
15, Paulo vai destacar a transformação do que é passageiro em incorruptibilidade
como centro soteriológico da teologia da cruz.^®^
O predicado “sem mácula” é igualmente de origem helenista e designa a
pureza cultual^®^, embora tenha também, em relação com o divino, um a dimensão
ontológica, n a medida em que pertence à essência da divindade não se contami­
nar por meio do contato com a esfera humana.^®^ Como predicado divino, òpíavroí;
também é encontrado em FUo; mas “sem mácula” designa no filósofo da religião
judeu também tudo o que pertence a Deus - desde o seu nome, passando pela
sua sabedoria até a virtude e a alma relacionando-se com ele.^®® Essa é a razão
pela qual o termo à^Lavroç recebe, bem mais destacadamente que Ò£4)0apT:oí;^®^, um
significado ético; na tradição judaica, àptavroç designa pureza cultual, mas tam­
bém abstinência sexual^^“, como, por outro lado, delitos sexuais^^^e idolatria^'^^
ou paixões de um a maneira geral^^^ mancham a pessoa, resp. sua alma.
“Imarcescível” (à|j.ápavToç) é um termo raro, cujo horizonte de associação
não parece estar fixo por intermédio de um a tradição especifica.^^'* Encontra-se
só mais u m a vez no Novo Testamento, também na IPe: em 5.4, a coroa da glória
é distinguida por meio de apapavrivoç das coroas murchas usadas pelos vencedo­
res militares ou esportivos. É provável que a IPe tenha usado conscientemente
esse predicado com su a metáfora de vegetação como antítese à descrição em
1.24 da seca que atinge toda carne humana, o que n a referida passagem é acla-

Cf. FELDMEIER, R. 0eòç ÇcpoTiouôv. Die pauUnische Rede von der Unvergänglichkeit in
ihrem religionsgeschichtlichen Kontext. In: DALFERTH, I. et al. (Eds.). D enkw ürdiges
Geheim nis. Beiträge zur Gotteslehre. (FS E. Jüngel). Tübingen, 2004. p. 77-91.
2®® Plut, IsEtOs 79,383B; PythOr 3,395E; Num 9,66B; cf. ainda FUo, SpecLeg 1,113.250;
Fug 118.
Cf. Plut, ED elph 20,393C ; IsEtO s 78,382F; para Apuleiu s, um platônico m édio
que viveu duas gerações mais tarde, a supremacia dos deuses reside no fato “ [...]
de que eles não são m anchados por qu aisqu er contatos de n ossa p arte” (Apul,
DeDeo I, 128).
^®® Cf. Filo, LegAll 1,50; Cher 50; DetPotIns 169; MigrAbr 31; Fug 50.114; Som 11,185;
SpecLeg IV,40.
OGopá e seus d erivados tam bém podem sign ificar “o v ic io ” , “ a degen eração” , “a
tentação” (c f Sab 14.25s; Filo, DetPotIns 102; SpecLeg IV,89; Decai 168; Jos 84;
C on fLing 48).
Na LXX falta um equivalente hebraico; o termo é empregado para pureza cultual em
2M ac 14.36 e 15.34, para abstin ên cia sexual em Sab 3.13; 8.19s; cf. no Novo
Testam ento, Hb 13.4.
TestX II.R ub 1.6; T estX II.Lev 7.3; 9.9; 14.6; 16.1; TestX II.B en 8.2s; c f TestX II.Is
4.4; Sab 14.26.
272 Sib V,392; 4Mac 5.36; 7.6; SlSal 2.3; 8.22.
272 C f FUo, e h e r 51.
27“' Nos escritos bíblicos, à|iápavToç se encontra somente ainda em Sab 6.12 como predicado
da sabedoria (paralelo a “vistosa”). IP e 5.4 em prega um derivado para a coroa da
glória a ser alcançada mediante conduta correta como dirigente de comunidade.

75
rado por meio de um dictum probans da Escritura^'^^, n a erva e n a flor.^'^® Ao lado
da indestrutibilidade ontológica e da liberdade de toda contaminação terrenal, o
termo ainda acentua o aspecto da liberdade da tendência à autodestruição, ine­
rente a (praticamente) todos os seres viventes a partir do envelhecimento, e,
dessa forma, da vitalidade permanente da herança.

Os três predicados negativos ressaltaram que a eternidade divina


implode o contexto da nossa realidade determinada pelo vir-a-ser e o
vir-a-morrer. Isso é agora ainda reforçado pela metáfora espacial: essa
“herança” encontra-se “nos céus”. Isso significa, inicialmente, que não
se trata de uma pátria terrena, como para o povo judeu na dispersão,
mas de uma transcendente.^^^ O mais importante, contudo, também
não estã aqui na separação de céu e terra, mas na perspectiva da espe­
rança que, por essa razão, é oferecida ao presente: a salvação não precisa
ser criada; ela já existe como herança nos céus; está lá “guardada”, e
isto “para vós”. O versiculo que segue ainda sublinha esse fato quando
diz que essa salvação já está preparada para ser revelada e, portanto,
até certo ponto anseia pela sua realização aqui na terra. O aspecto “infe­
rior” de uma realidade cunhada de sofrimento e morte, a ser aclarada
nos versículos que seguem, é dessa forma de antemão tomado e transcen­
dido pela dimensão de Deus, da qual os que creem participam já no
presente a partir da “viva esperança”. Aquilo que outras cartas do Novo
Testamento expressam com a figura (política) da cidadania divina, ou
da cidade celeste (Fp 3.20; G1 4.26; Hb 12.22; 13.14), a IPe designa
com a metáfora do renascimento e da respectiva herança.

V. 5 Depois de dirigir a atenção à herança celeste, o v. 5 acentua a


atuação presente de Deus como um poder que “protege”, “resguarda”
os c r e n t e s . A n t e s que no versículo seguinte se entre nas tribulações
e tentações dos destinatários, assegura-se-lhes a ajuda divina como
uma força que os protege. Essa proteção ocorre “pela fé”, especifica­
mente para a salvação que jã está pronta para sua revelação definitiva.
Nesse contexto, como aliás também normalmente no Novo Testamen­
to, fé não significa meramente considerar alguma coisa como verda­
deira por parte de indivíduos^^®, mas aceitar a mensagem da salvação
com a qual as pessoas simultaneamente são colocadas numa nova re-

Is 40.6-9 é citado seletivamente com esse objetivo e colocado em um novo contexto


(v. abaixo em 1.24).
O verbo \íapaívt\.v é em pregado em Jó 15.30; 24.24 LXX com o designação para a
fragilidade e transitoriedade das pessoas que se afastaram de Deus.
NIEDERW IM MER, K. Kirche als Diaspora. In: PRATSCHER, W.; ÖHLER, M. (Eds).
K u rt Niederw im m er, Q uaestiones theologicae. Gesammelte Aufsätze. Berlin; New York,
1998. p. 106 fala de um a conceituação espiritualizada.
O termo jipoupéu, “resguardar”, pode ter tanto conotação negativa (G1 3.23; cf. 2Co
11.32: vigiar, m anter preso) quanto positiva (Fp 4.7: proteger, preservar).
Uma exceção constitui a Carta de Tiago, em que até os demônios “creem” que “Deus
é um ” (Tg 2.19).

76
lação com Deus, numa atitude de confiança, de entrega e de esperan­
ça, que determina e abarca a totalidade de sua existência (cf. 1.21).^®°
Por meio de tal fé, “que não deixa ser envergonhado” (2.6), o poder de
Deus pode então tomar-se eficaz nos crentes, assim que consigam es­
tar assegurados, por seu intermédio, no poder de Deus (1.5) e dessa
maneira possam também opor resistêneia ao maligno (cf. 5.9); ttlotlç
designa aqui praticamente uma instância que faz intermediação en­
tre Deus e as pessoas que creem.

É a partir dessa experiência do poder divino que se oüia para o Kaipoç


eoxaxoç, não como sendo qualquer tempo indeterminado, mas como se a
salvação escatológica, que já agora determina a vida dos crentes, sendo
aquilo em que se crê e espera, estivesse “pronta para ser revelada” junto
a Deus e, portanto, estivesse entrando com força neste mundo.

1.1.2 Alegria e provação (1.6-7*)

V. 6: Então ireis jubilar, agora, por breve tempo - se necessá­


rio - contristados por várias provações,
V. 7: para que se manifeste a autenticidade de vossa fé, que
é muito mais preciosa do que o ouro, que, mesmo sendo
passageiro, revela-se (igualmente) como autêntico por
meio de fogo - para louvor e glória e honra na revelação
de Jesus Cristo.
* Literatura sobre IPe 1.6-7: FINK, P. R. The Use and Significance of En Hoi in I
Peter. Grace Journal 8, n. 2, p. 33-39, esp. p. 35, 1957; MARTIN, T. The Present
Indicative in the Eschatological Statements of 1 Peter 1:6,8. JBL 111, p. 307-
312,1992.

V. 6 Partindo do poder de proteção divino e numa simultânea expec­


tativa por salvação vindoura, passa a ser enfocada agora, a partir da
nova perspectiva e pela primeira vez, a realidade presente opressora.
Nesse contexto - aparentemente um paradoxo - encontra-se inicial­
mente destacado o júbilo. Na exegese, é controvertido se o presente
àYaX.A.Lâo06 em 1.6, 8 realmente deve ser traduzido como presente ou
se não se trata, antes, de um presente futuro, o que, em termos obje­
tivos, desemboca na alternativa de tratar-se ou de uma alegria já pre­
sente ou de um júbilo futuro.

Cf. BULTMANN, R. Verbete moTeúu ktI. In: ThW N T. Stuttgart, 1965 (= 1959). v. VI,
p. 217: Bultmann refere-se a uma “postura constitutiva para a existência”; como tal,
“a iTÍouç exerce um governo absoluto sobre a vida”.
De form a precisa, GERHARD, 1709, p. 60.

77
Os defensores de um a interpretação futura de àyaXXicraGe chamam a atenção para
o fato de que a conexão relativa da frase em 1.6 - èv (p - refere-se ao ív Kaipcp èoxá-ucp
de 1.5, o que implica que àyaAÀLâoSe como predicado da frase relativa só possa ser
entendido como futuro.^®^ Além disso, o júbilo efusivo, como aqui descrito, seria
característico justamente para o futuro pleno de salvação, como mostra 4.13.
Deve ser observado, no entanto, que 4.13, referindo-se ao sofrimento, também
fala da alegria já presente, mesmo que a ser plenamente realizada no júbilo futu­
ro. No que se refere ao distinto “tempero” da presente alegria aqui e em 4.13, não
cabe acentuar demais esse fato - também sobre o sofrimento há referências muito
mais intensas em 4.12ss do que em 1.5, 8! Os defensores de um sentido presen­
te apontam, ao contrário, para o fato de kv u ser empregado em outras passagens
da IPe “as a conjunction and not strictly as a relative pronoum” [como um a con­
junção e não estritamente como um pronome relativo].^®® O emprego de cláusula
relativa como referência ao anterior deveria, portanto, ser relacionado de forma
causativa bem genericamente com todo o parágrafo antecedente^®'^, razão pela
qual èv (5 deveria ser aqui traduzido como “por isso”.^®® Por esse motivo, o mais
provável é que àyal.A.Lâo9e deva ser entendido como presente em 1.6, 8, ainda mais
que também as observações feitas em 1.10-12 têm por objetivo qualificar o pre­
sente como o cumprimento das profecias.

É difícil decidir essa questão, pois a IPe, que seguramente foi escrita
num grego polido, empregou o presente na referida passagem (repetin­
do-o em 1.8, onde a significação presente é ainda mais clara a partir
do paralelismo com àvcurâre). Por outro lado, parece artificial que aqui
(como também em outra passagem) uma conexão claramente relativa
de frase receba reinterpretação. É possível que a dificuldade em res­
ponder resida no fato de a pergunta estar sendo mal formulada. Nas
passagens subsequentes da carta poder-se-á constatar sempre que uma
rígida diferenciação entre presente e futuro não faz jus à IPe, uma vez
que é seu interesse interpretar o presente totalmente ã luz do futuro
que se descortina para os que creem. Dessa forma, embora o versículo
esteja focado no júbilo futuro, esse não pode ser totalmente separado
do presente.^®® No que segue, a IPe amiúde torna claro como a alegria
do tempo eseatológico é antecipada na alegria presente que a antece­
de, afastando dessa maneira o lado sombrio das provações.

A fim de tomar ainda mais plausível o “superpoder” da alegria sobre o


sofrimento, aqui, no iníeio, o sofrimento é relativizado, recorrendo-se
a uma referência ã sua limitação temporal. A tribulação é qualificada
como “várias provações”. O termo TTeipaonóç aqui empregado (tentação/
provação) encontra-se cunhado pelo judaísmo da diáspora em suas

Cf. MARTIN, 1992, esp. p. 310.


Cf. FINK, 1967, p. 33.
=®-' Cf. FINK, 1967, p. 38.
Cf. FINK, 1967, p. 35.
^®® Cf. ELLIO TT, 2000, p. 339: “Com o em relação a vários con ceitos apresentados
nesta carta [...], também no caso do júbilo, realidades presentes e futuras tendem a
entrecruzar-se e intercam biar” .

78
conotações religiosas e é amplamente empregado no Novo Testamen­
to. A compreensão de iTeLpao)j,óç na IPe está especialmente próxima à
tradição sapiencial e ã Carta de Tiago: a tribulação por meio das prova­
ções e por causa das hostilidades do entorno (cf. IPe 4.12) é interpre­
tada em IPe 1.6s com praticamente as mesmas palavras que em Tg
1.2s: como chance para a preservação da fé. Como tal, ela pode inclusi­
ve ser bem-vinda, já que “[é] um privilégio paradoxal pertencer aos pro­
vados justamente por causa da Mesmo assim, é destacado com
maior intensidade do que em Tg que as pessoas encontram-se na de­
pendência da proteção divina (IPe 1.5; cf. 5.10), o que apresenta afini­
dades com os escritos de Lucas ou também com ICo 10.13. A IPe não
entra no mérito da pergunta pelo causador da tentação.^®®

Excurso 3: Tentaçao/iTeLpao|a,óí;
O substantivo iT6Lpaop,óç é derivado do verbo TCLpáCíiv. No grego profano, o
significado do verbo é “provar”, “tentar”. Nesse sentido também pode ser empre­
gado no Novo Testamento (At 9.26; 16.7; 24.6). Bem mais seguidamente, porém,
ele é empregado p ara expressar u m a provação em sentido religioso. É nesse
sentido que o substantivo ireipaopóç é empregado consequentemente no Novo
Testamento. Trata-se aí de um desenvolvimento do grego profano por meio do
uso linguístico da Septuaginta, que reproduz o hebraico HD3 piei com TTeipáCeLv (o
substantivo encontrado só no hebraico posterior, corresponde então ao
irei-paopóç).^®® D essa m aneira foi estabelecido um termo p ara o relacionamento
com Deus, que se encontrava ameaçado. Como tal, a tentação, per defirütionem,
só atinge os que creem. “Os que não creem [...] Satã tem sob seu poder de
qu alqu er form a”.2®“ N a m edida em que não é falado unicamente da tentação
como perigo de u m a maneira geral (IT s 3.5; G1 6.1; Tg 1.12), “ela” pode estar
condicionada pela sedução das pessoas por meio dos seus desejos (IT m 6.9; Tg
1.13s; ef. IC o 7.5); mais frequentemente, porém, são perseguições e sofrimen­
tos que levam as pessoas a se escandalizar frente a D eus (Lc 8.13; IPe 1.6s;
4.12; 2Pe 2.9; Hb 2.18; Tg 1.2; Ap 2.10). No primeiro caso, ueLpaopóç corresponderia
mais à palavra portuguesa “tentação” e, no segundo, mais à palavra “provação”.
Tentação pode ser compreendida de forma exclusivamente negativa, como
uma superpoderosa ameaça àfê, à qual o ser humano não consegue resistir a não
ser que o cuidado divino lhe dé guarida (IC o 10.13). A exortação de Jesus no
Getsêmani: “Vigiai e orai para que não entreis em tentação; o espírito, na ver-

287
POPKES, 2001, p. 82.
288
Como responsáveis por provocar o sofrimento geralmente são citadas as pessoas do
entorno (2.12; 4.12ss e outros); mais para o final da carta entra em cena também o
diabo (5.8). Um texto como IP e 4.17 (“porque é chegado o tempo em que se deu início
ao ju ízo da casa de Deus”), no entanto, não deixa parecer impossível que também
Deus, segundo a opinião da IPe, seja causa (conjunta) do sofrimento e da “provação”
por este desencadeada.
Cf. JASTROW, M. A D ictionary o f th e Targumim, the Talm ud B a b li and Yem shalm i, and
th e M id ra sh ic Literature. New York, 1992 (= 1903). p. 916.
KUHN, K. G. treLpaapóç, ipapTia, oápÇ im Neuen Testam ent und die damit zusammen­
hängenden Vorstellungen. Z T h K 49, p. 202, 1952.

79
dade, está pronto, mas a carne é fraca”, entende que o vir-a-entrar-em-tentação
seja praticamente igual à queda^®' (o que pode ser constatado na cena subse­
quente, em que os discípulos, ao contrário de Jesus, em vez de orarem, acabam
caindo no sono). A oração deve evitar que de modo algum se caia em (poder da)
tentação. Diferentemente de Jesus, que se preserva como o FUho de D eus ju s ­
tamente no conflito com o tentador^^^, ao crente ameaçado só resta suplicar por
preservação a Deus, “que sabe livrar da provação os piedosos” (2Pe 2.9; cf. Ap
3.10 - ali relacionado com a grande aflição do final dos tempos). De maneira
análoga, o teor da últim a prece do Pai-Nosso era originalmente: “E não nos
deixes entrar em tentação” (Lc 11.4c), especificada por Mateus ainda por meio
do acréscimo antitético “m as livra-nos do mal” (Mt 6.13).
N a Carta de Tiago, ao contrário, a tentação é praticamente saudada posi­
tivamente, u m a vez que ela a entende, segundo a tradição sapiencial, como um a
provação pertencente ã vida cristã e que, por oportunizar chance para a comprova­
ção, oferece inclusive ensejo de alegria (1.2). De forma correspondente, toda pes­
soa que resiste ã tentação é considerada bem -aventurada (Tg 1.12).^®^ Seme­
lhantemente, Hb 11.17 pode exaltar a fé de Abraão, que - tentado por D eus
(TreLpaÇó|j,eyoç) — ofereceu seu filho Isaque.
U m a posição intermediária é assum ida pelos escritos de Lucas, nos quais
a tentação constitui um a ameaça que pode levar à queda (cf. também Lc 8.13),
embora não o faça necessariamente. A oração é aqui o recurso por meio do qual
a tentação pode ser v e n c i d a . E m Paulo, a mediação é outra: esse distingue
em IC o 10.13 entre um a tentação hum ana, que aparentemente tem sido vencida
pelos coríntios até a presente data, e outra que está “além de vossas forças”, a
qual o próprio Deus afastará.

V. 7 Por meio de uma conclusão a minore ad maius, partindo do ouro


pereciveP®® até a fé muito mais valiosa, segue agora - introduzida
pela conjunção final Iva - uma comparação contendo uma primeira
interpretação das “tentações” como teste epurificação: se até a autenti-

Form ulações sem elhantes também existem em orações do judaísm o incipiente; cf.
bBer foi. 60b, em que o orante dirige a Deus o pedido para não cair no poder ('’T*:') do
pecado, da culpa, da tentação (1VD3) e da vergonha. Aqui são paralelizados pecado,
culpa, tentação e vergonha.
Mc 1.12s; Mt 4.1-11; Lc 4.1-13. Referindo-se a isso, Hb 4.15 pode então dizer do
Filho de Deus, “ter ele sido tentado em todas as coisas, á nossa semelhança, mas
sem pecado”.
293
Cf. sobre isso, BURCHARD, Ch. D e r Ja k ob u sb rief. Tübingen, 2000. p. 52s.
294
Nesse sentido, Lucas m odificou de tal form a sua n arrativa do Getsém ani, que o
duplo pedido “Orai, para que não entreis em tentação” (Lc 22.40, 46) em oldura a
oração de Jesus. Dessa forma, o mestre orante tom a-se exemplo para os discípulos,
do qual se pode aprender com o escapar da tentação (cf. tam bém Hb 2.18). Aqui
tentação é sinônimo de tribulação, perseverar é evidência de fidelidade na fé. Essa
é a razão pela qual Lucas omitiu a fundamentação “pois o Espirito está pronto, mas
a carne é fraca” (Mc 14.38b) em sua cena do Getsémani; em vez disso, Jesus assevera
anteriormente aos seus discípulos em Lucas (Lc 22.28) que eles perseveraram com
ele nas suas tentações. De form a sem elhante afirm a Paulo em seu discurso de
despedida em Éfeso (At 20.19) ter ele servido ao Senhor “com toda a hum ildade,
lágrimas e provações (ircLpoto^oL) que, pelas ciladas dos judeus, me sobrevieram” (cf.
também A t 15.26 v. 1).
De uma perspectiva escatológica ele pertence ao mundo que está findando - por isso
sua predição como perecível.

80
cidade do ouro precisa ser comprovada por meio do fogo, tanto mais
será necessário fazê-lo em relação à fé, de valor muito maior. Mais
ainda: como na fundição do metal toda a impureza deve ser elimina­
da para que, ao final, sobre só sua parte purificada e preciosa, assim
também o sofrimento é entendido como processo de separação em
que a fé é provada, em que ela é purificada.

E s s a com paração do sofrim ento com a fu n d ição de m etal está c u n h a d a


sapiencialm ente, en co n tran d o-se j á no Antigo Testam ento e no ju d a ísm o
incipiente em contextos sem elhantes: “Pois Tu, D eus, tens nos provado e
purificado, como é purificada a prata [...]” (tradução de Lutero), j á confessa e
agradeee o salmista.^®® “Eis que eu te acrisolei, m as não como prata, m as
provei-te n a fornalha da m iséria” (tradução de Lutero), diz D eus p ara Israel
em Is 48.10. A sabedoria ju d a ic a transform a-o em um princípio: “Como o
crisol prova a prata; e o forno, o ouro, assim o Senhor prova os corações” (Pv
17.3; tradução de Lutero). A s s im s e n d o , s o f r im e n t o s n ã o s e c o n s t it u e m e m s in a is
d o a b a n d o n o d e D e u s , m a s , a o c o n t r á r io , c o m o p r o v a ç õ e s e n v ia d a s p o r e le , c o m o
a t e s t a d o d a e le iç ã o . No fogo, o ouro é comprovado como puro; na fornalha da
hum ilhação, as pessoas que são aceitas (ôeKtoí) (Sir 2.5). De forma surpreen­
d e n tem e n te e stre ita , a IP e a p r o x im a -s e tam b é m de novo ã S a p ie n tia
Salomonis.^®^ Em Sab 3.5s (diretamente em conexão com a “esperança cheia
de im ortalidade”, 3.4b; cf. IP e 1.4!), igualm ente são correlacionadas prova­
ções e a su bsequ ente distinção d a d a por D eus: “[...] e depois que (sc. os
justos) sofreram leves correções, serão cum ulados de grandes bens, porque
D eu s os põs à prova^^® e os achou dignos de si; provou-os como se prova o
ouro na fornalha”.^®®

À primeira interpretação sapiencial do sofrimento como teste e pro­


vação, nos quais é necessário afirmar-se, seguir-se-ão outras, teolo­
gicamente mais profundas. E, não obstante, também essa primeira
interpretação é importante, pois ela ajuda a colocar as hostilizações,
aparentemente sem sentido, numa relação com a vontade de Deus,
dando-lhes dessa forma um primeiro sentido. Tal interpretação da
situação livra os destinatários do papel deprimente de meras vitimas
de calúnias e perseguições. Interpretado como teste e purificação, o
sofrimento passa agora a representar um desafio, e faz-se necesséiria
intensa atividade para subsistir como fiel na situação. Dessa forma,
vem ã tona até um momento competitivo na provação. Isso é ainda
ressaltado pela indicação do prêmio a ser conferido aos que conse­
guirem passar pela prova: os que agora são caluniados e insultados
receberão “louvor, glória e honra” na revelação de Jesus Cristo, ou

SI 66.10; os V . l l s descrevem então essas provações.


Cf. a Introdução, p. 36ss; veja também os predicados em 1.4; aqui reside mais uma
evidência para a proximidade da IP e com o judaísm o helenista, justamente também
para com suas tradições sapienciais.
èmípaoei.' - cf. os neLpaopoí em IP e 1.6.
èôoKÍpctoer' - cf. o rò ôoKLpLov em IP e 1.7.

81
seja, a revelação de Deus ao final dos tempos inverterá completamen­
te as hierarquias dessa realidade (cf. Lc 1.49-53).

Em relação a isso, deve-se observar que ttlotlç não representa unica­


mente a instância pela qual Deus protege os que creem (assim em
1.5), mas que o termo eontém aqui um momento ativo; como fidelida­
de, essa fé também pode ser colocada ã prova e ser premiada pelo
reconhecimento de Deus, quando nela se subsiste. A especifieação
cronológica desse reconhecimento divino - “na revelação de Cristo”
(IPe 1.13; cf. 4.13) - torna claro que a realidade do mundo vai na
direção de uma meta determinada por Cristo e que é a partir dessa
meta que a pergunta pelo ganho ou perda da vida deve ser avaliada.
Aqui, no início, esperança e sofrimento são simplesmente justapos­
tos. Por isso a IPe conclama aqui para a alegria, apesar do sofrimento
(sendo que o sofrimento é ainda relativizado por ser transitório). Essa
perspectiva modificar-se-á nos versículos subsequentes: a tribulação
será gradativamente considerada em toda a sua intensidade, sendo
que, nesse processo, tanto o sofrimento como a alegria serão de tal
forma justapostos, que a íntima relação entre sofrimento e graça fique
cada vez mais claramente realçada. Dessa maneira, a expectativa em
relação aos destinatários tanto pode ser de alegria no sofrimento,
quanto, em último caso, até de alegria por causa do sofrimento. Nessa
direção indicam os versículos que seguem, os quais retomam o moti­
vo da alegria.

1.1.3 Crer sem ver (1.8-9*)

V. 8: A quem [sc. Jesus Cristo], apesar de não o terdes visto,


amais; no qual, não vendo agora diante dos olhos, mas
crendo, exultais com alegria indizível e transfigurada,
V. 9: obtendo [assim] o fim da vossa fé, a salvação das almas.

* L ite r a tu r a s o b r e I P e 1 .8 -9 : DAUTZENBERG, G. Hcotripía xl/uxwv (IPetr 1,9). B Z N F


8, p. 262-276, 1964; FELDMEIER, R. Seelenheil. Überlegungen zur Soteriologie
und Anthropologie des 1. Petmsbriefes. In: SCHLOSSER, J. (Ed.). T h e C a th o lic
E p is tle s a n d t h e T ra d itio n . Leuven, 2004. p. 291-306. (BEThL 176); FINK, P. R. The
Use and Significance of En Hoi in I Peter. G r a c e J o u r n a l 8, n. 2, p. 33-39, 1967;
MARTIN, T. The Present Indicative in the Eschatological Statements of I Peter
1:6,8. J B L 111, p. 307-312, 1992.

V. 8 Novamente o tema da alegria é desenvolvido em oposição ao pre­


sente. Nesse caso, obviamente não em oposição às “provações gerado­
ras de tribulação”, mas em tensão com a ausência de Cristo no presen­
te e assim, de uma maneira geral, com o encobrimento daquilo que a

82
fé espera e naquilo em que confia.^°° Assim, essas provações são nova­
mente - bem ao modo do intuito poimênieo-consolador da carta - en­
globadas pelo conforto da salvação e, dessa forma, destituídas de sua
arbitrariedade destrutiva. Isso ocorre pelo fato de o autor tomar como
seu ponto de partida o amor presente da comunidade pelo Cristo não-
visíveP®^ sendo que a primeira afirmação com o aoristo oÍ)k lôóvieç pro­
vavelmente se refira ao fato de ela não ter conhecido o Jesus históri-
co302^ enquanto que a segunda, com o presente jifi ópôyteç, ã presente
invisibilidade de Cristo. Nessa confiança de fé no Cristo oculto, a opo­
sição entre presença e ausência está sobrepujada pela relação pessoal
com ele. Isso é imediatamente absorvido na autocompreensão dos que
creem, na medida em que agora sua fé e seu amor são interpretados
como comunhão com o Cristo não-acessível aos olhos. Na fé e no amor,
aquele que (ainda) está ausente (já) está presente para eles - e por isso
seu momento atual encontra-se repleto de alegria. Mais ainda: quan­
do essa alegria, novamente expressa por um tempo verbal presente, é
designada como “indizível” e “transfigurada”, então estamos diante de
predicados escatológicos. Os cristãos vivem por meio de fé e alegria já
agora, “entre os tempos”; eles participam já no presente do júbilo do
final dos tempos.

V. 9 Também o versículo seguinte, que fala da obtenção da salvação,


emprega o particípio presente, deixando assim claro que os “renasci­
dos” já participam agora da salvação futura, que, como “fim da fé”,
determina o presente^°^, dando-lhe uma perspectiva. Chama a aten­
ção a expressão otoTTipLa “salvação das almas”, que na literatura
antiga aparece, nessa forma, pela primeira vez na IPe (1.9). Tuxij pa­
rece designar na IPe o correlato antropológico da relação com o mundo
por parte de Deus, a “alma”, a saber, por um lado como receptora do
agir salvífico libertador (1.9; 2.25; 4.19), por outro, como o si mesmo

Em Hb 11.1-3 essa confiança no que não se vê é praticam ente a definição da fé;


coisa sem elhante tam bém é dito em Jo 20.29 pela bem -aventurança dos que não
viram e, mesmo assim, creram (cf. também 2Co 5.7; Rm 8.24s).
Jesus C risto com o objeto do am or é raro no Novo Testam ento; com exceção do
Evangelho de João (Jo 8.42; 14.15, 21, 24; 21.15-17), encontra-se só mais um a vez
em E f 6.24 (cf. também Just, Apol 11,13).
Cf. E LLIO TT, 2000, p. 342: o o i j k i5ávx&; seria “a p ro p ria te f o r b e lie v e rs o f th e
p ostapostolical p e rio d w ho hat learned o f Jesu s only th rou gh th e procla m a tion o f the good
new s (1:12, 25; 4 :1 7 )”[ “apropriado p a ra crentes d o p e río d o pós-apostólico, qu e tivessem
aprendido de Jesus som ente p o r m eio da p rocla m a çã o das boas-novas (1.12, 25 ; 4 .1 7 ”)].
KopiCópevoL é particípio presente e provavelmente não pode ser simplesmente traduzido
como futuro (cf. BROX, 1993, p. 6 6 s; FRANKEMÖLLE, 1987, p. 34). Como futuro
(“obtereis”) traduzem Lutero, a Bíblia Sagrada (Tradução da CNBB), entre outros; a
Bíblia de Jerusalém, o Almeida (versão revista e corrigida), entre outros, traduzem no
presente (“obtendo”). Também a referência seguinte aos profetas (v. 10-12) tem como
claro objetivo apontar para o tempo presente como o tempo de salvação já iniciado.

83
purificado pela obediência (1.22), subjugado a Deus (4.19) e a ser pro­
tegido contra as “paixões da carne” (2.11).

Excurso 4; Alma e salvação das almas na IPe


N a maioria dos comentários, apesar de todos os indícios indicando em
outra direção, qualquer relação entre a IPe e u m a concepção de alm a caracte-
risticamente grega é rejeitada de forma categórica (e com isso também a suposi­
ção de que em owrnpCa i|íu)(wv o assunto gire em tomo da salvação das almas).
Nesse processo, aquilo que n a IPe se pretende designar com i|;uxfi não é extraí­
do primariamente da própria carta, antes coloca-se ã frente da interpretação
u m a dedução histórico-traditiva para, a partir dela, inferir então que a “alma”
seja n a IPe meramente o equivalente para vida, resp. para o pronome pessoal.
Exemplo clãssico disso é mostrado pela pesquisa de Dautzenberg sobre a ex­
pressão owTTjpía reiteradamente citada até os mais recentes comentários
de forma aprobatória.^'’^ Dautzenberg chega ao seguinte resultado: “A tradição
judaico-cristã subjacente a IPe 1.9 não oferece nenhum suporte para u m a apre­
ciação da alm a como a essência mais elevada no ser hum ano e, sim ultanea­
mente, em oposição ao corpo”.
Um olhar mais atento revela, contudo, que a argumentação é frágil, um a
vez que Dautzenberg só considera de antemão a “tradição judaico-cristã”, sendo
que “judaico” para ele significa sobretudo os escritos de Q um rã (redigidos em
hebraico e aramaico), não, porém, os escritos do judaísm o de fala grega, espe­
cialmente as obras de Filo de Alexandria, nas quais, em todos os casos, se
encontra um a doutrina desenvolvida sobre a alma.^°^ A argumentação de Daut-

Cf. D A U T Z E N B E R G , 1964. Em su a m a is re c e n te p u b lic a ç ã o so b re o te m a


(D AU TZE N B E R G , G. V erb ete S eele IV. N eues T estam en t. In; TR E . B erlin ; New
York, 1999. v. XXX, p. 744-748), D autzenberg, é verdade, não form ula m ais de
form a tão apoditica, p. ex., em relação a IP e 2.11. Por outro lado, tam bém não
p ersegu e m ais d etalh ad am en te a pergu n ta pelo sentido exato de i((uxií no Novo
Testamento. As pesquisas mais antigas de Dautzenberg, no entanto, são citadas até
os dias atuais, razão pela qual o que segue representa um a controvérsia com as
teses dessas obras.
Isso vale para os com entários de Goppelt e Brox até o mais novo com entário de
ELLIOTT (2000, p. 344). BROX (1993, p. 57) coloca como fundamentação o seguinte:
“A concepção da alm a im ortal, contrária ao corpo, que representa aquilo que os
seres humanos possuem de melhor e mais duradouro, não é conhecida ali (sc. no
judaísmo incipiente e no cristianismo primitivo). Tal afirmação seguramente é errônea
em relação ao judaísm o helenista (c f só Filo), mas também duvidosa em relação ao
cristianismo primitivo. Também nesse caso a questão levantada não é suficientemente
abrangente: é evidente que na IP e não se encontre a mesma concepção de alma que
no platonismo médio, mas vale a pena refletir por que, afinal, essa carta fala tanto
de alma quando trata da relação com Deus (v. abaixo).
D AUTZENBERG, 1964, p. 274.
Sobre a concepção da alm a durante o judaísm o no tempo do ségundo templo, cf.
STEMBERGER, G. Verbete Seele III. Judentum . In: TRE. Berlin; New York, 1999.
V . XXX, p. 740s, o qual mostra que a “doutrina da alma da filosofia popular helenista”

é adotada no ju daísm o da diáspora e aceita cada vez m ais tam bém no ju daísm o
palestinense; tam bém conterrâneos da IPe, como os fariseus e Josefo, Stemberger
conta entre os que acatarEun referido ensino. Sobre a concepção de Filo, v. também
as colocações que se seguirão nesse excurso.

84
zenberg reside, portanto, num a petitio principii, um a vez que, em razão da delimi­
tação do material usado para comparação, o resultado já se encontra determi­
nado de antemão. A isso podem ser acrescentadas ainda outras inexatidões.
Em contraposição a ele, u m a análise mais exata das passagens em que a IPe
fala da i|a)xií apresenta um quadro claramente diferente. Já em 1.9, a fala sobre
a ocoTripía ();i)xcSy lem bra outros textos neotestamentários como Mc 8.35 - mas,
u m a vez desconsiderando a pergunta se também nos evangelhos o termo vl^ux^í
não significa certamente mais do que apenas “vida” (cf. Mt 10.28), para qualquer
leitor ou ouvinte grego, considerando o pano de fundo da antiga concepção da
alma (também corrente entre o judaísm o da diáspora), a menção dessa expres­
são deveria evocar com algum a probabilidade a concepção da “salvação da alm a”,
tanto mais se fosse, como n a IPe, o resum o da m ensagem salvífica sobre o
renascimento para u m a herança incorruptível (1.3s), contraposta à transitorie-
dade de toda a carne (1.23s).
Isso é confirmado justamente teimbém n a consideração da literatura ju -
daico-helenista, mormente os escritos de Filo®°®, que Dautzenheg desconsiderou,
mesmo que ela se encontre bem mais próxima à IPe que os escritos de Qum rã
por ele em pregados. O filósofo da religião judaico não em prega a expressão
incisiva ocotripía )j;Dxc3y, m as refere-se em inúm eras passagens á salvação da
alma: Êx 15.1 (a destruição dos egípcios por Deus) ele interpreta de tal forma
que D eus dá assistência à alm a n a luta contra as paixões e instintos irracio­
nais, agraciando-a, dessa forma, com a acorripLa (Filo, Ebr 111). A interpretação de
Filo da história da partida de Abraão (Gn 12.1-3) inicia com a notória constatação:
“Deus, que quer purificar (Kaêfipai) a alm a das pessoas, dá-lhe em primeiro lugar
a oportunidade para a salvação (ocotripía) por meio da transferência de três luga­
res: do corpo, da percepção sensitiva e da palavra pronunciada” (Füo, MigrAbr 2).
Essas duas referências são particularmente reveladoras porque não fa­
lam unicamente sobre a salvação das almas, mas porque ainda a explicam adi­
cionalmente de tal forma que evocam diretamente as duas passagens seguin­
tes, nas quais a IPe fala sobre ela: IPe 1.22 exorta para que as “alm as” sejam
purificadas no serviço à verdade. E o combate na alm a contra as paixões e a
falta de controle, sobre o qual Filo fala reiteradamente (cf. além de Filo, Ebr 111,
também Filo, QuaestGen 1V.74 e, sobretudo. Filo, O pM und 79-81), tém u m a
correspondência em IPe 2.11, em que é tratado o combate das paixões camads
contra a “alma”. Salvação da alma, purificação da alma, combate entre as pai­
xões e a alm a - tais coincidências relativamente claras entre Filo e a IPe mos­
tram que esta carta, também aqui influenciada pelo judaísm o helenista, real­
mente pensa em algo semelhante a u m a “alma” como o “si mesmo superior” dos
seres hum anos.
Tal recepção do conceito da alma também se encontra, ademais, em ou ­
tros escritos do judaísm o incipiente. A Sabedoria de Salom ão diz que D eus

Sobre a controvérsia com Dautzenberg, cf. FELDMEIER, 2004 (S eelen h eü ), p. 291-


306, esp. 292s.
Isso, porém , não vale só para Filo; cf. TestJob 3.5, em que a oração de Jó, que
abandon ou os ídolos para vo ltar-se ao Deus de Israel, in icia com as seguintes
palavras: “Meu Senhor, que vens para a salvação de minha alma” (KÚpié pov ó èttI tü
oioTTipLa ific èpfiç ilíuxfic èlSoív).
Não se pode comprovar que a IP e tenha conhecido Filo, mas a intimidade da carta
com tradições judaico-helenistas, como encontradas sobretudo em Filo, é inegável,
como m ostrei no exempo da m etáfora do ser-forasteiro (FELDMEIER, 1992, p. 60-
72). Ela se mostra também novamente nos temas ora abordados, tanto no da salvação
das almas quanto no do renascimento (cf. abaixo o excurso sobre “Renascimento”, à
p. 1 14ss).

85
soprou um a ij/uxií no ser humano (15.11), que aqui se torna pesada em virtude do
corpo passageiro (9.15), que é m anchada pelo injusto (14.26), enquanto que as
almas dos justos encontram-se nas mãos de D eus (3.1), tendo por isso espe­
rança na imortalidade (3.4). O 4° Livro dos Macabeus, redigido na Síria, mais ou
menos ao tempo da IPe, distingue claramente entre a alm a dada por Deus e o
corpo (13.13) e ali são também as almas que recebem os castigos divinos (13.15)
e as recompensas (18.23).^“ Ambos os escritos dão testemunho da difusão das
concepções judaicas sobre a alma. Seu testemunho também combina bem com
outras passagens em que a IPe emprega o termo i|iuxií, mesmo que essas, con­
sideradas isoladamente, sejam menos inequívocas: assim Cristo - isso perfaz a
meta do hino no capítulo 2 - é designado como pastor e bispo das “alm as”, ao
qual se converteram os crentes, afastando-se dos erros cometidos n a antiga
vida (2.25). Em 4.19 é dito que os cristãos perseguidos devem encomendar suas
“alm as” ao fiel Criador - também aqui a “alma” parece ser distinguida de toda
existência terrenal-corpórea. A única exceção aparenta ser a expressão de 3.20,
segundo a qual oito “alm as” da arca de Noé foram salvas do dilúvio. M as tam­
bém nesse caso um olhar mais atento mostra que essa cena, conscientemente
m ontada como “antítipo” da salvação pelo batismo, mencionado no versículo
seguinte, trata de algo mais que meramente vida física (cf. abaixo, p. 173).

Com a referência à concepção da alma também se pode tomar mais


clara a concepção de uma vida “não-passageira”, que vá além dessa
realidade transitória. A superação da transitoriedade, é verdade, não
é fundamentada, como no platonismo da época, com a qualidade
metafísica do ser humano conquanto essência racional indestmtí-
veP‘2, mas escatologicamente por meio da ação salvífíca de Deus em
Cristo, que como “esperança viva” jã determina o presente das pessoas
que creem. Mesmo assim, encontram-se também na IPe resquícios
de uma antropologia dualista: a alma participa, como destinatéiria da
salvação, na glória divina e, dessa forma, também na imortalidade de
Deus (v. acima), enquanto que a carne é decididamente a esfera da
transitoriedade (1.24), do sofrimento (4.1) e da morte (3.18; 4.6). Uma
nota de destaque merece o enunciado fundamental de 2.11, que in­
troduz a segunda parte principal. Aqui fala-se das concupiscências
carnais que travam batalha, não, porém, como diria Paulo (cf. G1 5.16s),
uma batalha contra o Espírito (divino), também não, como diria Filo,
uma batalha no interior da alma^'^, mas uma batalha contra a alma

O corpo não é desvalorizado em 4M acabeus, m as é por m eio da alm a que o ser


humano se relaciona com Deus (KLAUCK, 1989, p. 672s). Sobre a difusão adicional
de um a antropologia dicotômica, v. tam bém ApkMos 13.6; 31.1, 4; 32.4. Segundo
DOCHHORN, J. D ie A poka lypse des Mose. Text, Übersetzung, Kommentar. Tübingen,
2005, trata-se, nesses casos, de textos pertencentes à redação final da ApkMos. Na
camada mais antiga, a ApkMos ainda não é dicotômica. Isso representa um exemplo
de como tais concepções logravam adquirir influência no judaísm o antigo.
Cf. só o tratado pseudoplatônico Axiochus, cujo tema vem a ser a fundamentação da
imortalidade da alma no confronto com o medo humano frente ã morte. Ali é falado
sobre o Otlov irveôpa, que estã dentro da alma e fundamenta a sua imortalidade (Ps-
Plat, Ax 370c). Em Plutarco, cf., p. ex., Plut, SerNum Vind 550B-C.
Segundo Filo, OpMund 81, trata-se nessa batalha, travada pelas iraeiôi' ópuaí contra
as àperaí, de uma guerra no interior da alma (TióXepoç Kaxà <|<uxf|v)-

86
(2.11)! Aqui encontra-se uma clara antropologia helenizada^'“^, que,
contudo, não é desenvolvida adiante pela IPe no sentido de uma
dicotomia antropológica, mesmo que indicios para uma tal concepção
se encontrem também em outras passagens (cf. 3.4; 4.2). Para a IPe é
suficiente ter encontrado, com o termo uma categoria para o si
mesmo humano como sendo o outro diante de Deus, com a qual pode
fazer uma ligação com o horizonte associativo desse termo junto aos
seus destinatários residentes no âmbito da cultura e fala gregas, a
saber, (1) a afinidade da íjíuxií com o divino, que, por isso mesmo, (2)
deve ser libertada e “purificada” de toda concupiscência e desejo como
atrelamento ao mundo, e que (3), dessa forma, também está em con­
dições de sobreviver ã morte.^'® A IPe constitui-se, por essa razão,
num dos escritos pioneiros de uma concepção cristã da alma e cabe­
ria perguntar se o conceito da alma não mereceria reflexões teológi­
cas adicionais, uma vez que contribuiu por praticamente dois milê­
nios para a plausibilidade da antropologia e soteriologia cristãs.

1.1.4 Os profetas (1.10-12*)

V. 10: Por essa salvação os profetas procuraram e inquiriram,


os quais profetizaram sobre a graça a vós destinada,
V. 11: investigando qual o tempo, respectivamente quais as
circunstâncias de tempo para as quais havia aponta­
do o Espírito de Cristo, predizendo os sofrimentos ne­
las [destinados] a Cristo e as glórias [que viríam] de­
pois deles.
V. 12: A eles foi revelado que não serviam a si próprios, mas
a vós, [a saber] em relação ãquilo que agora vos foi
pregado por aqueles que vos anunciavam o evange­
lho no Espírito Santo enviado do céu, coisas essas que
[inclusive] os anjos pretendem perscruteir.
* Literatura sobre IPe 1.10-12: CIPRIANI, S. Lo “spirito di Cristo” come “spirito di
p rofezia” in I Pt. 1,10-12. In: LO R IZ IO , G.; SC IP PA , V. (E d s.). Ecclesiae
Sacramentum. (FS A. M a rra n z in i). Neapel, 1986. p. 157-167; H E R ZE R , J.
A ltte sta m e n tlic h e P ro p h e tie u n d die V e r k ü n d ig u n g d e s E v a n g e liu m s .
Beobachtungen zur Stellung und zur hermeneutischen Funktion von IPetr 1,10-
12. BThZ 14, p. 14-22, 1997.

A alma é algo assim como a instância mediadora entre o universo corporal e a esfera
do divino; cf., p. ex.. Plut, G enSocr 22,591Dss.
Sobre a concepção de um a purificação das almas difundida no platonism o, cf. as
explanações de DÖRRIE, H.; BALTES, M. D ie p h ilo s o p h is ch e L e h re des Pla tonism us.
Von der “Seele” als der Ursache aller sinnvollen Abläufe. Stuttgart; Bad Cannstatt,
2002 (6/2). p. 271-276.

87
V, 10 A salvação introduzida por Cristo é imediatamente ligada à
história da salvação veterotestamentária. Isso é típico para toda a teo­
logia cristã primitiva^^®, havendo uma predileção pela referência aos
profetas (cf. Lc 24.25-27; At 3.18 e outros). A atenção maior é dirigida
- contrastando com o mainstream do judaísmo da época - não ã Torá,
mas ao aspecto profético da tradição bíblica. O Antigo Testamento é
lido como profecia sobre o evento de Cristo^^^ , sendo que a IPe cita
especialmente o livro de Isaías (como a principal testemunha das pro­
messas bíblicas).®^® A concepção de que os profetas só tinham função
preparatória em relação ã situação da comunidade encontra-se tam­
bém em Qumrã^*^ e em lEn 1.2. Na medida em que os profetas só têm
em mente, com suas profecias, aquilo que se cumpre nas comunida­
des (IPe 1.12 fala, por isso, explicitamente de “servir”), a situação dos
seguidores de Cristo, socialmente marginalizados e estigmatizados,
tende a ser valorizada.

V. 11 A atividade dos profetas é designada de ckCtitelv e èpauvâv, de


“procurar” e “inquirir”. Com isso se pretende designar um nível de
conhecimento subordinado à presente situação. Mas não somente
isso; na medida em que o tempo atual é aquele ao qual os profetas se
referiram antecipadamente, o qual procuravam inquirir, esse presente
muito provavelmente®^® deve ser entendido como um tempo em que o
que foi profetizado começa a se realizar. O verdadeiro sujeito das pro­
fecias, contudo, não são as diversas pessoas dos profetas, mas o uno
“Espírito de Cristo”. Esse Espírito estava, na forma de “predição”, atuan­
te nos profetas. Assim é destacado que os atos de profetizar no passa­
do e de proclamar a salvação no presente, sobre os quais fala o
versículo seguinte, novamente recorrendo ao Espírito, devem-se a uma

H á duas m aneiras de fazé-lo: ou se constata brevem ente que o evento salvífico


ocorreu “segundo as Escrituras” (cf. o fragmento tradicional antigo de IC o 15.3-5)
ou se citam os textos correspondentes (cf. Mc 12.10s; 14.27; 15.24, 29, 34; em Mt
tal processo redunda na form ação de citações de reflexão).
Cf. Rm 1.2; Hb 1.1; Mt 26.56; Lc 1.70; 18.31; Ap 10.7; até Moisés é contemplado
sob o aspecto da profecia: cf. Lc 24.25-27; At 3.2 Iss.
Cf. IP e 1.24s; 2.6, 8 , 9, 12, 22-25; 3.14s; 4.14; em outras passagens os profetas
são mencionados só mais uma vez na citação de Oséias em IP e 2.10.
Cf. 1 QpHab VIL 1-5, em que as predições dos profetas são interpretadas em relação
ao presente vivido pela comunidade: “E Deus disse a Habacuque que ele escrevesse
o que havería de acontecer sobre a últim a geração. Mas, sobre a consum ação dos
tem pos, Ele não lhe prestou inform ações. E quando se diz: ‘a f im d e q u e p o s s a
apressar-se qu em lê ’, sua interpretação relaciona-se com o Mestre da Justiça, a quem
Deus deu a conhecer todos os segredos das palavras dos seus servos, os profetas”;
sem elhantamente em 1 QpHab 11,5-10.
Contra HERZER, 1997, p. 18s, para o qual a continuidade da profecia veterotesta­
mentária reside no fato de também para os cristãos a salvação ainda se encontrar
no futuro. Isso é correto, mas deixa de perceber a diferença entre os dois estados,
na medida em que se realiza agora na pregação do evangelho aquilo que pesquisaram
os profetas (cf. o distintivo vvv no v. 12, cuja relativização por Herzer não convence).

88
e mesma ação divina, fazendo-se presente em ambos uma vontade
divina uniforme, que leva a termo a sua salvação.

O conteúdo dessa profecia sobre Jesus Cristo é, como de costume,


paixão e ressurreição, embora na variante escolhida pela IPe, por estar
aberta (não por último também por intermédio do raro plural em rela­
ção ao sofrimento e á glória) para uma aplicação sobre a tribulação
dos crentes em provação: “os sofrimentos [destinados] a Cristo e as
glórias [que viriam] depois deles”. A sorte de Cristo é tomada transpa­
rente para a interpretação da situação no presente: para os que per­
tencem a Deus, os sofrimentos (como tribulações provocadas pelo
entorno) e a glória (como dádiva de salvação por parte de Deus, cf.
5.4, 10) não podem - como também em Cristo - ser separados.

V. 12 Sublinha-se mais uma vez, expressamente, que os grandes ho­


mens de Deus do passado não tinham senão Junção de serviço em
relação à comunidade, nem tão grande e sob provação: seu anúncio
referia-se exatamente ao que (aüxá) nesse momento era pregado ãs co­
munidades como evangelho. Mesmo os anjos®^^, que evidentemente
já estão “no céu”, gostariam de vero que os crentes já agora (vw) recebe­
ram por meio da pregação ocorrida entre eles^^^, que - e isto é particu­
larmente sublinhado - é determinada e provocada pelo Espirito Santo
enviado do céu. A partir disso os contrastes apresentados pelo v. 8
recebem novo impeto: a distância do “ainda-não-ver” é sobrepujada
pela relação com a salvação “já agora” real, produzida pelo Espírito.

Pela primeira vez são também unificados aqui glória e sofrimento no


destino de Jesus, mesmo que inicialmente só no sentido de uma pro­
gressão temporal. Com isso jã se torna claro que, na realidade deter­
minada por Cristo, o sofrimento presente possui um reverso, a glorifi­
cação futura, realizada já em Cristo e por isso determinante para a
autocompreensão dos seus seguidores.

Cf. ACHTEMEIER, 1996, p. 65: “Indeed, his p a ssion, d eath a n d subsequent resurrection
sh ow th e w ay p re s e n t su fferin g is related to fu tu re glory, a n d th u s p ro v id e C hristians
w ith a m odel f o r the w ay they are to live a fa ith fu l life in the m idst o f a hostile s ociety ”. [Em
verdade, sua paixão, m orte e subsequente ressurreição m ostram a form a como o
sofrimento atual é relacionado com a glória futura, e por isso oferecem aos cristãos
um modelo de como devem viver uma vida crente em meio a uma sociedade hostil.)
É possível que esse argumento receba peso adicional pela rivalidade entre pessoas
e anjos (sobre esse motivo, cf. SCHÄFER, P. Rivalität zw isch en E ngeln u n d M enschen.
U ntersuchungen zu r rabbinischen Engelvorstellung. Berlin; New York, 1975).
A ltikovouv é um imperfeito, i. e., expressa a duração da ação, enquanto que
encontra-se no aoristo, designando, portanto, pontualmente a pregação do evangelho,
in iciada num tem po determ inado. Não convém igu alar as duas form as de ação,
imperfeito e aoristo, como “processos do passado” (Cf. HERZER, 1997, p. 21).

89
Resumo (IPe 1.3-12)

“Esperança” é uma categoria central para toda a carta®^"^ e é emprega­


da diversas vezes na primeira parte da carta como ponto de partida ou
meta da argumentação.^^® Porém o assunto não gira exclusivamente
em tomo do que ainda está por vir. Se a IPe enfatiza que em Deus o
futuro já está guardado e à disposição (1.4s), se os crentes jubilam
porque a salvação, a “meta da fé”, já está presente, isso mostra que é
importamte para o autor apresentar o conteúdo da esperança cristã
como algo que na realidade de Deus (1.4: “nos céus”) já está presen­
te, determinando, assim, também o presente dos que lhe pertencem.
Por meio dessa nova moldura interpretativa, as experiências dos des-
tinatáirios são qualificadas de maneira nova; o tempo presente recebe
uma nova perspectiva. Como “renascidos para uma viva esperança”,
os cristãos têm coparticipação na mudança de época ocorrida em Cris­
to (cf. sobretudo 1.3s); sua vida é existência escatológica determina­
da por esse evento. A vitória sobre a morte por intermédio da ressur­
reição é interpretada na IPe como participação na vida divina impe­
recível (cf. especialmente 1.3s em conexão com 1.23-25). Dessa ma­
neira não se tira somente do sofrimento sua arbitrariedade destrutiva,
mas se lhe dã inclusive uma interpretação positiva. A tensão, apesar
disso ainda existente entre os dois estados de existência tão contrá­
rios, é sobrepujada pela alegria antecipada dos crentes, que, em vir­
tude da sorte de Cristo, têm consciêneia da salvação já presente em
Deus. Ao mesmo tempo, os destinatários são certificados de que o
poder de Deus já agora os preserva e protege (cf. 1.5).

A presença lado a lado - aparentemente paradoxal - de sofrimento e


alegria explica-se, portanto, a partir da dupla relação dos crentes, por
um lado com o Deus que os vocaciona, e por outro, com o entorno que
os rejeita. Na existência cristã, poder-se-ia dizer, trava-se uma batalha
entre a experiência de sofrimento, presente e opressiva, por um lado, e a
alegria antecipada da esperança, por outro. Nessa situação, o principal
interesse da IPe®^® é fortalecer a alegria antecipada da esperança, de
fazer com que a orientação pela sedvação de Deus, prometida e já an­
tecipada na esperança, se tome o centro da autocompreensão e da
conduta de vida dos seus destinatários. De maneira análoga, tam-

Cf. 3.15, em que é esperado dos cristãos que deem razão da “esperança que há em vós”.
Diretamente sobre esperança, resp. sobre esperar, a IP e refere-se no início da eulogia
em 1.3, no início da parénese (1.13) e no término de sua fundamentação (1.21).
326 paj-a as tradições do judaísm o incipiente (sobretudo 2Bar) e do cristianismo primiti­
vo (sobretudo Mt 5.11-12par.; Lc 6.22s; Tg 1.12), em pregadas nesse contexto, cf.
NAUCK, W. Freude im Leiden. Zum Problem einer urchristlichen Verfolgu ngstra­
dition. Z N W 46, p. 68-80, 1955.

90
bém o louvor hínico com sua exaltação da ação de Deus (1.3-5) visa à
reação humana presente, descrita em 1.6-9, que reside em louvor e
“alegria indizivel e transfigurada” (1.8; cf. 1.6).

1.2 Renascimento e nova conduta (1.13 - 2.3)

Com a conjunção ôió, empregada só aqui na IPe, tiram-se em 1.13 -


2.3 as consequências do louvor pela ação salvifica divina: a “esperança
viva”, surgida com o renascimento (1.3ss), é reclamada agora dos des­
tinatários, pelo imperativo “esperai inteiramente”, como uma orien­
tação ativa de conduta e de existência (1.13), que se afirma num modo
de viver diferenciado do mundo circundante (1.14-2.3). Assim como
já na eulogia, também aqui são ditas em linguagem altamente densa
e com metáforas próprias, parcialmente sobrecarregadas (cf. 1.13; 2.2),
coisas essenciais sobre a existência cristã, sendo que agora o que se
encontra no centro é a relação entre dádiva e compromisso, entre salva­
ção e santificação. Isso ocorre em três sequências de argumentação,
sendo que cada qual, à sua maneira, torna claro que o compromisso
de “obediência”, reiteradamente repetido na IPe (1.14, 22; cf. 1.2),
juntamente com uma “conduta (de vida)” correspondente^^'^, decor­
rem como que normalmente a partir da promessa da salvação.

a) No primeiro trecho (1.14-21), ê deduzida a necessidade da diferen­


ciação em relação à conduta mantida até o presente: a vida daquelas
pessoas que “esperam inteiramente” (v. 13) não pode ser determina­
da pela adaptação aos padrões vigentes^^®; a orientação em Deus e na
sua graça transforma, por essa razão, os renascidos simultaneamen­
te em “filhos da obediência” (1.14). Positivamente isso é designado
com o termo da santidade no sentido de um comportamento que cor­
responda ao Deus santo (1.15s). Essa relação com Deus, constitutiva
para a existência de fé, é ainda melhor definida de duas maneiras: os
que creem vivem “em temor” diante de Deus, o juiz (1.17), e eles vi­
vem em fé e esperança diante de Deus como o Salvador (1.18-21).

b) No segundo trecho (1.22-25), o tema veterotestamentário da santidade


e santificação é retomado em forma helenizada como “purificação da
alma”, uma vez mais relacionado com a ênfase na obediência, de for­
ma que essa é primeiramente determinada em termos de conteúdo, na
forma do compromisso (duplamente acentuado) para o amor mútuo
(1.22). Também isso é fundamentado com a perspectiva de salvação

A IP e emprega para tanto o termo àvctorpocjjri (1.15, 17, 18).


Nas palavras pf) ouoxri|J.ari.{ópevoi subjaz o termo axfpa = forma, figura, atitude, depois
também natureza (cf. Rm 12.2).

91
aberta pelo evangelho, sendo que a metáfora da “regeneração” divina é
empregada agora na figura do renascimento (ocorrido) e interpretada
como superação da escravidão à morte a que está sujeita a vida huma­
na, por meio da “semente incorruptivel” da palavra de Deus (1.23-25).

c) A caracterização positiva da obediência em 1.22 - como compro­


misso para o amor mútuo - é complementada em 2.1 pela negação de
um catálogo de vicios, que arrola as condutas que devem ser evitadas
pelos que creem. Isso é fundamentado com um reiterado acolhimen­
to do motivo do renascimento, que agora (após concepção e nasci­
mento) é desenvolvido na figura extremamente arrojada das “crian­
ças recém-nascidas” que crescem em direção ã salvação pelo “leite
da palavra” (ãoylkòv y ^A-«).

Os três trechos apresentam uma estrutura idêntica: são dominados


por uma exigência parenética, expressada por um verbo finito no im­
perativo (1.13, 17, 22; 2.1s) e precisada por participios que devem ser
interpretados de forma imperativa. Apesar de toda a clareza com que
domina aqui o imperativo, ele é formulado de forma bastante indeter­
minada: esperar, estar preparado, viver de forma santa, comportar-se
em temor, purificar as almas, amar, despojar-se do que é mau, etc. -
constituem exigências fundamentais, mas ao mesmo tempo também
bem abertas e genéricas. Essa parte trata, portanto, ainda menos de
recomendações concretas de procedimento, que se encontram mais
na segunda parte principal da carta. Aqui, na parte introdutória “teoló­
gica”, é desenvolvida inicialmente, de forma fundamental, a relação
interna entre promessa e exigência, sendo que as delimitações negati­
vas em 1.14 e 2.1 circundam a exigência positiva da santificação (1.15s)
e do amor (1.22). A primeira parte principal desemboca na apresentação
da nova existência como comunhão. Também aqui, inicialmente, ainda
é acolhido o imperativo, quando a descrição da “casa espiritual” (2.5),
que se une ã “pedra viva”. Cristo (2.4), que simultaneamente é “pedra
fundamental eleita” (2.6), é ligada ã exigência de deixar-se edificar
como “pedras vivas” (2.5). Logo a seguir, o trecho faz a ponte para a
segunda parte principal por intermédio de uma afirmação em forma de
resumo sobre a nova condição dos que creem como povo de Deus (2.9s).

Considerando-se a proximidade notória para com a teologia pauli-


na®2®, constatável até em formulações isoladas, esse acento concen­
trado numa conduta de vida correspondente à fé, a sobreposição de
indicativo e imperativo, já em meio ao fundamento teológico da carta,
assinalam um deslocamento de acento em relação à tradição pauli-

V. Introdução, p. 37, nota 97.

92
na. “Aqui, ao contrário de Paulo, não se deduz o imperativo do
indicativo anteriormente desenvolvido. Antes, a parênese encontra-
se no início, sendo fundamentada pela referência anexada à vontade
e às ações de Deus.”^^° É bem verdade que a IPe concorda com Paulo
no princípio teológico de que o dom divino precede e possibüita toda
e qualquer autodeterminação cristã - a imagem da regeneração, resp.
renascimento, repetida três vezes (1.3, 23-25; 2.2), não deixa dúvidas
quanto a isso.^^^ Por outro lado, o interesse da IPe (que já chama
atenção na introdução da carta, em 1.2) em mesclar, desde o início, a
promessa da graça divina com a necessidade de uma conduta cor­
respondente, como segundo elemento constitutivo da existência cris­
tã, parece constituir uma característica de muitos teólogos da tercei­
ra geração^®^ - provavelmente como reação a compreensões deforma­
das do anúncio da graça, contra as quais também Paulo já tinha que
lutar.^^^ Nesse ponto também reside uma curiosa semelhança entre a
IPe e as demais “cartas católicas”, que dela diferem em muitos as­
pectos. Convém atentar que essas primeiras afirmações fundamen­
tais em relação à ética não são colocadas no contexto do discurso
sobre o povo de Deus, mas sobre o renascimento. Isso sublinha a
orientação teocêntrica da instrução ética na IPe.

1.2.1 “Esperança comprometedora” (1.13)

V. 13: Por isso - cingindo os lombos de vosso entendimento,


sendo sóbrios - esperai inteiramente pela graça, que
vos será trazida na revelação de Cristo.^®“*

V. 13 A abertura retoma o termo central da esperança, mas com outra


ênfase. “Esperai inteiramente” é o primeiro imperativo neste escrito.
Enquanto em 1.3ss a esperança ainda era totalmente um bem salvífico,
a ser doado aos crentes em virtude de sua “regeneração pela graça”
por intermédio de Deus, ela agora também se transforma em compro-

LOHSE, E. Parânese und K eiygm a im 1. Petrusbrief. Z N W 45, p. 8 6 , 1954.


O p ra e da ação divina mostra-se também na importância da vocação/eleição divinas
(1.1, 15; cf. 2.4, 9).
Exemplo notório é a moldura das recomendações do sermão da montanha; Mt 5 . 1 7 -
20; 7 . 1 5 S S , esp. 2 1 - 2 3 .
=>33 Cf. Rm 3.8; 6.1s.
BAUER, W. G riech isch -d eu tsch es W örterbu ch zu d en S ch riften d es N e u e n Testa m en ts
u n d d e r frü h c h ris tlic h e n L itera tu r. 5. völlig neu bearbeitete Auflage, herausgegeben
von K. Aland und B. Aland. Berlin; New York, 1988. p. 1706 interpreta (|)€ponévtii’
como “que é pregada a vós” . Isso, contudo, combina mal com a afirmação conectada
“na revelação de Cristo” . Mais provável é que originalm ente se tenha pensado na
graça que, na ocasião, seria “trazida ju nto” .

93
misso: o V. 13 reclama dos destinatários o direcionamento ilimitado
da totalidade de sua existência para a salvação prometida por Deus.

Essa ênfase parenêtica ê ressaltada por dois partiápia coniuncta, que


complementam e reforçam o imperativo colocando a conduta resul­
tante da esperança como óbvia. Ao mesmo tempo, a exigência não to­
talmente clara de esperar inteiramente fica, dessa forma, mais precisa.
O sintagma dominado pelo primeiro participio fala - quanto à imagem,
de uma maneira um tanto desajeitada - do cingimento dos lombos do
entendimento. Com o cinto dos lombos encurtava-se, antigamente, a
vestimenta comprida que dificultava os passos. Isso pode tomar-se
metáfora sobre a disposição para a ação, seja em sentido geral^^®, seja -
posteriormente - em sentido especificamente r e l i g i o s o . E s s e último
caso ê também o da passagem em apreço, sendo que a adição de Tf|ç
ÔLayoíaç excede o âmbito da mera imagem. Por meio dessa combinação
pertinente de metáfora e afirmação objetiva - aparentemente um meio
estilístico prezado na IPe^^^-, o autor logra alcançar uma precisão sur­
preendente; a imagem do cingir da veste como expressão para a
disposição imediata de ação é combinada com a capacidade de pensa­
mento e de convicção, ou seja, a disposição para a ação diz respeito ã
pessoa em seu centro pessoal, determinado por pensamento e vonta­
de. Nesse contexto, o participio aoristo aqui empregado toma claro: os
crentes devem se preparar agora, seu pensamento deve ser tomado como
que por uma “sacudida”. No segundo sintagma ê acrescentado o moti­
vo da sobriedade, que se encontra no presente: aparentemente a so­
briedade é uma atitude fundamental que se deve vivenciar e preser­
var. A imagem da sobriedade, valorizada pela IPe^^®, ganha um contor­
no definido pela oposição ã embriaguês. Enquanto esta ê expressão de
descontrole e perda de consciência e, assim, de perda de si mesmo,
“sobriedade” designa a consciência alerta, que não cai na dependên­
cia de turvações surgidas por culpa própria nem de influências estra­
nhas sem valor. Esse chamado ã sobriedade (bem como o chamado pa­
ralelo ã vigüãncia^®®) ê cultivado dentro do Novo Testamento prepon-

Cf. Pv 31.17 no louvor à dona de casa virtuosa.


Em E f 6.14 a figura caracteriza a disposição do rrúles Christianus. Também Êx 12.11
é parcialm en te in terp retad o de form a alegórica, em que o cin gir dos lom bos é
requerido dos israelitas como sinal de sua disposição para o êxodo. Filo (SacrAC 63)
interpreta isso como expressão para a disposição de realizar, em gratidão e honra a
Deus, a passagem das paixões para a virtude; já Lc 12.35, com o disposição para
esperar pelo Senhor (que há de retornar).
Cf. o “leite da palavra” em 2.2.
Nij(|)eiv é term o predileto da IP e - três das seis passagens encontradas no Novo
Testamento encontram-se na IP e (1.13; 4.7; 5.8); as demais estão no Corpus Paulinum
(IT s 5.6, 8 ; 2Tm 4.5); cf. ainda IC o 15.34 e também CorpHerm 1,27.
Em IP e 5.8 e IT s 5.6 ambos são empregados como paralelos.

94
derantemente em contextos escatológicos®"*“ e visa prevenir para que
as pessoas não se deixem enganar e anestesiar pela realidade que está
diante dos olhos.

Com a conotação escatológica da sobriedade e do cingimento da ves­


te (Lc 12.35) também combina a referência ã graça a ser dada na
parúsia. Em outras passagens a IPe acentua a dimensão presente
dessa graça (cf. 2.19s; 5.12), também aqui evocada pelo presente
<|)epo|j,ét'T|v; pela referência ã àTTOKáA,ui|jLç ’IrjooO XpLoxoú, com a qual nessa
passagem, bem como em 1.7 e 4.13, deve estar subentendido o apare­
cimento de Jesus em sua parúsia®'*^ o acento recai sobre o seu cará­
ter futuro, sendo que - como já em 1.3ss - o bem salvífico futuro trans­
forma-se, pela “esperança”, num poder que determina o presente. A
estrutura da frase, explicada acima, sublinha essa qualificação esca­
tológica da parênese: o verbo finito dominante é o imperativo da es­
perança, junto ao qual se alinham as condutas descritas pelos par-
ticípios. Dessa maneira o autor faz nova referência ã promessa da sal­
vação, mas também já estabelece a ponte para a exigência.

1.2.2 Obediência como correspondência


à santidade de Deus (1.14-16)

V. 14: Como filhos da obediência, não vos amoldeis


[mais] às paixões [que dominavam] anteriormen­
te por causa da vossa ignorância,
V. 15: pelo contrário, segundo aquele que vos chamou,
tomai-vos santos também vós em todo o vosso
procedimento,
V. 15: pois está escrito: “Sede santos, porque eu sou
santo” .

V. 14 Os destinatários são chamados de “filhos da obediência”. A


metáfora dos filhos corresponde ã metáfora do pai e faz referência ao
renascimento. Ao mesmo tempo, a isso é ligado agora o compromisso
do filho com a obediência. Ao contrário das associações negativas
imperantes atualmente em relação ao termo obediência, deve-se afir­
mar que a atitude de ajustamento e submissão realizada quando se

Especialm ente claro em IT s 5.6, 8 .


Isso tam bém correspon d e ao sign ificad o dessa expressão no restan te do Novo
Testam ento (IC o 1.7; 2Ts 1.7; cf. sobre isso OEPKE, A. Verbete KaÀúuru ktI.. In:
ThW N T. Stuttgart, 1957 (= 1938). v. III, p. 586). Essa é a razão pela qual não me
parece possível deixar pendente a pergunta se áTroKál.n)/L(; se refere aqui ao Jesus
histórico ou à parúsia, como o faz ELLIOTT, 2000, p. 356.

95
ouve ou ob-edece (ÚTT-aKoúco) alguém não é entendida como negação
da liberdade no contexto neotestamentário, mas como ligação a Deus,
razão imprescindível para que os crentes possam tomar-se realmen­
te livres. IPe 2.16 enfatiza isso na formulação aparentemente para­
doxal de que os cristãos são livres como “escravos de Deus”. Essa
liberdade confirma-se aqui na renúncia às dependências imperantes
na vida de outrora, que a IPe - no típico esquema preto-e-branco da
linguagem da conversão (Ef 4.17-19; cf. IPe 2.9) - caracteriza pelos
termos “ignorância” e “paixões” como cormptas em relação ã cons­
ciência e vontade.

Excurso 5: As paixões
Geralmente se associa a batalha contra as paixões (da carne) em especial
com o afastamento de prazeres sensuais (da gula até a sexualidade). Isso não é
totalmente errado. O controle d a vida instintiva é para toda a ética antiga um
pressuposto de vida hum ana bem-sucedida; isso não vale só para as correntes
“socrãticas” do platonismo, cinismo e estoicismo^''^, m as também para a corren­
te hedonista contrária, p ara Epicuro. Mesm o o filósofo de Kepos “pede por
ascese”^"*®; seu conceito de prazer é restritivo, priorizando o uso da razão ao do
ventre.^"“ Pois todas as filosofias antigas coincidem na opinião de que os ins­
tintos animalescos não-filtrados impedem a liberdade do ser humano para um a
vida autodeterminada; pelo seu desejo, o ser humano transforma-se em escra­
vo daquilo que não corresponde à sua essência, como, p. ex., Epicuro sempre
acentua em sua diatribe da liberdade. “A verdadeira liberdade não é alcançada
pela satisfação de todos os desejos, m as pelo seu extermínio (àvaoKeuTj rfjç
€1TL0D|iLa(;).”3‘*^
A despeito de todas as diferenças, o que une o hedonista Epicuro ao
moralista radical Epiteto é a convicção de que a única possibilidade para alcan­
çar a verdadeira felicidade é o ser hum ano ter controle sobre os seus instin­
t o s . N a crítica dos desejos não se trata, portanto, de u m a repressão com-

Epiteto (50 - 120 d.C.) aconselha abster-se de todos os sentimentos de prazer (r)5o;/ií)
(Epict, Ench 34).
ERLE R , M. S o k ra te s ’ R olle im H ellen ism u s. In; K E SSLE R , H. (Ed.). S o k ra te s .
Nachfolge und Eigenwege. Kusterdingen, 2001. p. 216; “Epicuro reivindica ascese
e refere-se com isso não a um a abstinência radical, mas a um a dosagem sábia”.
Epicuro está interessado, sobretudo, na paz de espirito por contentamento, portanto
no controle racional e na integração dos instintos; o valor m áxim o para ele é a
ataraxia, de form a alguma o excesso.
345
Epict, Diss IV, 1,175; sem elhante Epict, Ench 34.
346
Epicuro argum enta nesse contexto diferenciando o conceito de desejo; “Quando,
pois, dizemos que o desejo é a meta, não nos referimos com isso ao desejo dos que
não têm controle e daqueles que persistem no prazer, eomo pensam alguns que o
ignoram (...) ou entendem mal, mas a não sentir dor no corpo nem distúrbio na
alma. Pois u m a vid a rep leta de prazer não é gerada p or orgias de bebedeiras e
deleites que se seguem um as às outras, tam bém não pelo desfrutar de joven s e
mulheres, de peixes e de todo o resto que um banquete dispendioso oferece, senão
por um a razão sóbria, que perscruta os m otivos de toda escolha e renúncia [...]”
(Epict, Men 131s; tradução de H.-W. Krautz). Epiteto requer, ao contrário, ^éyaç àyóv,
o “grande combate da alma” contra as paixões (Epict, Diss II, 18), com o objetivo de

96
pulsiva da sensualidade, mas da integração dos impulsos animalescos como pres­
suposição para um a vida bem-sucedida. Essa convicção é também compartilhada
pelo judaísmo helenista^'^’'; Füo acentua reiteradamente que o judeu, como verda­
deiro sábio, se abstém das paixões sensuais (cf. FUo, ConfLing 75-82), que por ele
não raro são explícita e polemicamente contrastadas com as orientações exis­
tencial e de conduta não-judaicas, “cujo território é o desejo e cuja lei é a satis­
fação sensual” (Filo, QuaestGen IV,39). Também n a apologia de Josefo é ju sta­
mente a moral sexual na qual ele exempUíica a superioridade da lei judaica.^'*®
É provável que tenha desempenhado algum papel o fato de que se tenha
visto ai um a chance de u m a minoria religiosa - não raro também eticamente
desacreditada - se impor pela posse de um a ética particularmente rígida, um a
estratégia que também foi u sada pelo cristianismo primitivo. Essa pressão para
a legitimação, contudo, só fazia reforçar o que de qualquer maneira, em matéria
de conteúdo, já estava reconhecido independentemente do fato aludido, a sa­
ber: na batalha contra o desejo, o que está em jogo é um a vida bem-sucedida,
que para judeus e cristãos equivalia a ter comunhão com Deus e obediência à
su a vontade. M as é justamente contra essa orientação da existência na vonta­
de de Deus que se colocam os desejos e prazeres, apossando-se dos crentes e
influencÍ6indo-os prejudicialmente. E ssa é a razão pela qual também é necessá­
rio o esforço próprio para privar as paixões de su a arbitrariedade destrutiva,
sendo que o “destrutivo” é visto - de modo bem judaico - no impedimento da
justiça divina (4Mac 2.6ss). Pela sua capacidade de julgamento®'’®, orientada na
vontade de Deus, o crente controla “não somente a fúria da vontade do querer,
mas todo desejo (èTri,eu|j,í,a)” (4Mac 2.4) - podendo, dessa forma, integrar num bom
sentido a sensualidade em su a personalidade: “A capacidade de julgam ento,
como exímia jardineira, toma todas elas (sc. as paixões), lim pa-as bem, corta-
as, am arra-as, coloca-as sob u m a rede, rega-as de todas as maneiras ao redor,
enobrecendo dessa maneira a vegetação dos costumes e das paixões. Pois que
a capacidade de julgam ento é a líder das virtudes e um a soberana poderosa
sobre as paixões” (4Mac 1.29s; tradução de H.-J. Klauck). Para tanto, contudo,
só está apto quem domestica os desejos, para o que é preciso certa dose de
“treinamento” no autocontrole, ou seja, na “ascese”.

O problema da paixão, portanto, não é a sensualidade como tal, mas


seu poder sobre as pessoas, que impede sua autodeterminação racio­
nal - assim a variante filosófica -, resp. a orientação da vida em Deus
- assim a recepção e a transformação judaico-cristãs desse pensa­
mento. Essas significam em IPe 1.14 o alerta contra o auoxrmaTÍCeoGaL,
ou seja, a exortação para não permitir que as paixões determinem a

um a total liberdade delas: “ De início, porém , afasta totalm ente o desejo. Pois se
desejas algo daquilo que não está em nosso poder, serás necessariam ente infeliz
[...]” (Epict, Ench 2).
No Antigo Testamento, o combate contra o desejo como tal ainda não desempenha
nenhum papel; é só nos escritos posteriores, como o 4° Livro dos Macabeus, que o
controle sobre as paixões passa a constituir um tema predominante.
Cf. Jos, Ap 11,199-203.215. Em Jos, Ap II,244s, em sua avaliação crítica dos deuses
gregos, é atacada a sua vida sexual desenfreada como “a coisa mais vergonhosa de
todas” (■návxc^v ào6lY*°''^^P°v) •
A 4 M ac fa la de “ ca p a cid a d e de ju lg a m e n to ” , m as refere-se, com o m o stra sua
argumentação, ã orientação na Torá.

97
forma de vida, o axíi|ia.^®° Em IPe 2.11, essa batalha dentro do ser
humano entre relação com Deus e paixão (carnal) é mais uma vez
intensificada na imagem drástica de uma guerra das paixões contra
a alma (como o aspecto da pessoa direcionado para Deus). A metáfora
da guerra reflete claramente a consciência que existe ai um poder
inimigo que ataca o interior e procura conquistá-lo a fim de inter­
romper a orientação dos “filhos da obediência” (IPe 1.14) em Deus
como seu Pai (1.17; cf. 1.2).

Essas paixões estavam ativas anteriormente em virtude da èy tt) àyyoía,


isto é, “por causa da ignorância” (èy deve ser interpretado aqui, como
também seguidamente na lPe^®\ em sentido causai). Com ãyyoLa a
IPe acolhe um conceito que já no judaísmo helenista designa o des­
conhecimento de Deus junto aos “pagãos”.352 Também no Novo Tes­
tamento, a áyyoLa caracteriza a pessoa antes de sua conversão (At 3.17;
17.30; Ef 4.18). E como conhecimento de Deus no Novo Testamento
significa “primariamente aceitação, obediente e grata submissão ao
que se conhece”^®®, o desconhecimento de Deus descreve, de forma
análoga, não primariamente um déficit noético, mas fechamento exis­
tencial - e com isso também uma orientação errônea da existência e
da ação. Por isso a ayyoLa levou a que, na forma de desejo, outras
coisas adquirissem poder sobre as pessoas^®“*, como a IPe esclarece
na retrospectiva feita sobre a vida anterior dos v o c a c io n a d o s .Igno­
rância e concupiscência descrevem, portanto, só dois lados da aliena­
ção das pessoas de Deus.

V. 15-16 Introduzida com um àXlá adversativo, o outro lado positivo


da delimitação, que no v. 14 já havia ressoado na expressão “filhos da
obediência”, é tratado agora nos v. 15s com o termo “santo”. Também

Em Rm 1 2 . 2 , em que esse al)oxrl^ia•uLCeo0aL igualmente se encontra, é-lhe contraposta


explicitamente a “renovação da mente” , que se orienta na vontade de Deus; sobre as
diferenças entre Rm 1 2 . 2 e IP e 1 . 1 4 , cf. HERZER, 1 9 9 8 , p. 2 4 5 - 2 4 8 .
351
Cf. IP e 1.2, 5, 12, 17, 22 e outros.
352
Sab 14.22; Filo, Decai 8 ; Jos, Ant X,142 e outros. Nesse sentido, trata-se de um a
“ ca rên cia d o co n h ecim en to n ecessá rio à sa lva çã o da a lm a ” (BULTMANN, R. Verbete
àyvoíw ktA.. In; ThW NT. Stuttgart, 1957 [= 1933]. v. I, p. 119), mesmo que a tentativa
de Bultmann de interpretar o termo de form a gnóstica não convença.
BULTMANN, R. Verbete kxX. In: ThWNT. Stuttgart, 1957 (= 1933). v. I, p. 704.
Digno de nota é IC o 15.34, em que a exortação à sobriedade (i Pe 1.Í3I) e a evitar
o pecado é unida com a advertência de que “alguns têm desconhecimento de Deus”
(àYVQOLa 0eoü). Todos os m otivos (sono, em briagués, desconhecim ento de Deus e
sobriedade) também se encontram unidos em CorpHerm 1,27.
O complexo de eoncepções subjacente a essa concisa expressão é melhor desenvolvido
em E f 4.17ss: em conexão com a ayvom (que está “dentro deles” já praticamente como
h ip ó s ta s e in d ep en d en te), a li é fa la d o da va id a d e do p en sa m en to (4.1 7) e do
endurecimento dos corações (4.18), pelos quais o entendimento estava obscurecido
e os (ainda não-crentes), “alheios à vid a de D eus” (4.18). De m aneira análoga, o
“velho hom em ” foi arruinado pelas “concupiscências do engano” [áTiárril (4.22).

98
essa palavra contém um claro momento de delimitação: “santo” é p e r
d e fin itio n e m aquilo que é separado da esfera do profano.^®® Tal sepa­
ração, porém, nada mais é que o reverso da pertença a Deus (cf. 2.5,
9), que é o santo por excelência.

No Antigo Testamento, o predicado da santidade é pensado em estreito relacio­


namento com D eus - “santo” é, em primeiro lugar, o próprio D eus em su a
magnificência e grandeza. Aquele que se encontra sentado no trono, n a visão da
vocação de Isaías, é louvado com o Trisagion: “Santo, santo, santo é JH W H dos
Exércitos [...]” (Is 6.3; cf. Ap 4.8). O poder dessa santidade pode ser comunicado
a lugares (p. ex. ao templo), m as também a pessoas que pertencem a Deus.
Isso, inicialmente, representa u m a distinção, m as pode também incluir u m a
obrigação, o que fica especialmente claro em Levitico, onde, no contexto das
prescrições de purificação, a santificação tom a-se u m a obrigação dos membros
do povo de Deus: “Pois Eu sou o Senhor, teu Deus. Portanto vós vos consagrareis,
e sereis santos, porque E u sou santo; e não vos contaminareis por nenhum
enxame de criaturas que se arrastam sobre a terra. Pois Eu sou o Senhor, que
vos fiz subir da terra do Egito, para que eu seja o vosso Deus; portanto, vós
sereis santos, porque Eu sou santo” (Lv 11.44s; tradução de Lutero). Santidade
tornou-se aqui também u m a tarefa dos vocacionados, n a medida em que esse
“santificar” significa um a constante orientação pelos mandamentos de Deus n a
conduta de vida, sobretudo n a separação de outras orientações de existência
encontradas no entorno. E ssa separação tem su a razão na pertença ao D eus
que elege, “que vos fiz subir da terra do Egito, para que eu seja o vosso Deus;
portanto, vós sereis santos, porque E u sou santo”. A atenção dispensada pelo
Deus que é “santo” e a santificação daqueles que lhe pertencem são, portanto,
interdependentes. A mesma estm tura é também apresentada na introdução da
lei da santidade em Lv 19.2, que é aqui citada pela IPe; “Sede santos, porque
Eu, vosso Deus, sou santo”. Se a esse convite para a santificação seguem, em
Lv 19, diversas recomendações concretas para a vida do dia-a-dia, entre as quais
tcimbém os famosos mandamentos do amor ao próximo e aos inimigos, isso só
vem a su blin har que n a obediência aos m andam entos a santidade de D eus
adquire forma concreta neste mundo.

A interpretação dos mandamentos como santificação, em correspon­


dência ã santidade de Deus, como encontrada em Lv 11 e, mais tar­
de, programaticamente em Lv 19.2, desempenhou papel central no
judaísmo helenista da diãspora, justamente como fundamentação
teológica para o seu modo de vida em meio a um entorno pagão.
“Levitico 19 foi provavelmente considerado entre os judeus na anti­
guidade uma espécie de sumário da Torá A IPe mostra tam­
bém aqui sua proximidade para com as tradições do judaísmo da
diãspora na medida em que, como único escrito do Novo Testamento,

Caso o hebraico tínp seja um derivado de 4p, “separar” (cf. PROKSCH, O. Verbete ayi-oí;
kU . In: ThWNT. Stuttgart, 1957 [=1933]. v. I, p. 88; KORNFELD, W. Verbete onp.
In: ThWAT. Stuttgart, 1989. v. VI, p .ll8 1 ), a separação no hebraico encontra-se já
em butida no próprio termo.
HORST, P. W. van der. Pseudo-Phocylides and the New Testam ent. ZNW 69, p.
191, 1978.

99
faz referência explícita a L v 11 e 1 9 e designa a correspondência à
santidade de Deus como o real motivo para a conduta dos “forasteiros
eleitos da diáspora”.^®® Dessa forma a ética é diretamente fundamenta­
da na relação com Deus. Mesmo assim, também aqui se tem ciência da
atividade antecedente de Deus na vocação: como ó KaÀéoctç ayLoç, Deus
estabeleceu relação com os crentes, sendo sua santificação a respos­
ta a essa iniciativa divina (cf. também 1.2: kv àviaoircò irveutiaroç).

1.2.3 O Pai e Salvador como contraparte


de uma existência de fé (1.17-21*)

V. 17: E se invocais como Pai aquele que, sem acepção


de pessoas, julga segundo as obras de cada um,
portai-vos com temor durante o tempo da vossa
peregrinação,
V. 18: sabendo que não foi mediante coisas corruptí­
veis como prata ou ouro, que fostes resgatados
do vosso fútil procedimento que vossos pais vos
transmitiram,
V. 19: mas pelo precioso sangue de Cristo, como de cor­
deiro sem defeito e sem mácula,
V. 20: designado, com efeito, antes da fundação do
mundo, porém manifestado no fim dos tempos,
por vossa causa,
V. 21: que por meio dele, tendes fé em Deus, o qual o
ressuscitou dentre os mortos e lhe deu glória,
de sorte que a vossa fé e a vossa esperança este­
jam dirigidas a Deus.

* Literatura sobre IPe 1.17-21: UNNIK, W C. van. The Critique of Paganism in 1


Peter 1:18. In: ELLIS, E. E.; WILCOX, M. (Eds.). Neotestamentica et Semitica. (FS M.
Black). Edinburgh, 1969. p. 129-142.

V. 17 Deus é determinado aqui de duas maneiras: por um lado, ele é


o Pai, que é invocado. Isso se reporta ao que já foi mencionado: como
Pai de Jesus Cristo (1.2), ele regenerou os crentes (1.3), sendo por
isso também invocado por eles como Pai.^®® Dessa forma, no entanto,
eles também são, como já o dizia 1.14, filhos da obediência. Nesse
sentido, a concepção de Deus como Pai também implica sua concep­
ção como juiz, razão pela qual deve-se viver diemte dele “com temor”.

Um paralelo de conteúdo com isso encontra-se na passagem de IT s 4.3-8, onde, em


delim itação de um com portam ento com o o que caracteriza os “gentios, que não
conhecem a Deus”, é acentuada a vocação dos cristãos para a santidade.
IP e 1.17; cf. G1 4.6; Rm 8.15 e sobretudo o Pai-Nosso, Mt 6.9-13par.; Lc 11.2-4.

100
Essa indicação de Deus como juiz encontra-se com relativa frequên-
eia na lPe.^®° Em eonexão com a discussão sobre o sofrimento injus­
to, essa indicação serve, muitas vezes, eomo eonsolo e alívio para os
implicados (IPe 2.23; 4.5, 19). A referência ao Deus que “sem acepção
de pessoas, julga segundo as obras de cada um”, em 1.17, sublinha,
ao contrário, a responsabilidade de cada qual pelas suas obras.
Ambos os aspectos do juízo divino - o consolador e o exortativo, sim,
admoestador - são tradicionais.

Excurso 6: Deus como juiz


N a história das religiões, essa concepção de um deus que faz acertos de
contas com as pessoas num juízo após a morte é largamente difundida. Na área
do Mediterrâneo, ela foi comprovada inicialmente no Egito^“ , já desde 2000 a.C.
(Ensino para Meri-ka-Re)^*’^; e o Livro dos Mortos, do Egito (ca. de 1500 a.C.),
pressupõe sem exceção a concepção de u m a recompensa segundo as obras no
além.^®“* Nesses textos, expressa-se a consciência de que os deuses como per­
sonificações do bem e asseguradores da verdade e justiça (em egípcio, yÃax] não
podem ser indiferentes diante do mal; de forma correspondente, o critério ético
acaba tom ando-se o parâmetro para a entrada no além. Isso também encontrou
representatividade em imagens de grande impacto em que é mostrado como as
almas são medidas nas balanças.

A o con trário da m a ioria de praticam en te todas as dem ais afirm ações do Novo
Testamento sobre o juízo, na IP e o ju iz não é Cristo, mas unicamente Deus.
epyov “é empregado aqui no singular como designação do procedimento em geral, da
conduta” (GOPPELT, 1978, p. 120, com referência a Is 40.10; 62.11; IC o 3.13ss;
G1 6.4; Ap 22.12).
BRUNNER, H. G ru n d z ü g e d e r A ltä g y p tis c h e n R e lig io n . D arm stadt, 1983. p. 130:
“Parece que todas as concepções de tal ju ízo em outras religiões, pelo m enos no
Mediterrâneo e em suas áreas dependentes, foram determinadas pelo Egito” .
Trata-se da instrução de um faraó a seu filho e sucessor, Meri-ka-re: “A corte de justiça,
que julga os miseráveis, tu sabes que eles não serão brandos naquele dia, já que os
infelizes serão condenados [...] Ruim é quando o acusador é onisciente [...] Depois da
morte, o ser humano fica só e as suas obras são amontoadas ao seu lado. Ali a gente
permanece etemamente, e quem se queixa disso é um tolo. Quem consegue alcançar (o
além) sem, contudo, ter cometido injustiça, esse será ali como um deus, caminhando
em liberdade como os senhores da eternidade” (BRUNNER, 1983, p. 131); cf. ainda
GRIESHAMMER, R. D a s Jenseitsgericht in den Sargtexten. Wiesbaden, 1970.
Cf. a confissão de pecados negativa diante do ju iz dos mortos no dito 125,10ss, que
pressupõe um a recom pensa no além (125,9: “Dia da prestação de contas”) e que
provavelm ente foi proferida num a sessão da corte ju d icial diante dos deuses (cf.
HORNUNG, E. D a s Toten b u ch d e r Ä gy p ter. Eingeleitet, übersetzt und erläutert von
E. Hornung. Zürich; München, 1990 (= 1979). p. 28s): “O (...) ‘Senhor da verdade
plen a’ é teu nome. Eu cheguei até a tua presença, trouxe-te o direito e afastei a
injustiça para ti [...] Não pratiquei nenhuma injustiça para qualquer pessoa, e não
m altratei nenhum anim al [...] não ofendi nenhum deus. Não prejudiquei nenhum
órfão quanto ã sua propriedade [...] Não causei dor nem deixei (alguém) passar fome,
não provoquei lágrimas. Não matei, e (também) não solicitei que se matasse; a ninguém
provoquei um sofrimento” . (HORNUNG, 1990, p. 233s. Trata-se aqui só do início -
na verdade toda a passagem é mais de dez vezes tão extensa!).

101
E ssa concepção popularizou-se no pensamento ocidental especialmente
por intermédio de Platão. Ele - cabe aqui referência, sobretudo, aos mitos finais
em Gorgias e n a Politeia - adota a referida concepção no contexto de uma fundamen­
tação última para sua ética. Em contraste com u m a interpretação da realidade, que
não afirm a os valores senão como estabelecidos arbitrariam ente, a razão
argumentativa consegue apresentar contra-argum entos, consegue defender a
certeza característica dos filósofos de um a ordem mundial abrangente com ju s ­
tiça, embora não consiga comprová-la empiricamente. Nesse ponto reside o lu­
gar da narrativa mítica final que esclarece, metaforicamente, que este mundo
em verdade é influenciado e determinado por um a ordem justa. Essa se estende
além do m undo captãvel pelos sentidos e, dessa forma, igualmente além da
existência individual corpórea“ ^, apontando, justam ente por esse intermédio,
de novo para a responsabilidade incondicional devida ã vida neste mundo.
Também no Antigo Testamento a concepção de Deus como juiz é encon­
trada seguidamente^'"'’ -, m as num a forma muito específica. Nada é dito sobre
um julgamento dos mortos em que as obras de cada pessoa são pesadas. Q uan­
do é falado de julgamento nos profetas, então isso designa u m a ação punitiva
intra-histórica, seja aos povos estranhos pela sua arrogância, seja a Israel pela
su a desobediência. Ao que tudo indica, o pensamento de um julgam ento não
entrou em Israel por meio do pensamento comum de um a justiça, mas por meio
da fé em D eus como Senhor {certamente justo). O julgamento de D eus é, a s­
sim, intervenção ordenadora do criador e mantenedor do mundo, que não permi­
te que su a vontade e a ordem por ele estabelecida sejam desrespeitadas sem

* Cf. ANNAS, J. P la to ’s M yths o f Judgem ent. P h ro n . 27, p. 124, 1982: “O ponto


central do mito é o contraste entre o que parece, agora, ser o fim (morte, possivelmente
um a morte injusta como a de Sócrates) e o que realmente é o caso num nível mais
profundo (os eventos míticos que ocorrerão depois da morte)” .
Em Israel, já cedo foram relacionadas com Deus funções criadoras e estabelecedoras
do direito. Isso já mostram os nomes próprios (parcialmente teóforos) formados com
verbos de julgamento (sobretudo com '[■'■i e 1332), assim a tribo de Dã, o chaceler de
Davi, Josafá, 2Sm 8.16, o filho de Davi, Sefatias, 2Sm 3.4, etc.), que em parte são
relativam ente antigos, mas em pregados mais seguidam ente a partir do tem po de
D avi (SEYBOLD, K. V erbete G ericht G ottes I. A ltes Testam ent. In: TRE. B erlin;
New York, 1984. v. XII, p. 460). Com o em outros círcu los culturais do O riente
antigo, encontra-se também em Israel a instituição do ordálio, do julgam ento e do
ju ízo divinos (cf. Êx 22.6ss; IR s 8.31s), como regulamentação de últim a instância
em questões de direito difíceis: em apelações dos acusados (IS m 24.13; Jz 11.27)
bem como dos acusadores (Gn 16.5; Êx 5.21) é também empregado pela primeira vez
o verbo Q32) tendo Javé como sujeito (cf. NIEHR, H. Verbete £3S2f. In: TTiWAT. Stuttgerrt,
1995. V . VIII, p. 426). “Faze-me justiça. Senhor, segundo a minha justiça e inocência”
(tradução de Lutero): assim como essa pessoa que ora no SI 7. 9, todas as orações dos
acusados apelam para o juízo de Deus (cf. SI 7.7, 9, 12; 17.Is ; 35.24; também Jõ
16.18ss; 19.25ss; 29-31; 38.1ss, entre outros). Em forma de narrativa é apresentada
sempre de novo no Pentateuco e nos livros históricos a intervenção punitiva de Deus
pelas transgressões de indivíduos isolados: caberia m encionar aqui a Míriam, que
tom ou-se leprosa em virtude de sua rebelião contra Moisés (Nm 12); Moisés e Arão,
que, devido à sua dúvida, não mais podem ir à Terra Prometida (Nm 20.1-13); Acã,
pelo qual inicialmente todo o povo tem que sofrer devido ao seu roubo (Js 7); Saul, que
Deus rejeita após sua desobediência, entregando-o para os seus inimigos (IS m 15ss)
ou Davi, que é castigado com a morte da criança depois do assassinato de Urias e do
adu ltério com B ate-Seba (2Sm l l s ) . A concepção do ju lgam en to de Deus como
interferência formadora de história, no entanto, cristalizou-se somente na época dos
reis e provavelmente pressupõe a concepção do reinado de Deus.

102
consequências.^®^ Tanto nos salmos como nos profetas, esse processo apresen­
ta um desenvolvimento n a direção de um juizo universal como nova ordem da
realidade, que chega até a ser anelado apesar dos horrores a ele ligados, como,
p. ex., mostra o SI 94, que diante das injustiças opressivas inicia com o grito:
“D eus da retribuição JHW H, D eus da retribuição, apareça! Levanta-te, juiz do
mundo. Retribui aos orgulhosos as suas ações” (SI 94. Is).
Naturalmente o anúncio do julgamento representa evangelho, sobretudo
para os sofredores, para as vítimas. É necessário, no entanto, precaver-se con­
tra derivações por demais unilineares, que só levam em consideração a neces­
sidade de retribuição; p ara muitos textos proféticos (cf. também Is 26.8s) ou
orações de salmos, juizo e salvação pertencem intimamente juntos como a laoa-
nova: D eus mesmo vem e, julgando, estabelece o seu reino. Por isso o ju lg a ­
mento de Deus nos salmos pode ser objeto de imenso júbilo e louvor (cf. SI 96;
98). E ssa tendência continua no judaísm o incipiente. Ali podem ser amplamen­
te descritos os horrores do julgamento, mas também nesses casos “a palavra
julgamento permanece, em essência, u m a palavra alegre”?^^ E ssa estreita rela­
ção entre bondade de D eus e seu julgam ento também é destacada de forma
notória pelo Targum Neofiti.^®® N a narrativa sobre o assassinato do irmão por
Caim, o Targum insere um último debate entre os irmãos. Caim, irado pela
preferência tributada a Abel por Deus, nega um a estrutura fundamental ética
da realidade: “O mundo não foi criado com amor e não é regido segundo os
frutos das boas obras (...) Não há nenhum julgam ento e não existe nenhum
juiz!” Com isso, porém, também não existe mais responsabilidade, e a conse­
quência de tal autonomia é o fratricídio! Mas o assassino não fica com a última
palavra. Ao cinismo da violência triunfante do assassino é contraposta - pela
boca da vítima, Abel! - a confissão da justiça e bondade de Deus: “Percebo que
o mundo foi criado com amor (...) (E justamente por isso) existe um julgamento
e um juiz”. O julgamento aqui é praticamente a comprovação de que este mundo
foi criado com amor/misericórdia (fS^DmD); o julgam ento de D eus é a conse­
quência de su a misericórdia!
Esse anúncio de juízo contém u m a conotação admoestadora, até am eaça­
dora, onde ele se defronta com pessoas que praticam a injustiça. Enfatizada é,
sobretudo em textos parenéticos, a responsabilidade diante de Deus. Enquanto
no Antigo Testamento essa é pensada preponderantemente de forma coletiva,
no judaísmo incipiente e no cristianismo primitivo a responsabilidade individual
gradualmente assum e o lugar central. No contexto dessa individualização ocor­
re tam bém a fu são das concepções de ju lg a m e n to veterotestam en tária e
helenista: a esperança pela implantação do reino de Deus é ligada à individua­
lização da escatologia e a um correspondente julgamento individual segundo as
obras de cada qual. D essa forma surge o conglomerado conceituai que parte de

Isso também mostra a conceituação: enquanto os termos gregos para “julgar” encon-
tram -se orientados no processo da diferenciação (Kpíi/co, de “ separar, inspecionar,
distinguir”) e, em decorrência, designam desde o início um ato forense, no qual um
indivíduo é julgado, o hebraico BStí orienta-se no processo do exercício de poder:
significa, origin alm en te, “dirigir, re g er” , depois “ d ec id ir” e, fin alm en te, “ju lga r,
assegurar ju stiça ”; c f NIEHR, 1995, p. 412-417.
VO LZ, P. D ie E s ch a to lo g ie d e r jü d is c h e n G e m e in d e im n e u te s ta m e n tlich e n Z e ita lte r.
Nach den Q uellen der rabbinischen, apokalyptischen und apokryphen Literatur.
H ildesheim , 1966. p. 92.
TN, Gn 4.1-8. A tradição também está testem unhada no TPsJon e no Targum dos
fragm entos (cf. GINSBURGER, M. (Ed.). Ta rgu m J o n a ta n B e n U zziel. Berlin, 1903)
sobre 4.8, ou seja, en con tra-se largam en te d ifu n d id a no Targu m p a lestin en se
parafraseado.

103
um juízo final com julgamento individual das obras de cada pessoa, combinando
entre si diversos círculos concepcionais nesse p r o c e s s o . I s s o constitui o pano
de fundo da escatologia do judaísm o incipiente (e, depois, também do cristia­
nismo primitivo), com consequências para a imagem do ser hum ano e a funda­
mentação da ética. Um exemplo disso é o tratado da M ishná, Avot, o único
tratado da Mishná a encontrar utilização litúrgica.^^' Nele, por diversas vezes, a
existência hum an a é interpretada como concessão®^^, da qual o ser hum ano
deve, no futuro, prestar contas diante do seu juiz.^'^® O fato de D eus ser juiz é.

0 quanto ambos os círculos concepcionais podem ser fusionados mostra o 4Esdras.


Nesse apocalipse do judaísm o incipiente, provavelmente surgido ao final do século
1 d.C., e que disputa com Deus sobre a pergunta pela sua fidelidade e justiça diante
da destruição de Jerusalém, numa e mesma visão é inicialmente prometida a vinda
do Messias, seu reinado de 400 anos bem como a ressurreição e o juízo final, mas
isso é acrescido repentinamente pela concepção, largamente difundida em ambiente
helénico, de um julgamento pós-mortal das almas dos que pereceraim, que, de acordo
com o respectivo comportamento em vida, devem sofrer ou são felizes; “Quando a
sentença de morte tiver sido proferida pelo Altíssim o sobre um homem, quando o
espírito se separa do corpo, para que ele seja novamente enviado para aquele que o
deu, então ele, antes que tudo, adora a glória do Altíssimo. E se for um dos tais que
desprezaram o caminho do Altíssimo, violaram a sua lei e odiaram os que temem a
Deus - tais almas não entrarão nas moradas, mas terão que vagar imediatamente em
tormentos, sempre sofrendo e tristes de sete maneiras (...) [segue agora a descrição
dos sete sofrim entos, cujo m aior e últim o consiste em desaparecer em vergonha,
desonra e tem or na confrontação com a glória de Deus] (...) Para aqueles, porém,
que guardaram os caminhos do Altíssim o, vale a seguinte ordem, quando deverão
ser separados dessa morada passageira [...]: Verão primeiramente com grande alegria
a glória daquele que os recebe. Então terão repouso em sete degraus [...] [segue uma
listagem de seis degraus] [...] No sétimo, que é m aior que todos os precedentes, as
almas jubilarão com confiança, confiarão sem confusão e se alegrarão sem temor.
Pois se aproxima o momento em que verão a face daquele a quem serviram durante
a sua vida e do qual deveriam receber recompensa na glória” (4Esr 7,78b-98; tradução
de SCHREINER, J. D a s 4. B u ch Bsra. Gütersloh, 1981. p. 352-355).
Para o emprego litürgico de mAv, cf. MARTI, K.; BEER, G. Abot, Väter. Text, Übersetzung
und Erklärung, nebst einem textkritischen Anhang. Gießen, 1927. p. XV.
Cf. mAv 111,16: “Tudo é concedido sob fiança e sobre todos os viventes é armada uma
rede” . Isso é desenvolvido metaforicam ente na imagem de Deus como um dono de
mercearia, que empresta e anota tudo em seu livro de dívidas, para então resumir:
“Pois o julgam ento é um julgam ento da verdade, e tudo está preparado para a ceia
(dos justos)” .
Cf. niAv rv,22: “Os nascidos são destinados a morrer e os que morreram, a renascer,
e os renascidos, a serem ju lgad os para que experim entem , anunciem e estejam
conscientes de que Ele é Deus, Ele o escultor, Ele o criador, Ele o observador, Ele
o ju iz, Ele a testem unha, Ele o senhor do ju ízo e Ele que haverá de julgar, Ele é
louvado! Pois diante dele não existe nenhum a injustiça, nenhum esquecim ento,
nenhum favoritism o de pessoas e nenhum a aceitação de suborno; pois tudo Lhe
pertence [...] Pois tu foste criado sem a tua vontade, sem a tua vontade nasceste,
sem a tua vontade vives, sem a tua vontade morres, e sem a tua vontade haverás de
prestar contas e responder diante do rei dos reis dos reis, do Santo, Ele é louvado!”
(tradução de K. Marti; G. Beer). A sentença abrange inicialm ente, em três breves
constatações, destino e propósito da hum anidade; morte, ressurreição e juízo. De
forma clara também aqui a vida é determinada completamente pela sua relação com
o mundo futuro, sendo que essa culmina curiosamente no julgamento. O propósito
é “saber, anunciar e experimentar”, como diz o texto, ou seja, conhecimento. Objeto
desse conhecimento, no entanto, é Deus, o que é praticamente cravado na memória
por um a sequência de sete colocações, em que se afirm a que “ Ele é Deus, Ele o
escultor, Ele o criador [...]”. A sequência está subdividida em duas partes: a primeira

104
em primeiro lugar, a boa notícia de que a história do mundo não é já o julgamento
do mundo. Simultaneamente, por esse intermédio, sublinha-se a responsabili­
dade do ser humano diante de Deus.
Enunciados comparáveis também se encontram no Novo Testamento, pois
a redenção trazida por Cristo de forma algum a exclui a responsabUidade de cada
pessoa por seus atos, o que também Paulo destaca quando afirma em 2Co 5.10
que “importa que todos nós compareçamos perante o tribunal de Cristo para
que cada um receba segundo o bem ou o mal que tiver feito por meio do corpo”.
Tam bém n a grande figura de julgam ento apresentada ao final do discurso
apocaliptico em Mt 25.31-46 é precisamente o Cristo que retorna que ju lga e
condena as pessoas segundo o critério do amor realizado ou omitido. Deve-se
observar, nesse contexto, que no Novo Testamento a função de juiz é atribuida
mais e mais a Cristo. Paulo pode referir-se tanto a D eus Pai (cf. Rm 14.10)
quanto a Cristo (2Co 5.10) como juiz. A orientação da IP e é, no entanto,
teocêntrica. Isso se mostra pelo fato de em 1.17, e provavelmente também em
4.5, Deus ser o juiz.

Acrescenta-se explicitamente que essa vida diante de Deus deve ser


conduzida “em temor”. “Temor de Deus” não designa nenhum medo
de Deus, religiosamente obsessivo. Na literatura do judaísmo inci­
piente, ele pode, ao contrário, ser paralelizado com o amor de Deus^^"^;
como tal, ele não diminui a vida, mas praticamente a enobrece: “O
temor do Senhor dá honra e glória e nobreza e coroa de exultação. O
temor do Senhor dará alegria, contentamento, gozo e vida longa ao
coração” (Sir 1.1 Is; tradução de G. SAUER, Jesus Sirach, 1981, p. 507s).
Isso não exclui que - sobretudo em conexão com o pensamento de
juízo -, nesse pauticular, também se retrate a consciência da santida­
de majestosa deste Deus que, em meio a toda a alegria pela sua proxi­
midade, seguramente também traz de forma alarmante ã consciêneia
a experiência da própria falta de santidade (cf. Is 6.5; Lc 5.8). Mesmo
assim, o temor de Deus não se encontra em oposição a um relaciona­
mento de confiança com Deus como Pai - assim como também em
Paulo, pertence ao segredo do seu relacionamento com Deus que ele
se confia inteiramente aos cuidados desse Pai divino como criança
(Fp 2.15; cf. Rm 8.14ss, 31ss), se alegra jubiloso com sua proximidade
em Cristo (Fp 2.17s; 3.1; 4.4) e, ao mesmo tempo, se encontra diante
dele em temor e tremor, esforçando-se pela sua salvação (Fp 2.12). A
proximidade especial de Deus é a que justamente também intensifi­
ca a consciência do próprio afastamento dele, resultando daí um medo
- e uma especial obrigação para uma nova orientação. Ambas as coi­
sas são destacadas pelo acréscimo da fórmula kv c|)Ó(3cl); (jjó(3oç, aliás, é

m etade relacion a-se com D eus com o criad or e sen h or sobre o m undo. Os três
predicados da segunda parte - ju iz, testem unha e senhor do ju ízo = acusador -
tom am claro que, com exceção do acusado, todas as demais funções no julgamento
são assumidas pelo próprio Deus.
Cf. Sir 2.15s; cf. também a interpretação dos Dez Mandamentos no Catecismo Menor,
por Lutero: “Devemos tem er e a m a r a Deus [...]”.

105
um elemento constitutivo da iríotu; (Rm 11.20; 2Co 5.11).®’^®Isso ain­
da é sublinhado pela referência à imparcialidade de Deus, que justa­
mente julga a cada um segundo as suas obras^^® “sem fazer acepção
de pessoas”. A IPe, numa maneira que lhe é tipica^^®, fala da con­
duta de vida, da àyaotpoct)fi. O tempo de vida é designado como tempo
em que se é peregrino. Isso lembra um motivo central da carta, o da
terra estranha (no endereçamento, em 1.1, e no inicio da segunda
parte principal, em 2.11). Em 1.17, a referência ao “tempo da peregri­
nação” sublinha a provisoriedade da vida presente, unindo essa com
a perspectiva do retorno a Deus, o Pai e Juiz.

V. 18 Agora, ao lado do compromisso com uma nova conduta de vida


por meio de Deus, o juiz, surge a fundamentação pela lembrança®’’®
(elôÓT€<;) da redenção. O primeiro versiculo formula negativamente: o
resgate ocorreu “não mediante coisas corruptíveis” (oi) jjOaproLç). Cons­
tata-se inicialmente que a libertação desta vida cunhada pela transi-
toriedade não ocorre através de algo que seja também pertencente a
este mundo passageiro. Esse aspecto ainda é realçado pela negação
explicativa “não por prata ou ouro”. Prata e ouro simbolizam o que há
de mais valioso neste mundo e que o ser humano acumula para, por
seu intermédio, poder adquirir praticamente tudo na terra. Justa­
mente por isso, no entanto, esses bens potencializam a “avareza”. Com
a fixação no que é passageiro, eles justamente não conseguem se
libertar da futilidade desta existência.®®“ Para tanto é necessária uma
coisa completamente diferente - a doação de uma outra vida.

Cf. BULTM ANN, R. T e o lo g ia d o N o v o T esta m en to. São Paulo; Teológica, 2004. p.


390-393.
O ju ízo segundo as obras une autores tão diferentes como Mateus (16.27) e Paulo
(2Co 5.10; cf. Rm 14.10b, 12).
O termo àTTpoocoTToÃií^Trríjç encontra-se só aqui dentro de toda a literatura grega do
Antigo e Novo Testamentos, embora seja conhecido na literatura do judaísmo incipiente
(cf. também TestJob 4.8), bem como na do cristianismo primitivo (cf. B am 4.12). No
Novo Testamento, o mesmo conteúdo pode ser expresso pela negação de irpoocoTioÀT)|n|úa
(Rm 2.11), resp. TrpoacotrofiípTTTr;ç (At 10.34). O motivo de um juízo divino sem consideração
do exterior enganoso já é largam ente desenvolvido p or Platão no m ito do além,
encontrado em seu Gorgias (Plat, Gorg 523a-524a).
Trata-se, em àvaorpoóií, de um termo preferido pela IPe: das 13 ocorrências no Novo
T es ta m en to , seis estão n este e sc rito ; j á irepinareCí/, que lh e é sem elh an te em
significado, encontra-se testem unhado ao longo de todo o Novo Testam ento. O
motivo do caminho para a orientação de conduta encontra-se tanto no mundo grego
(cf. Xenoph, Mem 11,1; Epict, Ench 19; Diss 11,23) com o no hebraico (cf. SI 1.6;
119.9, 105; Pv 2.8ss; 3.6, 23; Is 26.7ss e outros).
Da mesma forma, Paulo pode recorrer com elôóteç ao conhecimento da comunidade
(Rm 6.9; IC o 15.58; 2Co 4.14; cf. E f 6.8, 9).
E provável que tenhamos simultaneamente uma alusão a enunciados da profecia de
juízo veterotestamentária (Sf 1.18 e Ez 7.19 acentuam que prata e ouro não poderão
salvar no dia da ira).

106
Chama a atenção a provocativa antítese ao autoentendimento pagão. Para
esse, aquilo que os pais haviam transmitido, o mos maionim, representa­
va a norma por excelência. O fato de ele ser aqui refletido em conexão
com o adjetivo iráraioç sublinha mais uma vez, de forma insistente, o con­
traste em relação à sociedade do entorno e, com isso, a qualidade do
“ser-forasteiro”, inerente aos cristãos. Com o predicado iiámioç, “fútil”,
“vão”, “sem verdade”, “sem perspectiva”, a Septuaginta e, em seu segui­
mento, o judaísmo incipiente e o cristianismo primitivo qualificam toda
orientação de conduta e de existência, segundo a qual o ser humano
rejeita sua dependência de Deus, ficando assim a mercê da transitorie-
dade e futüidade.^®^ O termo é, ao mesmo tempo, também sinônimo para
deuses do entorno e, assim, para uma orientação religiosa errônea.^®^
Os cristãos “foram comprados” dessa “fútil” existência. A conceituação
do resgate aponta para várias raízes: em primeiro lugar, ela lembra, jus­
tamente taunbém em conexão com um “preço de compra”, o resgate de
escravos.®®® “O resgate por Deus sinaliza uma mudança de propriedade
e liberta das relações existenciais pré-cristãs, compreendidas como es­
cravidão.”®®"* Ao mesmo tempo, subjaz nesse conceito uma alusão relati­
vamente clara a Is 52.3 LXX, à promessa de Deus aos cativos da Babilô­
nia de que ele não os resgataria por meio de prata (oi) iierà àpyupíou
ÀUTpo)9r|aea9e), portanto ã ação libertadora de Deus na história do seu povo.
Por fim, o termo grego lorpóco lembra também Mc 10.45, em que a doação
de vida de Jesus é interpretada como um Àórpoy àvd TToÀÀcòy, um “resgate
para muitos”. Essa última referência é ainda reforçada pelo versículo
seguinte, que remete explicitamente à morte sacrificial de Jesus. Não é
possível decidir de forma inequívoca se todos os três motivos (resgate de
escravos, libertação do exílio e expiação pela morte de Cristo) estavam
conscientes ao autor da IPe quando da redação de suas linhas, e me­
nos ainda sabemos o que exatamente os destinatários associavam ao ler
e ouvir a carta. Mas essa multiplicidade de alusões não-excludentes
entre si pode ter sido perfeitamente proposital, já que todos os motivos
que aqui aparecem têm em comum os aspectos da libertação de depen­
dência e perdição, reforçando dessa forma o encmciado.

Cf. Sl 9 4 [9 3 ]. ll (citado em IC o 3.2 0); sob re a id o la tria , A ris t 134; 137; Sib
111,29.547.555; V,83; sobre as riquezas, Arist 321; sobre a violência da ira, TestXII.Dã
4.1; no Novo Testam ento, cf. ainda IC o 15.17; Rm 8.20; E f 4.17.
Cf. Lv 17.7 LXX: “Não oferecerão mais os seus sacrifícios aos espíritos do campo [xoXç
paraíoLç] [...]”; no Novo Testamento, cf. At 14.15, onde Paulo e Bam abé resumem da
seguinte form a o conteúdo da prédica m issionária em relação aos habitantes da
Licônia, que os tomavam por deuses: “vos anunciamos o evangelho, para que dessas
coisas vãs [àirò toútíov tcõv paxaLUv] vos convertais ao Deus vivo” .
O resgate de escravos p or m eio de ouro e prata é testem unhado p or Jos, A nt
X II,28.33.46; XIV.107.371; X V ,156; Bell 1,274.384; cf. BÜCHSEL, F. Verbete Xúu
KTÃ. In: ThW N T. Stuttgart, 1966 (=1942). v. IV, p. 341; DEISSMANN, A. L ich t vom
O s te n . Das N eu e T e s ta m e n t u n d die n e u e n td e c k te n T e x te d er h e lle n is tis c h ­
röm ischen W elt. 4. ed. Tübingen, 1923. p. 275ss.
HERZER, 1998, p. 124.

107
V. 19 O resgate ocorreu através do sangue de Jesus, que é comparado
em seu efeito redentor com o cordeiro sacrificial (sem mácula) vetero-
testamentário. O sacrifício representa, justamente onde a questão em
pauta é a reconeüiação de Deus, muito mais do que mero desempenho
humano substitutivo; no grande dia da reconeüiação, significa a doa­
ção vicária de vida, possibilitada por Deus (com graça), a fim de que pos­
sa novamente voltar a estar no meio de seu povo, cuja vida havia sido
arruinada.^®® Nesse sentido é também compreendida a doação de vida
de Jesus Cristo no Novo Testamento: por intermédio dela não foram os
seres humanos que reconcüiaram Deus, mas Deus que os reconciliou
consigo, não só a eles, mas a todo o mundo (2Co 5.19; Cl 1.20; também
Rm 5.1-11 e outros).®®® Mesmo que a IPe não explicite melhor essa con­
cepção, mas pressuponha de maneira formal a reconciliação pelo san­
gue de Jesus como convicção comum, também ela deixa claro, através
da imagem do resgate, que com isso é feito referência a um evento em
que Deus criou a possibüidade de redenção. Seu acento distintivo a IPe
coloca na contraposição do sangue de Cristo aos bens terrenos. Isso
parece ser superficial, mas, pela contraposição explicita do metal pre­
cioso “corruptível” ao sangue de Cristo como “cordeiro sacrificial sem
defeito e sem mácula”, todo o evento redentor é colocado em oposição
explícita ã esfera terrena da transitoriedade, ficando novamente clara
sua alteridade fundamental. Não se trata aqui de uma oposição ontológica
entre passageiro - perene (o que também dificümente seria compreensí­
vel, haja vista a durabüidade bem menor do sangue quando comparado
com o metal precioso); a oposição entre metal precioso e sangue carac­
teriza, antes, uma oposição entre dois modos de vida e suas avaliações
teológicas contrárias. Pois ouro e prata são meios usados para a afirma­
ção violenta da vida à custa de outros: já a sua aquisição custa vidas®®'^,
e quem os acumrda explora outros (Tg 5.1-5; cf. Ap 17.4); na qualidade
de “meio para atrair o mal” e “combustível de guerra”®®®, o metal precioso

GESE, H. Die Sühne. In: IDEM. Z u r biblischen Theologie. Alttestamentliche Vorträge.


2. ed. Tübingen, 1983. esp. p. 100; “O ser humano como tal, em seu distanciamento
de Deus, encontra-se escravizado à m orte diante da revelação da glória divina.
Deus, no entanto, constrói um caminho até si próprio pela expiação simbólica, que
se realiza no culto por ele revelado” . As teses de Gese foram confirmadas pelo seu
discípulo Janowski (cf. JANOW SKI, B. S ü h n e a ls H eils g e s ch e h e n . Traditions- und
re lig io n s g e s c h ic h tlic h e S tu d ien zu r S ü h n eth eolo gie d er P rie s te rs c h rift. 2. ed.
Neukirchen-V luyn, 2000).
ECKSTEIN, H.-J. G la u be, d e r e rw a ch s e n w ird. 6. ed. H olzgerlingen, 2002. p. 26:
“ Näo [...] o ser hum ano tom a aqui a in iciativa para m udar Deus e reconciliá-lo
novamente, mas é Deus que, em sua situação de prejuízo advindo de própria culpa,
o presenteia com a possibilidade de nova vida com a nova comunhão [...]” .
Isso já inicia na exploração do metal precioso; as antigas minas costumavam ter a
reputação de locais em que as pessoas condenadas a trabalhar acabavam morrendo
sob torm entos (cf. sobre isso REBRIK, B. M. G e o lo g ie u n d B e rg b a u in d e r A n tik e.
Leipzig, 1987).
Cf. sobre isso as explanações a respeito do papel desem penhado pelo ouro na
“época de ferro” em Ovid, Metam I,140ss; cf. também SlSal 17.33.

108
é ferro nocentius, mais prejudicial que o ferro empregado na produção
de armas mortais.^®® Em contraposição a isso, aqui ocorre o resgate pela
doação de vida. Esse motivo ainda é reforçado por intermédio da ima­
gem do cordeiro sem mácula, e por isso adequado como sacrifício no
templo, empregada para Cristo. Nesse contexto, IPe 1.19 faz referência
ao poder criativo salvífíco do sacrifício.^^° A metáfora do cordeiro sacrificial
tem, porém, um excedente semântico, que se revela precisamente no
contraste com o leão no final da carta (IPe 5.8): enquanto o predador,
que “ruge, procurando alguém para devorar”, vive do sangue de outros,
o cordeiro é o sacrifício por excelência, do qual vivem os outros. Nesse
sentido, o cordeiro também simboliza Cristo como aquele que não vive
de outros, mas que se sacrifica por eles.^^^

V. 20 Por trás da morte de Jesus encontra-se o próprio Deus, ã cuja


presciência, sobre a qual já fora falado em 1.2, ê atribuído o evento
redentor. O envio do filho é agora atribuído a uma autodeterminação
divina, ocorrida antes de qualquer tempo e anterior a todo ser criado,
e ao seu lado ê colocada adversativamente a realização no final dos
tempos. Essa contraposição de um planejamento divino anterior aos
tempos e sua realização histórica no evento de Cristo eneontram-se
frequentemente na literatura (epistolar) neotestamentária®^^ e do cris­
tianismo primitivo.®®^ Elas tomam claro: na redenção pelo sangue do
cordeiro realizou-se a transição dos tempos (e nesse sentido esse res­
gate é duradouro, porque está fundamentado em uma determinação
divina anterior ao surgimento deste mundo transitório, razão pela
qual também pode conduzir além dele). O objetivo dessa indicação
de tempo é, simultaneamente, apontar para a comunidade: a adição
do “por nossa causa” coloca os crentes, que se encontram pressiona­
dos para a periferia e marginalidade dentro de seu contexto, no cen-

Assim Ovídeo em sua descrição da época de ferro: ia m q u e n o cen s fe rru m fe rro q u e


nocentius aurum prod iera t (Ovid, Metam I, 141s). Cf. também Luciano, o cínico: “Pois
toda miséria que oprime as pessoas, indignações, guerra, infidelidade, conspiração e
assassinato provêm da cobiça desses infelizes metais (sc. ouro e prata) e da sede por
tê-los sempre mais” (LUKIAN. D e r Kyniker. Werke in 3 Bänden, v. II, p. 72).
Cf. JEREMIAS, J. D ie A b e n d m a h ls w o rte Jesu. 4. ed. Göttingen, 1967. p. 216s, que
apresenta, na p. 217, textos sobre um a concepção de expiação ligada ao sangue do
cordeiro pascal (Ex Rabba 15,13 para Éx 12.2; Ex Rabba 15,13 para Êx 12.8).
Em Ap 5 isso é expresso por meio de um a ruptura no metaforismo: anunciado é o
leão de Judá, que pode abrir o livro com os sete selos - o que aparece, contudo, é um
cordeiro im olado; cf. sobre isso FELD M EIER, R. Das Lam m und die Raubtiere.
Tierm etaphorik und M achtkonzeptionen im Neuen Testam ent. In: GEBAUER, R.;
MEISER, M. (Eds.). D ie bleibende G egenw art des Evangelium s. (FS O. Merk.) Marburg,
2003. p. 205-211.
A referência com probatória mais antiga é provavelmente o (não totalmente seguro)
final de Rm 16.25; cf. ainda Cl 1.26; 2Tm 1.9s; Tt 1.2s, bem como E f 3.5, 9; Jo
17.24.
Cf. IgnM agn 6.1; 2Clem 14.2; Herrn 89.2s s IX,12.

109
tro da história salvifica - eles são o objetivo último do planejamento
divino anterior ao tempo e de sua execução ao final dos tempos.

V. 21 Antes de a carta retomar ao imperativo no v. 22, a referência ã


ação divina sobre os crentes sugerida ao final do v. 20 é ainda melhor
desenvolvida; sua confiança em Deus reside na ação salvifica de Cris­
to. Esse Deus, por assim dizer, se fixou na ressurreição, “definiu-se”
como aquele que ressuscitou a Cristo dos mortos, dotando-o de gló­
ria. Isso fundamenta “a fé e a esperança em Deus”. Aqui se pode reco­
nhecer claramente de novo o desenvolvimento da cristologia numa
forma adaptada à situação: no destino de Cristo, segundo a IPe, Deus
se revelou como aquele que pode e haverá de transformar em triunfo,
glória e vida eterna a humilhação, o sofrimento e a morte dos que lhe
pertencem.

Novamente (1.3, 15, 17; cf. ainda 2.9, 23 e outros) Deus não é descrito aqui com
adjetivos, mas particípios. A IPe compartilha essa particularidade com Paulo^®^
e ela é reveladora para o discurso sobre Deus, pois adjetivos descrevem o ser;
particípios, ao contráirio, o efeito e a ação. N a literatura neotestamentária das
cartas, trata-se, mais exatamente, de um a ação que tem por objetivo o outro.
Mesmo onde n a IPe é empregado excepcionalmente um adjetivo, na santidade
de Deus em 1.14s, esse vem unido ao particípio KaÀéoai;, que tom a claro não ter
essa santidade su a razão de ser na delimitação em relação a pessoas, m as em
sua incorporação, sim, n a autocomunicação de D eus ao outro.

1.2.4 Amor como comprovação da nova vida (1.22-25*)

V. 22: Com almas, purificadas na obediência ã verdade para


amor fraternal não-fingido, amai-vos persistentemen­
te uns aos outros de coração limpo,
V. 23: como que renascidos - não de semente corruptível,
mas de incorruptível, [i. e.] mediante a viva e perma­
nente palavra de Deus,
V. 24: pois “toda a carne [é] como erva, e toda a sua glória
como a flor da erva. A erva secou e a flor caiu por terra,
V. 25: a palavra de Deus, porém, permanece eternamente”.
Esta, porém, é a palavra que vos foi pregada como evan­
gelho.

Cf. BROX, 1993, p. 83; “Essas poucas palavras descortinam dimensões universais
e h is tó ric o -m u n d ia is , que elas d eix a m d es a g u a r d ireta m en te no d estin o dos
interpelados: o acontecimento dramático, pré-cósmico e escatológico foi querido por
Deus ‘ôl’ úpôç/por vossa causa”’.
Cf. FELDMEIER, R. Paulus. In: AXT-PISCALAR, Ch.; RINGLEBEN. J. (Eds.). D e n k e r
d es C h risten tu m s. Tübingen, 2004. p. 1-22.

110
* Literatura sobre IPe 1.22-25: EVANG, M. ’E k KapSíaç àXX'pXouç àyain^aaTe ÈKTevwç.
Zum Verständnis der Aufforderung und ihrer Begründungen in IPetr l,22f. ZNW
80, p. 111-123, 1989; La VERDIERE, E. A. A Grammatical Ambiguity in 1Pet 1:23.
CBQ 36, p. 89-94, 1974.

A sequência é determinada pelo imperativo “amai-vos persistentemente uns aos


outros”. Esse imperativo está emoldurado por dois partieipios perfeitos. Enquan­
to o primeiro, ativo, fala da purificação da alma n a obediência à verdade, subli­
nhando, portanto, a renovação da existência por meio de esforço próprio, o segun­
do, passivo, relembra mais um a vez a ação de Deus - anterior a toda autodetermi­
nação — como fundamento para o amor mútuo. Ambos os partieipios são explica­
dos por respectivas definições preposicionais, sendo que a primeira delas infor­
m a sobre o fundamento e a meta da purificação (“n a obediência [...] para o amor
fraternal”), enquanto a segunda fornece o fundamento do renascimento (“não de
semente corruptível [...] pela palavra”).

V. 22 A santificação como “filhos da obediência” requerida na seção


anterior (1.14) é agora retomada na solieitação de purificar as almas
na “obediência à verdade”. O verbo ày^LCeLv é, no Antigo Testamento,
termo técnico para purificação cultuai®®®, sendo empregado dessa
mesma forma ainda no Novo Testamento®®^; no judaísmo incipiente e
no cristianismo primitivo, sobretudo nas “cartas católicas” (Tg 4.8;
1Jo 3.3), contudo, já era empregado para designar a pureza do pensa­
mento e da ação.®®® Também aqui a IPe acolhe uma concepção
domiciliada no contexto bíblico, reveste-a, porém, como purificação
da alma®®®, com uma roupagem tipicamente helenista. No entanto,
enquanto na filosofia contemporânea entende-se purificação da alma
sobretudo como sua libertação de toda forma de paixão"^®®, a IPe, pela
primeira vez, especifica a conduta requerida como amor. Mesmo que
esse amor originalmente (1.8) estivesse relacionado com Cristo, ago­
ra é o amor ao próximo que, como consequência da fé na salvação,
deve determinar a maneira de viver dos crentes. Assim, tanto a defi­
nição mais precisa “amai-vos uns aos outros” (àÀÀiiÀouç) quanto tam­
bém o termo (j)LA.aôel.(|)[a mostram que aqui (como também em outras
passagens"^®^) a referência é ao amor em meio à comunidade cristã.
Isso de forma alguma implica menosprezo ou até mesmo ódio contra
todos os que não pertencem à própria comunhão"^®^; certo é que a IPe

Cf. Êx 19.10; Nm 11.18; Js 3.5 e outros.


Jo 11.55; At 21.24, 26; 24.18.
Cf. SI 19(18].10; Pv 20.9; 4M ac 18.23; 1 QS III.4-9; IV.20s; IC lem 21.8; 48.5.
V. acim a o excurso 4: Alm a e salvação da alma na IP e, p. 84ss.
Em Diss 11,18,19 Epiteto form ula até como princípio: “Tenha o desejo de tornar-te
puro em comunhão contigo mesmo e com Deus”. Isso ocorre na “grande batalha” da
alma contra o medo e o desejo (ibidem; cf. IP e 2.11).
Cf. 2.17; 4.8s; também 5.14.
Isso fica claro, p. ex., em 2.17, onde os cristãos são conclamados a honrar todas as
pessoas, um a formulação paralela ao amor pelos irmãos.

111
tem uma predileção especial pelas relações no interior da comuni­
dade devido à pressão exterior, contra o que os cristãos não têm o que
contrapor senão a união (semelhante G1 6.10). O pedido por cj)LA.aôeA.(j)ía
encontra-se com maior frequência no Novo Testamento (cf. Rm 12.10;
ITs 4.9; Hb 13.1; 2Pe 1.7).

Digno de nota é também que a conclamação para o amor é melhor


definida de várias maneiras: as almas devem ser purificadas paira um
amor fraternal não-fingido, e esse amor deve provir de um coração
limpo. Conclamações semelhantes encontram-se também em outras
partes do Novo Testamento'^®^, e essas enfatizam aquilo que até o mo­
mento foi designado de “santificação” (1.15s; cf. 1.2), tendo em vista a
convivência; falsidade e hipocrisia são os maiores perigos para uma
comunhão fundamentada no amor reciproco. Aqui convém observar
também a definição seguinte, segundo a qual a purificação da alma
para o amor fraterno deve ocorrer “na obediência ã verdade”. O termo
“verdade” (àA,ri0eLa), que na IPe encontra-se só nessa passagem, é aqui
seguramente também “simbolo para as várias descrições da salvação
presenteada”'^“'^. Mas provavelmente não é casualidade que a IPe em­
pregue esse termo delimitando-o da hipocrisia: as almas são purifi­
cadas em correspondência com a verdade divina e isso possibilita o
amor sem hipocrisia. O advérbio èKxeycôç pode tanto designar a durabi­
lidade quanto a intensidade do amor; ambos os sentidos são defendi­
dos.''“® A interpretação temporal recebe nossa preferência devido ã
afinidade com ã(|)0aptoí;/iaéva)v na segunda construção participial no v.
23;''“® para a IPe provavelmente o mais importante é a fidelidade e a
confiabilidade. A tradução por “persistentemente” procura levar em
consideração o aspecto da intensificação no sentido de uma doação
irrestrita, que no grego ressoa junto.

V. 23 A fundamentação do mandamento do amor ocorre pela renova­


da referência ã “regeneração”, à qual a IPe agora se refere com um
participio perfeito passivo resultativo, a fim de caracterizar o renasci­
mento como algo já concluido: apesar de todo esforço próprio, neces­
sário para um comportamento renovado, a nova existência não se fun­
damenta na ação própria, mas no cuidado divino antecedente, res-

Sobre o desafio de am ar ou crer sem fingim ento, cf. Rm 12.9; 2Co 6.6; IT m 1.5;
2Tm 1.5; Tg 3.17.
BROX, 1993, p. 86.
Cf. GOPPELT, 1978, p. 127: “com toda doação”; SCHELKLE, 1980, p. 52: “fervoroso”;
BROX, 1993, p. 85: “duradouro” .
Cf. EVANG, M. ’Ek Kapôíaç àUiíXouç ayaTnioaie êKxevôç. Zum Verständnis der Aufforderung
und ihrer Begründungen in IP etr l,2 2 f. Z N W 80, p. 116, 1989.

112
ponsável pela renovação do ser humano. Como ocorreu com o resgate
no trecho anterior, aqui novamente é sublinhada a proveniência “não-
mundana” do meio de salvação redentor - nesse caso, pela antítese
entre semente “corruptível” (como pressuposição da primeira cria­
ção) e a “viva e permanente palavra de Deus’”*“^ como a semente
“incorruptível”.'^“® Também esta é uma imagem relativamente arroja­
da: a palavra dÍArina é descrita em sua ação em analogia à semente
humana. Assim como essa possibilita a vida biológica, a palavra, que
por si própria é “viva e permanente”'^““, comunica sua vivacidade e
imperecibilidade, de forma que os que renasceram por seu intermé­
dio estejam livres da transitoriedade geral; a palavra do evangelho
possui, como palavra do Criador (1.20), “força criadora”.

V. 24 A vivacidade da palavra de Deus é mais uma vez destacada nos


V. 24s com ajuda da citação de Is 40.6-8 LXX. Essa palavra bíblica
encontra-se na palavra de consolo no início do Dêutero-Isaías, mas é
interpretada de forma nova pelo contexto diferente: em Isaías, a gló­
ria de Deus como fundamento de esperança e confiança é contrasta­
da com a fragilidade humana para realçar a superioridade de Deus
sobre os povos, fundamentando dessa forma sua promessa a Israel.
Na IPe, o contraste entre erva seca e flor caída, por um lado, e a per­
manente palavra de Deus, por outro, resulta num dictumprobans para
a antítese entre transitoriedade humana e eternidade divina.

V. 25 Essa palavra “permanente”'*^^ é, simultaneamente, a palavra


que - como sublinhado pela explicação um tanto adicional - “vos” foi
pregada como evangelho. O que em 1.3s havia sido dito sobre a “espe­
rança viva” e a “herança incorruptível”, também vale para a “palavra
viva” e a “semente incorruptível”: é na vida divina que os eleitos têm
participação pela esperança, pela fé, pela pregação do evangelho.

Em termos gramaticais, ambos os particípios “viva” e “permanente” também poderíam


referir-se a Deus; é assim que traduz a Vulgata: p e r verbum D e i vim et perm a n en tis.
Tanto a referência da palavra à semente incorruptível quanto a afirmação de 1.25, em
que o “permanecer” é referido diretamente à palavra, tom am mais provável que os
dois particípios devam ser relacionados com o Àóyoç. (cf. já BENGEL, J. A. G nom on
N ovi Testam enti, In quo ex nativa verborum vi simplicitas, profunditas, concinuitas,
salubrítas sensuum coelestíum indicatur. Berlin, 1860 (= 3. ed., 1773. p. 628). Sobre
a justificação gramatical dessa referência, cf. La VERDIERE, 1974, esp. p. 91-93.
Sobre o emprego da imagem da semente para a palavra de Deus, cf. Lc 8.11.
Os dois particípios também poderíam referir-se gramatícalmente a Deus. Isso, porém,
é menos provável. Que Deus seja vivo entende-se por si só, e o caráter da palavra
como “perm anente” é repetido ao final de 1.25.
W OLFF, 1975, p. 335.
Digno de nota é a repetiçáo no v. 25 do verbo \ikvw já usado em 1.23.

113
1.2.5 Renascimento e recomeço (2.1-3)

V. 1: Despojando-vos, portanto, de toda maldade e toda men­


tira, de hipocrisias e malevolências e de todas as male-
dieências,
V. 2: desejai como crianças recém-nascidas o leite não-adul-
terado da palavra [de Deus], a fim de que por ele cresçais
para a salvação,
V. 3: se é que “provastes que o Senhor é bondoso”.

Também 2.1-3 é dominado por um imperativo, o pedido para desejar o I oylkÒv


yáXa, o “leite da palavra”. A ele, por meio de um particípio presente, encontra-se
associado um breve catálogo de vícios que descreve as coisas das quais devem
abster-se os cristãos que conservam puras suas almas na obediência (cf. 1.22).
U m a primeira frase secundária, introduzida com Iva final, dá o propósito do
imperativo; um a segunda frase, a sua razão.

V. 1 O renascimento leva a uma nova conduta, como mais uma vez é


destacado pela negação de um catálogo de vícios, sendo que o pedido
ainda é intensificado pelo acréscimo do predicado “toda/as”, realiza­
do três vezes. Em termos de conteúdo, os comportamentos aqui estig­
matizados (mentira, hipocrisia, malevolência e maledicência) são, em
especial, aqueles que envenenam a relação interpessoal, contrarian­
do tanto o amor mútuo anteriormente solicitado quanto o pensamen­
to central da nova comunhão, desenvolvido a seguir (2.4-10).

V. 2 Esse catálogo de vicios, entretanto, não é levado adiante por um


catálogo de virtudes correspondente, mas desemboca na solicitação:
“desejai como crianças recém-nascidas o leite não-adulterado da pala­
vra [de Deus] [...]”. Aqui ocorre novamente uma mistura de metáfora
com linguagem “propriamente dita”"^^^, tipica para a IPe. No contexto
da carta, essa expressão acolhe o tema teológico do renascimento,
desenvolvendo-o melhor: regeneração e nascimento pelo logos divi­
no são sucedidos agora pela “amamentação”"^*® dos renascidos com
“leite de logos” e pelo seu correspondente crescimento. A compara-

Designam os aqui o n o m e n p ro p riu m com o “linguagem propriam ente dita” só com


reservas, pois a qualificação da m etáfora como “linguagem não propriam ente dita”
dai resultante é problemática (cf. JÜNGEL, E. Metaphorische Wahrheit. Erwägungen
zu r th e o lo g is c h e n R ele va n z d er M eta p h er als B e itra g zu r H erm en eu tik ein er
narrativen Theologie, ln: RICOEUR, P.; JÜNGEL, E. M eta p h er. Zur H erm eneutik
religiöser Sprache, m it einer Einführung von P. Gisel. München, 1974. p. 74-77).
Ora, um a metáfora que tem êxito pode captar um assunto de forma “propriamente
dita” , mais precisa do que a assim chamada linguagem propriamente dita.
É possivel que o pano de fundo aqui subjacente seja o da id eia de ausência de
pecado nas crianças pequenas (assim WINDISCH, 1951, p. 58, com recurso a textos
do judaísm o incipiente contem porâneo, como 2Mac 8.4 e Filo, RerDivHer 38).

114
ção dos cristãos com recém-nascidos encontra-se só aqui no Novo
Testamento. Justamente onde a responsabilidade dos cristãos é des­
tacada, a fim de que ao novo nascimento possa corresponder uma
nova orientação ética, a dependência de Deus é simultaneamente
mais uma vez sublinhada. Essa nova existência só pode ocorrer ali
onde os que creem sempre são “alimentados” por Deus, ou seja, pre­
cisamente pelo “leite da palavra”.

Também essa concepção tem precursores no judaísmo contemporâ­


neo. Segundo Filo, o logos divino é o “alimento imperecível” para aquela
alma que, não fixada na sensualidade, “ama contemplar o céu”."^'"* Dessa
forma. Deus não se toma somente o único autor do início da nova vida,
senão que dele também provém todo crescimento “para a salvação”, do
qual fala aqui a carta. O renascido só existe e cresce no constante
“metabolismo espiritual”. É exatamente esse que os crentes devem
desejar, como reivindica o único imperativo dessa sequência - desejar
com a intensidade desenfreada de um recém-nascido faminto. Assim
como na imagem da geração e do nascimento, aqui é sublinhado mais
uma vez que os renascidos não passam inicialmente de recebedores,
constituindo exatamente isso a condição para se tomarem novos.

Excurso 7: Renascimento*
* Literatura sobre o excurso: FELDMEIER, R. (Ed.j. Wiedergeburt. Gõttingen, 2005.
(BThS 25).

Até o ponto em que é possível emitir um juízo, por cau sa da escassa


situação das fontes, a metáfora do renascimento, no sentido de um a transfor­
mação da existência hum ana, religiosamente condicionada e independentemente
de su a natureza mais exata, encontra-se em diferentes textos de procedência
judaica, cristã e pagã desde o século I d .C ’'®.
D a esfera judaica, o paralelo mais interessante é apresentado por Filo,
QuaestEx 11,46. Trata-se de um a interpretação de Êx 24.16b, em que o filósofo
judeu da religião interpreta alegoricamente a tradição segundo a qual Moisés foi
chamado para junto de Deus no sétimo dia como indicação de um “segundo nasci-

Filo, RerDivHer 79, cf. DetPotIns 85; cf. ainda JosAs 12.2, onde a palavra divina é
designada como a vida das criaturas.
Uma metafórica semelhante encontra-se também na carta cristã-primitiva de Bamabé.
Essa vincula, em sua interpretação alegórica das afirm ações biblicas relacionadas
com a “terra prometida”, o leite e o mel com a fé na promessa e com a palavra que -
da mesma maneira que o leite e o mel em relação à criança - “vivifica” os que creem
(Barn 6.17). A interpretação dessa im agem mais extensiva relacionada com Deus
feda dos seus seios que são ordenhados pelo Espirito Santo e encontra-se nos Odes
de Salom ão (O dSal [syr.] 19.1ss; cf. C H ARLESW O RTH , J. H. (Ed.). T h e O d e s o f
Solom on . The Syriac Texts. Missoula, 1977. p. 81s).
Cf. BACK, F. W iedergeburt in der religiösen W elt der hellenistisch-röm ischen Zeit.
In: FELDMEIER, R. (Ed.). W ied ergebu rt. Göttingen, 2005. p. 45-74. (BThS 25).

115
mento” por D eus mesmo, ao qual é contraposto o primeiro nascimento por meio
de “pais perecíveis”. Por meio desse segundo nascimento a alm a é libertada do
corpo, tom ando-se participante da “mais santa natureza da hebdôm ada”. O em­
prego adicional dessa metafórica no judaísm o helenizado da diáspora testemu­
n h a também Ps-Filo, De Jona, em que são designados de renascidos tanto o
profeta que n a barriga do pebce apelava para Deus (25s, §95.99) quanto também
os habitemtes arrependidos da cidade de Nínive (46, §184)"^*^. Semelhantes são
igualmente as afirmações do romance sobre conversão “José e Asenet”, prova­
velmente surgido no Egito. Nele, a filha egípcia de um sacerdote emprega, em
conexão com sua passagem para o judaísmo, os verbos ãvaÇcooTroieXv (8.9; 15.5;
27.10), àvocKaLVÍÇeiv (8.9; 15.5, 7) e àmnhkaaíiv (8.9; 15.5) como expressão da ação
divina nela.
Um pouco mais recentes são os textos pagãos oriundos do círculo dos
mistérios. O texto mais marcante é o 11° livro das metamorfoses de Apuleio. A
redenção de um certo Lucius de su a aparência de asno por Isis prefigura o
renascimento pela iniciação nos mistérios. Libertado, por essa iniciação, do
destino cego e colocado sob a proteção de um “destino que vê as coisas”'*^®, que
assegura vantagens como numen irwictum (Apul, Met XI,7) e omnipotem dea (Apul,
Met XI, 16) ao seu adepto tanto nesta vida quanto no reino dos mortos através
de u m a forma de relacionamento clientelista, dito protagonista é renatus quodam
modo (Apul, Met XI, 16). A propagação da metafórica do renascimento em cone­
xão com a iniciação nos mistérios é testemunhada também por um a inscrição
no templo de Mitra de Santa Prisca em Roma, a qual designa o dia da iniciação
como o novo dia de nascimento. Também algum as inscrições de Taurobolium
remetem ao dia de nascimento do iniciante nos m i s t é r i o s . A terminologia do
renascimento é igualmente testemunhada - mesmo que só no século IV - por
Sallustius.'*^“
No Novo Testamento, a noção do renascimento encontra-se, fora da IPe,
sobretudo no diálogo noturno de Jesus com Nicodemos em Jo 3; ali (esp. 3.5),
como em Tt 3.5, ela é em pregada para interpretar o batismo (cf. também Jo
1.13). Ao contrário desses textos que correlacionam renascimento e batismo, Tg
1.18 acentua com o renascimento, como a IPe, a ação da palavra de Deus. Um
caso especial constitui o renascimento nos textos herméticos.
As concepções designadas com a metáfora do renascimento são, no en­
tanto, de tal forma disparatadas, que não parece poderem remontar a um tipo
u n i f o r m e . A i n d a mais hipotéticas são todas as tentativas de comprovar de-

Cf. sobre isso SIEGERT, F. D re i h e lle n is tis ch -jü d is ch e P red ig ten . Ps.-Philon, „Ober
Jona“ , „Über Jona“ (Fragment) und „Über Simson“ . Kommentar nebst Beobachtungen
zur hellenistischen Vorgeschichte der Bibelherm eneutik. Tübingen, 1992. v. 2, p.
163s, 166s, 207.
Apul, Met XI, 15; essa visão da divindade é a emtîtese consciente da ca ed ta s fortunae.
Cf. sobre isso B U RK ERT, W. A n tik e M y s te rie n . Fu n ktion en u nd G ehalt. 3. ed.
München, 1994. p. 84.
™ Sallust, DeDeis 4=8.24, ed. Nock - ali os renascidos (àvaYewcó^i6voL) recebem leite
após o jejum, cf. IP e 2.2 (cf. WYSS, K. D ie M ilch im K ultus d e r G riechen u n d Röm er.
Gießen, 1914).
Sobre o C orp H erm X III, cf. BACK, F. W ied ergeb u rt in d er re ligiö sen W elt der
hellen istisch -röm isch en Zeit. In: FELDM EIER, 2005, p. 64-69.
Cf. as colocações de BURKERT, 1994, esp. p. 83-86. Os testemunhos para o ritual do
renascimento são, segundo Burkert, “em parte por demais vagos, em parte por demais
pluriformais, para justificar a preferência por uma teoria simples e simultaneamente
abrangente” (p. 84).

116
pendências entre os diferentes testemunhos.'^“ Nesse sentido, inicialmente
cabe dar razão à maioria das interpretações quando rejeitam um a proveniência
e explicação diretas do discurso sobre o renascimento na IPe desses textos
paralelos. D a m esma forma, porém, também não convence a renúncia de toda e
qualquer consideração em relação às fontes da história das religiões, por exem­
plo, devido à identificação do renascimento com o batismo.''^'* Pelo contrário, é
justamente na consideração simultânea de contato e diferenciação, de recepção
e transformação que se mostra como a IPe traduziu a verdade do evangelho num
novojogo de palavras por meio de recepção e combinação criativa de diferentes concep­
ções, a fim de que pudessem tomar-se realidade também em meio a contextos de vida
diferentes. Para tanto é necessáirio que se considere também, bem mads intensi­
vamente do que até a presente data, o renascimento como metáfora religiosa
autônoma, em vez de desconsiderá-lo através de “interpretações” precipitadas.
O que segue dará, em forma de teses, um resumo daquilo que significa a repro­
dução da mensagem cristã da salvação pela imagem do renascimento n a IPe:
A metáfora do renascimento personaliza a salvação escatológica. Assim como o
nascimento, também o renascimento é um acontecimento relacionado indivi­
dualmente com cada pessoa. Enquanto o nascimento condiciona sua vida terrena,
a função do renascimento é corrigir, resp. superar as condições colocadas com o
seu primeiro nascimento (cf. em especial IPe 1.23s). A concentração na “salva­
ção das almas” representa u m a modificação de acento significativa em relação à
escatologia do cristianismo primitivo, influenciada pela apocalíptica e articula­
da, p. ex., na pregação de Jesus sobre o reino de D eus vindouro ou n a esperan­
ça de um a nova criação (desde Paulo'^^^ até o Apocalipse).
Com o renascimento é sublinhada ajá ocorrida renovação da existência dos cren­
tes e, com ela, apresentificação da salvação. Essa personalização permite identificar,
também num mrmdo ainda não-redimido - e os sofrimentos sempre reportados
na IPe destacam com insistência esse estado de não-redenção - , um lugar em
que a renovação escatológica já tenha se realizado, a saber, nos que creem'*^®. No
motivo repetido da alegria em meio aos sofrimentos (1.6; 4.13s; cf. 3.14; 5.12),
essa renovação já pode ser experimentada como superação e transformação da
experiência negativa do mundo e, assim, como antegozo da glória vindoura.
No presente, contudo, a salvação só pode ser experimentada na medida em que,
naforma da esperança, ofuturo de Deusjá qualifica o presente dos que creem. Pelo fato
de o renascimento ser definido como renascimento “para um a viva esperança”, a
IPe deixa claro que a referência ao futuro permanece constitutiva para ele. A vida
dos eleitos vai se tom ar nova em função da “herança nos céus” (1.4), que, apesar
de já Lhes ter sido dedicada n a ressurreição de Jesus Cristo (1.3), será revelada
unicamente “no final dos tempos” (1.5). Essa salvação futura para a terra está
presente unicamente no modo de fé e amor (cf. 1.8); na “viva esperança”, a salva­
ção ainda ausente é presentificada para os crentes como perspectiva vivificante
e, por isso, portadora de alegrias, sem, contudo, perder sua dimensão futura.

Burkert alerta contra relacionamentos e dependências existentes em textos neotesta-


mentários: “Em termos histórico-filológicos, até o momento ainda não foi comprovado
que a concepção do Novo Testam ento seja diretam ente dependente de doutrina de
mistérios pagã” (cf. BURKERT, 1994, p. 86).
™ Cf. FELDMEIER, R. W iedergeburt im 1. Petrusbrief. In: IDEM, 2005, p. 77-81.
Cf. especialmente Rm 8.18ss; mesmo que também a nova criação em 2Co 5.17 esteja
relacionada com o crente individual, ela sim ultaneamente encontra-se aberta para
o relacionamento com a ação salvifica de Deus para toda a criatura (cf. 2Co 5.19).
Com isso não se indica apenas o ponto de partida no batismo, mas a nova situação.

117
Os renascidos vivem neste mundo como “peregrinos”; ao mesmo tempo, encon­
tram-se integrados na nova comunhão do povo de Deus. D essa maneira, a condição
de salvação recebe um a forma social e histórica.
Ao mesmo tempo, com o renascimento. Deus e o ser humano encontram-se defi­
nidos em sua relação mútua: Deus como o poder de vida que vence a existência humana
escravizada à morte; as pessoas como “filhos/as”. Como tais, já não são mais so­
mente criaturas, m as têm simultaneamente participação genética com D eus
como “Pai”.'*^'^ Dito de outra forma: pela regeneração. Deus dã pairticipação em
su a própria vitalidade e eternidade. De forma correspondente, predicados ex­
clusivos da divindade, como incorruptibilidade, imarcescibilidade, imaculabUi-
dade, tornam -se, pelo processo do renascimento, em atributos da nova vida
(esp. IPe 1.4, 23; cf. também 3.4; 5.4).
Renascimento sublinha que a nova existência deve-se exclusivamente ao Deus
que, na palavra, se comunica e dá participação de si. Como o ser hum ano não pode
fazer absolutam ente n ada para su a geração e nascimento, assim tam bém a
metáfora da regeneração, resp. do novo nascimento, destaca que salvação é algo
que nos acontece, que o renascido não é senão um recebedor.
Pela sua relação com Deus como “Pai”, os renascidos são, simultaneamente,
“filhos da obediência” (1.14). A palavra de Deus que transforma as pessoas não é
somente a palavra que elege e promete, mas, ao mesmo tempo, a palavra que
ordena, n a medida em que, em oposição à orientação de vida que até o momento
estava determinada pela “concupiscência”, espera pela correspondência com a
santidade de Deus (1.14ss).

V. 3 Também esse trecho é concluído com uma citação do Antigo


Testamento, extraída do SI 34[33].9, que permanece na sensualidade
da metafórica até aqui usada quando fala sobre a “degustação” da
bondade e amabilidade de Deus, resp. aqui de C r i s t o . A metáfora
contém um jogo de palavras: em razão do itacismo"^^®, provavelmente
já na época xptiatóç e xptotóç eram pronunciados da mesma forma, pelo
que a frase poderia ser simultaneamente ouvida como “Cristo é o Se­
nhor” ou “o Senhor é delicioso (bondoso)”, razão pela qual muitos
manuscritos também testemunham a leitura xpto-uóç, entre os quais
alguns tão importantes eomo o e o minúsculo 33. Com exceção
de duas citações do Antigo Testamento (IPe 1.25; 3.12), em que a
pessoa de referência não é clara"^^°, o título K Ú p io ç é sistematicamente
atribuído a Deus na IPe (1.3; 2.13; 3.15). Esse é o que se torna sabo­
reado no “leite da palavra” e que provoca o crescimento para salva-

C f o y^vv!\(ikvxa oü iT0Lr|9évTa (genitum, non fa ctu m ) no símbolo niceno, que tem justamente
esse destaque, ou seja, que a filiação de Jesus vai além da relação mais exterior
entre produtor e produto, implicando um a participação na essência de Deus. É isso
que provavelmente também quer dizer 2Pe 1.4 com a participação na natureza divina.
™ Isso fica claro por meio de IP e 2.4 onde o “Senhor” de 2.3 é acolhido na imagem da
“pedra viva” , que claramente se refere a Cristo.
‘‘=5 C f sobre isso BLASS-DEBRUNNER, 2001, § 24.
430 Poder-se-ia perguntar, porém , a quem se refere a IP e com essas citações. Pelo
menos em 1.25 poderia, com base na afirmação paralela em 1.23, estar-se pensando
no próprio Deus (diferentem ente ELLIOTT, 2000, p. 391).

118
ção. A “degustação” da bondade divina'^®^ implica - junto com a me­
táfora da amamentação no v. 2 justamente pelo recurso ã sensuali­
dade, uma relação direta dos renascidos com aquela realidade “im­
perecível” (cf. 1.23).

2. Os renascidos como povo de Deus (2.4-10)

O trecho anterior de IPe 1.3 - 2.3 explanou como a vocação renova a


existência dos crentes em sua autocompreensão e em seu relaciona­
mento com o mundo. Apesar da densa rede de conceitos oriundos da
tradição bíblica e do judaísmo incipiente'*^^, bem como de citações e
alusões'^^® veterotestamentárias, a soteriologia está claramente
helenizada. Isso foi evidenciado justamente pela metáfora do renas­
cimento, característica para essa parte e acolhida por três vezes nela,
que destacou a soteriologia cristã primitiva como superação da tran-
sitoriedade da existência terrena pela participação na vitalidade de
Deus, tendo como provável função tornar a escatologia cristã plausí­
vel no contexto da religiosidade antiga tardia. A helenização da
soteriologia tem consequências: na “salvação das almas” (1.9) não
está mais em primeiro plano o reino de Deus vindouro ou a nova cria­
ção, mas a salvação dos que ereem. Essa salvação, porém - e nesse
ponto, apesar de toda a helenização, a herança bíbica judaica ainda
se mostra normativa -, não é nenhum evento puramente individual,
mas integra os “renascidos” numa nova comunhão. Isso já transpare­
ceu em IPe l.ls, no prê-escrito, em que por mais de uma vez é feita
referência à tradição do povo de Deus com os termos “eleição”, “diás-
pora” e “forasteiros” no v. 1, bem como com as alusões ã formação da
aliança no Sinai, no v. 2. Justamente essa tradição do povo de Deus é
agora ainda melhor desenvolvida no trecho final da primeira parte
principal, 2.4-10. Diretamente conectado com os versículos anterio­
res (ligação de frase com pronome relativo e construção participial), é
feita mais uma vez uma referência explícita ã vitalidade divina pre­
senteada no ato do renascimento: os regenerados para uma viva es­
perança (1.3), os renascidos por meio da semente incorruptível da
palavra idva (1.23) transformam-se agora, através de sua aproximação
ã pedra mva, Jesus Cristo (2.4), eles próprios em pedras invas, edificadas
numa casa espiritual (2.5). A imagem da pedra, empregada para Je-

o adjetivo xpnotóc é repetidamente empregado como distinção por bondade sensível


(cf. Lc 5.39; também Jr 24.3ss).
Misericórdia de Deus, herança, profetas, ovelha, ressurreição, fé, esperança, formação
do mundo, final dos tempos, etc.
Esses provêm tanto da Torá (Êx 24.7s; Lv 11.44s), como também dos profetas (Is
40.6-8) e dos escritos (SI 34[33].9).

119
sus Cristo, permite duas coisas: as afirmações em 2.4, que resumem
antecipadamente o florilégio de passagens bíblicas para pedra (2.6­
8), esclarecem inicialmente em Cristo o duplo caráter da eleição: essa
une a Deus, mas simultaneamente também separa do entorno, fun­
damentando dessa maneira uma distância, sim, uma tensão em rela­
ção aos semelhantes. Ao mesmo tempo, a imagem da pedra em com­
binação com a da casa, oriunda provavelmente da primeira“^^"^, permi­
te realizar a transferência desse duplo aspecto de Cristo como a “pe­
dra viva”, eleita e rejeitada, para os cristãos como as “pedras vivas” da
casa espiritual de Deus (2.5). Dessa maneira é fundamentada cristo-
logicamente, pela primeira vez, a interpretação histórico-salvífica, resp.
teológico-eletiva da existência dos cristãos como “estranhos” na so­
ciedade. Esse aspecto é aprofundado nas citações e nas alusões dos
V. 6 - 8 : Cristo é um fundamento firme para os crentes, mas para os
descrentes é pedra de tropeço. O trecho tem o seu ponto alto num
acúmulo singular de títulos coletivos de nohreza, que sublinham a
pertença a uma nova comunhão eleita por Deus, a comunhão dos
“cristãos”.

2.1 A edificação como casa espiritual (2.4-8*)

V. 4: Chegai-vos para ele, a pedra que vive - rejeitada, sim,


pelos homens, mas para com Deus eleita preciosa -
V. 5: tamhém vós mesmos, como pedras que vivem, deixai-
vos edificar como casa espiritual para um sacerdócio
santo, a fim de oferecerdes sacrificios espirituais, agra­
dáveis a Deus por intermédio de Jesus Cristo.
V. 6: Pois a Escritura contém [a afirmação]: “Eis que ponho
em Sião uma pedra angular, eleita, preciosa; e quem
nela crer não será de modo algum envergonhado”.
V. 7: Para vós outros, portanto, os que credes, honra; aos que, po­
rém, não creem, “a pedra que os construtores rejeitaram, essa
veio a ser a pedra angular”,

Assim VIELHAUER, Ph. O ikodom e. Das Bild vom Bau in der christlichen Literatur
vom Neuen Testam ent bis Clem ens A lexandrinus. Diss. theol. H eidelberg, 1939.
p. 145: “ [...] um a alegoria proveniente da com provação escriturística, um a nova
aplicação inteligente da com provação escriturística” .
435 A IP e é um dos p rim e iro s e s c rito s do N ovo T e s ta m e n to que p ressu p õ em a
autodesignação “cristãos” (4.16; cf. At 11.26). Essa consciência de um a identidade
própria provavelmente também explica que justam ente na transferência dos epítetos
do povo de Deus em 2.4-10 ocorra o surpreendente fenômeno do “esquecimento de
Israel” da IPe.

120
V. 8: e: “pedra de tropeço e rocha de ofensa”. São esses os que
tropeçam [nele], os que não obedecem a palavra, para o
que também estão determinados.
* Literatura sobre IPe 2.4-8: KUSS, O. Der Begriff des Gehorsams kn Neuen Testa­
ment. 7TiGZ27, p. 695-702, 1935; METZNER, R. Die Rezeption des Matthãusevangeüums
im 1. Petrusbrief. Studien zum traditionsgeschichtlichen und theologischen Einfluß
des 1. Evangeliums auf den 1. Petrusbrief. Tübingen, 1995. p. 176-181. (W U N T 11/74);
PESCH, W. Zu Texten des Neuen Testamentes über das Priestertum der Getauften.
In: BÖCHER, O.; HAACKER, K. (Eids.). Verborum Vertas. (FS G. Stählin). Wuppertal,
1970. p. 303-315, esp. 306ss; PRIGENT, P. I Pierre 2,4-10. RHPhR 72, p. 53-60, 1992;
SCHLIER, H. Die Kirche nach dem I. Petrusbrief. In: FEINER, J.; LÖHRER, M.
Mysterium Sälutis. Grundriss heilsgeschichtlicher Dogmatik, das Heilsgeschehen in
der Gemeinde. Einsiedeln, 1972. v. IV/1, p. 195-200; SCHÜSSLER FIORENZA, E.
Priester für Gott. Studien zum Herrschafts- und Priestermotiv in der Apokalypse.
Münster, 1972. p. 51-59. (NTA 7); VIELHAUER, Ph. Oi/codome. Das Büd vom Bau in der
christlichen Literatur vom Neuen Testament bis Clemens Alexandrinus. Diss. theol.
Heidelberg, 1939. p. 144-151.

Os versículos introdutórios 4-5, diretamente ligados aos versículos precedentes


pela conexão de frase com pronome relativo, são novamente dominados por um
imperativo: olKoôo|reta0€. Esse imperativo passivo acentua de novo a dependência
da ação de Deus; o momento de ação ativa não está excluído com isso, mas, por
meio do particípio irpooepxó|j.€voi., esse aspecto fica correlato e subordinado.

V. 4 Por meio da conexão de frase com pronome relativo é feita refe­


rência ao conteúdo precedente, mesmo que se inicie uma imagem
completamente nova: a construção com pedras vivas. Inicialmente
Cristo é apresentado como “pedra viva”. A metáfora rara aparente­
mente remonta a um florilégio cristão primitivo para a imagem da
pedra simbolizando Cristo, citado aqui pela IPe (v. abaixo, v. 6-8). O
particípio TTpoaepxópevoi desafia as pessoas a vir a essa pedra viva, a se
juntar a ela, para então construir com ela um edifício; na medida
em que os destinatários desse desafio são comparados com “pedras
vivas” em 2.5, também aqui novamente a imagem é forçada no inte­
resse catequético. A interpretação da imagem da pedra, orientada
pela situação, é típica: em antecipação à referida combinação de
citações veterotestamentárias sobre o termo “pedra” nos versículos
subsequentes, essa imagem é interpretada em duas direções con­
trárias (“sim” - “mas”), sendo que a contraposição se fundamenta
nas respectivas pessoas de referência: aparecem, por um lado, as
“pessoas” (2.5), os àiTLGToGvTÉí; (2.7), que rejeitam aquela pedra, mas,
por outro, é Deus que elegeu para si essa pedra, para quem ela re­
presenta uma pedra “preciosa”. Como a IPe já visualizou conjunta­
mente exclusão social e seleção por Deus na invocação dos seus
destinatários como “forasteiros eleitos”, assim esse aspecto duplo
torna-se agora uma característica do próprio Cristo: como pedra re­
jeitada pelas pessoas, ele é, diante de Deus, “eleito, precioso” - e

121
exatamente assim ele é a pedra angular da nova construção (IPe
2.7). Dessa maneira, a determinação da essência da comunidade,
entre seleção por Deus e exclusão da sociedade, recebe uma funda­
mentação cristológica (v. 7s).

V. 5 Antes que a carta continue a explorar a relação entre eleição


divina e exclusão social, passa a falar pela primeira vez sobre o pen­
samento central do presente trecho: a comunidade cristã. Duas coi­
sas ficam claras a esse respeito: por um lado, a promessa de que pela
adesão a essa pedra viva. Cristo, os próprios cristãos se tornarão em
pedras vivas'^^®, tendo, portanto, participação na vitalidade de Cris­
t o . P o r outro lado, no entanto, com isso se relaciona novamente a
parênese: como jã sinalisa o desafio “chegai-vos”, os cristãos devem
permitir que sejam edificados como “casa espiritual” (cf. ICo 3.9-11).
Dessa forma, é dito aqui explicitamente, pela primeira vez, que a nova
vida dos renascidos tem a forma de uma nova comunhão. As “pedras
vivas” só podem eumprir sua determinação de ser uma “casa espiri­
tual” como “edificação”, como coletivo. Com a metáfora, a IPe prova­
velmente faz alusão ã concepção dos cristãos como templo de Deus'^^®,
“não no sentido de um edificio, mas como designação coletiva sob o
ponto de vista da santidade”. E s s a metafórica é reveladora para a
compreensão da comunidade em IPe:
1. Ela deixa claro que uma comunhão cristã não se constitui a si
própria como associação religiosa. O desafio no imperativo passivo
para deixar-se edificar torna claro que essa comunhão não vive a par­
tir de suas próprias relações, mas que é fundada e preservada pela
ação do Espírito nela (cf. 1.2; 4.14).
2. A comunidade como “casa espiritual” não é unicamente a obra do
Espírito divino, mas também sua propriedade e o local de sua presen­
ça. Isso compreende,
3. simultaneamente, a obrigação de testemunhar essa presença, como
mostra a ampliação da metafórica da “casa espiritual” pela designa-

A imagem incomum das “pedras vivas” encontra-se (com outro significado) também
em JosAs 12.2.
Cf. sobre isso GERHARD. 1709, p. 68.
Cf. E f 2.20-22; IC o 3.16; 6.19. A concepção segundo a qual o verdadeiro templo não
é um edifício, mas uma grandeza espiritual, formada pela comunhão dos que creem,
já era largamente difundida também em Qumrã (IQ S 8.4-10; IQ H 6.25-28; 4QFlor
1.1-7; IQ p H ab 12 e outros). A negação dessa relação entre a casa espiritual e o
motivo do templo por Elliott e sua interpretação como “house(hold)” (ELLIOTT, J. H.
Um la r p a ra quem não tem casa. Interpretação sociológica da Primeira Carta de Pedro.
São Paulo: Paulinas, 1985. p. 150ss; repetido em seu com entário, 2000, p. 414-
418) não convence: E lliott necessita da m etáfora independente da casa para sua
teoria de um a correspondência entre oíkoç e nápoiKoç (cf. sobre a crítica à teoria de
Elliott, FELDMEIER, 1992, p. 204-210).
VIELHAUER, 1939, p. 146.

122
ção sacra do “sacerdócio real” que, por meio de sua conduta de vida,
deve trazer “sacrifícios espirituais”.'^"^“ Ao lado da asseveração de que
a comunidade cristã é o local da presença de Deus neste mundo, é
colocada imediatamente a reivindicação de testemunhar a Deus den­
tro dele. Em favor dessa interpretação também fala o atributo ocyi-oç (cf.
1.2, 15s; 2.9), bem como a conexão da pedra com o Sião (2.6). Na his­
tória da teologia, esse versiculo foi de grande importância, notabili­
zando-se na discussão sobre o sacerdócio geral de todos os crentes,
pois atribui a função sacerdotal a toda a comunidade, em vez de a
uma única classe especial de sacerdotes. Aqui no contexto, porém, o
versículo não se relaciona com o status sacerdotal dos cristãos indi­
viduais, mas com a comunidade em seu todo.

V. 6 Segue um florilégio de textos do Antigo Testamento que inter­


preta a “pedra” cristologicamente de diversas maneiras.

Um arranjo semelhante encontra-se também em Lc 20.17s; par.: Mt 21.42, 44.


Tal interpretação teve como provável origem o texto de Dn 2.34, 45, onde já, na
visão dos reinos do mundo, a pedra é relacionada com u m a inteirvenção divina
(“sem auxílio de mãos hum anas”), que, em eonexão com a segunda visão em Dn
7, pode ser interpretada como um a figura messiânica (7.13: “como um filho do
h o me m”) . O u t r o s textos caracterizados pelo termo “pedra”, que igualmente
foram interpretados messianicamente, são Is 8.14 e 28.16 (Rm 9.32s; cf. Lc
20.18; par.: Mt 21.44). Por fim, a imagem do SI 118[117].22"*"^^ pode ser aproveita­
da para a interpretação da paixão de Jesus (Mc 12.10s; par.: At 4.11). Aparente­
mente as passagens foram então compiladas num florilégio, sendo possível que
a transferência dos “enunciados sobre a pedra” para Jesus tenha sido favorecida
por um jogo de palavras hebraico: (pedra) - (filho).

A IPe, portanto, retoma aqui uma tradição cristã primitiva. Com base
na relação previamente estabelecida nos v. 4s entre os cristãos como

Uma concepção espiritualizada de sacrifício já começa a ser testemunhada no Antigo


Testam ento (cf. SI 50(49],14; 59(68].31s; 107(106].22; 141(140].2) e encontra-se
também em Qumrã (1 QS IX.3-5; oração e comportamento correto como sacrifícios
adequados; também 1 QS X.5; 4 Flor III.6s); aqui o termo provavelmente se reportava
ao comportamento (cf. METZNER, 1995, p. 180).
Em Daniel, isso ainda permanece atrelado à imagem: a figura “como um homem” é ao
mesmo tempo a alternativa de Deus ao domínio dos reinos do mundo encarnado pelas
bestas. Mais tarde, o Filho do Homem torna-se um a espécie de figura messiânica;
nesse sentido titular, ele é tamhém relacionado no Novo Testamento com Jesus (c f a
combinação de Dn 7 . 1 3 com SI 1 1 0 ( 1 0 9 ] em Mc 1 4 . 5 2 ) , provavelmente já pelo próprio
Jesus histórico (cf. THEISSEN; MERZ, 1 9 9 7 , p. 4 7 0 - 4 8 0 ) . Tal interpretação encontra-
se tam bém n a lite ra tu ra ra b ín ic a (textos co m p rob a tó rio s em STR AC K , H .-L.;
BILLERBECK, P. K om m en ta r zu m N eu en Testam ent aus Talm ud u n d M idrasch. Bd. 1:
D as E vangelium nach Matthäus. 2 . ed. München, 1 9 5 6 (= 1 . ed., 1 9 2 6 ) . v. 1, p. 8 7 7 ) .
C f JEREMIAS, J. Verbete AÍBoç k x I. In; ThW N T. Stuttgart, 1 9 6 6 {= 1 9 4 2 ) . v. IV, p.
277SS.
BLACK, M. The Christological Use o f the Old Testam ent in the New Testam ent.
N T S 18, p. l l s s , 1971/72.

123
“pedras vivas” e Cristo como “a pedra viva”, ela consegue agora, com
os enunciados cristológicos, definir simultaneamente a situação mais
exata da comunidade dentro do mundo. Nesse contexto é citado ini­
cialmente Is 28.16, um texto que também em Qumrã pode ser empre­
gado para a comunidade (1 QS VIII.7s). Esse texto provém de um anún­
cio de juízo, proferido contra os sacerdotes e profetas de Jerusalém,
que - como é dito literalmente em Is - fizeram aliança com a morte e,
com o além, um acordo (Is 28.15, 18). É difícil dizer em que medida o
autor ou os leitores da IPe estavam conscientes desse contexto, que
combina bem com a temática até aqui tratada de morte - vida. De
qualquer maneira, a citação bíblica confirma, por um lado, o enuncia­
do sobre eleição e valor da “pedra viva”. Cristo, no v. 4, e estabelece,
por outro, uma ponte para os destinatários: o texto sublinha na aqui
citada versão da Septuaginta'*"’'^ que aquele que confia em Cristo crendo
(•iïLoxeùov), não será envergonhado (cf. sobre a fé em 1.5).

V. 7s Os versículos que seguem interpretam mais uma vez o efeito da


“pedra”. Cristo, sobre as pessoas por meio de uma antítese assimétrica.
Inicialmente são mais uma vez retomados os termos irLareúeLy e evrifioc;/
TL|j,fi dos versículos anteriores; para os que creem, essa pedra preciosa
traz honra junto a Deus. Esse enunciado positivo, contudo, apenas
introduz - através da inserção de um 6é adversativo - a apresentação
do efeito negativo da pedra sobre os que não creem, desenvolvida de
forma bem mais detalhada. Isso ocorre por uma combinação do SI
118[117].22 com Is 8.14. Nesse contexto, o SI 118[117].22 serve, espe­
cialmente, como evidência para a rejeição da pedra pelos àirLoroúyTeç. O
aspecto positivo da “pedra angular” (cf. Mc 12.10par.) não é mais uma
vez explanado aqui; em vez disso, acentua-se agora no v. 8, pela eilusão
a Is 8.14, a oposição que essa “pedra viva”. Cristo, representa como
“pedra de tropeço e rocha de ofensa” para os que não creem. Nesse
destino de Cristo participa também a comunidade cristã, que é a “casa
espiritual” construída com “pedras vivas”.'^'^® Essa consequência ainda
não é explicitamente tirada aqui, mas só em 2.1 Is com a renovada e
dupla referência ao ser-forasteiro dos cristãos; em vez disso é ressalta­
do que também esse escândalo dos que “não obedecem à palavra” re­
monta, em última análise, a um endurecimento provocado por Deus.
Esse é o reverso da convicção de que os eleitos se sabem vocacionados
pela misericórdia de Deus. Se a fé não tem sua origem na vontade hu-

O sentido do texto hebraico é incerto. A form a tí’ rr sb geralmente é traduzida por


“que não foge” , mas o h ifil de min (“apressar-se”) teria então som ente esse texto
comprobatório na acepção de “fugir” .
Cf. BORING, 1999, p. 97: “Ser rejeitado e crucificado não representou um episódio
na carreira de Jesus que a ressurreição tivesse deixado para trás. Ele continuou
como o rejeitado na história, modelando o status presente dos seus discipulos”.

124
mana, então isso também deve valer para a descrença (cf. também ITs
5.9). No nosso contexto essa afirmação sublinha, além disso, como já
as duas citações biblicas, que também a oposição das pessoas contra
Deus não significa um limite do seu poder. Importante é também que
esse elemento predestinado (cf. também 4.17), como já constatado an­
teriormente (1.2, 20), não seja a única coisa que a IPe saiba dizer so­
bre os não-cristãos. Quando se trata da relação com descrentes, os
cristãos não devem se alegrar com sua rejeição, mas fazer tudo para
ganhá-los à fé (cf. 2.12; 3. Is, 15s). Verdade é que em tal palavra perma­
nece, em última análise, uma dureza que não cabe abrandar.

Diante desse pano de fundo sombrio, a IPe faz com que, por meio de
uma concentração inédita de enunciados sobre eleição no Novo Tes­
tamento, no final da primeira parte principal - continuando e finali­
zando as explanações de 2.4s com um “vós, porém” sumarizante - a
comunidade cristã desponte como lugar de salvação.

2.2 Os forasteiros como povo de Deus (2.9-10*)

V. 9: Vós, porém, [sois] raça eleita, um sacerdócio real, uma


nação santa, um povo para propriedade, a fim de que
proclameis os atos poderosos salvíficos daquele que
vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz,
V. 10: vós que outrora não éreis povo, mas que agora sois
povo de Deus, que não tinheis alcançado misericór­
dia, mas que agora alcançastes misericórdia.'^^'®
* Literatura sobre IPe 2.9-10: METZNER, R. Die Rezeption des Matthäusevangeüums
im 1. Petrusbrief. Studien zum traditionsgeschichtlichen und theologischen Einfluß
des 1. Evangeliums a u f den 1. Petrusbrief. Tübingen, 1995. p. 176-181. (WUNT
11/74); PESCH, W. Zu Texten des Neuen Testamentes über das Priestertum der
Getauften. In; BÖ C H ER , O.; HAACKER, K. (Eds.). Verborum Veritas. (FS G.
Stählin). Wuppertal, 1970. p. 303-315, esp. 306ss; PRIGENT, P. I Pierre 2,4-10.
RHPhR 72, p. 53-60, 1992; SCHLIER, H. Die Kirche nach dem I. Petmsbrief. In:
FEINER, J.; LÖHRER, M. Mysterium Salutis. G ru n driss heilsgeschichtlicher
Dogmatik, das Heilsgeschehen in der Gemeinde. Einsiedeln, 1972. v. IV / 1, p.
195-200; SCH ÜSSLER FIORENZA, E. Priester fü r Gott. Studien zum Herrschafts­
und Priestermotiv in der Apokal5rpse. Münster, 1972. p. 51-59. (NTA 7).

SCHW ARZ, E. Id e n titä t d u rc h A b g re n z u n g . A bgren zu n gsprozesse in Israel im 2.


vorchristlichen Jahrhundert und ihre traditionsgeschichtlichen Voraussetzungen,
zugleich ein Beitrag zu r Erforschung des Jubiläenbuches. Frankfurt; Bern, 1982.
p. 53-57 m ostra que, no Antigo Testam ento, as designações “povo santo” , “povo
eleito” e “povo de propriedade” pertencem aos enunciados de formação de identidade
centrais.

125
Nesses enunciados que encerram a prim eira parte principal, a IPe em prega
novamente o recurso estilístico da frase nominal, que sublinha o aspecto sole­
ne e o caráter fundam ental daquilo que foi dito. U m a frase secundária final,
contudo, interrompe o enunciado, destacando os com prom issos dos crentes
oriundos do novo status.

V. 9 Essa conclusão, introduzida por úpelç ôé, expressa de forma resu­


mida a nova existência dos vocacionados, contrapondo-a à existência
anterior pelo contraste luz - trevas (2.9), bem como pelo duplo “outrora
- agora” (2.10). Com os epítetos do povo de Deus do Antigo Testamento,
alinhados segundo a sua plenitude (cf. sobretudo Êx 19.5s), a conti­
nuidade da história de Deus com seu povo é reivindicada para a co­
munidade cristã. Ao mesmo tempo, em relação ao entorno pagão, a
comunidade cristã é interpretada como um sistema de referência total­
mente próprio, sim, como um projeto alternativo concorrente frente às ins­
tituições do entorno e suas respectivas reivindicações por reconhecimen-
to.^^"^ Isso, no entanto, é o reverso daquilo que a IPe definirá novamen­
te dois versículos adiante com a invocação “peregrinos e forasteiros”.'^"^®
A afirmação central propriamente dita, porém, não é nem o distancia­
mento em relação a Israel ou ã soeiedade, mas a pertença a Deus. Isso
pode comprovar-se no fato de todos os atributos do povo de Deus trans­
feridos à comunidade cristã"^® poderem ser relacionados intimamente
com o próprio Deus: raça eleita, sacerdócio real^^^, nação santa, um povo
para propriedade, povo de Deus. Isso é fundamentado explicitamente
com a integração na esfera da salvação divina: “que vos chamou das
trevas para a sua maramlhosa Zrtz”. A imagem da mudança das trevas

Digno de nota em relação a esse aspecto é que a IP e não fala da èKKA.r|OLa, empregando,
em vez disso, term os histórico-salvíficos. Talvez isso ocorra de form a consciente,
justam ente por não ter essa comunhão nada que justifique um a existência para si
própria, o que o conceito de èKKXrioía (como reunião dos cidadãos plenos) tende a
sugerir.
U m a in trod u ção secu n d á ria (cf. ALTAN E R , B.; STU IBE R, A. P a tro lo g ie . Leben,
Schriften und Lehre der K irchenväter. 8. ed. Freiburg, 1978. p. 138), mas que
reproduz corretam ente o que se sentia contra os cristãos, m ostra muito bem esse
fato. No escrito de acusação contra João (aparentem ente apresentado por judeus
diante do imperador) consta que os acusados representam um povo novo e estranho
(Kaivòy KKL tfivov ’éGvoç), que quebra tradições, hostil à humanidade, sem lei e subversivo,
que se atribui o estranho nome “cristãos” (ActJ 3). Na tradição paralela, a acusação
ainda é precisada no sentido de que os cristãos teriam se desviado da reverência a
Deus transmitida pelos pais (èk xf|ç trarpoirapaSÓTou OpTioKeíaç), dando assim origem a um
nome estranho e a um outro povo (woxe yevéoSaL i,kvov ôvopa kkI 'é9voç rapov). Aqui retom am
todos os motivos: abandono da tradição dos pais, isolamento, formação de um povo
próprio e, como consequência, o ser-forasteiro - agora, expresso por outros.
Coisa sem elhante ocorre em Qumrã, onde a com unidade se com preende com o o
verdadeiro Israel, ao qual pertence a ailiança dos pais (cf. CD VIII. 17s; XIX.29ss).
Essa passagem era o texto comprobatório dos reformadores para o sacerdócio geral
de todos os crentes. Sobre um a crítica a essa ideia de parte católico-rom ana, cf.
PESCH, 1970.

126
para a luz é linguagem típica de conversão'^® sendo que o chamado faz
referência à eleição; ambas as coisas encontram-se em formulação
quase idênticas já também no judaísmo (JosAs 8.9; cf. Is 42.16 LXX).
Como “trevas” conota ruína e morte, assim luz, salvação e vida."^“ Ambas
as coisas juntas - a mudança de trevas para luz provocada por meio da
palavra - lembram simultaneamente a criação“*®®, de modo que a voca­
ção nas esferas da salvação e da vida apareça como um ato da nova
criação. Por fim, a inclusão na esfera da “luz” implica a tarefa de teste­
munhar esse Deus no mundo (cf. também Mt 5.14-16; ITs 5.4ss; Ef
5.8ss). Objeto desse testemunho são as ctpexaí de Deus, como a IPe 2.9
o denomina em alusão a Is 43.21. Em virtude do equivalente hebraico
n‘^nn em Is 43.21, Bauer-Aland sugerem aqui a tradução de “louvor”,
“recompensa”.“*®'* Isso, porém, dificilmente reproduz o sentido do ter­
mo grego aperfi, que em verdade significa “habilidade”, “mestria”, de
maneira geral, uma boa característica, e por extensão também quali­
dades morais, como virtude, coragem, magnanimidade, filantropia,
etc.'*®® Na forma plural aqui empregada e relacionada com os deuses, o
termo também pode designar (capacitação divina para) milagres e atos
poderosos“*®®, sendo que aqui também o aspecto ético pertence ao hori­
zonte associativo do termo.

V. 10 Isso confirma a referência final à misericórdia de Deus, pela


qual aqueles que ainda não eram povo de Deus, agora passaram a sê-
lo. O fato tem por meta a situação dos destinatários, que provavelmente
eram em grande parte de origem pagã“*®*" e cujo acolhimento na comu­
nidade da salvação já na parte introdutória da carta (1.3) havia sido
atribuído exclusívamente à grande misericórdia de Deus. Esse enun­
ciado ocorre novamente por meio de uma alusão ao Antigo Testamen­
to, nesse caso a Os 1.6, 9; 2.25. Essa referência escriturística, que já
em Paulo fundamenta a vocação dos gentios (Rm 9.25s), concede à
asserção uma autoridade adicional. Caso se parta do pressuposto de

Cf. At 26.18; IT s 5.4ss; E f 5.8ss; IC lem 59.2; Barn 14.5-7.


■>52 Cf. Jo 1.9-11; 8.12; IT s 5.4-10; E f 5.8-14.
Gn 1.3; cf. 2Co 4.6; KaXéco encontra-se associado ã criação também em Rm 4.17. Na
IC lem , surgida pouco tempo depois da IPe, esse chamado das trevas para a luz é
explicitamente remetido a Deus como criador de tudo (ôtiuloupyÒí; x ú v ãiráyTuv) (59.2),
sendo dado como sua m eta a esperança no “nom e daquele que é o fundam ento
último de toda a criação” (àpxtyóvov mor|ç KTÍoeuç õvopa) (59.3).
'‘5'» BAUER-ALAND, 1988, p. 212s.
Cf. LIDDELL, H. G.; SCOTT, R. A G re e k -B n g lis h L exicon . Revised and Augm ented
Th rou gh ou t by H. S. Jen es, w ith the A ssista n ce o f R. M cK enzie, and w ith the
Cooperation o f Many Scholars, with a Revised Supplement. Oxford, 1996. p. 238.
LIDDELL; SCOTT, 1996, p. 238: “later, o f the gods, chiefly in pL, g lo rio u s deeds,
wonders, m iracles”; ADRADOS, F. R. (Ed.). D icdonario Griego-Espanol M . Madrid, 1991.
p. 502: “solo de los dioses 1 capacidad de obra r milagros o prodígios /.../ 2 mUagrcf.
Cf. 1.18; 4.3; v. acima. Introdução, p. 49.

127
que a IPe acredita que seus receptores estejam em condições de iden­
tificar alusões biblicas como tais - e somente sob esse pressuposto me
parece ter sentido compor toda uma carta na forma de um mosaico de
citações e referências bíblicas pode-se supor que a IPe esteja fa­
zendo referência consciente a todo o contexto de Os Is com o versículo
em questão. Ali se trata do sinal de juízo representado pelo casamen­
to com a prostituta (Os 1) e dirigido contra o povo infiel, superado ao
final pelo amor de Deus ao seu povo (Os 2). Como “resultado”, Deus
decide, por fim, em 2.23: “Compadecer-me-ei da Lo-Ruhama [desfavo­
recida]; e a Lo-Ammi [Não-Meu-Povo] direi: Tu és o meu povo! E ele
dirá: Tu és o meu Deus!” IPe 2.10 cita essa passagem. O fato de justa­
mente essa lembrança da declaração apaixonada de amor feita por
Deus ao seu povo infiel encerrar a primeira parte principal da carta
sublinha mais uma vez que tudo o que foi dito dentro dela encontra-
se envolto pela misericórdia divina (1.3; 2.10).

Resumo

O que foi exposto até aqui mostrou que o cristianismo representa de


facto o estabelecimento de um projeto contrário ao da sociedade vi­
gente, com sua reivindicação de uma ligação exclusiva, por meio da
qual são também mediados todos os demais compromissos sociais.
Enquanto a sociedade pagã fundamentava-se no atrelamento à reli­
gião transmitida e aos costumes dos ancestrais'^®®, uma vez que aqui
o TTpeopúxepoy KpelxToy constituía praticamente o pressuposto axiomático
da legitimação religiosa e social'*®'^, o cristianismo vive da esperança
pela renovação do mundo por Deus e acentua, correspondentemente.

Cf. SCHÄFKE, 1979, p. 631: “O ater-se ao mos m aiorum fé9oc; consuetuáo, disciplina)
é um traço de caráter destacado dos romanos, embora possa ser também encontrado
em maior ou menor intensidade em toda a esfera espaciotem poral da Antiguidade.
A religião e os costumes religiosos são incorporados na preservação da tradição. As
tra d iç õ e s re lig io s a e p o lític a de u m a co m u n id a d e d evem ser p en sa d a s com o
indissociavelmente unidas nesse contexto. Essas relações também determinam ainda
os primeiros séculos após o nascimento de Cristo” .
Já Platão dizia que os ancestrais eram KpeÍTTOveç riptôv Kal kyymípu) Oecôi’ oI koOvtc; (Plat,
Phileb 16c). Esse postulado permanece válido apesar de todas as crises da religião
recebida. Cícero o repete quando fundam enta a conservação dos ritos religiosos
tran sm itidos com o fato de que “os tem pos antigos estavam m ais próxim os aos
deuses” (Cic, DeLeg 11,10,27). Por essa razão ele tam bém pode exigir obediência
irrestrita em relação à religião transm itida pelos anciãos (cf. Cic, NatDeor 111,2-6).
De form a semelhante, Porfírio pode form ular o princípio: “Este é o m aior fruto da
piedade: honrar a Deus segundo a tradição dos pais” (oütoç y“ P phi-ô™? etepeíaç iLpSy
TÒ 9eIoy Kttrà rà iráipia; Porphyr, Marc 18). Sobre o todo, cf. PILHOFER, P. Presbyteron
K re itto n . D er A ltersb ew eis der jü d isch en und ch ristlich en A pologeten und seine
V orgesch ichte. Tü bingen, 1990.

128
o rompimento com o p a s s a d o . A IPe destaca esse fato por meio de
uma forma absolutamente provocativa quando designa as coisas trans­
mitidas pelos pais como “fúteis” (1.18: laaxaía àvaoxpo4)f|) e o modo de
existência nelas baseado como sujeito à morte (1.24). É verdade que
também nessa carta (como em todo o Novo Testeimento) encontram-se
referências a profecias do Antigo Testamento (1.10-12), mas esse tempo
dos profetas justamente não é caracterizado como o tempo dourado
mais próximo de Deus, sendo visto antes como o tempo da esperança
sob o aspecto de sua carência'*®^; trata-se do tempo da preparação“*“ ,
do qual se distancia o degrau agora alcançado como tempo do cum­
primento. Inclusive os anjos, os seres celestiais, não estavam excluidos
desse processo (1.12 final)! Todo o peso das explanações da IPe reside,
assim, sobre o novo, sobre o novo início, sobre o renascimento'^^^ e a nova
vida a partir da esperança, a ele ligado. Com isso está demarcado um
claro contraste com o entorno em toda a compreensão da realidade e
de si próprio. De forma parcialmente estereotipada, poder-se-ia dizer
que o mundo circuncidante orienta-se pelo que aconteceu, legitiman­
do o seu presente a partir do passado, enquanto a comunidade cristã
relaciona tudo com o futuro de Deus já aflorado em Cristo e que faz
parecer o até agora existente como velho e fútil - nesse processo, esse
novo é uma vez mais o totalmente original, determinado pela
predestinação de Deus ainda antes da criação do mundo (cf. 1.20).
Este contraste entre a interpretação da realidade e a autocompreen-
são nela baseada representa também um momento decisivo para o
tema do ser-forasteiro, tão importante na carta, que agora será nova­
mente retomado nos versículos subsequentes e inicialmente desen­
volvido considerando-se a orientação quanto ao comportamento.

Cf. a apresentação resum ida de SCHÄFKE, 1979, p. 630-648. O ju daísm o tinha


requerido coisa sem elhante dos prosélitos, mas a diferença residia no fato de ele
entender-se a si próprio com o religião antiga e honrosa, podendo oferecer assim
um substitutivo in p u n cto venerabilidade em função de sua idade avançada. Isso foi
sublinhado justam ente no judaísm o alexandrino pelo fato de se ter apresentado a
T orá com o a m ais antiga protofilosofia, da qual os gregos teriam extraído (cf. o
Fragmento de Aristóbulo, transmitido por Eus, PraepEv X III,12,Is), resp. inclusive
roubado (cf. Filo, QuaestGen IV, 152) a sua filosofia.
De form a semelhante, p. ex., também IC o 10.11.
1.12 acentua expressam ente que os profetas não serviam com isso a si próprios,
mas aos cristãos do presente.
Isso vai até a imagem das crianças renascidas, que em 2.12 é empregada em relação
aos que creem e que claramente contradiz a imagem ideal antiga do homem em sua
ÒKiiií (cf. para o emprego dessa imagem nos prosélitos, STRACK, H.-L.; BILLERBECK,
P. K om m en ta r zu m N eu en Testam ent aus Talm ud u n d M idrasch. D ie B riefe des N eu en
T estam ents u n d die O ffen ba ru n g Johannis. 4. ed. München, 1965 (= 1. ed.,1926). v.
3, p. 763).

129
Ill - A comprovação em terra estranha (2.1-5.11)

A segunda parte principal está caracterizada como nova unidade por


meio de claros sinais de composição;
1. Os destinatários são novamente invocados, agora como “amados”;
2. Pela primeira vez, o autor emprega a primeira pessoa do singular
com o verbo TrapaKaÀó) e apresenta, simultaneamente, o tema dos
versiculos subsequentes; trata-se de uma parênese;
3. Mais uma vez é feita dupla referência ao status dos cristãos como
forasteiros.

Enquanto na primeira parte principal era enfocada a autocompreen-


são das comunidades cristãs, o assunto da segunda parte principal é a
relação com o mundo, tanto no que concerne ao lado ativo do compor­
tamento na sociedade quanto também ao passivo, o do sofrimento den­
tro dela. Entre 4.11 e 4.12 encontra-se, porém, uma clara cesura for­
mal, ã qual também corresponde um deslocamento de acento quanto
ao conteúdo, na medida em que, na primeira seção, encontra-se em
evidência antes a exortação, na segunda (4.12-5.11), mais fortemente
o consolo. Os títulos que seguem - “Exortação e consolo”, resp. “Conso­
lo e exortação” - procuram fazer jus a essas ênfases diferenciadas.

1. Exortação e consolo (2.11-4.11)

I . 1 Vivendo como forasteiros (2.11-12*)

V. 11; Amados, exorto-vos como peregrinos e forasteiros que


sois, a vos absterdes das paixões carnais que fazem
guerra contra a alma.
V. 12; Mantende bom o vosso comportamento entre os povos
(gentios), para que, naquilo que falam de vós outros
como de malfeitores, adquiram discernimento por
meio de vossas boas obras e deem glória a Deus no dia
da visitação.
* Literatura sobre IPe 2.11-12: BRANDT, W. W andel als Zeugnis nach dem 1.
Petrusbrief, ln: FOERSTER, W. (Ed.). Verbum Dei Manet in aetemum. (FS O.
Schmitz). Witten, 1953. p 10-25; de JO N G E, M. Vreemdelingen en bijwoners.
Enige opmerkingen naar aanleiding van IPetr 2:11 en verwante teksten. ln: NedThT
I I , p. 18-36, 1956/57; FASCHER, E. Verbete Fremder. In: RAG. Stuttgart, 1972.
V . VIII, p. 306-347; FELDMEIER, R. Die Christen als Fremde. Die Metapher der

Fremde in der antiken Welt, im Urehristentum und im 1. Petrusbrief. Tübingen,


1992. (W UNT 64); GAUTHIER, R. Meteques, Perieques et Paroikoi: Bilan et points
d ’interrogation. In: LONIS, R. (Ed.). l’Etranger dans le monde grec. Nancy, 1988.
p. 23-46. (Travaux et mémoires: Études anciennes 4); G O LD ST E IN , H. Die

130
politischen Parânesen in IPetr 2 und Rom 13. BiLe 14, p. 88-104, 1973; LAMPE, P.
„Fremdsein“ als urchristlicher Lebensaspekt. Ref. 34, p. 58-62, 1985; SCHAEFER,
H. Verbete Paroikoi. In: PRE. Stuttgart, 1949. v. XVlII/4, p. 1695-1707; SENIOR,
D. The Conduct of Christians in the World (2:11-3:12). RExp 79, p. 427-438, 1982;
WOLFF, Ch. Christ und Welt im 1. Petrusbrief. ThLZ 100, p. 333-342, 1975.

U m a particularidade estilistica da IPe é o emprego frequente do participio. O


exovxeç encontra-se aqui no v. 12, como também em outras partes (2.18; 3.1, 7, 9 e
frequentemente), sem conexão direta com um verbo finito. O significado impera­
tivo fica claro a partir do contexto. Segundo Blass-Debrunner § 468, 2b, nota 4, o
participio encontra-se, “nesse contexto, num a mesma linha com outros nomina
(substantivos e adjetivos), os quais igualmente podem, sem verbo, representar
u m a sentença, de forma impactante e popular como num slogan. É de se refletir
também se o fato de se evitar, de maneira generalizada, a forma direta de orde­
nança não teria algo a ver com a especificidade deste escrito, que, com autoridade
apostólica, não ordena tanto de cima para baixo, mas antes da perspectiva de
quem, como participante no destino dos destinatários (cf. a autoapresentação do
autor, em 5.1, como “presbítero e testemunha dos sofrimentos de Cristo”), pre­
tende estar do seu lado, aconselhando e indicando o caminho a trilhar.

V. 11 A invocação ayairriToC não deveria ser traduzida por “amados ir­


mãos”, como o fazem a tradução de Lutero, a tradução unificada e al­
guns comentários que as seguem. Não só pelo fato de, nesse caso, os
“amados irmãos” excluirem as “amadas irmãs”, o que em termos gra­
maticais não seria obrigatório'^®'^ e pelo contexto também não justifica­
do'*®®. Essa tradução, acima de tudo, não reproduz a formulação passi­
va embutida nessa invocação: o adjetivo verbal aya-iTTitog (cf. 4.12) não
expressa somente (tampouco em primeiro lugar) a união recíproca dos
cristãos, mas - como em Jesus, que em sua invocação como “filho” pelo
Pai sempre é contemplado com esse atributo'*®® - seu ser amado. Assim
esse predicado resume o exposto até aqui, sobretudo a eleição por Deus
mencionada logo antes (2.9) e sua misericórdia como fundamento da
nova comunhão (2.10; cf. 1.3). A invocação ayaiTTiTOL, retomada mais uma
vez em 4.12, especifica dessa forma a invocação èKA.eKToí no pré-escrito
(1.1), acentuando o amor de Deus como razão da eleição.

Cf. SCHWYZER, E. G riech isch e G ram m atik. A u f der Grundlage von K. Brugmanns
G riechischer Gram m atik. Syntax und syntaktische Stilistik. V ervollstän digt und
herausgegeben von A. Debrunner. München, 1950. v. 2, p. 31: “Quando masculino
e fem inino são designados conjuntam ente ou quando para quem fala a distinção
entre am bos não é im portante, usa-se o m asculino [...]; assim, especialm ente no
plural [...]” .
Que o masculino àvatiriroí tem aqui sentido inclusivo mostra a continuação, pois as
orientações dirigidas a todos em 2.1 Is são concretizadas em três orientações para a
subordinação, das quais a terceira, em S .lss, refere-se claramente a mulheres (note-
se que em 3.4 mais uma vez é empregada uma formulação masculina - ò K p u irtò ç -ufiç
K t t p ô í a ç ãvepoíiTOí; - explicitam ente relacion ada com as m ulheres). Assim sendo, a
invocação àyairriTOÍ refere-se à comunidade toda.
Assim no batismo, Mc l. llp a r . e na transfiguração, Mc 9.7par.; cf. também a alusão
na parábola dos vinhateiros hom icidas, Mc 12.6par.

131
“Exorto” - pela primeira vez, o autor da carta se apresenta pessoal­
mente. Depois da parte inicial, que se deteve fundamentalmente na
ação de Deus em relação aos crentes, o autor passa a falar daquilo
que determinará os versículos subsequentes: as recomendações de
conduta. Deve-se observar, contudo, que a tradução portuguesa de
ïïapaKaA.û com “exorto” limita o horizonte associativo do termo unila­
teralmente ao que é ordenado. uapaKctleiy significa tipicamente tanto
“exigir”, “exortar”, quanto “encorajar”, “aconselhar”, “consolar”. O que
segue quer oferecer amhas as coisas: conselho e orientação para o
caminho, exigência e encorajamento.

Elucidativa é a conexão da exortação com a invocação “peregrinos e


forasteiros”. A condição do ser-forasteiro tem, como já foi sugerido
em 1.17, também uma dimensão ética. Enquanto a primeira parte prin­
cipal, com base na autodesignação “forasteiros”, desenvolveu prepon­
derantemente a promessa da salvação em forma de eleição e renasci­
mento, a segunda parte esboça agora, partindo daquela autodesigna­
ção, a tarefa que ela representa: ser diferente; distinguir-se não cons­
titui somente a distinção dos cristãos, condicionada pela sua elei­
ção, mas implica também um compromisso. Esse é formulado aqui
inicialmente de forma bem generalizada como exortação a “vos
absterdes das paixões carnais que fazem guerra contra a alma”.

Sobre as paixões, v. o excurso 5: As paixões, p. 96ss. N a tradição veterotesta-


mentária, “carne” designa inicialmente só a pessoa como um todo; onde se lhe
contrapõe o “Espírito” divino, faz-se referência à limitação e fraqueza do ser h u ­
mano em contraste com o poder de Deus. No judaísmo helenista, isso pode ser
intensificado em relação ao entendimento de aápl como sinônimo para a mortali­
dade das pessoas (cf. Sab 7.1). Com isso iniciahnente ainda não está associada
um a avaliação negativa da carne. “A divergência entre carne e Espírito surge so­
mente quando a carne esquece de confiar em Deus, que ê Espírito Tam­
bém no Novo Testamento a oáp^ designa inicialmente só a esfera terrena em
contraste com a celestial.''®® Aquela, contudo, adquire caráter negativo ã medida
que o ser humano fundamenta nela su a identidade, caindo sob o seu raio de
influência. Como poder negativo, como “carne da iniquidade” (b'iH é emprega­
da nos textos da comimidade de Qum rã (cf. 1 QS XI.9), a qual, como Frey tomou
provável ã luz dos textos editados mais recentemente, dá com ainda maiores
detalhes continuidade ao desenvolvimento de tradições sapienciais pré-essê-
nicas, nas quais “carne” já vem ceiracterizada como “incapacidade de conheci­
mento (do bem e do mal) e desobediência a Deus”, tendo, dessa forma, “ultrapas­
sado claramente os limites do uso do conceito vigentes no Antigo Testamento”.''®®

JACOB, E. Verbete v)mxr| k x X . B. Die Anthropologie des Alten Testaments. In: ThW NT.
Stuttgart, 1973. v. IX , p. 627.
''®® Sobre isso e para o que segue, cf. SCHW EIZER, E. Verbete oápl kxX. In: ThW N T.
Stuttgart, 1966 (= 1964). v. VII, p. 118-151.
■'69 p r e y , J. Die paulinische Antithese von „Fleisch“ und „Geist“ und die palästinisch­
jü disch e W eisheitstradition. Z N W 90, p. 63, 1999.

132
Essas tradições devem ter influenciado (também) a Paulo'^^°, considerando que
nele a “carne” pode tomar-se um poder autônomo, inclusive sujeito do pecado.'^^*

Na IPe, oáp^ designa a limitação da existência humana, sobretudo


como esfera do sofrimento e da transitoriedade (1.24s; 3.18, 21; 4.1s),
sem que houvesse uma direta afinidade com o pecado ligada a isso. É
somente nossa passagem que mais se aproxima do uso linguístico
marcante de Paulo. O adjetivo o a p K iK Ó ç - ele se encontra no Novo Tes­
tamento somente outras seis vezes em Paulo - qualifica a èmOnpía, um
poder claramente negativo na IPe (cf. 1.14; 4.2s), mais precisamente
como concupiscência da carne. Na forma dos impulsos animalescos
que se apoderam da vontade humana, surge, contraposta ao renasci­
mento como vida a partir da esperança (1.3, 13), uma força contrária
que procura, por meio de sua promessa de satisfação imediata das
necessidades, apoderar-se do ser humano e privá-lo assim de sua
relação com Deus. De forma análoga, ocorre uma guerra de poder nos
que creem. A metáfora militar empregada com orpaTgúeoBaL, no sentido
de “fazer guerra”, “ir a campo de batalha” - evidentemente com o in­
tuito de subjugação, resp. conquista—, expressa de forma drástica esse
contraste entre ser humano velho e renascido. A figura de linguagem
- a guerra promovida pelas paixões contra a alma - revela influência
helenista. Em termos de conteúdo, porém, a IPe diferencia-se da fi­
losofia moral contemporânea estoica ou influenciada pelo estoicismo
pelo fato de o contraste não residir na tensão entre o autodomínio e o
ser determinado por força alheia, no qual o sujeito necessitaria afir­
mar sua liberdade como autodeterminação a partir da razão, na auto­
nomia em relação a toda determinação alheia com base na sensuali-
dade.'^'^^ Trata-se, pelo contrário, de preservar o caráter relacional da
existência, principalmente da relação com Deus, o único no qual está
contida a salvação"^^^, e, a partir dessa, da integração na comunhão
da casa, povo, raça, etc., de Deus. A formulação desse pensamento foi
provavelmente intermediada novamente pela sinagoga da diáspora.
Sobretudo Filo fala seguidamente da batalha na alma contra paixão e
falta de controle'^'^"^, mas também em outros escritos do judaísmo inci-

Cf. FREY, 1999, p. 67-73.


Assim Paulo pode escrever em G1 5.17 que a carne milita contra o Espirito (e vice-
versa).
Cf. Epict, Diss IV, 1,175; “A verd a d eira liberdade não é alcançada por m eio da
satisfação de todos os desejos, mas pela extinção da concupiscência” (àvaoKrufj ttíç
€1Tl9u|lLaç).
De m aneira análoga, a liberdade dos que creem reside, segundo 2.16, no fato de
serem “escravos de Deus” (v. abaixo em 2.16).
Cf. Filo, Ebr 111; QuaestGen 1V,74; LegAll 11,106; OpMund 79-81: em Filo, trata-
se, contudo, de um vóXepoç Karà i(juxf|v (Filo, OpMund 81), portanto de um combate no
interior da alma. Isso parece reportar-se à doutrina médio-platônica das duas almas
(uma 9eía >|n)XT| e outra aXoyoç, >I<vct)| cf. sobre isso e sobre o combate das partes da alma

133
piente encontra-se a concepção de um combate existente nos indiví­
duos provocado pela concupiscência'*^®, assim como igualmente é
testemunhado por Tg 4.1 no Novo Testamento. A antropologia clara­
mente helenizada no conceito da alma'*^®, mencionada anteriormen­
te, evidencia-se também no fato de que essas concupiscências da
carne não se rebelam contra o Espírito (divino), como diz Paulo'*^^,
mas lutam contra a alma (humana) como o correlato antropológico do
amparo divino.'**'® Esse contraste entre alma e concupiscência da carne
reformula a antítese paulina de Espírito e carne como dualismo an­
tropológico.'**'®

V. 12 O próximo versículo deixa claro que não se trata, nesse caso,


unicamente de “Deus e da alma”, mas que sempre também são consi­
derados os outros, de “fora”, especialmente também aqueles que ago­
ra caluniam os cristãos e lhes fazem mal. Com a expressão “falar mal
como malfeitores” a IPe reporta-se ao ódio pelos cristãos existente na
população, que atribui ãquele grupo suspeito toda sorte de malda­
des.'*®° Esses preconceitos devem ser neutralizados por meio de com­
portamento exemplar, e isso não só com o propósito da autoproteção.
Chama a atenção como a 1Pe aborda o “dia da visitação” - uma prová­
vel referência ao juízo final'*®* - nesse contexto; ela não consola apon­
tando para a retaliação e o acerto de contas divinos, cujo aguardo
podería trazer um certo conforto aos oprimidos. Ela continua contan­
do com o julgamento, podendo inclusive dar a entender que esse
juízo vai recair em especial sobre os descrentes (cf. 4.18). Por outro
lado, cai na vista que falta na IPe o tema da ruína escatológica como
contraste para a “salvação” e a “vida”.'*®^ A carta, ao invés disso.

de u m a m a n e ira g e ra l, Ô R R IE .H .; B A L T E S , M. D ie p h ilo s o p h is c h e L e h r e d e s
P la to n is m u s . Von der „Seele“ als der Ursache aller sinnvollen Abläufe. Stuttgart;
Bad Cannstatt, 2002. p. 403-406.
Cf. 4Mac 3.5; ApM os 19.3; 25.4; 28.4.
Cf. acima, excurso 4: Alm a e salvação das almas na IPe, p. 84ss.
Cf. Gl 5.17; Ti Y“ P oàpí eiiiGupel Katà roü weúparoç, tò Sk itveOixa Kara rriç oapKÓç [“a cam e milita
contra o Espírito, e o Espírito, contra a cam e”].
Cf. acima, excurso 4: Alm a e salvação das almas na IPe, p. 84ss.
Cf. SCHWEIZER, 1966, p. 145: “Em term os form ais, esse uso linguístico poderia
ser dependente de Paulo, mas, quanto ao seu conteúdo, a passagem é claramente
determ inada pelo h elenism o” .
Plínio (Ep X,96) pressupõe com toda naturalidade que com o nom e dos cristãos
estejam relacionadas práticas vergonhosas (flagitia cohaerentia nomini; TAC, An XV,44:
quos p e r fla g itia in visos vulgus C hristianos a ppella ba t), outros exemplos, na Introdu­
ção, p. 15ss.
Esse é designado em Is 10.3 de f) fipépa rfiç èiuGKoiTfjí;; cf. Sir 18.21[20j; Sab 3.7; Lc
19.44; IC lem 50.3.
Coube a REISER, M. Die Eschatologie des 1. Petm sbriefs. In: KLAUCK, H.-J. (Ed.).
W eltgericht u n d W eltvollendung. Zukunftsbilder im Neuen Testament. Freiburg, 1994.
p. 170s, desenvolver esse aspecto com m u ita clareza, fazendo sim ultaneam ente
referência ao em prego diferenciado dessa tem ática na 2Pe.

134
direciona o interesse dos seus leitores totalmente para ganhar ou­
tros. De forma bastante arrojada, mas seguramente não sem instinto
para a publicidade'*®^, aqui o escândalo é até interpretado como opor­
tunidade para propaganda, abrindo assim a possibilidade de trans­
formar a pressão destrutiva do sofrimento numa chance a ser apro­
veitada ativamente.

1.2 A comprovação na sociedade (2.13-4.6)

A maior parte dos dois capítulos seguintes desenvolve, de duas ma­


neiras, esta tarefa da comprovação dos cristãos numa sociedade que
os considera como suspeitos e até inimigos. Inicialmente é solicita­
da a subordinação no tocante ao relaeionamento com pessoas de po­
sição superior, das quais os cristãos são dependentes - seja depen­
dência da comunidade em sua totalidade (dependente das autorida­
des estatais), seja a dependência de determinados membros a um gru­
po com status social elevado (escravos em relação a seus senhores,
mulheres em relação a seus maridos) -, com a finalidade de minimizar
as áreas conflituosas. Depois seguem recomendações de como Kdar
com a hostilidade atual do mundo circundante - essas englobam
desde a possibilidade de entendimento e convencimento de outros
até casos de distanciamento.

1.2.1 Subordinação à autoridade como testemunho


(2.13 - 3.12)

Essa unidade textual serviu e serve, muitas vezes, como motivo de


reprovação da IPe. Atribui-se-lhe um arrefecimento da mensagem
libertadora de Jesus, vendo nela até a instrumentalização da religião
eom a finalidade da estabilização de hierarquias existentes. Balch, p.
ex., vê aqui a teologia da libertação do êxodo e do “early rural Palestinian
Jesus movement” [movimento rural palestino primitivo de Jesus] trans­
formada em repressão; “Pointedly phrased, whereas the commands in
the Torah protect slaves, the NT exhortations are repressive, and this
reflects the cultural change from the Mosaic story o f salvation to Greek
politics” [Dito de forma incisiva: enquanto as leis na Torá protegem
escravos, as exortações do NT são repressivas, e isso reflete a transfor-

Cf. FELDMEIER, 2003 (A u s s e n s e ü e r), esp. p. 174-176.

135
mação cultural ocorrida entre a história salvifíca de Moisés e a políti­
ca grega]"*®“^. Até um exegeta ponderado da qualidade de Eduard
Schweizer acredita ser preciso inferir da referida unidade textual o
início da paganização do cristianismo h®®

Tais avaliações possuem a desvantagem de confrontar o testemunho


de uma outra época diretamente com as normas vigentes no presente
- seja para distanciar-se dele como comprovação da própria natureza
progressista, seja também para usá-lo de forma reacionária como ins­
trumento para a própria crítica do presente.“^®®Pressuposição para uma
interpretação adequada dessas diretrizes é, contudo, a consideração
adequada do seu contexto histórico, tanto em relação ãs condições
legais gerais imperantes no Império Romano, como também em rela­
ção ãs dificuldades específicas inerentes a um grupo marginal estig­
matizado. Deve-se observar adicionalmente como nossa carta traba­
lha com o material recebido da tradição. A necessidade de tal
contextualização implica, por um lado, que não se pode simplesmen­
te repetir tais orientações no presente (o que é amplamente reconhe­
cido em relação à escravidão). Por outro, é preciso se distanciar tam­
bém de um descrédito muito em voga em relação à doutrina das atri­
buições pertinentes às diferentes funções e posições sociais, que era
óbvia não só para os conterrâneos pagãos da IPe,"*®'^ mas também para
os judeus"*®® e cristãos'*®® da época, para examinar, ao invés disso, o
que tais orientações queriam e podiam realizar para a determinação
das atribuições das comunidades cristãs dentro das estruturas de
poder existentes, também em relação a uma “mundanidade” respon­
sável dos cristãos.

BALCH, D. L. H ellen ization /A ccu ltu ration in 1 Peter. In: TALBE RT, C. H. (Ed.).
Persp ectives on F irst Peter. Macon, 1986. p. 97. A mesm a tendência de um a crítica
unidim ensional m ostra tam bém a pesquisa de WOYKE, J. D ie n e u te s ta m e n tlich e n
H au sta feln . Ein kritischer und konstruktiver Forschungsüberblick. Stuttgart, 2000.
S C H W E IZ E R , E. D ie W e ltlic h k e it des N eu en T es ta m en ts. D ie H a u stafeln . In:
DONNER, H. et al. (Eds.). B eiträge z u r alttestam entlichen Theologie. (FS W. Zimmerli).
Göttingen, 1977. p. 407, 410.
Isso ocorre, p. ex., com WINDISCH, 1951, p. 62, que interpreta essa sequência de
três exortações à submissão com indiscutível satisfação como “sinal petra o caráter
totalm ente patriarcal, sem o m enor resquício de ten dên cia para reform a, m uito
m enos para revolução, do cristianism o prim itivo” .
Cf. Epict, Diss 11,14,8; 111,24; Sem, Ep XV,94,1.
C f Filo, Decai 165-167; Jos, Ap II, 198-210.
C f especialmente Cl 3.18 - 4.1; E f 5.22 - 6.1; ainda IT m 2.8-15; 6.1s; Tt 2.2-10;
IC lem 21.6-8; Did 4.9-11.

136
Excurso 8: O contexto das exortações à subordinação
a) O contexto social: deve-se observar, em primeiro lugar, que todas as
exortações estão relacionadas por IPe 2.12 de antemão com a situação do sofri­
mento injusto."^^“ Por isso, já n a introdução às orientações para a subordinação
(2.12), o sentido do correto comportamento é fundamentado com o fato de que,
dessa forma, as difamações do entorno poderiam ser melhor rebatidas. O mesmo
repete-se em cada u m a das três orientações. 2.15 fundam enta a exortação à
subordinação à autoridade com o propósito de emudecer os blasfemadores por
meio de boas ações. Os escravos - especialmente sujeitos a hostilidades em
razão de su a conversão ao cristianismo e do consequente afastamento da religião
dos seus senhores“*®^—, segundo 2.19s, devem sofrer somente por causa da injus­
tiça, resp. em virtude de boas ações, o que iguahnente parece relacionar-se com
um sofrimento por causa de su a existência como c r i s t ã o s . ^ exortação que
segue dirige-se, sobretudo, a mulheres casadas com homens não-cristãos (3.1s).
Junto com os escravos, eram sobretudo as mulheres para as quais era atrativa a

Cf. KN O PF, 1912, p. 98s: “As exortações da carta, m ú ltip las e em p arte bem
diversificadas, são conservadas num a unidade pelo fato de continuamente ser feita
referência ao entorno pagão, dentro do qual vivem os cristãos, e que parcialm ente
até se introm ete de form a bem estreita em sua vida pessoal (...) E, visto de um a
maneira geral, (...) o entorno no qual se encontram colocados os cristãos configura-
se-lhes como rigido e hostil (...)” .
Cf. BÕM ER, F. U ntersu chungen ü ber die Religion der Sklaven in G riechenland
und Rom. V ierter Teil: Epilegom ena. Mainz, 1953. p. 247ss.
BROX, 1993, p. 133 é de opinião que a referência aqui é a qualquer sofrimento de
escravo, contanto que ten h a sido in fligido de form a injusta. E ssa interpretação
ainda faz sentido para 2.19; se, porém , em 2.20 é falado de um sofrim ento dos
escravos como àyaSoTTOioOvteç, então, em bora não seja obrigatório ver nisso um nexo
causal entre com portam ento cristão e sofrim ento (assim GOPPELT, 1978, p. 197),
ele, não obstante, parece ser provável, uma vez que a referida “prática do bem” já é
quase que um sinônimo para a conduta como cristão (cf. também Jo 5.29). Sobre
todo o contexto dessas exortações acha-se em Tertuüano uma lamentação reveladora;
na discussão sobre os argumentos usados contra os cristãos, lê-se o seguinte: “Por
que muitos se deixam levar por esse ódio (sc. contra os cristãos) de olhos fechados,
a tal ponto que, mesmo que tenham que prestar testemunho favorável sobre algum
de nós, imediatamente o acusam de usar o nome de cristão? (...) Outros consideram
como errado justam ente aquilo que necessitam louvar naqueles que, antes de sua
aceitação do nom e de cristãos, conheciam com o vagabundos, m iseráveis e sem
caráter; (...) Assim, reprova-se o nome para que possam melhorar. Outros há ainda
que compactuam com esse ódio inclusive pelo preço de vantagens pessoais (...) Sua
esposa, que agora é casta, é rejeitad a pelo esposo, que não m ais n ecessita ser
ciumento; seu filho, que agora é obediente, é deserdado pelo pai, que anteriormente
perm anecia paciente; seu escravo, que agora é confiável, é banido dos olhos pelo
seu senhor, que anteriorm ente usava de moderação. Assim que alguém apresenta
melhoras em função desse nome, provoca escândalo [u t quisque hoc nom ine em endatur,
offen d it]” (Tert, Apol 3.1-4; traduzido segundo C. Becker). Mesmo que em Tertuliano
ten h a que se le v a r em c o n s id era çã o a sim p lific a ç ã o e a m p lia çã o a p o lo g é tic a
(justamente também no contraste moral entre antes e agora), ele dificilm ente teria
escrito as palavras citadas sem que elas tivessem qualquer fundamento na realidade.
É revelador nesse particular que foi sentido como escândalo não só o fato do ser-
cristão como tal, mas também o ser-diferente dos convertidos, oriundo do seu etos
especial (cf. IP e 4.3s), ou seja, o fato de ter existido um “sofrimento como praticante
do bem”; cf. ainda ÜGLER, U.-R. D ie Pa rã n ese an die Sklaven ais M od ell urchristlicher
S ozia leth ik . Diss. theol. Erlangen, 1977. p. 172.

137
oportunidade de um a membresia própria nas comunidades cristãs.''®^ N a medida
em que sua decisão religiosa própria podia ser sentida como negação da subm is­
são e, com isso, como ataque contra a ordem da casa, elas igualmente tinham
que contair com a oposição dos seus maridos.'*®'^ Em ambos os casos, atingia-se
um a esfera especialmente sensivel, pois a comunhão da casa, o oíkoç, represen­
tava a célula-mãe da sociedade antiga''®^, e a intrusão nessa ordem aparentemen­
te provocou recriminações espeeiais ao cristianismo, um a vez que a decisão reli­
giosa autônoma de mulheres ou escravos despertava a suspeita de insubordina­
ção generalizada, aumentando as aversões e x is t e n t e s .P o r é m , na medida em
que a casa tinha importância central para o cristianismo primitivo como centro
missionário e local de reunião, fazia-se mister, nesse particular, não causar es­
cândalo que não fosse absolutamente necessário. De forma análoga, a IPe enco­
raja as mulheres (como anteriormente havia feito em relação a todos os cristãos
diante das autoridades e aos escravos diante dos seus senhores) a, por meio de
comportamento exemplar e ajustamento e submissão conscientes ã estrutura de
poder vigente, resistir à pressão e intimidação (3.6) do entorno que, de forma
maçiça, as mantém sob suspeita e as difama.'*®’^ A situação de incriminações
injustas também se encontra retratada n a exortação final de 3.9, bem como na
passagem seguinte de 3.13ss. Bem mais claramente do que nos “catálogos do­
mésticos” das cartas de Efésios e Colossenses, toda a parênese em IPe 2.11 -

Cf. EBEL, E. D ie Attraktiuäät frü h e r ch ristlich er G em einden. Die Gemeinde von Korinth
im Spiegel griechisch-röm ischer Vereine. Tübingen, 2004. p. 218ss.
Cf. BALCH, D. L. L e t W ives B e S u bm issive. The Domestic Code in I Peter. Atlanta,
1981. p. 81ss. B alch a p resen ta m u itos textos co m p rob atórios ali; cf. tam bém
SCHÄFKE, 1979, p. 482s.
C f ELLIOTT, 1985, p. 170-182.
Isso retrata-se claramente, p. ex., nas Cartas Pastorais, em que tanto o pedido de
submissão às mulheres (Tt 2.5) como aos escravos (IT m 6.1) é fundamentado com o
fato de que, dessa maneira, deve ser evitada a difamação da palavra de Deus e da
doutrina (cf. ainda Tt 2.9s, em que encontra-se formulada a mesma coisa). SENIOR,
1982, p. 432 provavelmente não está de todo errado quando afirm a justam ente do
com portam ento dos escravos e das m ulheres que esse era considerado por não-
cristãos como barômetro sobre “how com patible Christianity might be with Greco-
Roman Society” [“quanto o cristianismo pode ser compatível com a sociedade greco-
rom ana”) .
Instrutivo é um deboche no “Asno de Ouro” de Apuleio, no qual é descrito o arquétipo
de uma mulher depravada, sendo que a listagem dos intermináveis defeitos e faltas
culmina com o fato de que essa epitome da depravação tinha um só Deus a quem
adorava - e com o qual também legitimava suas faltas; “O moleiro que me comprara
a peso de dinheiro” , assim narra Lucius, transformado num asno, “era um homem
bom e modesto; porém, casara-se com a pior das mulheres, malvada entre todas as
suas iguais; seu leito e seu lar eram, para ele, um a fonte tão amarga de desgosto,
que até eu, por Hércules, gemia frequentemente, à parte, sobre a sua sorte. Pode-se
dizer que nenhum vicio faltava a essa infame criatura; pelo contrário, estavam todos
reunidos na sua alma, como numa latrina emporcalhada: ela era cruel e mesquinha,
bruta, bêbada, rebelde, teimosa, avara nas suas torpes rapinas, pródiga nos seus
gastos vergonh osos, in im iga da fé, h ostil ao pudor. P o r o u tro la d o, d e s p re z a v a ,
ca lca n d o-os aos p é s , os n u m es d ivinos. E m lu g a r da religião, fa ls a e sa crile g a m e n te
p rofessa va a crença p resu n çosa num deus que procla m a va único [qu em p ra ed ica ret u n icu m ].
Sob a aparência de observâncias vãs, enganava a toda a gente, principalm ente ao
mísero marido. Bebia de manhã ã noite, e se prostituía durante o dia” (Apul, Met
IX, 14; o itálico é meu. Tradução de Ruth G uim arães, com leves adaptações ao
português). O discurso destacado sobre o deus unicus permite pensar somente numa
mulher ju dia ou cristã, sendo que a última hipótese é a mais provável, já que a frase
final parece reportar à Santa Ceia.

138
3.9 encontra-se determinada pela situação social precária dos cristãos e correla­
cionada ao tema determinante do sofrimento.“*^®
b) O contexto da tradição: quando se compara IPe 2.11 - 3.9 com outros
códigos domésticos no Novo Testamento“*®®, fica claro que o autor da IPe serve-
se de u m a tradição difundida no cristianismo primitivo.“ ® Ele acolhe essa tradi­
ção, no entanto, de u m a form a independente, modifica-a e lhe dá u m a nova
orientação.
A especificidade j á inicia com a colocação dessas instruções: enquanto
em Efésios e Colossenses elas se encontram no fim, ou seja, onde tradicional­
mente costuma ser o lugar da parênese em cartas cristãs primitivas cunhadas
por Paulo, na IPe ela se encontra no início da parte principal, está portanto no
centro do escrito.
Notório é, além disso, que aqui a atenção não está concentrada na ordem
interior, mas no efeito para fora: trata-se da dimensão missionária (2.12; 3.1s)
e apologética (2.15; cf. 3.13ss) do comportamento cristão. Ao contráirio dos ou ­
tros códigos domésticos, a parênese inicia com a exigência à subm issão à auto­
ridade pagã, e as exortações significativamente terminam com a proibição da
vingança, bem como com o pedido p ara revidar ao mal com a bênção“ * - direta­
mente relacionadas com a situação de sofrimento. Isso apresenta grande afini­
dade com formulações paulinas (Rm 12.14, 17; cf. ITs 5.15; ICo 4.12); objetiva­
mente também corresponde ao mandamento de Jesus que, ao lado do pedido
pelo amor ao inimigo, espera por um novo comportamento em relação a perse­
guidores (Lc 6.28; Mt 5.44).“ ^
A essas diferenças fundamentais correspondem também outros desvios
isolados. Os escravos, p. ex., não são referidos - como em outros códigos do­
mésticos - em último lugar, mas por primeiro, sendo que essa exortação adicio­
nalmente ainda vem apresentada com a mais extensa fundamentação, em que o
destino dos escravos é diretamente relacionado com o de Cristo. Em contraste
a isso, a exortação aos senhores desaparece por completo. D a m esm a forma foi
omitida a exortação para pais e filhos, importante para a “casa”. AHás, a exorta­
ção aos de cima e aos de baixo em pares, típica para os códigos domésticos,
encontra-se somente no caso de homem e mulher, sendo que também aqui a
exortação às mulheres acaba sendo proporcionalmente muito mais longa, além
de ser fundamentada detalhadamente com a alusão às “mulheres santas” (3.5).

Cf. sobre isso tam bém LOHSE, 1954, p. 73ss; HILL, D. On Suffering and Baptism
in I Peter. N T 18, p. 181ss, 1976.
Uma bela visão geral pode ser encontrada em SELWYN, 1949, p. 430, que, contudo,
precisa ser Uda com cuidado, uma vez que ela só coloca lado a lado as coincidências
- isoladas do seu contexto -, repassando, assim, num primeiro momento, a impressão
de um grau de coincidência muito maior do que realmente corresponde ao conteúdo
dos textos.
Cf. a lista de SELWYN, 1949, p. 423.
3.9; já mencionado em 2.23 em conexão com o exemplo de Cristo; cf. também 3.11,
onde no citado é recom endada aos cristãos a busca pela paz.
As form ulações da IPe, como já foi dito, relacionam -se estreiteimente com Paulo -
p o r isso é d ifíc il d ecid ir se a IP e está fazen d o aqui con scien tem en te alu são à
tradição de Jesus.

139
Tudo isso mostra que não se trata aqui de um código doméstico em
sentido normal.“ ^ Se o especifico de um texto se revela em seu des­
vio da norma vigente, por ser nesse aspecto que ele pretende agir e
age em particular nos receptores®“"^, convém precaver-se contra a in­
terpretação exagerada das passagens convencionais, como tem acon­
tecido sempre de novo justamente na critica ã IPe. Em primeiro pla­
no não se encontra a ordem da casa cristã, mas o condizente “compor­
tamento entre os povos gentios” (2.12), ou seja, a pergunta pela rela­
ção e conduta corretas diante de um entorno hostil e, com isso, tam­
bém pela tarefa cristã dentro dele, pela “prática do bem” (àYocBoiTOLeXy).®“®
“Do começo ao fim, a ênfase está na missão, não na submissão.”®“® Na
verdade, no centro das atenções encontram-se aqui justamente os
que na sociedade são os mais fracos; aqueles que estão expostos ãs
maiores provações encontram-se mais próximos de Cristo, resp. das
santas mulheres, tornando-se dessa forma paradigma para todos os
cristãos.®“'^ Nos escravos é explicado pela primeira vez o que está em
jogo para todos os cristãos: trata-se de fazer o bem (2.20; 3.11, 13,
16s), de abdicar da vingança (2.23; 3.9), de ter disposição também
para o sofrimento injusto (2.19s; 3.14, 16s). Dessa maneira, o presen­
te que aparentemente é tão destituído de salvação pode ser com-

Cf. tam bém GIELEN, M. T ra d itio n u n d Th eologie n eu te s ta m e n tlich e r H a u s ta feleth ik .


Ein Beitrag zur Frage einer christlichen Auseinandersetzung mit gesellschaftlichen
Normen. Frankfurt, 1990. p. 318. Sobre o problema desse conceito como designação
de um género próprio, c f BERGER, 1984, p. 138s. Berger mesmo vé na IP e (ibidem,
p. 139) um estágio de autonomização da tradição parenética ainda não tão evoluido
como no caso de Efésios e Colossenses. Contra isso fala que pelo menos a Carta aos
Colossenses deve ser mais antiga que a IPe.
C f BERGER, 1984, p. 10.
Isso já foi muito bem desenvolvido por GOPPELT, 1978, p. 163ss. Goppelt fala de
uma “Stãndetafel” (“tabela de posições/funções”); nesse contexto, ele entende “Stand”
(= “posição/função”) no sentido reformatório: trata-se “do lugar que foi indicado pelo
soberano governo de Deus sobre a história a cada um nas instituições da sociedade,
da ‘função’ a ser desempenhada” (ibidem, p. 166). De form a análoga, o significado
de “subordinar-se é primariamente que a pessoa que se tom ou ‘estranha’ ã sociedade
pelo seu chamado ã fé não deixe de se enquadrar nas formas de vida da sociedade
na qual se encontra inserido” (ibidem, p. 177).
506
C f BORING, 1999, p. 113.
507
PROSTM EIER, F.-R. H a n d lu n g s m o d e lle im e rs te n P e tru s b rie f. W ürzburg, 1990. p.
411, constata acertadamente serem os escravos aqui “o modelo p a r e x cellen ce”. “Nas
suas condições de vida autênticas - subm issão irrestrita e necessidade de passar
por sofrimentos apesar do cumprimento das tarefas e da prática do bem -, é possível
m ostrar paradigm aticam ente para as com unidades [...] o que significa o “m odelo
C risto” . GÜLZOW, H. C h ris te n tu m u n d S k la v e re i in d en e rs te n d re i J a h rh u n d e rte n .
Nachwort G. Theißen. Münster, 1999 (= 1969). p. 71s, chamou, além disso, atenção
para o fato de que aqui - ao contrário de toda a tradição restante - os escravos são
interpelados como pessoas com responsabilidade própria. “Tal rom pim ento com o
esquema dos catálogos domésticos é totalmente não-romano e também sem paralelos
na stoá. A exortação tem por m eta um a situação na qual, para o escravo cristão, o
senhor e sua casa sempre serão os que vão ganhar” (ibidem, p. 72).

140
preendido como chance para a comprovação, até mais ainda como
local da salvação (2.19s; 5.12).

A. Submissão à autoridade (2.13-17*)

V. 13: Submetei-vos a toda instituição humana®“® por causa


do Senhor, seja ao imperador®“® como o superior,
V. 14: seja aos governadores, que por ele são enviados para
castigo dos malfeitores e louvor dos que praticam o
bem.
V. 15: Porque assim é a vontade de Deus, que, pela prática
do bem, façais emudecer o desconhecimento das pes­
soas sem compreensão,
V. 16: como livres que sois - e não como se tivésseis vossa
liberdade como pretexto para o mal, mas como escra­
vos de Deus.
V. 17: Honrai a todos, amai os irmãos®^“, temei a Deus, honrai
o imperador.
* Literatura sobre IPe 2.13-17: BAMMEL, E. The Commands in I Peter 11.17. ATS
11, p. 279-281, 1964/65; GIELEN, M. Tradition und Theologie neutestamentlicher
Haustafelethik. Ein Beitrag zur Frage einer christlichen Auseinandersetzung mit
gesellschaftlichen Normen. Frankfurt, 1990. (B B B 75); G O LD ST EIN, H. Die
politischen Paränesen in IPetr 2 u nd Rom 13. BiLe 14, p. 88-104, 1973; HERZER,
J. Petrus oder Paulus? Studien über das Verhältnis des Ersten Petmsbriefes zur
paulinischen Tradition. Tübingen, 1998. p. 227-244 (W UNT 103); PROSTMEIER,
F.-R. Handlungsmodelle im ersten Petrusbrief. Würzburg, 1990. (FzB 63); SCHRÄGE,
W. Die Christen und der Staat nach dem Neuen Testament. Gütersloh, 1971. p. 63­
68; SCHRÖGER, F. Ansätze zu den modernen Menschenrechtsforderungen im
1. Petrusbrief. In: HÜBNER, R. M. (Ed.). Der Dienst fü r den Menschen in Theologie
und Verkündigung. (FS A. Brems). Regensburg, 1981. p. 179-191; SCHWANK, B.
Wie Freie, aber als Sklaven Gottes (IPetr 2,16). D as Verhältnis der Christen zur
Staatsmacht nach dem ersten Petrusbrief. EuA 36, p. 5-12, 1960; SNYDER, S. 1
Peter 2:17. A Reconsideration. Cordoba, 1991. p. 211-215. (Filologia Neotesta-
mentaria 4); WINTER, B. W. The Public Honouring of Christian Benefactors.
Romans 13.3-4 and 1 Peter 2.14-15. JSNT 34, p. 87-103, 1988; WOYKE, J. Die
neutestamentlichen Haustafeln. Ein kritischer u n d konstruktiver Forschungs­
überblick. Stuttgart, 2000. (SBS 184).

Sobre essa tradução de k-cÍoiç, cf. HERZER, 1998, p. 229-231; a tradução por “qualquer
tipo de pessoa” (FOERSTER, W. Verbete ktÍCco ktI. In: ThW N T. Stuttgart, 1957 (=
1938). V. III, p. 1034) não convence.
BaoUeúç (literalmente: rei) também é empregado para o im perador romano (cf. Jos,
B ell V, 563; Jo 19.15; A t 17.7; Ap 17.9, 12; outros textos em B AU ER-ALAN D ,
1988, paaiÃeúç § 1.
à&ÀijjÓTTiç representa a totalidade dos irmãos (e das irmãs) em Cristo (cf. IC lem 2.4).

141
V.13 Diante do pano de fundo das erítieas às exortações à submissão
da IPe, apresentadas acima, já o início é notório: o Estado, resp. seus
soberanos são caracterizados aqui como “instituição humana”. Ora,
a dignidade religiosa do Estado e de seus representantes constituía
uma parte decisiva de sua legitimação, que unia os diferentes grupos
e classes no império por meio da “religião de fidelidade” do culto ao
imperador.®” Em contraposição a isso, em nosso texto não é atribuída
nenhuma dignidade religiosa ao E s t a d o . T a m b é m em relação ao
paralelo mais próximo dentro do Novo Testamento, Rm 13.1-7®^®, cha­
ma a atenção que a legitimação teológica da autoridade em IPe 2.13ss
ocorre de maneira bem mais reservada.®” Enquanto Paulo fundamen­
ta seu pedido para a subordinação com o fato de o Estado exercer sua
função de manter a ordem como servo de Deus®^®, cabendo-lhe por
isso “temor” (Rm 13.7; cf. 13.3s), e sendo oposição ao Estado, portan­
to, oposição a Deus (13.2), a IPe é claramente mais reservada nesse
ponto: o “servo de Deus” transforma-se em “instituição humana”, e
“temor” é solicitado decididamente só em relação a Deus (2.17).

Com isso também combina a fundamentação da exigência: há que se


obedecer aos detentores do poder no Império Romano, sendo o seu
maioral o próprio imperador, mas “por causa do Senhor”. Nesse se­
nhor o ponto de referência significativamente não é formado por um
senhorio de Cristo que fosse paralelo ao senhorio terreno, mas pelo
seu sofrimento injusto, desenvolvido em 2.21ss. O que vale é, “seguin­
do os seus passos” (2.21), praticar o bem, também dentro de estruturas
sociais de poder, sob as quais os cristãos sofrem. Na medida em que
essa obediência é fundamentada com a referência a Cristo, ela impli­
citamente também é por isso normatizada. Sabemos de outros textos
neotestamentários e do cristianismo primitivo em que a obediência
cristã ã autoridade não era incondicional, mas que, em casos de con­
flito, a ligação superior a Cristo também poderia levar a que a reivindi­
cação do outro ou dos outros “senhores” viesse a sofrer limitações.

Foi, sobretudo, Domiciano, o imperador sob o qual a IP e mais provavelmente surgiu,


que promoveu esse culto até o ponto de ter se deixado interpelar e reverenciar como
“Deus e Senhor” , além de ordenar a construção de um templo em Éfeso com um a
estátua colossal; sobre a provável relação desses eventos com as perseguições aos
cristãos, cf. PRICE, 2002, p. 197s.
V. também o comentário em 2.17.
O conhecim ento ou não desse texto pela IP e é controverso: cf. HERZER, 1998, p.
227 ss.
Cf. SCHRÄGE, 1971, p. 66s: “O imperador e os seus governadores não são instituídos
eo ip s o por Deus, não possuem dignidade divina, mas são, inicialm ente, apenas
criaturas, sendo também sua autoridade correspondente a essa condição” .
Rm 13.4 até: SiáKovoç; Rm 13.6: XeLxoupYÓç.

142
É nesse sentido que, em relação a autoridades judaicas que procuravam proibir-
lhes a continuidade da pregação cristã, os apóstolos formulam o princípio: “an­
tes importa obedecer a Deus do que aos homens” (At 5.29; cf. 4.19). Quando os
mártires cilitanos eram para ser obrigados a participar do culto ao imperador,
louvaram a Deus como rex regum e imperator omnium gentium (ActScil 6), distancian­
do-se, portanto, provocativamente do culto ao imperador por meio de um a ter­
minologia política, form ulada diretamente por um dos mártires ao procônsul
que o interrogava: “Ego imperium huius seculi non cognosco [...]” (ActScil 6). O
mais radical é o Apocalipse de João, para o qual o Estado romano encontra-se
diretamente a serviço do mal (cf. esp. Ap 17s). Em meio a toda a aparente ética
de submissão, jã aflora aqui u m a compreensão nova e secular do Estado, e o
entorno percebeu isso muito bem como sendo um sistema referencial não com­
patível e concorrente com sua própria autocompreensão. E não foi totalmente
sem razão que esse mesmo entorno, a partir de su a perspectiva, em bora de
forma distorcida, sempre de novo desconfiou e acusou o cristianismo de “tu­
multo”! Para o filósofo platónico-médio Celso, cujo 'AlriOfiç Aóyo; representa a
primeira polêmica pagã abrangente contra os conteúdos do cristianismo, o prin­
cípio cristão segundo o qual não se deve servir a dois senhores constitui a “voz
do levante” (jjuyTi oTáoeuç), pelo qual os cristãos se “enclausuram e distanciam”
de todas as demais pessoas (Orig, Cels VI11.2).

A IPe, contudo, não se deixa envolver por esses limites da obediên­


cia, pois sua intenção é aconselheu" bom comportamento e submissão
a seus destinatários, a fim de impedir conflitos ameaçadores ou abran­
dar os existentes. Talvez para deslindar um mal-entendimento da
liberdade cristã (v. abaixo em 2.16), ela tenha dado destaque justa­
mente à função positiva da preservação da ordem pelo Estado, orde­
nada por Deus.

V. 14 Os diferentes órgãos da autoridade são legitimados pela sua


função ordenadora. Essa afirmação precisa ser lida considerando-se
o fato de que os cristãos, de forma alguma, tiveram só experiências
boas com os organismos estatais. Apesar disso, a carta reafirma que a
essência do Estado, em principio, é boa, fundamentando a obediên­
cia a ele no v. 15 diretamente com a vontade de Deus. Não há dúvidas
de que pode ter representado uma estratégia dos cristãos responsabi­
lizar o Estado em sua função de garantidor da justiça mesmo onde
ele não correspondia a tal i d e a l . M a s IPe 2.13ss não permite ser
interpretado unicamente a partir dessa perspectiva; também aqui se
mostra, como já em Rm 13.1-7, o grande apreço com que era tida
também em circulos cristãos a ordem estatal, entendida como um
espaço protegido do direito, fazendo com que, mesmo quando se ti­
vesse problemas com representantes desse Estado, não se deixasse
de tributar respeito e obediência ao sistema legal do Estado.

Nesse sentido, p. ex., os mártires cilitanos enfatizam sempre de novo nos interro­
gatórios seu cumprimento exem plar das obrigações morais e sociais - incluindo-se
aí a moral tributária.

143
Isso explica porque, apesar das tensões que, de u m a maneira geral, intensifica­
vam-se cada vez mais, no cristianismo primitivo não se conseguiu impor a postu­
ra radical do Apocalipse, mas a postura positiva diante do Estado testemunhada
na IPe. É bem verdade que na Carta de Clemente Romano a Corinto, surgida
poucos anos após a IPe^'^, logo no início é feita referência às “desgraças e calami­
dades que se precipitaram repentina e sucessivamente sobre nós” (tradução de
J. A. Fischer) - provavelmente sob Domiciano -, e os capítulos 5 e 5 reportam-se
expHcitamente à perseguição sob Nero. Ao mesmo tempo, contudo, o autor pede
obediência aos soberanos (60.4), cuja instalação ele atribui expressamente a
Deus (61. Is). Manifestações semelhantes também se encontram em Justino, o
mártir, que assegura lealdade cristã ao imperador, ao mesmo tempo em que faz
referência a perseguições (Just, Apol I,17,3s), ou em Atenágoras, que inclusive
pede pelo domínio mundial de Roma (Athenag, Suppl 37).®'®

V. 15 A capacidade de discernimento ético dos governadores “pa­


gãos” deve, inclusive, ser aproveitada como chance de contradizer os
adversários com o testemunho das ações - atribui-se-lhes “desconhe-
eimento” e “falta de compreensão”, o que, em contraste com a malda­
de deliberada, possivelmente ainda permite ter esperança de melho­
ra (cf. 1.14). Em certo sentido, essa frase interrompe as explanações,
mas não para adicionar qualquer “má experiência [...] na persegui­
ção de Domiciano”^^®, mas para ligar exigêneia de submissão com o
propõsito básico de toda a parênese, já formulado em 2.12 e repetido
em 3. Is, 16, a saber, corrigir os difamadores através de um comporta­
mento exemplar. Essa estratégia nem sempre deve ter dado resulta­
dos, como mostra o exemplo de Plínio, que, como governador, aproxi­
madamente 20 anos mais tarde, permite a execução de cristãos, mes­
mo que, apesar das torturas (Plin, Ep X,96,8), não tenha conseguido
aclarar quais seriam as “práticas vergonhosas” (Plin, Ep X,96,2) a eles
atribuídas. Por outro lado, também não se deveria partir simplesmen­
te do pressuposto de que tal esforço de entendimento sempre estives­
se fadado ao fraeasso, só porque não se consegue imaginar a relação
entre cristãos e sociedade pagã sem tensão. A IPe mostra, antes, um
quadro diferenciado. O recurso explícito à vontade de Deus, com o
qual é introduzida essa instrução, sublinha mais uma vez o compro­
misso com a obediência.

V, 16 A submissão à autoridade estatal já foi apresentada em 2.13


como decorrente da ligação com o Senhor e, dessa maneira, como
decisão ativa. Isso é aqui definido mais uma vez através de uma in-

A carta costuma ser datada no final do remado de Domiciano (81-96) ou no reinado


de N erva (96-98); cf. FISC H ER, J. A. (Ed.). D ie A p o s to lis c h e n V äter. Eingeleitet,
herausgegeben, übertragen und erläutert. 10. ed. Darmstadt, 1998 (= 1993). p. 19.
Cf. ainda Theophil, Autol 1,11; Tert, Apol 30-33.
Cf. MALY, K. Christ und Staat im Neuen Testament. In: DEGENHARDT, J. J. (Ed.).
D ie F reu d e an Gott, u n sere Kraft. (FS O. B. Knoch). Stuttgart, 1991. p. 275.

144
serção com o auxílio do conceito da liberdade, que não desempenha
nenhum papel para Paulo no contexto de Rm 13.1-7. A IPe acentua
que o reconhecimento do Estado não representa nenhum “confor­
mar-se” diante do poder superior que fosse incompatível com a liber­
dade cristã; a liberdade dos crentes, pelo contrário, comprova-se,
antes, pelo fato de eles se inserirem, em obediência a Deus®^°, no
âmbito do poder estatal como uma ordem a ser considerada boa em
sua essência.^^' Difícil é julgar em que medida a admoestação contra
o abuso da Uberdade cristã, referida logo a seguir no mesmo versículo,
estava condicionada por problemas c o n c r e t o s . qualquer forma,
o que a IPe afirma nesse contexto é uma importante contribuição
para a compreensão da liberdade cristã. Esta é o contrário de arbitra­
riedade sem compromisso, como jã frisava Paulo. Por intermédio de
uma liberdade mal-entendida, a “carne” pode se tornar um “ponto
estratégico” no indivíduo, como se expressa o apóstolo em metaforismo
militar, uma àct)op;ní, a partir do qual então se apossa de toda a pes-
soa.523 A IPe expressa algo semelhante com a imagem mais ativa do
disfarce, resp. camuflagem, quando fala de tal falsa liberdade como
“pretexto para o mal”“ '^, já que a pessoa que nega suas ligações não é
realmente livre, mas vítima da própria cobiça (cf. 1.14; 2.11). Liberda­
de no sentido cristão é, ao contrário, o reverso da pertença a Deus,
pois o ser humano não é livre por natureza, mas é libertado (cf. IPe
1.18). Dessa maneira, a liberdade é o resultado de ligação. Em 1.14,
cunha-se o conceito “filhos da obediência” para expressar esse fato.
Agora o entrecruzamento específico de ligação e independência ine­
rente ao conceito de liberdade cristã é destacado retoricamente e

™ Cf. GERHARD, 1709, p. 260: “E stis quidem liberi, sed tarnen servi D E O [...] M agistratui
p ro p te r D E U M obed ientes; n on h om inibus sed D E O seru itis“.
A IP e , contudo, com o já foi referido, evita toda e qu alqu er legitim ação religiosa
dessa autoridade (cf., contrário a isso, a sua acentuação maciça em Rm 13.Is, 4, 6).
“ “ Pouco provável seria nesse caso um engano político no sentido de um a oposição ao
E s ta d o - o q u e ta m b ém d ific ilm e n te s e r ia im a g in á v e l n um gru p o m a rg in a l
num ericam ente tão inexpressivo. Mais provável seria pensar num equivoco ético
(cf. G1 5.13; IC o 8.9) que interpretasse a liberdade cristã com o afastam ento do
mundo: “O m otivo da liberdade, presente em 2.16 e que se liga com 2.17, aponta
para um desinteresse teologicamente fundamentado em autoridades terrenas; como
cristão se era da opinião de já estar retirado do mundo, valendo como irrelevantes
para o próprio com portam ento suas estruturas societais-sociais. Tal concepção é
corrigida pela IPe: cristãos são, de fato, livres de todas as coações intramundanas;
m as eles preservam sua liberdade, inserindo-se em circunstâncias vigentes [...]”
(WOLFF, Ch. In der Nachfolge des leidenden Christus. Exegetische Überlegungen
zur Sklavenparänese 1 Petr 2,18-25. ln: MAIER, Ch. et al. (Eds.). E x e g e s e v or Ort.
(FS P. W elten). Leipzig, 2001. p. 428).
Gl 5.13; assim a pessoa recai no “jugo da escravidão” , do qual havia sido libertada
por Cristo (G1 5.1).
Sobre a imagem de um “disfarce” para o mal, cf. também a sentença de Menander
sobre a riqueza, em Menand, Frgm. 90: trloCToc & -iroUcov èniKáluii^’ èotI v KaKcôv.

145
ainda melhor definido por um - para a antiguidade orientada pelo
ideal do homem livre, provocativo®^® - oximoro: os crentes são “livres”
justamente como “escravos de Deus”.

Deve-se considerar, contudo, também que essa imagem do “escravo” aqui não
se encontra de forma isolada, sendo antes complementada e definida por todas
as demais imagens sobre Deus e sua comunidade já empregadas até o momen­
to e que mostram u m a relação bem mais pessoal. Ademais, convém lem brar
que, para alguém familiarizado com a tradição veterotestamentária judaica, o
conceito de ôoOXoç não evoca unicamente associação com opressão e exploração.
Quando um Paulo se denomina de “escravo de Jesus Cristo” (Rm 1.1; Fp 1.1; cf.
IC o 7.22; G1 1.10; cf. também Tg 1.1) - baseando-se, provavelmente, n a tradição
veterotestamentária do mm - ele expressa com isso su a completa per­
tença a Cristo, fundamento de su a independência de todas as outras coisas (cf.
IC o 7.29-31). Rm 6.18 formula de forma incisiva: os cristãos foram libertados
justam ente por terem sido feitos escravos da justiça. D essa maneira, fun da­
menta-se u m a liberdade que não contesta a inserção em ordens vigentes (cf.
IC o 7.17-24). De maneira análoga, a IPe também sublinha, pela ligação que
estabelece entre liberdade e escravidão, que liberdade cristã reside n a ligação
ao “Senhor”.

V. 17 Esse excurso fundamental sobre a liberdade no v. 16 é seguido


de uma exortação final composta por quatro membros, cuja ordem é
elucidativa. Inicialmente é pedido que se honre a toda pessoa. Se nos
dermos conta do sofrimento que é infligido aos cristãos por “todas as
pessoas”, segundo o testemunho da carta, a exortação expressa de
forma incisiva uma atitude fundamentalmente aberta, sim, positiva
em relação ao entorno, reclamada pela IPe dos seus destinatários (cf.
2.12).®^^ Depois do comportamento devido a todas as pessoas, segue,
em segundo lugar, o comportamento dentro da comunidade; aqui a
IPe repete o compromisso com o amor fraternal, já referido na primei­
ra parte principal da carta como consequência do renascimento por

Cf. RENGSTORF, K. H. Verbete ôoOXoç ktX. In: ThW NT. Stuttgart, 1935. v. II, p. 264:
“O valor pessoal reside para o grego no fato de ser Hvre. Com isso já está de antemão
realizada a diferenciação da autoconsciência grega em relação a tudo o que é abarcado
pelo conceito do ôouA.eúeu’ [...]” (textos comprobatórios nesse sentido, da época clássica
até a época dos imperadores, p. 265-267).
526
Na invocação do servo de Javé, traduzido por 5oGA,ó<; |iou (Is 49.3 LXX; cf. 49.5).
527
A exortação encontra-se no aoristo, ao passo que os outros três im perativos são
form ulados no presente. As possíveis interpretações para o em prego diferenciado
dos tempos verbais são apresentadas por SNYDER, 1991. Ele mesmo defende uma
interpretação antiga, segundo a qual o primeiro membro representaria o título para
os demais. O sentido seria: dai a todos a honra que lhes é devida, a saber... Nessa
compreensão, ele ainda relaciona os três membros com 1.22 (amor fraternal), 1.17
(temor a Deus) e 2.13ss. Dessa maneira, contudo, não se percebe a cesura em 2.11
nem a troca feita entre o primeiro e segundo membros, pela qual o tem or a Deus
passa a receber um papel intermediário parcialmente peculiar entre amor frateno e
respeito pela autoridade. Tam bém é duvidoso que Deus possa ser sim plesm ente
enquadrado num návrtz generalizante.

146
meio de Deus, Pai. Em terceiro lugar, segue o temor, que é devido
unicamente a Deus.®^^ Essas três exortações formam um claro clí­
max: a escalada que parte de todas as pessoas, passa pelos “irmãos” e
termina em Deus corresponde à escalada da honra, passando pelo
amor e culminando no temor (reverente). Chama a atenção, então, o
anticlímax no quarto membro; o imperador deve ser honrado. Com
isso a IPe consegue alcançar duas coisas: pela exortação final de
honrar o imperador é retomada a parênese anteriormente comentada
sobre a autoridade, enfatizando o respeito pela autoridade estatal como
“dever cristão”. Ao mesmo tempo, a retomada do verbo u|j,âi/ do início
da enumeração coloca o comportamento devido ao imperador em ní­
vel igual ao do comportamento devido a todas as pessoas. Isso repre­
senta uma redução se comparado à relação com Deus (cf. o contrário
em Rm 13.3, 7), já que sublinha que, apesar de todo reconhecimento
da ordem estatal, sua reivindicação de dignidade religiosa é rejeita­
da.®^® Que essa é a intenção da IPe fica ainda mais claro se compa­
rarmos os dois últimos membros com a provável fonte que lhe serviu
de base, ou seja, com Pv 24.21 LXX: cfioPoO xòu 9eòv, i)lé, kkl paailéoc. En­
quanto que na sentença instrutiva de Provérbios o temor é devido a
Deus e ao imperador de igual maneira, na 1 Pe ele é expressamente
restrito ao relacionamento com Deus.

A ligação entre a autodesignação ôoí)A,oç XpLoroû e o predicado eA,ei)0epoç


em 2.16 já mostrou que liberdade e dependência não se correlacionam
de forma antitética, mas que a ligação com o “Senhor” Cristo é a que,
antes de mais nada, dá o fundamento à liberdade. As afirmações que
seguem concretizam essa verdade em relação aos escravos, sendo
provavelmente beneficiadas pela nova valoração atribuída ao concei­
to 5oGA,oç em 2.16. Essa nova valoração mostra-se, não por último, no
fato de que os escravos são interpelados diretamente - o que “não
está previsto nem na parênese do Antigo Testamento, nem na judai­
ca e muito menos na helenística [...]”®®° - e por aparecerem colocados
em primeiro lugar, tomando-se em exemplos para todos os crentes
por meio da paralelização do seu destino com a paixão de Cristo.

Sobre o temor a Deus, v. as explanações em 1.17.


Tam bém esse m otivo encontra-se claram ente nos m ártires cilitanos quando, nos
interrogatórios diante do procônsul, eles negam o sacrifício ao im perador com as
palavras: “N os n on haem us alium qu em tim eam us nisi dom inum D eu m nostrum qu i est in
ca elis” (ActScil 8), resp. “H onorem Caesari quase Caesari; tim orem autem D e o ” { 9).
GÜLZOW, 1999, p. 69.

147
B. Submissão e valor dos escravos (2.18-25*)

V. 18: Escravos, sede submissos com todo temor aos senhores,


não só aos bons e sensatos, mas também aos perversos.
V. 19: Porque isto é graça, quando alguém suporta tristezas,
sofrendo injustamente, por motivo de sua consciên­
cia para com Deus.
V. 20: Pois, que glória há se, pecando e sendo esbofeteados,
o suportais eom paciência? Se, entretanto, quando
praticais o bem, sois igualmente afligidos e o suportais
com paciência, isto ê graça junto a Deus.
V. 21: Porquanto para isto mesmo fostes chamados, pois que
também Cristo sofreu por vós, deixando-vos exemplo
para seguirdes os seus passos,
V. 22: ele, que pecado “não cometeu, nem mentira alguma
se achou em sua boca”,
V. 23: que, quando injuriado, não revidava, quando sofria,
não ameaçava, antes, punha a sua causa nas mãos
daquele que julga com justiça,
V. 24: “que carregou, ele próprio, os nossos pecados” em seu
corpo sobre o madeiro, para que nós, mortos para o pe­
cado, vivamos para a justiça; “por cujas chagas fostes
sarados”.
V. 25: Porque estáveis “como as ovelhas desgarradas”, mas
agora vos convertestes para o Pastor e Bispo da vossa
alma.
* Literatura sobre IPe 2.18-25: BREYTENBACH, C. „Cristus litt euretwegen“. Zur
Rezeption von Jes 53 im 1. Petrusbrief. In: FREY, J.; SCHRÖTER, J. Deutungen
des Todes Jesu im Neuen Testament. Tübingen, 2005. p. 437-454. (W UNT 181);
DEICHGRÄBER, R. Gotteshymnus und Christushymnus in der frühen Christenheit.
U n tersu ch un gen zu Form, S prache u n d Stil der frühchristlichen Hymnen.
Göttingen, 1967. p. 140-143. (SUNT 5); LANGKAMM ER, H. Jes 53 u n d IPetr
2,21-25. Z u r christologischen Interpretation der Leidenstheologie von Jes 53.
BiLi 60, p. 90-98, 1987; OSBORNE, Th. P. Guide Lines for Christian Suffering. A
Source-Critical and Theological Study of 1 Peter 2,21-25. Bib. 64, p. 381-408,
1983; PATSCH, H. Zum alttestamentlichen Hintergrund von Römer 4,25 und I.
Petrus 2,24. ZN W 60, p. 273-279, 1969.

Os V . 18-20 apresentam mais u m a vez um a gramática própria, pois que as frases


principais são de novo constituídas por frases nominais. Cham a especial aten­
ção o fato de a exortação ã submissão, que inicia e domina a parênese, estar
formulada por um particípio sem conexão direta com um verbo finito. Pelo impe­
rativo i)TT0TáYT)T6 em 2.13, bem como os quatro imperativos em 2.17, também aqui
o significado imperativo aparece com clareza, embora não como forma direta de
ordenação. Acima (v. em 2. I l s ) jã foi aventada a possibilidade de que isso cons­
titua a renüncia consciente de um a forma autoritativa de ordenação. Isso seria
interessante precisamente se for considerado que, em contraste com todos os
cristãos, em relação aos quais é empregado o imperativo direto em 2.13, agora

148
com os escravos, e depois mais u m a vez com as mulheres, são invocados dois
grupos de pessoas especialmente expostos à pressão social e, assim, ao sofri­
mento, dos quais é esperada u m a submissão, seguramente nada fácil de vivenciar.
Nos v. 21-25 subjaz u m a lem brança da paixão que se orienta em Is 53. Seguida­
mente foi admitido, por razões de estilo®^ ^ conteúdo®^^ e histórico-traditivas®®®,
que se trata nesse texto de um hino tomado da tradição e que a IPe teria
adaptado ao seu c o n t e x t o . E s s a hipótese, porém, não é obrigatória, como já
mostrado por Osborne®®®, que avaliou criticamente as diversas tentativas de
reconstrução. Mesmo o argumento mais importante, a m udança notória da se­
gunda para a primeira pessoa do plural e vice-versa, pode, é verdade, ser um
indício para o emprego de tradições; “nevertheless, this shift may be explained
ju st as well by the reference to Isa 53” [Contudo, essa m udança poderia ser
também explicada como referência a Is 53]®®®. Além de O sbom e, Wolfí®®’^ tam­
bém chamou atenção para o fato de a referência a Isaías, importante para a tese
da independência literária, se encontrar igualmente em outros textos da IPe e
que também a argumentação com os hapax legomena não seria tão forçosa quan ­
to aparentava. Só na passagem de 5.1-4, cuja autoria petrina é discutida, en-
contram-se quatro hapax legomena neotestamentários e treze petrinos. Também
as concordâncias com Pol 8.1, apresentadas como argumentos para a teoria de
um hino independente, podem ser explicadas, segundo Wolff, pelo conhecimen­
to da IPe por Policarpo.®®®

V. 18 Os escravos que, com raras exceções®^®, se encontram nos lu­


gares mais baixos da hierarquia social da sociedade antiga, são os
que, de todos os cristãos, encontram-se mais a mercê do poder e da
arbitrariedade de outras pessoas. Para entender as ordenanças da
IPe, deve-se observar que a instituição da escravidão era largamente
aceita como fato natural na antiguidade.

Mudança da 2® pessoa do plural no v. 21 para a 1“ pessoa no v. 24, quatro h a pa x


leg om en a neotestam entários e nove petrinos, bem com o as frases relativas dos v.
22, 23, 24.
M en cion a d os são, p. ex., o con teú d o ex ced en te de 2.2 5 ou a irre le v â n c ia da
soteriologia em pregada nos v. 21b-24 para a parênese dos escravos.
Concordância com Pol 8.1.
WINDISCH, 1951, p. 65; BULTMANN, R. Bekenntnis- und Liedfragmente im ersten
P etru s b rief. In: D IN K LE R , E. (E d.). R u d o lf B u ltm a n n , E x e g e tic a . A u fsä tze zu r
E rfo rs c h u n g des N e u e n T e s ta m e n ts . T ü b in g e n , 1967. p. 2 9 4 ; W E N G S T , K.
C h ris to lo g is ch e F o rm e ln u n d L ie d e r d es U rch risten tu m s. Gütersloh, 1972. p. 83-86,
entre outros.
OSBORNE, 1983, p. 381-389.
OSBORNE, 1983, p. 388.
WOLFF, 2001, p. 433.
A um resultado correspondente também chega ELLIOTT em seu excurso, 2000, p.
543-550.
ALFÖLDY, G. R ö m is ch e S ozia lgesch ich te. 3. ed. Wiesbaden, 1984. p. 91s apresenta
como exceções escravos pertencentes á fa m ília Caesaris. Havia também casos em que
um escravo podia usu fru ir de benefícios concedidos por um senhor am ável, que
podiam incluir um a boa formação e uma alforria posterior, acompanhada de cessão
de direito de cidadania (ibidem, p. 118-125). Isso, porém, não altera nada no fato
dos escravos, visto de uma maneira genérica, terem sido considerados como a parte
mais fraca da sociedade antiga.

149
É bem verdade que no tempo do principado, provavelmente também em razão da
falta de novos afluxos de escravos, motivada pela diminuição das novas con­
quistas, impõe-se um tratamento mais hum ano dos escravos na jurisprudên­
cia. Ao lado dessa preservação dos recursos por razões econômicas, a filosofia,
principalmente o estoicismo, acentuou que o escravo era tanto concidadão quanto
a pessoa l i v r e . M a s a instituição m esm a não chegou a ser questionada por
causa dessa humanização. A própria 47® carta das Epistulae morales de Sêneca,
que apresenta as degradações e humilhações a que eram submetidos os escra­
vos, em grande parte desprotegidos, de um a forma opressiva, passando a lamentá-
las, nem pensa em criticar a escravidão em si. A carta principia, ao contrãrio,
com um louvor a Lucilius, por ele ser amigo de seu escravo. Mesmo os partici­
pantes dos levantes de escravos não lutavam pela abolição da escravidão, mas
pela su a liberdade i n d i v i d u a l . T a m b é m no judaísm o antigo, em geral^'*^, são
pressupostas e aceitas a escravidão e suas respectivas consequências.®'*^ A s­
sim também no cristianismo primitivo. N a tradição dos evangelhos, pode ser
levantado o problema do aparato de poder tradicional (cf. Lc 12.37; 22.24-27),
m as a escravidão como tal não é explicitamente rejeitada em nenhum lugar,
sendo, ao contrário, pressuposta como vigente nas parábolas sobre os escra­
vos. De forma semelhante, Paulo pode relativizar a escravidão e também outras
condições sociais da humanidade pela referência a Cristo (cf. G1 3.28), além de
trabalhar para conseguir u m a alforria individual ali onde tem alguma influência
(cf. Fm 13s), mas também ele não questiona a instituição da escravidão como
tal (cf. IC o 7.22).

Quando escravos, contra a vontade dos seus senhores, aderiam à


“maléfica superstição” (Tac, An XV,44,2) do cristianismo, esse fato
podia rapidamente desencadear conflito. Por essa razão a IPe acen­
tua a necessidade de, por meio de um comportamento irrepreensível,
tirar os argumentos sobre os quais se fundamentavam a desconfian­
ça e as acusações. Para tanto parece-lhe apropriada a submissão obe­
diente, mesmo em relação a senhores “tortos”. É provável que, nesse
contexto, os termos oLkI tol, escravos (domésticos) e ôcoirÓTai. sejam cons­
cientemente empregados a fim de evitar já terminologicamente qual­
quer paralelização dessa relação de dependência baseada sobre vio­
lência estrutural com a ligação dos ôoúA,ol cristãos (2.16) ao seu KÚpioç

Cf. Sen, Ep V ,4 7 ,l: “‘São escravos!’ Não, são, antes, seres humanos! ‘São escravos!’
Não, são, antes, companheiros de morada. ‘São escravos!’ Não, são, antes, amigos
de nível inferior.” (tradução de F. Loretto); Sen, Ep V,47,10: “Pensa bem que esse
ser que cham as teu escravo nasceu da m esm a sem ente que tu; que u su fru i do
mesmo céu, respira o mesmo ar e vive e morre (como tu)! Assim como podes vê-lo
livre, ele pode ver-te escravo” (tradução de F. Loretto).
541
ALFÕLDY, 1984, p. 66.
542
São conhecidos só dois grupos m argin ais que rejeitam fu n dam en talm en te essa
instituição: o primeiro é composto, segundo o testemunho de Josefo (Ant XVIII. 18-
22) e Filo (OmnProbLib, 79), pelos essênios, aliás, um testemunho não confirmado
pelos próprios escritos de Qumrã, se é que são essênios; e o segundo, de acordo
com Filo, pelos terapeutas (Filo, V irC ont 70).
Josefo pressupõe o castigo de escravos fugitivos como óbvio (ôÍKaiov vevópLorai), mesmo
que esses tenham fugido de senhores injustos (Jos, Bell III.373).

150
(2.13).®"^"* De maneira análoga aqui, em contraposição a Ef 6.5, em que
a submissão aos Kaxk oáçKa KÚpioL é paralelizada com a submissão a
Cristo, não é acentuado o senhorio de Cristo, mas seu sofrimento isento
de culpa na paixão - correspondente ao sofrimento injusto dos escra­
vos. Isso também é importante para a compreensão da controversa
expressão hv mvi\ t()ópu.

A interpretação de (fópoç aqui e em 3.2 como a deferência a ser prestada social-


mente^“^^ - no sentido de que o escravo deve colocar-se em seu lugar em aceita­
ção respeitosa da diferença de classes - é possivel, mesmo que deixe de levar
em consideração u m a significativa tensão em relação ao versículo anterior, em
que esse ())ópoç decididamente só foi concedido a Deus, ao contrário do impera­
dor e de todas as pessoas, para as quais só coube honra. Quaindo se percebe o
cuidado com que foi formulado o v. 17 para tornar clara a referida diferença, fica
difícil conceber que esse “temor”, no versículo anterior sequer concedido ao
imperador, deva agora ser concedido em 2.18 aos senhores e em 3.2 aos ho­
mens, ainda mais que já em 1.17 a expressão tv (pópu se relaciona claramente
com o temor a Deus. Isso também corresponde à linguagem u sada pela IPe em
outras passagens onde “temor” em relação a D eus é visto de forma positiva,
enquanto que em relação a pessoas ele é negado explicitamente por duas vezes
mais tarde (3.6, 14). Por isso parece que também aqui é muito mais plausível
interpretar c^ópoç como temor a Deus.^"*®

O èv cpópq) não deve, portanto, ser entendido como o modo da submis­


são, no sentido de que essa fosse estendida ao interior do escravo,
por assim dizer, através de uma atitude de temor; pelo contrário, a
submissão é fundamentada pela responsabilidade diante de Deus,
resp. Cristo. Dessa forma, mesmo na dependência social mais expres­
siva, é legitimado ainda o momento da independência interior. Os
escravos são, a despeito de toda submissão a seus senhores “tortos”,
mais do que unicamente propriedade à mercê de suas arbitrarieda­
des. Eles são “amados”, pertencentes a Deus, e a sua reação diante do
comportamento dos escravos cristãos é que é decisiva. Isso também
corresponde ã fundamentação na primeira exigência de submissão ã
autoridade, em que o ôià xbv KÚpiov (2.13) igualmente fundamenta a
obediência social com a ligação superior a Cristo®"^^ e, dessa forma,
como expressão de liberdade cristã (2.16).

544
Cf. PROSTMEIER, 1990, p. 408.
545
Cf. P R O S T M E IE R , 1990, p. 4 0 8 , B R O X , 1993, p. 131, 143; cf. ta m b ém
W OHLENBERG, 1923, p. 74. A referência ao paralelo em E f 6.5 não convence,
como já frisado acima, um a vez que mesmo ali “o temor aos senhores terrenos não
passa de consequência do temor a Cristo” (POKORNY, P. D e r B r ie f des Pau lu s an die
E p h e s e r. Leipzig, 1992. p. 236).
Assim também GOPPELT, 1978, p. 193; WOLFF, 2001, p. 430.
KúpLoç design a três vezes claram ente C risto (1.3; 2.3; 3.15). Nas duas citações
veterotestam entárias em 1.25 e 3.12, a menção original naturalm ente se referia a
Deus, mas não é certo que a IP e igualmente o entenda dessa maneira, pois também
em 3.15 a citação de Is 8.13 foi relacionada com Cristo.

151
V. 19 O V. 19 formula uma sentença-chave da IPe: “Porque isto é
graça, quando alguém suporta tristezas, sofrendo injustamente, por
motivo de sua consciência para com Deus”, uma frase cujo sentido é
mais uma vez repetido no versiculo seguinte. Não se deveria designar
isso de “escandaloso”®"^®, pois a escravidão era pressuposta como na­
tural, também pelos cristãos, o que já mostramos acima.®"*® Além dis­
so, os cristãos, como grupo marginal separado, não só não estavam
em condições de mudar algo na sociedade vigente, mas também de­
viam contar com o fato de que quaisquer tentativas nessa direção
representariam a perigosa confirmação da desconfiança social, se­
gundo a qual eles formariam uma comunhão de facciosos. É justa­
mente por causa desse perigo que a IPe procura, de forma tão deter­
minada, pedir pela tolerância dos cristãos. Não há dúvida de que aqui
o preço esteja sendo pago pelos mais fracos, mas isso não ocorre sem
compensação. Inicialmente cabe perceber que a carta de forma algu­
ma procura legitimar a escravidão. Pelo contrário; enquanto na auto­
ridade foi destacada sua função positiva como garantidora da ordem,
aqui fala-se explicitamente de sofrimento injusto que assola os es­
cravos (cristãos), e todo esforço vai no sentido de comprovar que jus­
tamente nesse caso a graça de Deus está presente. Graça é alhures
na IPe a epitome para a salvação escatológica recebida pelos cris­
tãos.®®® Esse significado provavelmente também aqui ressoa junto em
xápiç, só que essa graça (em contraposição marcante ao emprego
terminológico paulino, embora em concordância com outros escritos
neotestamentários e cristãos-primitivos®®*) encontra-se simultanea­
mente ligada a um determinado comportamento, nesse caso ao sofri­
mento por causa da pertença ao cristianismo®®^, de forma que, ao lado
do favor divino, também o momento do “mérito” desempenha um pa­
pel. Se a participação nessa salvação é aqui e no versiculo seguinte
explicitamente prometida ãqueles que, como os membros mais fra­
cos, estão expostos ãs arbitrariedades e ã hostilidade do entorno da
maneira mais desprotegida, se esses, logo adiante nos v. 21ss, inclu­
sive são colocados em relação direta com o Cristo sofredor, então é

BROX, 1993, p. 132, tendo em vista o pedido no v. 18 e a fundamentação no v. 19.


Cf. acima, p. 149. O especificamente cristão consistia em não dar valor às diferen­
ciações de gênero e classe (cf. G1 3.28), ainda mais que se aguardava o fim próximo
(cf. IP e 4.7).
Cf. 1.10, 13; 3.7; 4.10; 5.10 e, sobretudo, mais um a vez como resumo da carta em
5.12.
Cf. Lc 6.32, 33, 34; a xápii; 6.32 substitui o p,io6óç no texto paralelo de Mt 5.46; a
própria passagem de Lc 6.35 substitui por pioSóç a até então três vezes em pregada
xápiç; semelhante em Did 1.3 v.l.; 2Clem 13.4.
Cf. tam bém 2En 51.3: “Todo ju go trabalhoso e pesado, quando advém por sobre
vocês por causa do Senhor, carregai tudo e removei-o, e assim achareis vosso galardão
no dia do ju ízo” (Tradução de Ch. Bõttrich: H en och bu ch ).

152
dessa maneira que os escravos socialmente desprivilegiados sao va­
lorizados no contexto das comunidades cristãs.

V 20 A concessão da graça é repetida mais uma vez, introduzida com


a pergunta retórica pelo “tipo de glória” adequado a uma pessoa cuja
punição é merecida, considerando-se o seu próprio delito. Essa refe­
rência ao KÀéoç, que compete ganhar - um hapax legomenon do Novo
Testamento®^^ sublinha mais uma vez o momento do mérito, pre­
sente no conceito da xápiç (cf. IClem 54.3). Em antítese a isso, a IPe
especifica que como “graça” merece ser identificado somente aquele
sofrimento que não atinja os “praticantes do bem” como culpados em
razão de comportamento errado. A diferenciação entre sofrimento
culposo e inocente, aqui intensificada através da invocação direta
no estilo da diatribe, é repetida mais vezes no transcorrer da carta
(3.17; 4.15s) para deixar claro que o sofrimento envolto pela graça é
unicamente aquele que atingiu os crentes em sua existência cristã
“por causa da justiça” (3.14), como “cristãos” (4.16) e, dessa maneira,
“segundo a vontade de Deus” (4.19).®®"^ Esse suportar das hostilizações
- isso certamente pode ser concluído a partir das formulações corres­
pondentes em 2.12 e 3.1s - permitiu que os escravos, exteriormente
tão destituídos de poder, pudessem dar uma contribuição nada mo­
desta à missão cristã.®®®

V. 21 Por meio da expressão “Porquanto peira isso mesmo fostes cha­


mados”, a parênese é ligada a uma memória da paixão, na qual o com-
porteimento de Jesus durante seu sofrimento torna-se modelo para a
vida cristã. O verbo Kalelv ê empregado na IPe para a integração na
esfera da salvação de Deus.®®® Esse ê também o caso aqui, sendo que
a salvação provocada pelo sofrimento de Jesus é acrescida pelo pen­
samento do exemplo de Cristo que, confiando em Deus, suportou o
sofrimento e renunciou à vingança, tornando-se a norma do compor­
tamento cristão.

Nesse processo, contudo, essa atualização parenética da paixão de


Cristo permanece envolta por afirmações que, mormente com o re­
curso a Is 53, acentuam a importância salvífica do seu sofrimento

Na LXX, o termo encontra-se só duas vezes no livro de Jó e ali com um significado


diferente, ou seja, de “rum or” , resp. “reputação” (Jó 28.22; 30.8).
Cf. a antítese semelhante em 4.15s.
Para GÜLZOW , 1999, p. 121, a inflam ada polêm ica de Celso contra a atividade
m issionária de cristãos das classes mais baixas (Orig, Cels 111,55) confirm a “que a
igreja antiga possuia nos escravos um a das mais eficazes armas de sua missão” .
Segundo 1.15, os crentes são vocacionados para corresponder à santidade divina,
segundo 2.9, das trevas para a luz, segundo 3.9, para bênção e, segundo 5.10, para
a glória eterna. Unicamente em 3.6 ocorre um emprego neutro do termo.

153
substitutivo em favor dos destinatários e, com isso, a singularidade
de sua ação salvifica. A IPe já havia dado a legitimação hermenêutica
dessa conexão entre texto profético e paixão em 1.1 Os, em que via o
Espírito de Cristo atuante nos profetas, que testemunhava antecipa­
damente seu sofrimento e sua glória.

Já o início da memória da paixão recorre à morte vicária de Jesus


Cristo, formulando, porém - o que é específico da IPe (cf. 3.18) -, essa
sentença confessional como o sofrimento de Cristo para vós. Esse so­
frimento, por sua vez, é exemplo que cabe imitar na própria vida;
()iroYpo!:iiM.óç designa como nomen proprium as letras que um estudante
copia.^®^ O termo torna-se posteriormente metáfora para modelo lite­
rário (2Mac 2.28), depois também para o modelo de comportamento
humano; í)iioYpaM.M.óç significa, pois, exemplo.®^® Não se trata, portanto,
em sentido estrito de discipulado de sofrimento (também falta o ter­
mo discípulo), senão que o comportamento de Jesus fornece o mode­
lo, as “linhas mestras”.®®^ Dessa maneira a IPe une a exemplaridade
de Jesus com a sua doação de vida e estabelece assim um estreito
entrelaçamento entre indicativo (que fundamenta) e imperativo (fun­
dam entado por aquele). Esse entrosam ento de singularidade
soteriológica e exemplaridade ética do sofrimento de Cristo é caracterís­
tico da IP e .^ Isso é reforçado pela recordação da vocação.

V. 22-23 O V. 22 destaca de Cristo, inicialmente, que não cometeu


pecados (sendo que em apapiíav transparece antes o aspecto da infra­
ção contra Deus, e em ôóloç, o da ofensa entre as pessoas). Isso subli­
nha com ênfase ética o que em 1.19 havia sido dito metaforicamente,
ou seja, que Cristo não teve participação na realidade de vida fútil,
podendo, em razão disso, liberteir-se dela. É provável que a IPe subs­
tituiu a àyoM,LK de Is 53.9 pela àpaptía para haver correspondência com
a extinção dos pecados em 2.24. Implicitamente, contudo, também
cristologia e ética estão ligadas, pois a libertação por meio do Cristo
isento de peeados e seu exemplo reforçam mais uma vez a exigência

Cf. BAUER, 1998, p. 1681: “ O m odelo para copiar ou reescrever”; semelhantemente


LIDDELL-SCOTT, 1996, p. 1877: “p a tte m , m odel, o u tlin e ”; STEPHANUS, 1954, p.
305: “Form a delineata, Praescriptum ” .
Cf. IC lem 16.17 e Pol 8.2, igualmente sobre o exemplo (úiroYpappóç) dado por Cristo,
suportando sua paixão; de form a sem elhante, IC lem 5.7 designa Paulo com o o
“maior exemplo (peyioToc {nroYpapixóç) de paciência” .
OSBORNE, 1983 refere-se a “guide lines” .
Cf. M A N K E , H. L e id e n u n d H e r r lic h k e it. E in e S tu d ie zu r C h ris to lo g ie d es 1.
Petrusbriefs. Diss. Münster, 1975. p. 216ss. BREYTENBACH fala de “vole m odel”
(B R EYTE N B AC H , C. „C ristu s litt eu retw egen “ . Z u r R ezep tion von des 53 im 1.
Petru sb rief, ln: FREY, J.; S CH RÖ TE R, J. D e u tu n g e n d e s T o d e s J e s u im N e u e n
Testa m en t. Tübingen, 2005. p. 446, 454).

154
para a prática do bem e para que seja evitado o mal nos v. 19s. De
forma bem especial, no entanto, é feita referência a Jesus como exem­
plo para a renúncia à vingança no v. 23, a ele que não revidou com a
mesma moeda quando sofreu injúrias e foi açoitado, vindo a incorpo­
rar, dessa maneira, o objetivo ético de toda a parênese (cf. 3.9). Tam­
bém esse motivo lembra o cântico do servo sofredor (Is 53.7), reprodu­
zido na paixão de Jesus especialmente em seu silêncio diante das
acusações (Mc 14.61par.; 15.5par.; Lc 23.9). Tal comportamento, se
julgado de forma não-amigável, podia ser interpretado como uma fra­
queza indigna do divino no contexto dos valores antigos®®^; mas tam­
bém se poderia reeonhecer nele - e assim quer a IPe que seja enten­
dido - força moral exemplar.®®^ A fundamentação para essa postura
de Jesus, no entanto, não é a superioridade sobre o mundo conforme
a ataraxia cinico-estoica ou a apatia; ela se fundamenta antes - bem
ao modo judaico®®®- na confiança em Deus, que estabelece justiça.
Nova referência ao seu juízo é feita com a especificação, acrescida
adversativamente, “punha a sua causa nas mãos daquele que julga
com justiça”, sendo que a questão em destaque agora reside, diferen­
temente de 1.17, não na exortação aos praticantes, mas no consolo ãs
vítimas; o consolo de que esse juiz haverá de conceder também aos que
sofrem injustamente a obtenção dos seus direitos®®'^- podendo esses,
por isso, renunciar ã retribuição própria (cf. Rm 12.17-21 e outros).

Conforme Celso, Jesus deveria ter colocado sua divindade ã prova pelo fato de ter
reagido punitivamente em relação àqueles que haviam debochado dele: “Por que ele
não mostra - se não antes, ao menos agora - algo de divino (0eióv xi.) e não se salva
dessa vergonha e não exige prestação de contas daqueles que se sobrepõem a ele e
ao seu Pai?” (Orig, Cels 11,35).
A renúncia ã retaliação em relação ás hostilidades, que, segundo Epiteto, caracteriza
um verdadeiro cín ico (Epict, Diss III,2 2,53s), tam bém se con cretiza no silêncio
diante das injúrias dos inimigos. Plutarco, p. ex., afirm a não existir nada de maior
valor e mais nobre que a serenidade em relação ao inimigo injurioso (loO A.otôopoijvcoç
fXSpoO Tf|v pouxíav à yíiv, Plut, DeCap 90D); e Marco Antônio pede de um que quer
segui-lo ( 'A vtojvívou paSTirnç), entre outras coisas, que não revide de igual para igual
em caso de reprim endas injustas ([...Jtoüç àôÍKOjç aúxòv |j.ep(j)op.évouç pf) àvxipeptljopévoç;
M Ant V I,30).
Cf. 2En 50.3s: “ [...] se vos sobrevêm perigo e uma chaga em razão do Senhor - tudo
isso suportai por causa do Senhor. E se estais em condições de retribuir cem vezes,
não vos vingueis, nem em relação ao que está próximo, nem ao que está distante.
Pois o Senhor é o que retribui, e (ele) vos será por vingador no dia do grande juízo,
a fim de que não sejais vingados aqui por pessoas, mas lã pelo Senhor” (tradução de
Ch. Bõttrich, H e n o ch b u ch ). De form a sem elhante, TestX ll.B en V,4 (tradução de J.
Becker, T esta m en te): “Pois o piedoso com padece-se sobre o injurioso [A.OL5o)pov] e
silencia”. (A tradução de J. Becker, porém, não é segura; oLcovã também podería estar
se referindo ao injurioso como sujeito); “[...] deixa a retribuição para Deus” (TestXII.
Gad V I,7; tradução de J. Becker, Testam ente).
Cf. também 2Mac 7.17, 19, 31, 35ss; 4Mac 10.11; TestXII.Gad 6.7; Jos, Ant IV.33
e outros; v. sobre isso o excurso acima: Deus como juiz, p. lO lss.

155
V. 24 O V. 24 combina outros trechos de Is 53 com afirmações próprias
sobre a paixão a fim de interpretar a morte de Jesus eomo perdão dos
pecados recorrendo ao servo de Deus de Dêutero-Isaías. Convém ob­
servar que aqui (como também alhures na IPe) é falado de pecado no
contexto do perdão. O discurso sobre o pecado não tem, pois, por ob­
jetivo desabonar os lados negativos do ser humano também ainda
de forma religiosa; seu enfoque reside, pelo eontrário, justamente no
fato de o “pecador” ser colocado em relação com o Deus que perdoa -
Jesus “carregou, ele próprio, os nossos pecados em seu corpo sobre o
madeiro, para que nós, mortos para o pecado, vivamos para a justiça”,
assim se afirma em nosso versículo. Dessa maneira ele estabeleceu a
possibilidade de nova vida, dentro da qual os discípulos encontram-
se inseridos. A contraposição antitética de “mortos para o pecado” e
“vivamos para a justiça” evoca explanações de Paulo em Rm 6.®®® Até
certo ponto, a IPe reformula nesse versículo aquilo que, influencia­
do pela mensagem paulina da justificação, na primeira parte princi­
pal, ela expressou com o renascimento (cf. Rm 6.4). Assim como a
IPe, no entanto, já ligou o pensamento da expiação com o do exem­
plo nos V. 21-23, também o v. 24 evidencia-se, ao mesmo tempo, como
eticamente acentuado: “justiça” não é, na IPe, tanto o poder liberta­
dor de Deus (como em Paulo), mas designa (pelo menos também) um
determinado comportamento^®®: do singular do pecado (como poder
escravizante) passou-se para o plural “pecados” (como sinônimo de
erros humanos).

V. 25 O acorde final desse excurso forma, por sua vez, a eclesiologia.


De Is 53.6 é extraída a imagem das ovelhas errantes, que dessa forma
caracteriza o passado de perdição dos destinatários (cf. também 1.18;
2.9). Pelo retorno ao “Pastor e Bispo das almas”, os crentes foram con­
duzidos paira fora dessa perdição. Os “forasteiros da dispersão” (1.1)
são, portanto, os que em verdade já retomaram para casa. “Pastor” re­
fere-se a Cristo, não a Deus®®^, pois precisamente a imagem do pastor
é a que se relaciona com Cristo na tradição cristã primitiva®®® e tam­
bém em IPe 5.4. A designação dupla como “Pastor” e “Supervisor/
Bispo” expressa duas coisas: por um lado, a autoridade de Cristo como
“Senhor” (1.3; 3.15 e outros), a quem se deve obediência, mas, por
outro, também sua preocupação com os crentes, que se completa na
entrega, no sofrimento vicário (2.21; 3.18).

Cf., especialmente, Rm 6.4, 11, 13, 18.


566 ^pg 3 , i 4 | cf. 3.12, 18; 4.18; esse aspecto, aliás, também não falta em Rm 6 (cf. Rm
6.13).
Contra BROX, 1993, p. 139.
Jo lO . l l s ; Hb 13.20; Ap 7.17; cf. também Mc 14.27par.; Mt 26.31; Lc 15.3-7; Jo
21.15SS.

156
C. A exortação às mulheres e aos homens (3.1-7*)

V. 1: Mulheres, sede vós, igualmente, submissas a vossos ma­


ridos, para que - mesmo que alguns ainda não obede­
çam à palavra -, sejam ganhos, sem palavra alguma, pelo
procedimento das esposas,
V. 2: ao observar o vosso puro comportamento, determinado
pelo temor (a Deus).
V. 3: Não conte para vós o adorno exterior, que consiste em
frisado de cabelos, adereços de ouro ou no trajar de ves­
tes finas,
V. 4: mas o ser humano oculto do coração na imperecibili-
dade de um espírito manso e tranquilo, que é de gran­
de valor diante de Deus.
V. 5: Pois assim também se adornavam as santas mulheres de
outrora que esperavam em Deus, estando submissas aos
seus maridos,
V. 6: como Sara obedeceu a Abraão e o chamou de Senhor, da
qual vos tomastes filhas, vós que praticais o bem e não
temeis nenhuma intimidação.
V. 7: Maridos, vós, igualmente, morai de forma sábia junto
com as mulheres como gênero mais fraco®®®, tratai [as
mulheres] com dignidade, na medida em que são co-
herdeiras da graça da vida, a fim de que não se inter­
rompam as vossas orações.

* Literatura sobre IPe 3.1-7: DEICHGRÄBER, R. Gotteshymnus und Christushymnus


in der frühen Christenheit. Un tersu ch un gen zu Form, Sprache u n d Stil der
frühchristlichen Hymnen. Göttingen, 1967. p. 140-143. (SUNT 5); LANGKAMMER,
H. Jes 53 und IPetr 2,21-25. Zu r christologischen Interpretation der Leidens­
theologie von Jes 53. BiLi 60, p. 90-98, 1987; OSBORNE, Th. P. Guide Lines for
Christiein Suffering. A Source-Critical and Theological Study of 1 Peter 2,21-25.
Bib. 64, p. 381-408, 1983; PATSCH, H. Zum alttestamentlichen Hintergrund von
Römer 4,25 u n d I. Petrus 2,24. ZNW60, p. 273-279, 1969; SLY, D. I. 1 Peter 3:6b
in the Light of Philo and Josephus. JBL 110, p. 126-129, 1991.

V. 1 Também a conversão de uma mulher ao cristianismo podia de­


sencadear conflitos com o cônjuge n ã o - c r i s t ã o . Até um autor que
sublinha tão fortemente a igualdade de direitos de ambos os parcei-

^65 A palavra okíCoç significa “utensílio”, “ferramenta” . É empregada em textos do judaísmo


incipiente e do cristianismo primitivo também para o corpo humano como recipiente
do Espírito (cf. BAUER, 1988, p. 1507). Uma vez que o assunto aqui gira em torno
da diferenciada constituição da mulher no corpo em relação ao homem, empregamos
a tradução “gênero” .
Cf. Tertuliano, Ux 1,2.

157
ros no casamento como Plutarco parte do pressuposto de que as mu­
lheres só devem honrar os deuses de seus maridos (PraecConiug 140
D). A submissão - colocada por meio de óiroícoç junto com as instru­
ções até agora formuladas - é aqui recomendada como o ceiminho
para não somente aplacar, mas inclusive ganhar o cônjuge unica­
mente por intermédio do testemunho de vida (novamente é falado da
àvaaxpocjjfi).®’^* Com a ajuda de um jogo de palavras - os que não creem
“na palavra” devem ser ganhos “sem palavra” a IPe orienta-se no
ideal (patriarcal) da mulher que prova seu valor por meio do silên­
cio. Também aqui fica novamente clara a proximidade da IPe com
o judaísmo helenístico; também esse havia legitimado seu lugar na
sociedade antiga especialmente pelo cumprimento de valores “bem
burgueses”, i. e., conservadores. Os judeus apresentavam-se a si pró­
prios, até certo ponto, como os melhores gentios.Particu larm en te
no tempo do Novo Testamento, isso costuma ocorrer em relação à moral
s e x u a l . A esse contexto também pertence a submissão das mulhe­
res, cuja inferioridade em relação ao homem é pressuposta.

Até Platão, que, em contraste com o status social da m ulher em su a época,


advoga pelo seu tratamento igualitário tanto na educação como em relação às
tarefas a elas atribuídas, inclusive dentro da política (Plat, PoHt 451c-455e), por
ser da convicção de que “os talentos naturais estão distribuídos de m aneira
idêntica em ambos (sc. os gêneros)” (ibidem, 455d), pode finalizar, não obstante,
sua surpreendente fala em favor do tratamento igualitário das mulheres com o
seguinte resumo: “Em tudo, porém, a mulher ê mais fraca que o homem” (ibidem,
455e). Geralmente essa subm issão social ê legitim ada por u m a depreciação
ético-religiosa do gênero feminino^'^^, que encontra eco também no judaism o
contemporâneo. Filo diferencia entre a natureza passiva, presa à matéria, fraca,
feminina, e a masculina, ativa, “igual ao espirito” (»l/uxoeLõiíç) e, por essa razão.

Kepôaívíiv aparenta ser term inologia de missão, (cf. IC o 9.19-22).


Cf. IC lem 21.7. É duvidoso que se deva deduzir da expressão “sem palavras” que
m ulheres não deveríam pregar p or princípio (IT m 2.1 Is ; cf. IC o Í4 .3 3 b -3 6 ); a
questão é, provavelmente, a missão sem palavras por aquelas pessoas que, dada a
sua condição de submissas, não estejam em condições de fazer uso da palavra.
Isso já é bem claramente o caso na Carta de Aristeias (cf. sobre isso, FELDMEIER, R.
W eise hinter „eisernen M auern“ . Tora und jü disch es Selbstverständnis zw ischen
Akkulturation und Absonderung im Aristeasbrief. ln: HENGEL, M.; SCHW EMER,
A. M. [Eds.]. D ie S e p tu a g in ta . Zw ischen Judentum und Christentum . Tübingen,
1994. p. 33).
Cf. a autoapresentação judaica em Arist 152: “Pois a maioria das outras pessoas se
mancha por meio do relacionamento sexual, no que cometem um a grande injustiça,
mesmo que países e cidades inteiras (ainda) se vangloriem com o fato. Ora, elas não
se relacionam unicamente com homens, mas mancham também mães e filhas. Nós,
porém, mantemos distância disso” (tradução de N. Meisner).
Tam bém Platão form ula de form a surpreendentemente brusca a inferioridade ética
das m ulheres nos N om oi: o gênero feminino, assim Platão, seria xpoç aperfiv xfipuv
(Plat, Leg Vl,781b).

158
destinada ao c o m a n d o . A partir daí também se explica que a mulher é respon­
sabilizada em primeira mão pela queda no pecado: “É de um a mulher que advém
o início da culpa, e por su a causa todos nós morremos” (Sir 25.32[24]). Isso
também encontra eco n a literatura cristã primitiva (cf. ITm 2.14). N a filosofia
popular pagã, essa inferioridade da mulher ainda pode ser adicionalmente legi­
timada pelo fato de ser atribuída a um a moldagem complementar dos gêneros
pela divindade (tò 06lov) (cf. Aristot, Oec I,3s, 1343b-1344a^^'^). O judaísm o helenista
recorre, de forma análoga, à ordem criacional: “A mulher em tudo é inferior ao
homem. Por isso ela deve subm eter-se, não p ara seu vexame, m as para que
possa ser conduzida. Pois foi ao homem que Deus deu o poder [Kpároc;]”^^®.

Esse é o contexto das instruções da IPe. Também ele pode falar das
mulheres como o “gênero frágil” (3.7). Considerando o pano de fundo
desse (em princípio, não questionado) contexto, cabe agora certifi­
car-se também das particularidades que o nosso texto apresenta.

V. 2 Em primeiro lugar, deve-se considerar que a submissão não é


exigida em causa própria, mas que, por esse intermédio, se espera
das mulheres (como antes dos escravos) que elas assumam um papel
ativo na missão, a saber - também isso liga a recomendação às mu­
lheres com a dirigida aos escravos -, no “ganho” de pessoas que lhes
são socialmente superiores e, portanto, mais poderosas. Também aqui
não se deve, pelos motivos já citados na interpretação de 1.17 e 2.18,
interpretar (|)ó(3o(; como temor diante do marido, o que também é con­
firmado por 3.6; ele designa, antes, o temor devido a Deus como mo­
tivação do comportamento, do “caminho da vida”. Isso combina me­
lhor com a fundamentação baseada no juízo de Deus no v. 4 e, sobre­
tudo, com o final triunfante da exortação às mulheres (v. abaixo em
3.6). Assim como nos escravos, a submissão consciente é interpreta­
da como a possibilidade que se oferece às pessoas mais fracas de con­
vencerem os maridos não-cristãos através de uma “conduta pura,
determinada pelo temor (a Deus)”.

V. 3 Isso é fundamentado inicialmente por meio de um contraste


entre o adorno exterior do corpo com penteado, adereços e vestuário
versus o “ser humano oculto do coração”, que se notabiliza por um

Filo, QuaestGen 111,3. Por isso a história do pecado original mostra para onde se é
conduzido quando Adão dá atenção a Eva, ou seja, quando a razão dã atenção à
percepção sensitiva (Filo, LegAll III,222s).
Sobre a origem do escrito, cf. VICTOR, U. (Aristoteles), Oikonom ikos. Das erste Buch
d er Ö k o n o m ik -H a n d sc h riften , T ext, Ü b ersetzu n g u nd K om m en tar, u n d sein e
Beziehungen zur Ökonomikliteratur. Königstein, 1983. p. 167-175; Victor atribui o
escrito a um aluno de Aristoteles.
Jos., Ap 11,201; de modo semelhante já Arist 250s acentua a necessidade da mulher
ser conduzida pelo homem; cf. também o fragmento de Füo, Hypothetica I, em: Eus,
PraepEv VIII,7,3, que concebe a total submissão ao homem como mandamento bíblico.

159
“espírito manso e tranquilo” (v. 4). Pode-se perguntar se as destinatá­
rias da IPe possuíam colares de ouro e vestidos suntuosos; impossí­
vel isso não era, pelo menos não para algumas®^®, embora dificilmen­
te tenha constituído o caso normal. É provável que aqui se trate me­
nos de indícios quanto à condição econômica das destinatárias e mais
de uma expressão consagrada (cf. também ITm 2.9); o aumento da
atratividade por meio de cosmética e joias pode ser rejeitado também
na ética pagã®®°- não por último devido ã sua afinidade com a prosti­
tuição.®®^ Epiteto e Plutarco, p. ex., recomendam ãs mulheres, ao in­
vés disso, o cuidado com o seu caráter e comportamento como verda­
deiro adorno.®®^ É provável que essa ideia básica também esteja pre­
sente aqui no contraste entre adorno exterior (v. 3) e interior do cora­
ção (v. 4), sendo que, na primeira parte da antítese, o assunto gira
menos em torno do adorno em si, mas, antes - isso mostra a enume­
ração das ações -, na ocupação com o embelezamento do próprio cor­
po a fim de tornar-se atraente.®®®

V. 4 Em contraste com isso, o esforço deve concentrar-se numa outra


forma de atratividade, condizente com “o ser humano oculto do cora­
ção” e seu “espírito manso e tranquilo”.®®"^ Essa é muito valiosa para
Deus (iroA-u-celéç). O valor especial do “ser humano oculto” é ainda su­
blinhado por meio do predicado da imperecibilidade, relacionado com
o “espírito manso e tranquilo”, ao qual havia sido atribuído um papel
de destaque na qualificação da salvação.®®® Na medida em que, por
meio de submissão consciente, as mulheres vivem sua fé de forma
visível e emblemática, não confirmam dessa maneira sua inferiorida­
de condicionada pelo gênero, mas comprovam seu valor especial
diante de Deus.

Cf. At 17.12. Segundo Plínio, que cerca de 20 anos m ais tarde narra sobre os
cristãos na mesma região para a qual foi endereçada a IPe, eles seriam pertencentes
a todas as classes sociais (Plin, EP X,95,9: m ulti [...] om nis ordinis).
Um exemplo é a narrativa sobre um decreto do legislador Zaleukos em DiodS XII,21:
“No mais, ela (sc. a m ulher livre) procure não colocar adereços de ouro nem um
vestido com bainha de púrpura, a não ser que seja uma hetera” . Plutarco reporta-se
ao exem plo de Lisandro, que rejeitou os adornos para suas filhas, frisando que
esses mais as envergonhavam que adornavam (Plut, PraecConiug 141D: Kaxaiaxwíl
[...] nâUov T] KOo^if|oeL).
Cf. HERTER, H. D ie Soziologie d e r a n tiken Prostitu tion im L ich te des heid n isch en und
ch ristlich en S chrifttum s. Münster, 1960. esp. p. 89-94.
582
Plut, PraecConiug 142B; Epict, Ench 40.
583
Cf. GOPPELT, 1978, p. 216; “Os genitivos que descrevem as ações dão ideia do esforço
em termos de trabalho e tempo que requer a atividade de tomar-se atrativa [...]”.
Sobre irpaúi; como atitude desejável de relacionamento recíproco, cf. Mt 5.5; G1 6.1;
junto com Tjoúxioç podem ser encontrados na literatura cristã primitiva como virtudes
cristãs (cf. IC lem 13.4; Barn 19.4; Did 3.7s).
1.4, 23; cf. 1.18; v. acima o excurso 2: “ ‘Incorm ptível, sem mácula, im arcescivel’ -
recepção e transform ação de predicados divinos metafísicos na IP e ” , p. 73.

160
V. 5 Com a referência às “santas mulheres” a IPe acrescenta ainda
uma segunda fundamentação, de caráter histórico-salvifico. A espe­
rança, apresentada na primeira parte principal como conteúdo da nova
vida®®®, já determinava no Antigo Testamento a essência daquelas
“santas mulheres”. Trata-se aqui de uma das poucas passagens no
Novo Testamento em que as mulheres do Antigo Testamento são usa­
das como exemplos autônomos. Como as que esperam em Deus, elas se
adornavam, assim é explicado pelo emprego do particípio úiroTaoaóiJ,evaL,
por meio da submissão aos seus maridos. A referência generalizada às
“santas mulheres”, como texto bíblico comprobatório para essa tese,
dá testemunho de uma percepção seletiva dos textos - mulheres de
patriarcas, como Rebeca, com certeza trilharam caminhos próprios.

V. 6 Isso também vale para Sara, explicitamente citada, pois a cena


da qual foi extraído o texto para a invocação de Abraão como “Se­
nhor”, a promessa do filho em Gn 18.1-15 (ali, Gn 18.12), mostra com
a risada descrente uma “matriarca” que não ê nem submissa, nem
representa um exemplo especialmente bom para a confiança em Deus.
[Strack-JBillerbeck III, p. 764, no entanto, apontaram para um parale­
lo no Midrash Tanchuma que louva de forma bem idêntica a invocação
de Abraão por Sara com o termo “Senhor” como expressão de sua su­
bordinação (em contraste com as mulheres de Salomão). A IPe prova­
velmente se apoia numa tradição interpretativa semelhante. A força
do argumento não se nutre, nem aqui nem ali, do texto bíblico, “mas
de suas ‘implicações patriarcais’, como se retrata (sic) na invocação
submissa ‘meu Senhor’”.®®^ Mesmo assim, dever-se-ia ser cuidadoso
com o predicado “hostil às mulheres”®®®, pois, independentemente de
qual seja o real motivo para a posição submissa das mulheres na so­
ciedade antiga, que a IPe bem como praticamente todos os seus
conterrâneos admitem como fato consumado -, cabe observar que o
enquadramento por ela requerido nessa passagem®®® não ê funda­
mentado com a inferioridade do gênero feminino. A submissão ê aqui,
ao contrário, da mesma forma que nos cristãos em geral e nos escra­
vos em particular, o reverso de sua ligação com Deus (IPe 2.16, 19;
3.5). Ela pertence, por isso, ao enquadramento conscientemente reali­
zado pelos “forasteiros” nas estruturas vigentes da sociedade. Isso ê
expresso com exatidão - como já nas duas outras exigências - por meio

V. acima o excurso 1: Esperança, p. 67ss; cf. também 3.15.


KÜCHLER, M. Schw eigen, Sch m u ck und Schleier. Drei neutestamentliche Vorschriften
zur Verdrängung der Frauen a u f dem Hintergrund einer frauenfeindlichen Exegese
des Alten Testam ents im antiken Judentum. Freiburg; Göttingen, 1986. p. 70.
Ibidem, p. 114 e outros.
Sobre a expressão “gênero mais fraco” em 3.7, veja na referida passagem.

161
do primeiro particípio, anexado como uma “prática do bem”. O segun­
do particípio constata que tais mulheres, cujo comportamento é moti­
vado pelo temor a Deus, não necessitam temer nenhuma intimidação
por parte de pessoas. Como os “livres” temem a Deus na condição de
“escravos de Deus” (2.15) e por isso não necessitam temer o imperador
(2.17), assim também as mulheres tementes a Deus, justamente por
sua “conduta em temor”, tomam-se livres de todo temor diante de in­
timidação humana, resp. dos seus maridos (v. 6 fin.; cf. também 3.14).

V. 7 Como reliquia da tradição dos códigos domésticos com seus


membros pares, agora também os maridos são citados. As mulheres
são citadas aqui como o “gênero mais fraco”. Nesse aspecto talvez se
mostre de forma mais visível a influência sofrida pela IPe a partir do
seu contexto patriarcal (v. acima em 3.1). Note-se, porém, que essa
referência ã fraqueza feminina justamente não confirma a obrigação
da mulher ã submissão, como nos exemplos enumerados em 3.1 -
essa foi, ao contrário, fundamentada positivamente em diversos sen­
tidos ao longo dos versículos 3.1b-6! -, mas a obrigação dos maridos
de prestar ãs mulheres a mesma honra que já havia sido pedida em
2.17 em relação a todas as pessoas bem como ao imperador. Os mari­
dos são, por isso, conclamados a viver de forma “sensata” (Kaxà yvcSoLv)
com suas mulheres. “Na tradição paulina, dentro da qual o autor estã
inserido, tal conhecimento implica a preocupação com os membros
mais fracos e vulneráveis do grupo”. A s s i m sendo, a fraqueza das
mulheres não concede aos homens o privilégio da superioridade, mas
convida-os para a responsabilidade em relação às pessoas mais fra­
cas. Isso estã fundamentado, em última análise, no fato de que, em
termos escatológicos - e esse é o único critério a contar diante do fim
próximo (cf. 4.7) - as mulheres encontram-se, como “co-herdeiras da
graça da vida”, em igualdade de condições com os homens. Como em
G1 3.28, as hierarquias sociais são, portanto, provisórias e limitadas a
este mundo passageiro. O ímó dos códigos domésticos toma-se como que
excedido pelo ovu da promessa escatológica. Isso é sublinhado também
mais uma vez pela frase final: “a fim de que pão se interrompam as
vossas orações”; a referência provavelmente é à oração conjunta de
marido e mulher, que não se coaduna com o desprezo do cônjuge. “A
questão é clara: homens que transferem noções culturais sobre a su­
perioridade dos homens em relação ãs mulheres para dentro da comu­
nidade cristã perdem sua habilidade de comunicação com Deus.”®®^

550 BORING, 1999, p. 127.


55' ACHTEM EIER, 1996, p. 218.

162
Também em relação às mulheres não se encontra na IPe um progra­
ma revolucionário que tentasse compatibilizar as condições sociais
do Império Romano com os padrões da sociedade europeia, america­
na ou sul-americana dos inícios do século XXL Quem espera por isso
e responsabiliza a IPe pela decepção dessa expectativa revela uma
incapacidade problemática (não somente de uma perspectiva históri­
ca) de conceder a uma outra cultura inicialmente o direito de colo­
car valores próprios e de procurar entendé-los, antes de emitir juízo.
Considerando-se especialmente a IPe, tal perspectiva, anacronisti-
camente deformada, também impede que se percebam os tons silencio­
sos com os quais essa carta procura traduzir para dentro das estrutu­
ras de poder da sociedade vigente suas exigências, formuladas de
maneiras inovadoras a cada capítulo, no sentido de cristãos e cristãs
conviverem em regime de amor e humildade (1.22; 2.17; 3.8s; 4.8ss;
5.5s) e de procurarem minimizar nesse processo o potencial de vio­
lência inerente a tais estruturas, na medida em que se ofereçam pos­
sibilidades nesse sentido. Sugestões semelhantes tornar-se-ão visí­
veis também ainda por ocasião das instruções dadas em 5. Iss ãs pes­
soas em cargos de direção na comunidade.

D. As exortações finais a todos (3.8-12*)

V. 8: Finalmente, porém: sede todos unânimes, compade­


cidos, com amor fraternal, misericordiosos, humildes,
V. 9: não pagando mal por mal ou injúria por injúria; antes,
pelo contrário, bendizendo, porque para isso fostes cha­
mados, a fim de receberdes bênção por herança.
V. 10: Pois “quem amar a vida e ver dias felizes refreie a lín­
gua do mal e evite que seus lãbios falem dolosamente;
V. 11: aparte-se do mal, pratique o que ê bom, busque a paz e
empenhe-se por alcançã-la.
V. 12: Porque os olhos do Senhor [atentam] para os justos, e
os seus ouvidos para as suas súplicas, mas o rosto do
Senhor [se volta] contra aqueles que praticam o mal”.
* Literatura sobre IPe 3.8-12: SCHENK, W. Der Segen im Neuen Testament. Eine
begriffsanal3ãische Studie. Berlin, 1957. p. 62-64. (ThA 25).

Novamente não se acha nenhum imperativo nas exortações dos v. 8s. O v. 8 é


u m a sentença nominal que descreve o comportamento desejado na forma de
cinco adjetivos, alistados de maneira assindética; o v. 9 emprega dois particípios

Sobre isso, v. mais detalhadamente no excurso 9: Cidadão submisso e emancipado,


p. 167s.

163
para descrever os dois modos de comportamento contrapostos: a retribuição e a
bênção. Os verbos finitos encontram-se unicamente na frase secundária, que
serve como fundamentação, e n a sua explicação final.

V. 8 A introdução “Finalmente, porém” sugere um término da


parênese. Como, no entanto, ainda seguem outras exortações na car­
ta, trata-se de uma espécie de resumo intermediário, uma primeira
sintese, que de novo interpela explicitamente a “todos”. Ao mesmo
tempo, o trecho relaciona-se, sobretudo pelo v. 9a, simultaneamente
com 2.13 - 3.7, tomando mais uma vez claro que as recomendações
para a submissão não tinham por objetivo a solidificação de hierar­
quias sociais, mas que se tratava de um comportamento que apresen­
tava uma alternativa para a violência experimentada, cuja orientação
provinha da renúncia ã retribuição do Cristo sofredor (2.21ss) e da
bondade das “santas mulheres” (3.5s). Isso, no v. 8, é inicialmente
desenvolvido tendo em vista as relações internas existentes na co­
munidade. No estilo de um catálogo de virtudes, exigem-se, através
dos cinco adjetivos alistados conjuntamente, unanimidade, sensibi­
lidade mútua, amor, misericórdia e humildade, virtudes tipicamente
“bíblicas”.®®^ Para a IPe são especialmente importantes o amor e a
humildade. Jã mais vezes o amor fraterno foi exigido como funda­
mento para o convívio (1.22; 2.17); e também nos textos subsequentes
a IPe não se cansará de inculcar esse amor como base para o conví­
vio com palavras e expressões sempre novas (cf. 4.7-11; 5.14). A outra
virtude é a TünreLPocjjpooúvri, a “humildade”. Tal modéstia - o antônimo
de -uaiTeLvóç é em 5.5 o ÚTTepf)c|3a;yoç, o orgulhoso, o soberbo - é a alternati­
va consciente aos poderes e potestades determinantes da realidade,
como se apresentam, não por último, na forma de estruturas hierár­
quicas, das quais os cristãos são dependentes e nas quais - como
verificado no exemplo dos escravos e das mulheres - experimentam
sofrimento. Ao final da carta, onde o assunto girará em torno da hie­
rarquia na própria comunidade cristã, essa TaireLyo(()poaúyTi serã mais
uma vez ressaltada como a postura mútua decisiva dos cristãos (5.5b),
através da qual eles tém Deus do seu lado (5.5c) e que é até mesmo
condição para a exaltação ao final dos tempos (5.6).®®'*

V. 9 Enquanto que o v. 8 especifica o etos cristão tendo em vista as


relações internas da comunidade, o versículo seguinte tematiza suas
relações com o exterior. No confronto com as “injúrias” do entorno, a
reeomendação vai no sentido da renúncia à retribuição. A renúncia

M3 VÖGTLE, A. D ie Tugend- u n d Lasterkataloge im N eu en Testament. Exegetisch, religions-


und form geschichtlich untersucht. M ünster, 1936. p. 188: “Praticam ente im pen­
sáveis [...] no âmbito da filosofia popular” .
V. abaixo o excurso 10: Humildade/raiieLvo(j)pooúvTi, p. 209ss.

164
à injúria recíproca faz referência ao exemplo de Cristo de IPe 2.23.
Sobretudo ressoam as conhecidas exigências de Jesus dos sermões
da montanha e da planície:®^® a renúncia à retribuição do mal lembra
a quinta antítese do sermão da montanha (Mt 5.38ss); a resposta com
a bênção lembra o texto de Lc 6.28a, sendo que essa tradição de Je­
sus é reproduzida aqui na forma da versão transmitida por Paulo: a
renúncia à retribuição do mal com o mal encontra-se em ITs 5.15 e
Rm 12.17; a “resposta” à injúria com bênção, em ICo 4.12 (cf. tam­
bém Rm 12.14). Essa exortação adquire seu perfil no contexto da dis­
cussão sobre o sofrimento injusto: justamente ali onde os cristãos
sofrem violência e experimentam o mal, são conclamados a inter­
romper o círculo vicioso da retribuição. Pouco comum é a fundamen­
tação dessa exortação com o estado de salvação em que se encontram
os cristãos: como eles “foram vocacionados para herdar bênção”, o
encontro entre eles como portadores de bênção e seus adversários
deve redundar em bênção também para esses últimos.®®®

V. 10-12 Todo esse bloco parenético é encerrado por meio de uma


citação relativamente extensa do SI 34[33]. 13-17, levemente modifi­
cada pela IPe: ela insere o yáp introdutório (em vez da pergunta tlç
kazLV avGpco-TToç ó Sélcov...), caracterizando dessa forma a citação como
fundamentação para a parénese; ao mesmo tempo, também dentro da
citação, a fundamentação teológica do SI 33.17 LXX, juntada assin-
deticamente, é relacionada em IPe 3.12 por meio de um otl explici­
tamente com os imperativos empregados até então. Essa citação
escriturística, na qual, ao lado de menores ou maiores correspon­
dências verbais com a parénese®®'^, são citados também aspectos adi­
cionais (do “amor ã vida” até a “busca da paz”), não só autoriza a
parénese, mas a coloca também sob a promessa. Pois a palavra do
Salmo, que em seu contexto original relacionava sapiencialmente a
promessa de uma boa vida com a condição de um bom comportamen­
to, transforma-se em promessa escatológica no contexto da IPe, uma
vez que as promessas de vida e de bons dias só podem se referir ã vida
eterna com Deus no contexto da IPe.®®® Ora, isso é agora, com a auto­
ridade da Escritura, colocado como perspectiva para o comportamen­
to proposto em 2.11 - 3.12.

=55 Cf. sobre isso o estudo de METZNER, 1995, p. 75-89.


Cf. HECKEL, U. D e r S egen im N e u e n Testam ent, B egriff, Form eln, Gesten. Mit einem
praktisch-theologischen Ausblick. Tübingen, 2002. p. 186-190.
Distanciamento do mal e de toda “astúcia” , prática do bem.
Cf. a expressão “graça da vida” , perm eada soteriologicam ente em 3.7, bem como,
aliás, o emprego do termo vida até agora (1.3, 23; 2.4s).

165
E. Síntese (IPe 2.11 - 3.12)

a) O comportamento cristão como àYa9oTToi,eLv é enfocado tanto nas pró­


prias três exortações (2.15, 20; 3.6), como também em suas molduras
(2.12; 3.11). Considerando que esse comportamento é fundamenta­
do, sobretudo, com renúncia à retribuição (2.23; 3.9) e discipulado
no sofrimento (2.21), trata-se aqui da chance de um testemunho não-
verbal (2.12; 3.1s) para com descrentes, prestado justamente ali onde
os cristãos são exteriormente impotentes.™® “Submissão” é, dessa for­
ma, ação consciente com objetivos apologéticos e missionários.

b) Suportar sofrimento injusto é, simultaneamente, comprovação de


proximidade a Cristo. A parênese dos escravos foi a que mostrou o
fato de forma mais clara. Uma diferença significativa em relação à
exortação aos escravos em outras cartas residiu no fato de a IPe não
fundamentar submissão com o KÚpLoç que requer obediência®°°, mas
com o Cristo sofredor (2.21ss)™b De maneira análoga, a hierarquia
vigente, que também encerra injustiça®®^^ é aceita, mas não teologi­
camente legitimada.

c) As instruções para a submissão formam uma unidade com as exor­


tações à “humildade” (3.8; 5.5b-6; cf. 3.16), para as quais vale a pro­
messa escatológica: “Humilhai-vos, portanto, sob a poderosa mão de
Deus, para que ele, em tempo oportuno, vos exalte” (5.6).®°^

Como GOLDSTEIN, 1973, p. 97, 103s constata, a subm issão é entendida na IP e


como meio pelo qual a obediência á vontade de Deus encontra um a possibilidade
visível e m issionariam ente propagandística de concreção.
Isso ocorre de m aneira mais clara em E f 5.22-24 e Cl 3.22-25, onde a obediência
das esposas, resp. dos escravos, a seus maridos, resp. senhores, é paralelizada e
fundam entada diretam ente com a obediência ao “Senhor Cristo” .
Caso se pretenda conjeturar sobre a pessoa e o pano de fundo social do autor da IP e
com base na parênese dos escravos, seria de se perguntar se não faz mais sentido
- pelo fato de se dar especial consideração à situação dos escravos e de lhes ser
atribuído um valor nada comum - supor, em caso de dúvida, antes um hberto (instruído)
do que um senhor de escravos, como presume BALCH, 1986, p. 95. Mas tudo isso
não passa de mera conjetura.
Isso provavelmente já ê sugerido com os “senhores tortos” em 2.18 e ê explicitamente
dito em 2.19s, quando ê falado sobre o sofrim ento injusto dos escravos. “Dessa
forma seu sofrimento, que em nada comovia seus conterrâneos, já que aos escravos
como propriedade nem podia ocorrer injustiça (cf. Aristóteles, Eth. Nic V 10,8), era
colocado em estreita ligação com o centro da fé cristã, o sofrim ento de C risto”
(WOLFF, 1975, p. 340).
Isso se mostra claramente no acento dado por diversas vezes sobre a “revelação (de
Cristo)”, à qual se liga a esperança de um a mudança do sofrimento em glória (1.7,
13; 4.13). Para a relação entre as exortações à submissão e a esperança pela reversão
das circunstâncias, cf. também BERGER, 1984, p. 127.

166
d) Submissão tem por objetivo a vitória do mal pelo bem (3.9; cf. 2.23),
mesmo que as experiências concretas tendam a provar o contrário (cf.
4.3s), e por isso ocorrer a confirmação final só no “dia da visitação” (2.12).

Isso é um etos, à sua maneira, completeunente autônomo. Sem dúvi­


da, a IPe também se sabe ligada a concepções de valor pagãs nos
conteúdos éticos que defende®'’“*, mas ela lhes dá um direcionamento
ético próprio no sentido da fé cristã.“ ®

Excurso 9: Cidadão submisso e emancipado


A IPe não pensa de forma algum a num a alteração das condições sociais
externas. Por um lado, concepções alternativas à sociedade vigente eram extra­
ordinariamente incomuns n a antiguidade. Por outro, os cristãos como minoria
odiada seguramente não estavam n a posição de emitir quaisquer propostas nesse
sentido, resp. de m udar algo n a sociedade pagã. Considerando-se a profunda
desconfiança com a qual eram tratados pela sociedade e cada vez mais também
por parte das autoridades, medidas cristãs no sentido exposto não teriam feito
senão provocar ainda mais su a opressão e perseguição. Talvez o acento à su b­
missão, que para leitores atuais pode dar a impressão de ser um pouco insis­
tente, tenha a ver também com a rejeição de um entendimento equivocado do
cristianismo como movimento politicamente revolucionário“ ®, reforçado pelo com­
portamento de alguns cristãos.®®'^

®°‘' Cf. 2.14s, onde se parte do pressuposto que, em relação àquilo que é ‘bom ” , é
possível haver consenso entre cristãos e gentios.
N esse contexto tam bém se deve observar criticam ente a diferença (fundam ental
para Balch) entre a tradição cristolõgica asseguradora de identidade e a parênese,
de importância menos decisiva para o referido propósito. A tese de Balch ainda não
é revidada pelo fato de tal separação e contraposição de proclamação e lei contrariar
toda a autocompreensão do Antigo Testamento e Novo Testamento (e, natureilmente,
também a da IPe, para a qual a estreita relação entre promessa e exigência inclusive
é característica). N esse ponto Balch até poderia ter razão, já que, apesar dessa
autocompreensão, o conteúdo das respectivas éticas vem adaptado do entorno, não
co n ten d o n a d a de e s p e c ífic o . N esse sen tid o , d e v e r-s e -ia in te rp r e ta r en tão a
comprovação de Balch de que o material dos códigos domésticos remonta em grande
m edida ao âmbito rom ano-helenista (sendo que ainda podia ser acrescentado que
parte desse m aterial se encontra em fontes ju d aico-h elen istas). Contra a tese de
Balch deve-se objetar, porém, que é por demais estreito o seu conceito de ética em
relação com a parênese da IP e, sobretudo quando ele se concentra unicamente no
pedido para submissão, vendo como sua principal meta a “domestic harmony between
husband, wife, and slaves” [harmonia dom éstica entre marido, esposa e escravos],
como ficaria claro em 3.8s, no fim da parênese (BALCH, 1981, p. 88; cf. p. 109 e
outros). O acento na sobriedade em 3.8 relaciona-se com o comportamento mútuo
dos m em bros da com unidade, sem constituir, contudo, o fin al in terpretativo de
toda a parênese. Esse encontra-se, como já dito, em 3.9.
Cf. At 16.20s; 17.6s; 24.5, 12; cf. ainda Lc 23.2 e Jo 19.12 onde, em conexão com a
paixão de Jesus, provavelmente ressoam as acusaçóes por parte de judeus e pagãos.
Caso Onésim o tenha procurado por Paulo por ter fugido do seu senhor, como o
admitem muitos intérpretes, a Carta a Füemon estaria mostrando que a mensagem
cristã sobre a igualdade de todos em Cristo (cf. G1 3.27s) podia ser entendida por
escravos como possibilidade para fuga. Da m esm a form a m ostra IC o 7.13s que

167
Nessa situação, a IPe tenta compensar o desvio da norma social, condicio­
nada por sua nova orientação religiosa, com um “supradevef [“Übersoll”] de inser­
ção nas hierarquias sociais existentes e minimizar, dessa forma, os pontos de
atrito. A isso acrescente-se que na IPe a esperança da volta de Cristo ainda de­
sempenha um papel que não deve ser menosprezado.®°® Quem, no entanto, espera
pelo fim dessa época do mundo, dificilmente terá compreensão para a transforma­
ção das estruturas dessa reaJidade transitória“ ®; essas são, ao contrário, pressu­
postas®'® como dadas para prova®" e em meio a elas cabe comprovar-se e dar teste­
munho do futuro de Deus.®'^ Por essa razão, é questionável até que ponto a crítica
externada em relação a essas orientações faz ju s ã autocompreensão da época,
considerando que a percebemos de forma unilateral diante do pano de fundo do
moderno conceito de liberdade. “Nós ouvimos a palavra (sc. subordinação)
involuntariamente a partir de sua primeira sílaba. No Novo Testamento, porém, o
tom não recai sobre a primeira süaba ‘su b’, mas sobre a raiz ‘ordem””.®'®

m ulheres cristãs pretendiam separar-se de seus maridos não-cristãos (cf. também


Just, Apol II, 2).
Significativamente a lem brança desse fato é feita, sobretudo, mais para o final do
escrito (4.7, 17s; 5.6; eventualm ente tam bém 5.8s). Mesmo que a esperan ça da
iminente vinda de Cristo não ocupe mais lugar central na IP e, ela também não é,
por outro lado, tão secundária como afirma BROX, 1993, p. 201-204.
Isso também deve ser considerado quando as afirmações do Novo Testamento sobre
a escravidão são com paradas com as do A ntigo Testam en to. A s leis do A ntigo
Testamento - em contraste com a parênese do Novo Testamento - foram promulgadas
por um povo que, por um lado estava em condições de dar leis para si próprio e, por
outro, queria com isso construir sua realidade a longo prazo.
IP e 2 .1 3 S S , p. ex., mostra claramente que a Primeira Carta de Pedro aceita a ordem
do Estado simplesmente como um fato mundano (àvGpconívTi ktÍ olç), que salvaguarda
um a necessária função de ordem. Ela não reflete mais a fundo sobre o seu sentido
- o Estado (romano) não é nem diretamente atribuído a Deus (como em Rm IS .lss ),
nem é apresentado como um poder contrário a Deus, como a meretriz Babilônia do
Apocalipse, embriagada com o sangue dos santos (Ap 1 7 . 5s; cf. também a atribuição
do poder mundano ao diabo em Lc 4.6b dif. Mt). O interesse concentra-se, antes, na
pergunta sobre como os cristãos, que são livres ( v. 16: ciç èÃtúGepoi.) com base em sua
ligação a Deus (v. 1 3 : õ ià xòv KÚpi.oi'; v. 1 6 : ú ç 9eo0 ôoC I ol), devem ser enquadrados
nessa realidade vigente e como devem relacionar-se com ela.
Cf. IP e 1.6; 4.12.
BONHOEFFER, D. D is cip u la d o . São Leopoldo: Sinodal, 1995. p. 160, interpretou
con gen ialm en te as p arên eses escatologica m en te determ in adas do cristian ism o
prim itivo em relação a IC o 7.20-24: “De form a algum a o apóstolo está querendo
justificar ou encobrir um a ordem social obscura. Não por ser tão divina a estrutura
social do mundo que não devesse ser derrubada, mas unicamente porque o mundo
já está desarvorado p ela obra de Jesu s Cristo, p ela lib ertação que, em Cristo,
experimenta tanto o escravo como o livre. Não iria um a revolução da ordem social
servir apenas para obscurecer a visão de nova ordem divina de todas as coisas por
Jesus Cristo e pela fundação da Igreja? Não iria cada um a dessas tentativas servir
apenas para impedir ou retardar o fim de toda ordem do mundo, a vinda do reino de
Deus? Certamente não porque o cumprimento dos deveres profissionais no mundo
já fosse realização da vid a cristã, mas porque a renúncia à resistência contra a
ordem estabelecida pelo mundo se constitui na expressão mais adequada do fato de
o cristão nada esperar do mundo, mas tudo de Cristo e de seu reino - por isso
perm aneça escravo o escravo! Ele tem um a prom essa m elhor!” [N. do T.: a últim a
frase não se encontra na tradução portuguesa de 1995).
' GOPPELT, L. Prinzipien n eutestam entlicher Sozialethik nach dem I. Petrusbrief.
In: BALTENSWEILER, H.; REIKE, B. N eu es Testa m en t u n d G eschichte. Historisches
Geschehen und Deutung im Neuen Testament. (FS O. Cullmann.) Zürich; Tübingen,
1972. p. 289.

168
Para considerações adicionais oferece-se o entendimento apresentado
acima, segundo o qual a IPe pressupõe a ordem vigente como fato natural, mas
lá onde exerce influência, ou seja, nas comunidades, traduz o etos cristão n a
forma de amor mútuo e humildade para dentro das estruturas de poder da so­
ciedade vigente, procurando de fato minimizar o potencial de violência inerente
a essas estruturas ã medida que se apresentem possibilidades para tanto.

1.2.2 Hostilizações do entorno como desafio (3 .13 -4 .6 )

As promessas otimistas do Salmo provocam uma indagação critica


quanto ao “prejuizo” que os crentes sofrem na atualidade. É sobre
isso que trata o trecho seguinte, 3.13ss. Como defesa da vida cristã,
essa passagem pode ser enquadrada retoricamente no gênero da
refutatio.^^'*

Todo o contexto argumentativo fornece um exemplo típico para o estilo da IPe,


que alinha um pensamento após o outro, sem claras cesuras.®'® Já em 3.8s, as
três exortações á subordinação - introduzidas com um “Finalmente, porém” (Tò
6è téloç) - terminavam com u m a espécie de resumo. Logo após, com yáp, foi
anexada a esses versículos u m a fundamentação bíblica, que promete vida boa
àquele que pratica o bem e busca a paz (3.10-12). Com a adoção das palavras-
chaves sobre a prática do bem e do mal, a situação de sofrimento é agora -
ligada com k« í - discutida como objeção a essa promessa e são dadas de novo
instruções para o comportamento a ser mantido diante das hostüizações (3.3­
17). A essa explanação, que termina com a bem -aventurança dos que sofrem
injustamente, é ligada com o-ui novamente u m a fundamentação cristológica, que
tem seu ponto de partida no sofrimento vicéirio de Cristo e se alarga em explica­
ções fundamentais sobre resgate, salvação e batismo (3.18-22). Certos assu n ­
tos jã tratados, p. ex., em 2.18ss, são aqui retomados e sofrem variações (cf.
3.13 com 2.20; 3.16 com 2.19; 3.17 com 2.20; 3.18ss com 2.21ss). 4.1 faz nova­
mente referência ao início da fundamentação, 3.18-22, ao sofrimento de Cristo
(3.18) (XpioToO oCv iraeóvToç oapKÍ), para destacar a alteridade do modo de vida
cristão em relação aos modelos do entorno. Mesmo depois de tudo isso, ainda
não se encontra um final clairo, jã que em 4.7-11 mais um a vez seguem exorta­
ções gerais, introduzidas com a referência ao fim próximo, que retoma o anún­
cio de juízo em 4.5s. Somente a doxologia finad de 4.11 e o novo começo em 4.12
pela renovada invocação dos destinatáirios sinalizam um trecho claramente novo.

SCHMIDT, K. M. Mahnung und Erinnerung im Maskenspiel. Epistolographie, Rhetorik


und Narrativik der pseudepigraphen Petrusbriefe. Freiburg, 2003. p. 203.
Cf. FELDMEIER, 1992, p.P- 134.

169
A. A bem-aventurança dos que sofrem (3.13-17*)

V. 13: E quem vos poderia fazer mal, se sois zelosos do bem?


V. 14: Mas, ainda que venhais a sofrer por causa da justiça -
bem-aventurados sois! “Não temei as suas ameaças e
não fiqueis conturbados”;
V. 15: “antes, santificai o Senhor”, Cristo, em vossos cora­
ções, estando sempre preparados para a responsabili­
dade diante de todo aquele que vos pedir razão da es­
perança que há em vós,
V. 16: fazendo-o, todavia, com mansidão e temor [a Deus], e
isso com uma boa consciência, para que os que difa­
mam o vosso bom comportamento em Cristo sejam en­
vergonhados justamente por aquilo com o que sois
injuriados.
V. 17: Porque, se for da vontade de Deus, é melhor que sofrais
por praticardes o que é bom do que praticando o mal.
* Literatura sobre IPe 3.13-17: BÜCHSEL, F. ,,In Christus“ bei Paulus. ZN W 42, p.
141-158, 1949; DEISSM ANN, A. Die neutestamentliche Formei ,,in Christo Jesu“.
Marburg, 1892; KNOX, J. Pliny and I Peter. A Note on I Pet 4,14-16 and 3,15.
JBL72, p. 187-189, 1953.

V. 13 À promessa dos v. 10-12 segue, em 3.13ss, o confronto com a


situação real, que parece contradizer a promessa. “Quem vos poderia
fazer mal, se sois zelosos do bem?” - assim a pergunta introdutória,
cujo sentido não é totalmente claro. Em principio, são aventadas duas
possibilidades. A primeira trabalha com a suposição de que o versículo
quer dizer, em acréscimo e, simultaneamente, como explicação para
a palavra do Salmo, que todos os sofrimentos, na verdade, não podem
prejudicar de fato os cristãos enquanto eles praticarem o bem. O sen­
tido seria então que esse sofrimento não pode trazer prejuízos para o
“ser humano oculto do coração”®^®. A vantagem dessa interpretação é
que ela consegue incorporar o versículo sem dificuldade na progres­
são da narrativa da carta. Os que contestam essa interpretação argu­
mentam que KttKÓw deve ser interpretado como prejuízo concreto em
conexão com 3.9, 12, sendo empregado também em Atos “sem exce­
ção para ‘perseguir’, tendo, portanto, o sentido de iráoxeLy”.®!'^ A última
afirmação, todavia, não é de todo correta. Em At 14.2 KaKÓu significa
“estimular para o mal”, “enfurecer” . Nessa segunda argumentação,
deve-se supor que a IPe esteja formulando no v. 13 uma sentença

KELLY, 1969, p. 139; SCHELKLE, 1980, p. 100; KNOPF, 1912, p. 136s; BROX,
1993, p. 157.
GOPPELT, 1978, p. 234; cf. FRANKEM ÕLLE, 1987, p. 57.

170
teológica fundamental, que ela vai contradizer logo no v. 14, que a
segue, na medida em que ela pressupõe ali a possibilidade de sofri­
mento injusto. Uma vez que a palavra KaKÓu também pode significar o
prejuízo para o interior (cf. Filo, SpecLeg 111,99), damos aqui preferên­
cia à interpretação apresentada por primeiro, confirmada também por
Sab 3.1-4. A pergunta introduzida com tlç foi, portanto, pensada como
pergunta retórica e sublinha a certeza de que realmente nada pode
prejudicar de fato os que creem.

Não se deve deixar de ver, porém, que a promessa, introduzida pela


conjunção èáv, fica condicionada: ela só vale para aqueles que se
empenham pelo “bem”, mais incisivamente, pelos que se transformam
em “zelosos” do bem. O zelo pela lei de Deus pertence praticamente à
autocompreensão do judaísmo contemporâneo, seja em sua variante
farisaica (cf. Fm 3.6; Rm 10.2), seja na política, em que o aqui empre­
gado conceito Ç,r[X(j)xai tornou-se inclusive autodesignação de um mo­
vimento revolucionário.®^® Esse empenho apaixonado pelo “bem” que,
no modo típico da IPe, engloba tanto a pertença à comunidade cristã
como também a correspondente “conduta de vida”, a carta coloca como
condição para a promessa.

V. 14 O versículo seguinte repete e reforça a promessa (e a exigência


nela contida) por meio da bem-aventurança daqueles que sofrem “por
causa da justiça”. A parênese dos escravos já havia preparado esse
pensamento quando assegurava àqueles que sofriam como pratican­
tes do bem e perseveravam nessa prática que isso representava “graça
junto de Deus”. Essa ideia é aqui mais uma vez reforçada pela bem-
aventurança.

Mesmo que a bem-aventurança dos sofredores seja uma “peça fixa da


tradição”®^®, a IPe provavelmente faz aqui referência á oitava bem-
aventurança (redacional) do sermão do m o n te .I m p o r t a n t e ê que a
IPe reage ao sofrimento realmente existente e acentua a dimensão
da graça nessa situação. A IPe não formula, portanto, nenhum prin­
cípio sobre a necessidade salvífica de sofrimento nessa passagem. Isso

Cf. as perguntas igualmente introduzidas com liç em Rm 8.33-35, que possuem a


mesm a função de um a certeza praticamente triunfal.
Cf. sobre isso o motivo do zelo como um todo, apresentado em HENGEL, M. D ie
Zeloten . Untersuchungen zur jüdischen Freiheitsbewegung in der Zeit von Herodes
I. bis 70 n. eh r. 2. ed. Leiden; Köln, 1976. p. 151-234.
M ILLAUER, H. L e id e n als G nade. Eine traditionsgeschichtliche U ntersuchung zur
Leidenstheologie des ersten Petrusbriefes. Bern; Frankfurt, 1976. p. 146.
Mt 5.10; cf. ainda Mt 5.11s; T g 1.12. Sobre a dependência da IP e de Mt 5.10, v.
M ETZNER, 1995, p. 7-33.

171
também confirma o Optatiinis potentiális, introduzido por el ícaL.®^^
sim como na primeira menção ao sofrimento em 1.6, isso deve ser
entendido como condição que faz uma afirmação sobre uma situação
na qual o sofrimento é experimentado.

Essa promessa é aplicada à situação externa por meio de uma citação


extraída de Is 8.12: as “ameaças” daqueles que provocam os sofri­
mentos não devem mais gerar medo ou conturbação entre os cris­
t ã o s . E s s a promessa torna a pergunta retórica do v. 13 ainda mais
precisa e fortalece-a, ao mesmo tempo, pela referência à predição do
livro de Isaías, que, como já mostrado (v. Introdução), é, aliás, o mais
importante texto referencial veterotestamentário para a IPe.

V. 15 A citação de Is 8.12 é continuada no v. 15 com Is 8.13, sendo


interpretado aqui, como também já antes (cf. 2.6, 8, 22ss), cristologi-
camente, recorrendo-se ao acréscimo de Cristo logo após “Senhor”.
Ele, o sofredor e exaltado (e não Deus®^'^), é aqui o Senhor que dá or­
dens sobre todos os poderes (3.22). O verbo áyLáCeLy, tomado da versão-
LXX do texto de Isaías e considerado diante do pano de fundo das
explanações em IPe 1.13-17, deve ser entendido como sinônimo de
um modo de vida correspondente a Deus. A precisão “nos vossos co­
rações”, acrescida à citação bíblica, tem - como em 1.22 e, sobretudo,
em 3.4 pela referência ao “ser humano interior” - provavelmente como
finalidade sublinhar a sinceridade e intensidade®^®, sem que isso
pudesse implicar um retraimento na interioridade, como mostra a
continuação: pela sua orientação no Senhor, pela “santificação”, a
existência cristã torna-se referência a Cristo, devendo esse seu as­
pecto missionário se fazer valer “sempre” e em relação a “todas as
pessoas”. Isso também implica o compromisso com a “apologia” em
relação ãqueles que pedem dos cristãos um “Logos” (Àóyoç - funda­
mento, razão, resposta, prestação de contas).®^® Essa exigência mos­
tra uma vez mais que, para a IPe, a existência cristã não se realiza
numa separação sectária do entorno, mas na disposição para o diálo­
go.®^'^ O conteúdo desse Logos, que pode e deve ser comunicado, é a

o Potencialis é em pregado aqui sem &v. cf. BLASS; DEBRUNNER, 2001, § 385,2
(com nota 4).
Pelo fato de ao verbo cjjopéopai ser adicionado 4)ópoç, da m esm a raiz, com o objeto
interno, a negação acaba sendo mais reforçada ainda.
No TM de Is 8.13 o KÚpLoç é mnv
Cf. BROX, 1993, p. 159.
Um comprom isso sem elhante com a defesa da fé controvertida também conhece o
judaismo; cf. mAv II, 14a: “Deseja aprender ardentemente o que deves ensinar a um
espirito livre” (tradução de K. Marti; G. Beer).
GOPPELT, 1978, p. 236: “Essa roupagem linguística m ostra um a abertura para o
mundo helenístico, mesmo que a Apologia de Platão comece a ser considerada pelos
apologetas cristãos somente a partir do século II d.C.”.

172
“esperança que há em vós”. A esperança é aqui novamente o princí­
pio da nova vida, i.e., a fé que, reportando-se ao destino de Jesus,
obtém certeza do seu futuro (v. abaixo em 3.18-22) e que, por essa
razão, adquire forma como atitude da esperança em contraste com a
futilidade e deterioração até a morte de uma vida sem Cristo.®^®

V. 16 O que segue dã instruções quanto ao estilo dessa prestação de


contas. Ela não deve ser provocativa, mas acontecer “com mansidão”.
A maneira como ela é transmitida deve, portanto, “estar mais uma vez
cunhada pelo etos cristão”.®^® O temor também aqui - ainda mais de­
pois de 3.14! - não pode ser temor frente a pessoas, devendo relacio­
nar-se, antes, com a responsabilidade diante de Deus.®®“ A boa cons­
ciência, a partir da qual deve ocorrer a apologia, relaciona-se, como
mostra o que segue, com um bom comportamento. Novamente são
feitas referências a difamações e censuras levantadas contra o com­
portamento cristão. Esses difamadores devem ser contraditos pela
ação, pela “boa conduta”. Tal comportamento é bom “em Cristo”. A
IPe é, fora os escritos de Paulo, o único escrito neotestamentãrio que
acata a expressão èv XpLOTcò, que se encontra 164 vezes no Corpus
Paulinum, e que o apóstolo com alguma probabilidade criou respal­
dando-se na expressão èv Kupíco da LXX, igualmente tomada por ele
(ICo 1.31; 2Co 10.17), mas, de qualquer forma, dando-lhe uma carga
teológica.®®^ Em Paulo, essa fórmula expressa que a existência cristã
é constituída de forma nova pela sua relação com Cristo (cf. ICo 1.30;
Rm 6.11); quem está “em Cristo” ê uma nova criação (2Co 5.17). De
forma análoga, IPe 5.10 pode afirmar que os crentes foram por Deus
“chamados em Cristo Jesus à sua eterna glória”. Aqui o “bom compor­
tamento em Cristo” designa a orientação da conduta cristã segundo
o seu exemplo (cf. 2.2 Iss; 3.17s). O envergonhamento dos caluniadores
podería relacionar-se com o envergonhamento escatológico (cf. 2.12);
mais provável ê, porém, como em 2.15 e 3. Is, a interpretação presente.

628
Cf. excurso 1: Esperança, p. 67ss.
629
BROX, 1993, p. 161.
Sobre o temor a Deus, v. acima em 1.17; teimbém em 2.17, 18; 3.2.
O resultado a que chega A. D eissm ann, em sua relevante m onografia, é de que
Paulo foi “o moldador da fórmula, não no sentido de que ele tivesse sido o primeiro
a unir ív com o singular pessoal, mas assim que e le c rio u u m te rm o té c n ic o to ta lm e n te
n o v o , u tiliz a n d o -s e d e u m u s o lin g u ís tic o j á e x is te n te (DEISSMANN, 1892, p. 70). F.
Büchsel é mais cauteloso em relação à proveniência, mas constata igualmente como
resultado de sua pesquisa: “À medida que kv K [sc. o èv K u p í u LXX], etc. se tom ou
ex p re s s ã o p a ra a fé de P a u lo em C risto , ga n h o u u m a im p o rtâ n c ia qu e nem
rem otam ente possu ía em período an terior” (BÜCHSEL, 1949, p. 157). HERZER,
1998, p. 84-106 admite ter sido Paulo o autor da expressão èv XpLorü, mas crê que
ela se tornou independente, vindo a ser em pregada tam bém por círculos cristãos
“não dependentes histórico-traditivam ente de Paulo” (ibidem, p. 105).

173
V. 17 A frase seguinte, que afirma ser melhor sofrer como praticante
do bem do que do mal, estende o que foi afirmado em 2.20 em relação
aos escravos para todos os cristãos. Isso é formulado em forma de uma
sentença que lembra um axioma da antiga ética. Caso a alusão
seja proposital, temos aqui um primeiro exemplo para a estratégia
apologética empregada também posteriormente, p. ex., por Justino ou
Origenes, os quais interpretam a delimitação sociorreligiosa etica­
mente e colocam a perseguição aos cristãos no mesmo contexto da
rejeição de homens justos como S ó c r a t e s . D e s s a forma, a própria
estigmatização é, até certo ponto, tornada plausivel a partir de pres­
supostos pagãos. O sofrimento é relacionado com a vontade de Deus,
embora na forma de um Potentialis condicionado por el - “se for da
vontade de Deus” -, que torna elaro tratar-se nesse sofrimento como
praticante do bem unicamente de uma possibilidade, não de uma
necessidade. Com a expressão “se for da vontade de Deus”, a IPe pa­
rece fazer uso de uma fórmula comum no ambiente grego pagão.

B. A fundeimentagao cristolögica (3.18-22*)


*Literatura sobre IPe 3.18-22: BIEDER, W. Die Vorstellung von der Höllenfahrt Jesu
Christi. Beitrag zur Entstehungsgeschichte der Vorstellung vom sog. Descensus
ad inferos. Zü rich , 1949. (AThANT 19); B U L T M A N N , R. B ek en n tn is- u n d
Liedfragmente im ersten Petrusbrief. In: DINKLER, E. (Ed.). Rudolf Bultmann,
Exegetica. Aufsätze 2:ur Erforschung des Neuen Testaments. Tübingen, 1967. p.
285-297; DALTON W. J. Christ’s Proclamation to the Spirits. A Study of 1 Peter
3:18-4:6. 2. ed. Rom, 1989 (AnBib 23); GSCHW IND, K. Die Niederfahrt Christi in
die Unterwelt. Ein Beitrag zur Exegese des Neuen Testaments und zur Geschichte
des Taufsymbols. Münster, 1911 (NTA 2/3-5); JEREMIAS, J. Zwischen Karfreitag
u n d Ostern, Descensus u n d Ascensus in der Karfreitagstheologie des Neuen
Testam entes. ZNW 42, p. 194-201, 1949; K USS, O. Z u r paulin isch en u n d
nachpaulinischen Tauflehre im Neuen Testament (1952). In: IDEM. Auslegung
u n d Verkündigung. Regensburg, 1963. v. I, p. 121-150, esp. p. 144-147; NIXON,
R. E. The Meaning of “Baptism” in 1 Peter 3,21. StEv 4 (= TU 102). Berlin, 1968. p.
437-441; REICHERT, A. Eine urchristliche Praeparatio ad Martyrium. Studien zur
Komposition, Traditionsgeschichte und Theologie des 1. Petrusbriefes. Frank­
furt, 1989. p. 208-247. (BET 22); REICKE, B. The Disobedient Spirits and Christian
Baptism. A Study of 1 Pet. III. 19 and Its Context. Kopenhagen, 1946 (ASNU 13);
SPITTA, F. Christi Predigt an die Geister, IPetr. 3 ,1 9 ff E in B e itra g z u r
neutestamentlichen Theologie. Göttingen, 1890; VÖGTLE, A. Die Tugend- und

0 paralelo mais conhecido são as famosas palavras do Gorgias, em que o Sócrates


platônico ressalta, em relação aos sofistas, que pior do que sofrer injustiça é praticá-
la (Plat, Gorg, 508b).
Cf. Just, Apol 5,3s.
GOPPELT, 1978, p. 239, nota 42, faz referência a PsPlat, Alc 135d (èàv 0eòç è0éX^),
bem com o a Min, Oct 18,11, que ch ega a design ar a expressão s i d e u s d e d e rit
juntam ente com outras expressões piedosas como “linguajar natural do povo” .

174
Lasterkataloge im Neuen Testament. Exegetisch, religions- und formgeschichtlich
untersucht. Münster, 1936. p. 188-191. (NTA 16/4-5).

Com um “pois” causativo, essas exortações que interpretam positiva­


mente o sofrimento por causa de Cristo são novamente conectadas à
confissão protocristã do sofrimento e morte de Cristo, bem como de
sua ressurreição e ascensão. Isso acontece em linguagem formulada
ritmicamente. Por essa razão, muitos“ ® entenderam que o texto seria
a reprodução de um hino tradicional, uma suposição cujo grau de
plausibilidade evidentemente não aumenta com as tentativas de re­
construção tão diferenciadas.®®® Além disso, não é admissivel que se
postule um autor anônimo para um texto que - como haveremos de
mostrar - se insere harmoniosamente na intenção da IPe. Uma certa
distância em relação à linguagem e ao estilo do contexto deve-se às
tradições incorporadas na passagem. Seus elementos isolados en­
contram-se espalhados por todo o Novo Testamento, o que se pode
deduzir pelos exemplos mais marcantes a seguir®®'^: o esquema humi-
Ihação/morte - exaltação®®®, a fórmula do sofrimento/morte òirép®®®, o
acesso a Deus aberto por Cristo®"^®, o Espírito como poder que vivifi-
ca®‘^\ a subida ao céu®“^^, a exaltação à direita de Deus®"^® bem como a
subjugação dos poderes®“^“^. Esses diferentes enunciados confessionais
são recapitulados numa densidade excepcional. Com isso a IPe cons­
titui-se num importante estágio no caminho em direção à formação
dogmática cristã-primitiva.®“*® Dessa maneira, a IPe dá autoridade a
seus enunciados anteriores sobre o sofrimento dos cristãos com a
ajuda da confissão cristã primitiva, sendo que a alternância de estilo
e dicção faz com que o texto se diferencie notavelmente em termos
retóricos do seu contexto. No mais, também aqui novamente é possí­
vel constatar com que soberania a IPe consegue entretecer essas di­
ferenciadas tradições num texto homogêneo.

BULTMANN, 1967, p. 285ss; BOISMARD, M.-E. Q uatre hym nes baptism ales d a n s la
p re m iè re E p ître de Pierre. Paris, 1961. p. 60ss; WENGST, K. C h ristologisch e F orm eln
u n d L ie d e r d es U rchristentum s. Gütersloh, 1972. p. 161ss, entre outros.
636 paxa um a crítica, cf. GOPPELT, 1978, p. 240-242.
Além dos citados, cf. ainda a tipologia do dilúvio em Lc 17.26ss e o batismo como
purificação (Tt 3.5; cf. E f 5.26).
Cf. IT m 3.16; Fp 2.6-11.
Mc 14.24par.; Jo 10.15 e outros; especificamente como um morrer para os injustos,
em Rm 5.6ss; cf. G1 2.20.
E f 3.12.
Rm 8.11; IC o 15.44s; 2Co 3.6; Jo 6.63.
^“*2 Lc 24.51; At 1.10.
Mc 12.36; At 2.33 e outros.
Fp 2.10; E f 1.21; Hb 2.8.
V. acima. Introdução, p. 51.

175
V. 18: Pois também Cristo sofreu uma vez pelos pecados, um
justo por injustos, para conduzir-vos a Deus, morto,
sim, na carne, mas vivificado no Espírito.
V. 19: No qual [Espírito]®“*®também pregou aos espíritos em
prisão.
V. 20: Os quais outrora foram desobedientes, quando a pa­
ciência de Deus aguardava nos dias de Noé, enquan­
to se construía a arca, na qual poucas, para ser exato,
oito almas foram salvas através da água,
V. 21: a qual [sc. a água] agora também vos salva no antítipo
do batismo, não como remoção da imundícia da carne,
mas como pedido de uma boa consciêneia a Deus. [Isso
acontece] por causa da ressurreição de Jesus Cristo,
V. 22: que - após ter ido para o céu - está à destra de Deus,
depois de lhe terem sido subordinados anjos,
potestades e poderes.

V. 18 O trecho inicia com a interpretação tradicional da paixão como


a doação de vida de Cristo para o perdão dos pecados, porém essa
afirmação normal de Paulo (cf. ICo 15.3), bem como dos evangelhos
(cf. Mt 26.28), inicialmente não é relaeionada aqui com a morte
expiatória, mas com o sofrimento. O v.l8b aprimora esse fato como [o
sofrimento] “de um justo por injustos”. Também nesse caso o enuncia­
do contém elementos tradicionais (cf. Rm 5.6-8) que já se encontra­
vam em outra formulação em IPe 2.22 e que, além disso, sublinham
mais uma vez a “irrepreensibilidade” do cordeiro sacrificial que nos
resgatou por seu sangue do antigo contexto de vida (cf. 1.19). O ápice
na contraposição entre “justo” e “injusto” faz referência ao contexto
parenético, uma vez que os versículos anteriores haviam acentuado
que a promessa é válida unicamente para o sofrimento do justo. O
V . 18c complementa o enunciado do v. 18a: a salvação consiste em
que Cristo agora possibilitou o acesso a Deus. Perdão de pecados sig­
nifica, portanto, a remoção da separação de Deus (cf. Rm 5.1s;8.31ss;
G1 5.4ss e outros), como é explicitamente acentuado aqui. Na medida
em que nesse Deus encontra-se a vida imperecível, esse acesso a ele

c5 seguidam ente (BIEDER, W. D ie V o rs te llu n g von d e r H ö lle n fa h rt J e s u C hristi.


Beitrag zur Entstehungsgeschichte der Vorstellung vom sog. Descensus ad inferos.
Z ü rich, 1949. p. 106; S C H W EIZER, R. V erb ete irveOiia, nveuiiaTLKÓç. In: T h W N T .
Stuttgart, 1965 [= 1959]. v. VI, p. 446; GOPPELT, 1978, p. 247; BROX, 1993, p.
170) é entendido como mera conjunção, a exemplo de outros textos (1.6; 4.4) da IPe
(“[sendo] que”). É de se perguntar, no entanto, se um senüdo relativo não é também
possivel, já que a afirmação de que Cristo tenha pregado “no Espirito” aos “espiritos”
na prisão é apropriada (cf. REICHERT, A. Eine urchristliche Praeparatio a d Martyrium .
Studien zur Komposition, Traditionsgeschichte und Theologie des 1. Petrusbriefes.
Frankfurt, 1989. p. 214-224).

176
aberto por Cristo implica a superação da morte (ICo 15.21s; Rm 5.12ss).
Um parállelismus membrorum antitético, que dá a impressão de uma
fórmula, recapitula nesse sentido, em relação a Cristo, mais uma vez
de forma concisa, paixão e ressurreição: “morto, sim, na carne, mas
vivificado no Espírito”. Ele esclarece que Cristo, pela sua pertença à
“carne”, estava entregue à morte, mas que, ao mesmo tempo, pela sua
pertença ao Espírito ( d i v i n o ) e s s a morte é vencida. O Espírito é tam­
bém em Rm 1.3s o poder de Deus, pelo qual o filho de Davi, Jesus Cris­
to, é destacado como Filho de Deus na ressurreição. O verbo CwoTroLeXv é
igualmente empregado no âmbito judaico-helenístico como designa­
ção para o poder criador de Deus (JosAs 8.3, 9; 12.1; 20.7; oração das
18 preces). Em Rm 4.17, ele é expressão para o poder criador de Deus
que vivifica os mortos, da mesma maneira como também Deus cria exis­
tência do nada. A participação no Espírito provoca por isso, justamente
na esfera da morte, a vitória sobre a própria; ela “vivifica os vossos cor­
pos mortais” (Rm 8.9-11)®^®, como isso já ocorreu com Cristo.

V. 19-20a A próxima passagem é de dificil interpretação, uma vez que


o autor aparentemente pressupõe o conhecimento de tradições da par­
te de seus destinatários ãs quais não temos mais acesso; não está claro
nem quem são aqueles espíritos aos quais Jesus prega, nem o que Je­
sus lhes pregou, tampouco o que se estava querendo dizer com “pri­
são”. Enigmática é a referência à desobediência dos espíritos “nos dias
de Noé” (3.20). Desde o trabalho fundamental de Spitta®'^®, discute-se a
relação desses enunciados com uma tradição, como ela ainda se en­
contra preservada no assim denominado “livro dos anjos guardiões”
(lEn 1-36), um escrito que na literatura do judaísmo incipiente^®“ e do
cristianismo primitivo®®^ desempenha um papel bastante relevante.

nveújxatL pode aqui ser entendido de forma instrumental (cf. Rm 6.4; IC o 6.14) ou -
o que é mais provável - como dativo de relação. A interpretação de ELLIOTT, 2000,
p. 646s que quer entender mitú^iaTL, devido ao paralelo com oapKÚ, “with respect to
(his) spirit” [com respeito ao (seu) espírito], ou seja, antropologicamente, não convence.
No texto paralelo de Rm 8.10, apresen tado por Elliott, é claram ente o Espírito
divino, e de form a algum a “one spirit (that lives)” (ibidem, p. 647), que m ora nos
crentes e cria a vida no corpo morto (Rm 8.11).
De form a sem elhante isso é expresso em Rm 5.21: tam bém o Filho participa do
poder de Deus para vivificar os m ortos. Jo 6.63 chega inclusive a contrastar a
carne, que para nada serve, com o Espírito vivificante. No grande capítulo sobre a
ressurreição em IC o 15, esse Cioovoitlv descreve a ação de Deus na criação (15.36) e
na ressurreição (15.22), também nesse caso com um acento focado na cristologia:
enquanto o primeiro Adão foi só “alma vivente”, o “último Adão” (Cristo) tornou-se
“espírito vivificante” (15.45).
SPITTA, F. C hristi P red igt an d ie Geister, IP e tr. 3,19jf. Ein Beitrag zur neutestament-
lich en Th eologie. G ottingen, 1890.
Cf. CD 11.18-21; 1 QGenApokr I l. l, 16; 2Bar 56.12-15.
651
No NT, Ju 6, 13; 2Pe 2.4.
652
Sobre a interpretação que relaciona IP e 3.19 com os anjos guardiões, cf. REICKE,
B. T h e D is o b e d ie n t S p irits a n d C h ris tia n B a p tis m . A Study o f 1 Pet. 111.19 and Its

177
o tema do “livro dos anjos guardiões” é o destino dos filhos de Deus caídos, desig­
nados de àyytkoi no texto grego de lE n , mas também - o que não deixa de ser
importante em relação a IPe 3.19 - algumas vezes de - (lEn[gr.] 10.15;
13.6; 15.4, 6-8).®^^ A desobediência desses filhos foi responsável pelo dilúvio, e eles
encontram-se amarrados (lEn[gr.] 10.4, 11; 14.5), resp. num a prisão (ôeoguTtipLov)
(lEn[gr.] 18.11 - 19.1; 10.13; 18.14; 21.10). A eles deve dirigir-se o patriarca (em
lEn[gr.] 12.4; 13.3 e 15.2 são empregadas formas específicas de Tropeíio|raL) e lhes
pregar a sua definitiva rejeição (12.5). A petição de graça, que ele formula a pedido
deles (13.4-7), é rejeitada (14.4-7). Aqui se encontram motivos centrais do texto da
IPe - a “ida” para os “espíritos”, a desobediência no dilúvio, a prisão e a ida de um a
pessoa aos aprisionados, a fim de lhes comunicar algo. A importância desse even­
to, contudo, permanece incerta: “ou a frase realmente pretende dizer no contexto
cristão que aos ‘anjos’ amarrados foi pregado o evangelho (permanecendo em aber­
to se isso era para a conversão ou para o juízo) ou Cristo mesmo proclamou sua
vitória até as mais remotas regiões do cenário cósmico, inclusive (kkí) a esses
‘espíritos’. Para mim a questão parece insolúvel [...]”.®®‘'

Essa interpretação relacionando o texto com os anjos caídos não é,


porém, obrigatória. Já a exegese da igreja antiga®®^ supunha que, com
esses espiritos, se fazia referência às almas da geração do dilúvio; e o
Evangelho de Pedro, surgido por volta da metade do século II, pressu­
põe uma pregação de Jesus aos mortos. Tal entendimento dos TryeúpaTo:
como almas dos mortos não é, por certo, usual no Novo Testamento,
mas possivel.®®® Ele também combina de maneira menos forçada com
a história do dilúvio, pois os anjos não foram desobedientes só nos
dias de Noé em relação à tolerância pacienciosa de Deus®®’^, mas já
antes, quando se misturaram com as filhas dos seres humanos (cf.
lEn 7-9). Por isso a referência aos espíritos cabe melhor como indica­
ção dos seres humanos. Nesse caso, os 120 anos de Gn 6.3 poderíam
ser compreendidos como prazo-limite concedido pela graça.®®® O Li-

C ontext. K openhagen, 1946. p. 90s; SELW YN, 1949, p. 326; KE LLY, 1969, p.
156s; BROX, 1993, p. 171ss.
Os restos gregos de lE n encontram -se coletados em BLACK, M. (Ed.). A p oca ly p s is
H e n o ch i G raece. Leiden, 1970. p. 1-44.
BROX. 1993, p. 175. Sobre todo o complexo, cf. GSCHWIND, 1911, esp. p. 97-144,
que igualmente relaciona a cena com os espíritos; geralmente o cenário é entendido
como proclam ação do poder sobre os espíritos caídos, como, p. ex. o faz REICKE,
1946, p. 133s, que vê nesses espíritos simultaneamente os poderes que se encontram
por trás das autoridades terrenas. A um a interpretação semelhante também chega
DALTON, 1989, p. 200: “Cristo, o novo Enoque, venceu em sua paixão e ressurreição
a v itó ria d efin itiva sobre esses poderes angélicos do m al. O m undo descren te,
aliado com e instigado por esses poderes, compartilha de sua derrota e condenação,
um a condenação a ser ratificada no juízo final”.
Cf. CIAI, Strom VI,6,44-46; Orig, Princ 11,5,3; Orig, Cels 2,43; Orig, Comm Mt 132.
Cf. GOPPELT, 1978, p. 249, que aponta para Hb 12.23; também Dn 3.86a LXX e
lE n 22.3-13; Lc 24.37, 39.
Sobre o motivo da paciência de Deus antes do dilúvio, cf. m Av V,2a; “Existem dez
gerações de Adão até Noé para proclamar quão grande é a sua paciência. Pois todas
as gerações provocaram o seu desgosto, até que ele fez chegar sobre elas as águas do
dilúvio” (tradução de K. Marti/G. Beer).
658 xPsJon sobre Gn 6.3; cf. Lc 17.26s.

178
vro de Jubileus descreve que não só os anjos caídos (Jub 5.6), mas
também os renovos dos casamentos entre os anjos®®® “[foreim] amarra­
dos nos abismos da Terra até o dia do grande juízo” (Jub 5.10; tradu­
ção de K. Berger). Esse local supramundano do castigo dos weqaara xwy
i(;ux(ôv Tcôv yeKpcSv (lEn[gr.] 22.3; cf. 22.9) é, em conexão direta com o
ôeopœxTjpLoy dos anjos (lEn[gr.] 21.10), descrito em correspondência a
este, sendo que chama a atenção o emprego frequente do termo weupaxa
como designação para as almas dos mortos (lEn[gr.] 22.6s, 9, 11, 12,
13). Ora, na literatura cristã primitiva, o lugar do castigo das almas é
também designado explicitamente de “prisão”.®®® Se acrescentarmos
a isso que o verbo KxipúoaeLy geralmente designa, no Novo Testamento,
a proclamação da mensagem cristã salvíííca®®^ enquanto que seu
emprego para uma pregação de juízo seria singular, então a enigmá­
tica passagem de IPe 3.19s poderia ser efetivamente interpretada em
conexão com a pregação do evangelho entre os mortos, referida de
forma abrupta, é verdade, mas pressuposta como conhecida junto aos
destinatários pelo Kal yáp introdutório e pela passagem de 4.6, em
que um eúaYYe^íCeoQttL, correspondente a KX|púoo€Ly, possibilita vida para
os mortos por causa do Espírito de Deus. Se essa interpretação for
certa, a passagem poderia ser compreendida como correção conscien­
te da suposição de uma perdição definitiva da geração do dilúvio,
como é testemunhada, p. ex., no Talmude de Jerusalém®®^; o texto
estaria querendo acentuar que até mesmo esse arquétipo da depra­
vação é incorporado na salvação que ocorre através da ressurreição.®®®

Também essa interpretação encontra-se prejudicada por incertezas.


A seu favor continua falando, no entanto, o contexto no qual a IPe
inseriu esse motivo, que, em sua singularidade, não apresenta para­
lelos nos enunciados confessionais do cristianismo primitivo. É difí­
cil imaginar que de Cristo poderia ter sido dito, em conexão direta
com o preço da ação salvifíca da sua morte para os injustos e da sua
ressurreição por causa da sua relação com o Espírito divino vivificante,
que ele agora (exatamente nesse Espírito) vai como mensageiro da
perdição para esses espíritos e confirma sua defínitiva condenação!

Esses nâo constituíam a geração contígua do dilúvio, mas certamente produziram a


corrupção da Terra, que conduziu diretamente a ele (Jub 5.1-4).
Cf. 2C lem 6.8 (aixuoil-iJOLa), Herrn 1.8 v 1,1 (aLXliccXuTLojióç); Herrn 105.7 s IX ,28
(ôeoiiuTiípiov).
661 “Pela. pregação realiza-se a tomada de poder de Deus” (FRIEDRICH, G. Verbete Kfipu^
kU . In; ThW NT. Stuttgart, 1957 (= 1938). v. III, p. 703).
Cf. jSanh foi. 29b: “A geração do dilúvio nào tem participação na ressurreição” . Essa
rejeição definitiva é explicada detalhadam ente no que segue (cf. W EW ERS, G. A.
S a n h éd rin , G erich tsh of. Tübingen, 1981. p. 287s).
Cf. G O PPE LT, 1978, p. 250: “ O efeito salvifico do seu sofrim en to até a m orte
tam bém a lca n ç a aq u elas pessoa s que n essa v id a não ch egam a um en con tro
consciente com Cristo, mesmo as mais perdidas entre elas” .

179
Isso também se aplica ao fato de que a IPe, mesmo sugerindo o juízo
sobre os descrentes, em nenhum momento executa sua condenação,
muito menos faz dela um tema geral.®®'^ Deve-se observar, ademais,
que a descida de Cristo é configurada como contraparte consciente
da ascensão, da mesma forma como no texto o ïïopeu9eiç da descida no
V . 19 corresponde ao iropeuGeíç da subida ao céu no v. 22. Com isso
estaria sendo acentuado, como também em outras ocasiões de vez
em quando nas confissões cristãs primitivas (cf. Fp 2.10; Ef 4.9s; Ap
5.13), que a tomada do poder por Cristo não abrange só o céu e a terra,
mas inclusive o inframundo, como mundo da morte e da ausência de
Deus“ ® - estendendo-se assim ainda para mais longe que a procla­
mação cristã.

Contra essa interpretação objeta-se que não se pode estar pensando n a “desci­
da ao inferno” porque essa só poderia ter ocorrido antes da ressurreição, razão
pela qual também “a explicação dada pelo autor para o v. 19 no v. 20 [...] de
qualquer maneira estaria errada”.®“ Essa argumentação pressupõe, por um lado,
que o evento ao qual se refere o v. 19 tenha que ter ocorrido após a aludida
ressurreição ao final do v. 18, o que não é obrigatório. A expressão eavarueelç pèv
oapKL - C(t)OiroLr|0elí; ôè iTV6ij|iaiL no v. 18 coloca morte e ressurreição formalmente
juntas; o v. 19 conecta-se ao anterior pela referência ao Espírito com o pronome
relativo, sem que do fato se pudesse deduzir u m a sequência cronológica; é con­
cebível, da mesma forma, que se trate de um adendo que não tinha lugar dentro
da fórmula confessional, construída antiteticamente.®®’’ Além disso, a conheci­
da colocação da “descida ao inferno” pela confissão de fé, a saber, entre sepul-
tamento e ressurreição (no assim denominado tríduum mortis) é afirmada como
ú n ica possibilidade p a ra tal, o que configura um anacronism o. Tam bém a
constatação, bastante repetida, de que Irineu em suas referências à “descida
ao inferno” por Cristo não apontaria para a IPe perde em evidência num exame
mais atento: ou Irineu pressupõe simplesmente a “descida ao inferno”, sem
qualquer referência bíblica (Iren, Haer IV,27,2), ou ele cita u m a palavra apócrifa
de Jeremias especialmente adequada para a sua interpretação do evento (Iren,
Haer 1V,22,1; Epid 78).

V. 20b A referência ao dilúvio, sobretudo a alusão ã arca, deixa res­


soar agora também o tema da salvação: na arca foram salvas oito “al­
mas”. Essa passagem costuma ser apresentada como evidência para o
fato de limxf) ser empregada na IPe no sentido de “pessoa”, já que o
enunciado só pode se referir aqui ã vida daquelas pessoas preserva-

Contra ELLIOTT, 2000, p. 661, o qual afirma que a condenação dos anjos da tradi­
ção do dilúvio “ seria consistente com o fato da desobediência persistente, como
testem unhada ao longo da IP e ” .
®®^ Cf. também Rm 14.9, onde, da m esm a form a como em IP e 3.19, o domínio sobre
mortos e vivos é inclusive a consequência direta da morte e ressurreição de Cristo.
BULTM ANN, 1967, p. 288.
®®’ Um a am pla tradição desde Agostinho relaciona essas afirm ações inclusive com o
Cristo preexistente (cf. ELLIOTT, 2000, p. 649s).

180
das de morrer afogadas por intermédio da arca. Deve-se observar, po­
rém, que essa alusão à história do dilúvio foi conscientemente
construída como “antítipo”®®® da salvação pelo batismo, exemplificada
no versículo subsequente. Ora, isso toma provável que também em
nosso caso o termo ij/u/fi tenha sido empregado com cautela; quando
se diz das oito úW l: ôieocóGrioav ôl’ üõatoç, então isso pode, é verdade,
ser traduzido por “elas foram salvas através das águas”, embora seria
de esperar antes um “para fora das águas”. O referido ôi’ üôaroç tam­
bém pode, é verdade, significar “através”, resp. “por intermédio de”®®®
água, e no que segue também não se fala mais da água como um
elemento de morte, mas - metaforicamente (vide v. 21) - de sua força
purificadora, que possivelmente já está de certa maneira incluída
aqui.®^° Além disso, o posposto õl’ íjôaToç ao final do v. 20 corresponde
ao posposto ôl’ àvaotáoecoç ’Irioou Xpioxou ao final do v. 21. Assim, é
provável que também o v. 20, como “contraimagem” do batismo no v.
21, esteja fazendo alusão ã “salvação das almas”®^^ ocorrida ali.

V. 21 Como antítipo da arca, o batismo salva porque nele a “salvação”


também ocorre através de água. Isso é desenvolvido mais detalhada­
mente de uma maneira bem própria. Inicialmente é constatado de
forma negativa que o batismo não deve ser imaginado à semelhança
de uma purificação fisica de sujeira. A partir daí pode-se deduzir en­
tão a compreensão da afirmação positiva controvertida: o pedido a
Deus por uma boa consciência. Como definição do batismo, que se­
gundo compreensão cristã primitiva significa mudança de soberania
e com isso uma fundamental renovação da existência (cf. Rm 6), e
que também, segundo a IPe, em analogia ã arca, “salva” da destrui­
ção, essa determinação mais precisa do batismo como pedido por uma
boa consciência soa um pouco pálida. BROX (1993, p. 178), por essa
razão, vê expresso na locução ouyeLõfioecjç àyaOljç èrrepÚTriiia elç 06Óy um
autocompromisso (etrepcórripa = stipulatio, acordo contratual) dos cren­
tes e traduz por “a promessa de firme ligação com Deus”.®^^ Isso, no
entanto, é questionável por diversas razões. Em termos puramente
filológicos, pode-se constatar que èirepoSTTipa na significação aqui pre­
sumida de “acordo contratual” só se encontra testemunhada a partir
do século II d.C.®^® Mesmo que se resolva desconsiderar essa objeção

IP e 3.21 designa isso também de ài^TÍxuiroç!


Alá com genitivo também significa “através” no sentido de “por intermédio de”. Com
a preposição mais natural èk esse jogo de palavras não teria sido possível.
™ Cf. ACHTEM EIER, 1996, p. 266.
É provável que não seja mera coincidência que o 6iao(óCeo9aL das esteja formulado
em estreita relação com a owtripía râv v|iux<3v de 1.9 (como resumo da oferta cristã de
salvação).
BROX, 1993, p. 164.
Cf. GOPPELT, 1978, p. 259.

181
à vista do pequeno número de textos comprobatórios transmitidos para
efeitos de averiguação, dificilmente se pode explicar porque, nesse
caso, a auveíôrioLç àyaOf) em 3.21 pode ter um sentido totalmente dife­
rente que em três versículos imediatamente anteriores em 3.16, onde
se trata claramente da consciência de serem falsas as injúrias do
entorno e de que não se sofre pessoalmente como quem praticou o
mal. A ouvcLÔriaLç àyaêfi só pode significar aqui “boa consciência” (cf.
também 2.19). Em última análise, uma interpretação da locução
oi)veLôf|06coç ayaBric eirepcSTTpa no sentido de “promessa de firme ligação”
faria com que a alusão final à ressurreição (como fundamento da sal­
vação; cf. 1.3 fin.!) não soasse senão como um adendo desligado do
c o n t e x t o . P o r essa razão, faz-se mister partir do pressuposto de que
ouveíôrioLç àyaGfi também aqui não signifique outra coisa do que “boa
consciência”. Mas como então se deve entender o enunciado?

Numa interpretação dever-se-ia partir consequentemente da imagem


de uma lavagem, que já é dominante também na negação: se o batis­
mo não representa uma lavagem exterior da carne, então isso recla­
ma praticamente um complemento no membro paralelo introduzido
com o àA.Xá adversativo, ou seja, que se trate então de uma outra forma
de purificação, que não mais diz respeito ã “sujeira da carne”, mas ao
interior do ser humano, à sua consciência. Isso também combina com
o contexto. Segundo 3.18, a morte e ressurreição de Jesus faculta­
ram o acesso a Deus - agora é pedido, “com base na ressurreição”,
que já em 1.3 marcava o ponto de partida da regeneração, por uma
boa consciência, portanto, pela purificação interior^^® das pessoas. A
formulação um pouco rude de um “pedido a Deus por uma boa cons­
ciência” explica-se a partir da intenção da IPe de persistir, por um
lado, na promessa da graça antecedente de Deus, que aqui se com­
prova atuante na “nova criação de toda a pessoa a partir do seu ‘inte­
rior’, do seu ‘coração’”,®'^® exigida por Deus, e, por outro, de acentuar
também o compromisso daí decorrente.Parece que a imagem de uma
simples lavagem em relação à consciência soava um pouco ambígua
para o autor, ainda mais que anteriormente havia pedido dos destina­
tários uma consciência boa, resp. ligada a Deus, como condição para a
sua promessa de graça (2.19; 3.16) e se referido expücitamente ao seu

Isso é constatado pelo próprio BROX, 1993, p. 179.


Que tal contraste entre o exterior que não é importante e o interior verdadeiro era
familiar ao autor da IP e é mostrado pela oposição similar em 3.3s. Também a salvação
das “almas”, aludida no versículo anterior, combina com essa contraposição à “carne”.
ECKSTEIN, H.-J. D e r B e g riff Syneidesis bei Paulus. Eine neutestamenüich-exegetische
U ntersuchung zum „G ew issen sb egriff“. Tübingen, 1983. p. 305 (com m enção ao
pedido sem elhante p ela “criação” de um coração puro no SI 51 [50]. 12. De form a
semelhante, Hb 9.14 afirm a que a doação da vida de Jesus purifica a consciência.
Essa tendência já pôde ser constatada ao longo da carta até a presente passagem (cf.
1.2; 1.13 - 2.3).

182
comportamento, à “prática do bem” (2.20), resp. “boa conduta” (3.16).
Isso se transforma aqui no pedido a esse Deus por uma boa consciên­
cia (comprometendo, inclusive, a própria pessoa que ora).

V. 22 O descensus ad inferos, a “descida” de Cristo “ao inferno” é


complementada por sua subida ao céu (cf. Ef 4.9s). Ela apresenta, por
assim dizer, de forma dramática, a efetivação abrangente do domínio
de Cristo, sendo que os enfoques das duas “viagens” tem relação com
as valorações contrastantes das caracterizações topográfieas “em
cima” e “embaixo”. Enquanto a descida aos espíritos em prisão sinali­
za que mesmo o âmbito da culpa e da morte não se encontra excluído
do âmbito do domínio de Cristo, a viagem ao céu conduz para a
entronização à direita de Deus®"^®. A participação no domínio divino,
dada com a referida viagem, é demonstrada pela subjugação de todos
os poderes e potestades a Cristo.

O motivo da elevação à direita de Deus {sessio ad dexteram) tem, como também


o da subjugação dos poderes e das potestades, diversos paralelos no Novo Tes­
tamento. Em termos de conteúdo, a combinação da exaltação do Cristo hum i­
lhado com a subjugação dos poderes já se encontra no hino de Filipenses (so­
bretudo em Fp 2.9-11). Nos evangelhos, cada um à sua maneira, é acentuado
que justamente o sofredor é também o coparticipante no trono de Deus: a ele
foi dado todo o poder no céu e n a terra (Mt 28.18), ele já é exaltado inclusive n a
cruz (Jo 3.14; 12.32ss) e sobe ao céu, a fim de presentear os seus a partir dali
com o Espirito (Lc 24.49-51; At 1.8ss). Terminologicamente mais próxima à IPe
encontra-se a carta deuteropaulina aos efésios (1.20s).®'^® Em termos histórico-
traditivos, a formulação desses enunciados de exaltação recebeu influência do
SI 110(109]. 1, em que já se encontram ligados ambos os motivos da exaltação à
direita de D eus e da subjugação dos poderes hostis: “Disse JH W H ao m eu
Senhor: assenta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos debaixo
dos teus pés”. Esse versiculo do Salmo, cuja importância para a teologia cristã
primitiva, em especial também para o desenvolvimento da cristologia, ainda não
pôde ser suficientem ente estimada®“ , prestava-se p a ra u m a interpretação
cristológica sobre Pai e Filho (cf. Mc 12.35-37 par.; At 2.34s) justamente em razão
do duplo KÚpioç da versão da LXX (eíirev ó KÚpioç râ Krpíw pou); os inimigos transfor­
maram-se então nos poderes, seguidamente em poderes antagónicos a Deus (cf.
ICo 15.24). Não é possível definir com segurança se os “poderes e as potestades”
são considerados como hostis também em IPe 3.22 - a conexão com os anjos
torna provável que, pelo menos, não se esteja pensando só em poderes hostis.

Mais precisamente é falado, como no v. 19, com um particípio sobre a ida de Cristo
- por isso também a tradução “viagem ao céu” .
Outro estreito paralelo para a exaltação à direita de Deus é Rm 8.34; ali o enfoque da
exaltação, porém , é a in te rce s s io de Cristo (sua intervenção intercessora em favor
dos crentes junto ao Pai).
Cf. sobre isso HENGEL, M. „Setze dich zu m einer R echten !“ Die In thron isation
Christi zur Rechten Gottes und Psalm 110,1. In: PHILONENKO, M. (Ed.). L e Träne
d e D ien . Tübingen, 1993. p. 108-194.

183
U m a ligação direta entre viagem ao céu e o assentar-se à direita de Deus encon­
tra-se no final não-origLnal de Marcos (Mc 16.19; cf. também B a m 15.9).®®*

Em toda essa parte, a exaltação à direita de Deus marca o contraponto


colocado por Deus para o sofrimento e morte de Cristo. Isso esclarece
que, precisamente como o sofredor. Cristo é aquele que, em verdade,
já se encontra entronizado como Senhor sobre todo o mundo. Nesse
sentido, todo esse excurso tem, sim, uma relevância direta para os
cristãos que sofrem®®^, pois em Cristo, cujo sofrimento eles seguem,
ambas as coisas já se tomaram realidade: o sofrimento e a morte inocen­
tes (3.18), que ainda caracterizam a existência dos discípulos, mas tam­
bém a exaltação à direita de Deus (3.22), que, participando do destino
de Cristo, será igualmente o futuro deles.®®®O batismo dá participação
nesse processo como salvação da cormpção.

A carta, obviamente, não fica estagnada nas “alturas”, à direita de Deus,


mas dirige logo a atenção dali novamente de volta para o sofrimento de
Cristo e, juntamente com esse, para o sofrimento dos cristãos.

C. A “estranheza” em relaçao aos estranhos - O escândalo


de ser-diferente (4.1-6*)

V. 1: Ora, tendo Cristo sofrido na carne, armai-vos também


vós do mesmo pensamento, pois quem sofreu na carne
deixou o pecado,
V. 2: para que, no tempo que vos resta na carne, não vivais
mais de acordo com as paixões dos homens, mas se­
gundo a vontade de Deus.
V. 3: Pois o passado foi suficiente para terdes executado a
vontade dos gentios, tendo andado em dissoluções, con­
cupiscências, embriaguez, glutonarias, bebedeiras e
idolatrias abomináveis;
V. 4: isso eles estranham, que não nadais na mesma torren­
te de perdição, e vos difamam.
V. 5: Eles haverão de prestar contas àquele que está prepa­
rado para julgar os vivos e os mortos.

Em si, B am 15.9 cita a viagem para o céu, em bora em conexão com a descida ao
in fern o .
Contra BROX, 1993, p. 164: “A contribuição desses versículos [sc. 3.18-22] para o
tem a central da carta exaure-se, portanto, no v. 18” .
Seguidam ente é sublinhada a conexão entre sofrim ento e glória, que, com o em
Cristo (cf. 1.11, 21), também haverá de tornar-se realidade naqueles cristãos que
com ele estão ligados pelo sofrim ento (cf. 1.7; 4.13s; 5.1, 10). A qui se trata da
redenção da perdição (eterna).

184
V. 6: Pois, para esse fim foi o evangelho também pregado aos
mortos, a fim de que sejam julgados à maneira humana
na carne, mas vivam pelo Espírito, segundo Deus.

* Literatura sobre IPe 4.1-6: BULTMANN, R. Bekenntnis- und Liedfragmente im


ersten Petrusbrief. In: DINKLER, E. (Ed.). Rudolf Bultmann, Exegetica. Aufsätze
zur Erforschung des Neuen Testaments. Tübingen, 1967. p. 285-297; DALTON
W. J. Christ's Proclamation to the Spirits. A Study of 1 Peter 3:18-4:5. 2. ed. Rom,
1989. (AnBib 23); G SC H W IN D , K. Die Niederfahrt Christi in die Unterwelt. Ein
Beitrag zur Exegese des Neuen Testaments und zur Geschichte des Taufsymbols.
Münster, 1911. (NTA 2/3-5); JEREMIAS, J. Zwischen Karfreitag u n d Ostern,
Descensus u n d Ascensus in der Karfreitagstheologie des Neuen Testamentes.
ZNW 42, p. 194-201, 1949; KUSS, O. Zu r paulinischen und nachpaulinischen
Tauflehre im Neuen Testament (1952). In: IDEM. Auslegung und Verkündigung.
Regensburg, 1963. v. I, p. 121-150, esp. 144-147; NIXON, R. E. The Meaning of
“Baptism” i n i Peter 3,21. S í£ t>4 (=T U 102). Berlin, 1968. p. 437-441; REICHERT,
A. Eine urchristliche Praeparatio ad Martyrium. Studien zur Komposition, Tradi­
tionsgeschichte u n d Theologie des 1. Petrusbriefes. Frankfurt, 1989. p. 208­
247. (BET 22).; REICKE, B. The Disobedient Spirits and Christian Baptism. A Study
of 1 Pet. III. 19 and Its Context. Kopenhagen, 1946. (ASNU 13); SPITTA, F. Christi
Predigt an die Geister, IPetr. 3,19ff. Ein Beitrag zur neutestamentlichen Theo­
logie. Göttingen, 1890; STROBEL, A. Macht Leiden von Sünde frei? Zur Problematik
von IPetr 4, If. ThZ 19, p. 412-425, 1963; VÖGTLE, A. Die Tugend-und Lasterkataloge
im Neuen Testament. Exegetisch, religions- u n d formgeschichtlich untersucht.
Münster, 1936. p. 188-191. (NTA 16/4-5).

V. 1 O texto remete às explanações de 3.18 por meio das palavras-


chave “sofrimento” e “eame”. Enquanto ali se ressaltava a importân­
cia salvífica do sofrimento de Cristo, agora, apoiado por um ouy
sintetizante, trata-se da aquisição de um pensamento féyyota) que seja
correspondente a esse Cristo. A salvação eompartilhada por meio do
sofrimento de Cristo não pode ser simplesmente consumida, mas quer
tomar forma na realização da vida dos que creem (cf. G1 5.6b). En­
quanto em IPe 2.21 isso foi expressado pela eoncepção da imitação,
da imitatio Christi, agora o é com ênfase linguística destacada pela
exigência de “armar-se” (ÓTrA,Loaa0e) com o mesmo pensamento. No Novo
Testamento, a metafórica do combate e da guerra ê seguidamente
empregada para caracterizar a existêneia eristã (ef. Rm 13.12; Ef 6.11­
17). É notório, porém, que ela não ê empregada contra o entorno ex­
perimentado como hostil, o que pelo menos em termos linguísticos
perpetuaria o contexto da retribuição:“ '* O miles Christianus luta, ar­
mado com o pensamento daquele que, como justo, sofreu pelos injus­
tos (IPe 3.18), contra o mal (cf. IPe 5.8s), mas não contra os malfeito­
res. Aqui, como mostram os versículos subsequentes 4.3s, o arma­
mento está a serviço da batalha contra a concupiscência (cf. 2.11).

Contra BROX, 1993, p. 191.

185
Não é tão fácil entender a afirmação de que os sofredores “deram um
fim ao pecado”. O emprego de pecado no singular, uma linguagem
incomum na IPe, torna provável que se trata, nesse caso, da
reformulação de pensamentos paulinos, como o apóstolo desenvol­
veu, p. ex., em Rm 6.1-11: pelo batismo os crentes participam na mor­
te de Cristo, tornando-se assim, como mortos, livres do pecado. Como
também em outras partes, a IPe substitui o discurso sobre a morte
por outro que diz respeito ao sofrimento, uma vez que o pensamento
da participação no sofrimento de Cristo como expressão de comu­
nhão com ele desempenha um papel proeminente nesta carta (cf.
2.19ss; 3.13ss; 4.13ss; 5.1). Portanto a frase diz o seguinte; quem so­
fre no discipulado de Cristo, armando-se assim com o mesmo pensa­
mento que ele teve, quem, portanto, fica unido a Cristo, esse também
participa da esfera da salvação®®®, inaugurada com os seus sofrimen­
tos, sendo que o imperativo sobreposto òirÀíoaaGe torna claro que tal
participação requer simultaneamente o máximo de esforço por parte
dos que creem.

V.2 O que segue explica o que acabamos de afirmar; o “tempo que vos
resta na carne” - a formulação indica para a limitação da vida e colo­
ca, ao mesmo tempo, essa vida no horizonte da eternidade de Deus®®®
- deve ser agora organizado de forma que corresponda a essa liberta­
ção do pecado. Assim, os crentes encontram-se colocados em meio
ao antagonismo entre duas esferas de poder, euja inteneionalidade é
sublinhada pelo respectivo conceito de vontade empregado no con­
texto: uma consiste nas “concupiscências das pessoas”®®’^, definidas
mais uma vez no v. 3 como “vontade (poúÀrina) dos gentios”, e a outra,
na “vontade (GéA-Tpa) de Deus”. A consequêneia da pertença ao Cristo
sofredor e do “armamento” representado pelo mesmo pensamento é
que os erentes, em razão do seu afastamento das “concupiscêneias
dos seres humanos” se colocam sob a vontade de Deus - comprovan­
do-se, assim, como “filhos da obediência” (1.14), como os que, na união
com Deus, são os verdadeiramente livres (2.16).

V. 3 O versículo seguinte reporta-se mais uma vez e com mais deta­


lhes ao poder contrário que dominou o “tempo passado”, portanto, a
vida anterior dos crentes. A partir das “concupiscêneias dos seres

A respeito da contínua paralelizaçao das afirmações sobre Cristo e sobre os crentes,


tanto em relaçào ao sofrimento como à sua superação, cf. SCHWEIZER, 1991, p.
374-377.
A especificação, em si supérflua, do “tempo restante” como sendo “na carne”, podería
implicar que há uma vida também fora do âmbito dessa. Isso é possível em IP e 1.17,
onde a perspectiva de um juízo divino fundamenta a exigência de um viver o “tempo
do vosso ser-forasteiro” de form a correspondente.
Cf. o excurso 5: As paixões, p. 96ss, bem como as explanações em 2.11.

186
humanos” surge a “vontade dos povos/gentios”. O poder contrário das
concupiscências, preferencialmente psicológico e com ação no inte­
rior das pessoas, recebe agora também uma dimensão sociocultural,
sendo, ao mesmo tempo, contrastado ainda mais fortemente eom a
vontade de Deus. Em termos de conteúdo, isso é explicado por meio
de um catáúogo de vícios, que, em linguagem típiea de conversão,
sublinha a futilidade (cf. 1.18) e as trevas (cf. 2.9) da vida anterior. A
“vontade dos gentios” é earacterizada no contexto em forma de clichê
como licenciosidade incontrolãvel, que significativamente tem seu
ponto alto na idolatria. Tais catálogos de vícios, que unem polemiea-
mente®^® idolatria e licenciosidade, encontram-se ainda mais fre­
quentemente no Novo Testamento.®®® É provável que constituam uma
herança da sinagoga da diãspora®®°, que gostava de interpretar sua
condição excepcional dentro do mundo pagão por intermédio do seu
etos específico.®®^ Alta consideração aparentemente recebia nesse
contexto a esfera da moral sexual e, de maneira bem geral, toda a
influência recebida pelas pessoas por meio de vontades e desejos, a
qual também podia ser avaliada criticamente pela filosofia pagã, mor­
mente dentro da tradição estoica.®®^ Ela permitia que os judeus (e de­
pois provavelmente também os cristãos) se projetassem como os “me­
lhores pagãos” e tomassem plausível, dessa maneira, sua separação
dos pressupostos pagãos.®®® A IPe aproveita de forma consequente essa
chance de interpretar a posição de forasteiros dos cristãos com base
em sua orientação religiosa e as tensões com o entorno daí decorren­
tes em termos de um contraste ético. Dessa forma, o ser-diferente na
sociedade, o ser-forasteiro, contém praticamente um momento elitista,
que pode ser integrado positivamente na autocompreensão contesta­
da e, ao mesmo tempo - como mostram as exortações para a prática do
bem e o afastamento do mal, que nesse contexto são frequentemente

Provavelm ente a IP e esteja fazendo referência a festas (ocasionais), que sem pre
tinham também caráter religioso.
Cf. G1 5.19-21; um a composição dos paralelos diretos encontra-se em BROX, 1993,
p. 194.
^ Cf. Sir 18.30 - 19.4: “Não te deixes levar por tuas paixões e refreia os teus desejos.
Se cedes ao desejo da paixão, ela fará de ti objeto de alegria para teus inimigos. Não
tenhas prazer em muito luxo, pois a pobreza haverá de recompensar-te duplamente.
Não serás glutão ou beberrão, pois senão nada permanecerá na bolsa (de dinheiro).
Pois com isso tom ar-te-ás inimigo de tua própria vida (...) Vinho e mulheres produzem
um coração leviano, e forte concupiscência leva ã m in a aquele sobre o qual domina.
Podridão e vermes o terão como herança, e desejo pervertido será eliminado. Aquele
que confia rapidamente é descuidado de coração, e o pecador comete delito contra
si próprio” .
V. acima, p. 157s.
O quão longe isso podia ir num ambiente pagão mostra, p. ex., a rejeição do prazer
sexual mesmo dentro do casamento, em Musonius, Diatribe XII.
V. acim a o excurso 5: As paixões, p. 96ss.

187
repetidas motiva para um modo de vida melhor. Esse pode então,
mais uma vez, ser usado apologeticamente.

V. 4 Essa estratégia também determina o que segue. É provável que a


maioria dos conterrâneos não-cristãos pudesse concordar com o fato
de que o modo como os cristãos conduziam a vida era “estranho” para
o entorno. Mas, enquanto esses sentiam a religiosidade cristã como
violação da ordem social, encarando-a com hostilidade, quando não a
rejeitavam de forma mais ou menos ofensiva com suspeitas e acusa­
ções®"^, a ligação cristã com a vontade de Deus manifesta-se para a IPe
numa nova orientação ética fundamental: os cristãos não nadam jun­
to (literalmente: não correm junto) na “torrente da perdição”. A inimi­
zade contra os cristãos é assim interpretada no contexto do contraste
entre virtude e vício, sendo que na palavra àowxLK (derivado negado de
0(^ 0)) também se pereebe a associação com a ausência de salvação.®®®

V. 5 Mais uma vez é feita uma referência ao juízo - como em 2.23,


sobretudo em forma de consolo, no sentido de que Deus não deixará
sem consequências as injustiças praticadas contra os cristãos. A ex­
pressão “para julgar os vivos e os mortos” soa como fórmula; ela pos­
sui correspondências no Novo Testamento (2Tm 4.1; cf. At 10.42) e
na literatura cristã primitiva (Barn 7.2; Pol 2.1; 2Clem 1.1), sendo
incluída literalmente na formulação do Credo Apostólico.®®

V. 6 Pela palavra-chave a respeito do juízo sobre vivos e mortos, a IPe


retoma à pregação de Cristo aos mortos. Uma relação entre essa obser­
vação e 3.19s é, eomo já visto acima, frequentemente contestada.®^ A
menção abmpta de uma proclamação do evangelho aos mortos expli­
ca-se de forma menos forçada, porém, quando se correlacionam ambas
as passagens.®®® Então também as dificuldades restantes desse texto
são solucionadas: o juízo ocorrido outrora sobre os mortos “à maneira
humana” provavelmente se refira à punição com morte infligida à ge-

É essa atitude que explica a referência à “difam ação” no v. 4; cf. At 13.45; 18.6.
Cf. GOPPELT, 1978, p. 274: Trata-se de “um comportamento que busca compensar
o vazio de sentido pela falta de controle, um modo de vida que, como já indicado
p ela ra iz d a p alavra, é d estitu íd o de sa lva çã o ” ; de form a sem elh an te tam bém
FO ERSTER, W. V erbete ãouxoç ktà . In: T h W N T . S tu ttgart, 1933. v. I, p. 504: a
palavra significa que a gente “se arruina com o próprio estilo de vida” . Um vivido
exemplo fornece o emprego do advérbio correspondente àoúrcoç na parábola do filho
pródigo, Lc 15.13.
A construção infinitiva aqui empregada, “para julgar os vivos e os mortos” , ainda se
encontra em 2Tm 4.1, no entanto, com in finitivo presente; a form ulação da IP e
com o infinitivo aoristo encontra-se literalmente nos símbolos; v. acima. Introdução,
p. 51.
V. acima em 3.19; também ELLIOTT, 2000, p. 730s.
Assim também REICKE, 1946, p. 204-210; JEREMIAS, 1949, p. 196s; GOPPELT,
1978, p. 249s.

188
ração do dilúvio (KpL0cõaL é aoristo, enquanto presente; também
eur|7Ye^Lo0Ti, formulado no aoristo, corresponderia ao aoristo de èKripuÇev
em 3.19). Em favor desse nexo também fala o contraste entre oapKi (como
esfera da mortalidade, na qual se concretizou o juízo) e irucijpoíTL (como
a esfera de ação do poder divino vivificador), que alude diretamente a
3.18. O versículo, com sua surpreendente diferenciação em vista do
juízo, deveria então ser compreendido como tentativa de combinar o
enunciado do juízo do versículo precedente, segundo o qual Deus como
juiz pune a injustiça, com a declaração de 3.19s, que por meio de Cris­
to é oferecida salvação mesmo à geração do düúvio, outrora desobedien­
te. Em aberto deve fiear em que medida tal afirmação poderia ser gene­
ralizada no sentido de que será oferecida a salvação a todos os que mor­
reram sem Cristo; o emprego do aoristo em eur|YY6A.í.o0T|, entretanto, defen­
de antes®®® uma ação única, sobre a qual se discorreu em 3.19.

1.3 Exortações para o amor mútuo (4.7-11*)

V. 7: O fim de todas as coisas, porém, está próximo. Sede,


portanto, ponderados e sóbrios para orações.
V. 8: Acima de tudo, eultivai, com todo o ardor, o amor de
uns para com os outros, pois “amor cobre uma multi­
dão de pecados”.
V. 9: Sede mutuamente hospitaleiros, sem murmuração,
V. 10: cada um, conforme o dom que recebeu, colocando-o a
serviço uns dos outros, como bons dispenseiros da
multiforme graça de Deus.
V. 11: Se alguém fala, [então assim] como [se falasse] pala­
vras de Deus; se alguém serve, [então assim] como [se
agisse] pela força que Deus concede, para que, em to­
das as coisas, seja Deus glorificado por meio de Jesus
Cristo, a quem pertence a glória e o poder pelos sécu­
los dos séculos. Amém.

* Literatura sobre IPe 4.7-11: R EUM ANN, J. “Stewards of God”. Pre-Christian


Religious Application of OIKONOM OS in Greek. JBL77, p. 339-349, 1958; WHITE,
J. N. D. Love that Covers Sins. Exp., p. 541-547, 1913-A (1913).

O primeiro trecho da segunda parte principal termina com uma série


de admoestações. Nele, a relação com o entorno ainda não desempe-

A ligação entre os veKpoí v. 6 com sua referência anterior no v. 5, onde se fala de um


ju izo sobre todos os mortos, poderia defender que, em bora todos tenham que se
respon sabilizar diante do ju iz, é por ele que, sim ultaneam ente, é oferecida aos
mortos a salvação.

189
nha nenhum papel. Tudo ainda se concentra aqui na relação da co­
munidade com Deus (quatro vezes nos v. 10-11) e dos seus membros
entre si (três vezes nos v. 8-10).^°® O trecho encontra-se delimitado
do seu antecedente pela referência introdutória ao término próximo
de todas as coisas, bem como pela série de orientações para o conví­
vio mútuo; mais clara ainda é a delimitação em relação ao texto sub­
sequente pela doxologia e o “Amém”.

V. 7 A referência explícita ao fim próximo mostra que a IPe, basica­


mente, ainda conta com a esperança num fim do mundo próximo (cf.
o fÍYYi-K^ey em Mc l.lSpar.; Tg 5.8), mesmo que - desde a locação teoló­
gica dos cristãos como “estrangeiros” na sociedade até o pedido de
submissão e integração nas estruturas vigentes - seu interesse pres-
cípuo resida na organização do “tempo restante na carne” (4.2), ou
seja, do “tempo entre os tempos”. A parênese seguinte também está
determinada por isso e encontra-se destacada inicialmente ante o
horizonte do ideal comum antigo da oQcjjpooúvri, da ponderação e do
autocontrole com inteligência. No contexto da parênese escatológi-
ea, isso corresponde á inteligência louvada nas parábolas escatológi-
cas daquelas pessoas que não se deixam enganar quanto à natureza
provisória daquilo que se encontra diante dos seus olhos, mas que
esperam pelo seu Senhor (cf. Mt 24.45; 25.2, 4, 8, 9), sendo que a
substituição de (tjpóvLiioç por aucfipoyeLy documenta uma vez mais a
inculturação da IPe, também no âmbito da ética.’^“^ Isso é comple­
mentado pela exortação ã sobriedade, que é earacterística para a
parênese escatológica do cristianismo primitivo, da mesma forma como
a exigência da vigilância. Ela sublinha mais uma vez a necessidade
de não se deixar enganar ou seduzir pelo que existe, mas de orien­
tar-se na soberania vindoura de Deus.'^°^ Ambas as coisas realizam-
se por intermédio das orações, o contínuo alinhamento daqueles que
aguardam e esperam pelo seu Deus (cf. Tg 5.7ss).

V, 8 Depois dessa concordância mais fundamental em relação à


orientação cristã da existência e do agir, a IPe (após as extensas ex­
planações de 2.11 - 4.6, que tinham como tema, sobretudo, o compor­
tamento cristão diante do entorno) agora decididamente inicia a falar

700
BORING, 1999, p. 148.
701
Isso se torna particularmente evidente numa comparação com o Apocalipse de João,
surgido mais ou menos na mesm a época. Não posso entender como se pode dizer
que a IP e defenda “a esperança pela vinda imediata com a mesma intensidade que
o Apocalipse de João” (GOPPELT, 1978, p. 281).
O verbo ouitipovcLv, ju ntam ente com seus derivados, encontra-se tipicam ente nos
escritos posteriores do Novo Testam ento, em especial nas Cartas Pastorais; salvo
em Rm 12.3 e At 26.25, ainda em Tt 2.2, 4-6, 12; IT m 2.9, 15; 3.2; 2Tm 1.7.
IT s 5.6, 8; v. acima em 1.13.

190
sobre o comportamento dos cristãos entre sU^"^ No centro encontra-se -
retoricamente ainda reforçado por um “acima de tudo” introdutório - a
exigência do amor mútuo. A posição central do mandamento do amor
é válida para todo o cristianismo, e o acento especial sobre o amor
intracomunitário certamente também tem a ver com a pressão advinda
de fora. O “amor fraterno”, em verdade, já havia soado anteriormente
na IPe como epítome do etos intracomunitário (1.22; 2.17); agora ele,
pela primeira vez, é explanado mais detalhadamente. Interessante é
que, de imediato, é aerescentado que ele deve ser praticado “com todo
o ardor”, ou seja, que ele só pode ser preservado com trabalho éirduo.

A importância do amor recíproco ainda é sublinhada pela fundamen­


tação de que o amor “cobre uma multidão de pecados”, i. e., que o
amor perdoa peeados.'^®® Como fundamentação da exigêneia do amor
fraterno, a frase afirma que o ser humano, por meio de amor pratica­
do, pode compensar suas faltas. Se ela fosse considerada como axio­
ma soteriológico, estaria em explícita contradição com os demais
enunciados da carta sobre a obra reconciliadora de Cristo (cf. 2.24;
3.18). Há que se considerar, no entanto, que tais imprecisões não são
atípicas para a IPe e é correto o alerta de Goppelt no sentido de não
se forçar tal f r a s e . E l a lembra, em sua ambivalência, antes “a circu­
lação entre o amor que nos encontra e o amor que por nós é passado
adiante, o qual, segundo a tradição de Jesus, provém de Deus (Mc
11.25; Mt 6.14s; 18.35) e representa uma correlação de vínculos pes­
soais, não um acerto de contas”.™^ Isso se insere na tendência geral
da IPe. Esta carta permanece convicta, sem dúvida, de que o cuidado
de Deus é anterior à toda ação humana - isso já mostra a metáfora do
novo nascimento/renascimento, que tem sua correspondência na in­
vocação dos destinatários como “amados” nos dois novos inícios da
segunda parte principal (2.11; 4.12). Por outro lado, a IPe faz uso de
todas as oportunidades - por vezes não totalmente sem uma certa vio­
lência- para destacar o compromisso advindo desse fato (cf. 1.2; 1.13 -
2.3; 4.Iss). A outra possibilidade de entender esse versículo é que os
pecados daquele que é amado são perdoados por aquele que ama.'^°®

V. 9 A exigência do amor mútuo é complementado no v. 9 pela hospi­


talidade. Ao longo de toda a tradição neotestamentária, a hospitali­
dade constitui uma concretização essencial do mandamento do amor

™ V. 8, 10: elç éautoúç; v. 9: elç àUiíl.oi)í;.


Cf. SI 32[31]. 1: “Bem-aventurado aquele cuja iniqüidade é perdoada, cujo pecado é
coberto” .
706 g o p p e l t , 1978, p. 284.
G OPPELT, 1978, p. 285.
ACHTEM EIER, 1996, p. 295s; BORING, 1999, p. 150.

191
(cf. Rm 12.9-13; Hb 13. Is). O próprio Cristo pode ser encontrado no
forasteiro (cf. Mt 25.35, 43). Nas Cartas Pastorais, a hospitalidade é
uma comprovação para a qualificação de um bispo (ITm 3.2; Tt 1.8),
resp. de uma viúva (ITm 5.10) para o ofício na igreja. A hospitalidade,
tida em alta conta na antiguidade^“®, desempenhou papel tão rele­
vante justamente no cristianismo primitivo porque o acolhimento de
missionários e missionárias, resp. dos mensageiros e mensageiras
era decisivo"^^“ para a missão do cristianismo e o contato mútuo entre
as comunidades. Um pouco mais tarde, a possibilidade de mau uso
da hospitalidade por parte de aproveitadores'^“ forçará a Didaquê ao
estabelecimento de regras restritivas (Did 11.5s, 12; 12.5). Na IPe
(ainda) não se entra em tais detalhes, mas se sublinha tão-somente
que a hospitalidade deve ocorrer “sem murmuração”, sem lamentação
ou avareza, que poderiam arruinar exatamente o valor da atenção
dispensada aos hóspedes.

V. 10 A unidade dos cristãos fundamenta-se no fato de que os dife­


rentes dons da graça recebidos à sua maneira pelos diferentes cris­
tãos remontam ã multiforme, “multicolorida” graça de Deus. Só aqui
se encontra uma reminiscência da doutrina dos carismas fora do
Corpus PaulinurriJ^'^, sendo que, ao contrário de Paulo, em primeiro
plano não se encontra a dádiva, mas a tarefa.’^*^ Os cristãos são bons
dispenseiros^“ dessa graça ali onde se servem mutuamente na mul­
tiplicidade “colorida” de seus dons, a saber, com suas respectivas
habilidades; ã multiplicidade dos dons corresponde a multipHeidade
dos d e s a f i o s . A importância central do servir é novamente acolhi­
da pela IPe a partir da tradição cristã primitiva, onde ela expressa a
diferença do reino de Deus precisamente também no contexto de poder
e hierarquia. Em Mc 10.42-45par. e Lc 22.24-27, o próprio Jesus de­
fine, em antítese provocativa à ambição humana pelo poder, toda a
sua vida como serviço, comprometendo taimbém os seus seguidores
nesse mesmo sentido. De forma correspondente, Paulo acentua que

Cf. STÄHLIN, G. Verbete U voq ktà . In: Th W N T. Stuttgart, 1966 (= 1954). v. V. p.


16ss.
Mt 10.11; At 16.15; 21.7, 18; 28.14; Rm 16.4, 23; 3Jo 3, 7s; Did 11.2, 4; cf. sobre
isso também GORCE, D. Verbete Gastfreundschaft C. Christlich. In; RAC. Stuttgart,
1972. V. VIII, p. 1105-1107.
Uma apresentação satirizada de tcd possibilidade é feita em Luc, PergrMort 11-13.
Cf., em especial, IC o 12; também IC o 7.7; Rm 12.6.
V. acima em 2.20; a diferença em relação à linguagem paulina é acentuada também
por HERZER, 1998, p. 160-170 e ELLIOTT, 2000, p. 757s.
Sobre a m etáfora religiosa do “dispenseiro” , cf. IC o 4.1 (Paulo); Tt 1.7 (o bispo);
IgnPol 6.1 (a comunidade); no âmbito do judaismo incipiente, cf. 4Bar 7.2 (Baruque).
Ao contrário de Paulo, a IP e não relaciona o termo com pessoas isoladas, mas com
a comunidade.
Em IP e 1 .6 irtipaonoC é empregado com o atributo ttolkCXoii; (muitas provações).

192
os dons do Espírito não devem ser razão de autoapresentação, mas
são “serviços” (ICo 12.4s; cf. Rm 12.6s). Isso é importante na IPe,
justamente em relação à pergunta pelo poder no interior das comu­
nidades. Não há dúvida de que também ali exista hierarquia, com
precedência e subordinação - o que conta em primeiro lugar é, po­
rém, a relação caracterizada pelo serviço mútuo.

V. 11 Dos “serviços”, cuja multiplicidade pode ser apreciada, p. ex.,


em ICo 12.8ss, 28ss, são citados aqui unicamente “palavra” e “servi­
ço”, expressando provavelmente a pregação^^^ e ações de caridade
como pilares da comunidade (At 6.2s; cf. Rm 12.7). Isso tem relação
com o propósito desse trecho: em primeiro plano não se encontra a
multiplicidade dos dons, mas sua ligação com Deus, que concede a
força para o serviço, como é ressaltado expressamente. A unidade da
comunidade reside, em última análise, nessa relação comum com
Deus, cuja meta é a sua glorificação através dos dons dos diferentes
membros. Ao mesmo tempo, a palavra-chave da “glorificação” de Deus
relaciona-se novamente com o início dessa seção, em 2.12, onde des­
creve o efeito “para fora” do “comportamento” cristão desejado sobre
não-cristãos. Como chance para testemunhar a fé aos de fora não se
oferecem só a subordinação e a integração exemplares dos cristãos
na sociedade, mas também a comunidade ligada pelo amor por meio
da relação comum com Deus. Tudo isso é ainda reforçado e finaliza­
do com uma doxologia e um “Amém”, ao que corresponde em 4.12
um claro novo início.

2. Consolo e exortação (4.12 - 5.11)

2.1 Sofrimento como comunhão com Cristo (4.12-19*)

V. 12: Amados, não estranheis o fogo ardente no meio de vós,


como se algo de estranho vos estivesse acontecendo,
V. 13: pelo contrário, alegrai-vos - na medida em que sois
coparticipantes dos sofrimentos de Cristo -, para que
também, na revelação da sua glória, vos alegreis
exultando.

V. abaixo em S.lss. Deve ser observado também que toda a comunidade é designada
como “dispenseira da multiforme graça de Deus” e não só o bispo, como em Tt 1.7.
Enquanto essa designação na IP e une a comunidade pela tarefa comum, o olKovópoç
0€oO assinala na carta pastoral a posição especial do detentor do ministério.
O entendimento das “palavras de Deus” por ELLIOTT, 2000, p. 759 como “oráculos”
parece forçado, mesmo porque esse sentido também é duvidoso nos textos compro-
batórios de Rm 3.2 ou Hb 5.12, por ele apresentados com essa finalidade.

193
V. 14: Se, pelo nome de Cristo, sois injuriados, bem-aventu­
rados [sois], porque sobre vós repousa o Espirito da gló­
ria e de Deus.
V. 15: Ora, não sofra nenhum de vós como assassino, ou la­
drão, ou malfeitor ou como quem se intromete em as­
suntos alheios.
V. 16: Mas, se [sofrer] como cristão, então não se envergo­
nhe; antes, glorifique a Deus com esse nome.
V. 17; Porque o tempo de começar o juízo pela casa de Deus
é chegado; mas, se ele começa inicialmente por nós,
qual será o fim daqueles que não creem no evangelho
de Deus?
V. 18: E “se é com dificuldade que o justo é salvo, onde será
visto então o ímpio e pecador?”
V. 19: Por isso também os que sofrem segundo a vontade de
Deus devem encomendar a sua alma a ele como ao
fiel criador, pela prática do bem.

* Literatura sobre IPe 4.12-19: BORCHERT, G. L. The Conduct of Christians in the


Face of the “Fiery Ordeal”. Review and Expositor 79, p. 451-462, 1982; COLWELL, E.
C. Popular Reactions against Christianity in the Roman Empire. In: McNEILL, J. T.
(Ed.). Environmental Factors in Christian History. (FS S. J. Case). Washington, 1970 (=
1939). p. 53-71; DANIEL, J. L. Anti-Semitism in the HeUenistic-Roman Period. JBL
98, p. 45-65, 1979; KNOX, J. Pliny and I Peter. A Note on I Pet 4,14-16 and 3,15.
JBL 72, p. 187-189, 1953; McCAUGHEY, J. D. Three “Persecution Documents” of
the New Testament. ABR 17, p. 27-40, 1969; REISER, M. Die Eschatologie des 1.
Petmsbriefs. In: KLAUCK, H.-J. (Ed.). Weltgerichtund WeltvoUendung. Zukunftsbüder
im Neuen Testament. Freiburg, 1994. p. 164-181. (QD 150); SANDER, E. T. UYPfíSIS
and the First Epistle o f Peter 4:12. Ph. D. Diss. Harvard University, 1967; SELWYN, E.
G. The Persecutions in I Peter. In; BSNTS 1, Oxford, p. 39-50, 1950; UNNIK, W. C.
van. The Teaching of Good Works. NTS I, p. 92-110, 1954/55.

Após uma clara cesura com doxologia e amém em 4.11, segue em


4.12 - intensificado pela invoeação ayairriTOL’^^® - uma renovada alu­
são aos destinatários. Que eles novamente são invocados como “ama­
dos” sublinha mais uma vez sua aceitação por Deus, anterior a toda a
própria atividade.^'® O trecho de 4.12-19 encontra-se intimamente
relacionado com o conteúdo tratado até aquE^°, mesmo que ocorra

Cf. FRANKEM ÕLLE, 1987, p. 64: “A invocação não é prim ariam ente um sinal de
introdução de um a nova parte principEd, mas - entendido de forma retórico-pragmática
- um retorno intensificado ao público, um a vez que os destinatários necessitam de
consolo e solidariedade (5.9).
V. sobre isso as explanações em 2.11.
Isso já vale para o tem a do sofrimento, que até o momento tem sido desenvolvido
sem p re re n o va d a m en te (cf. 1.6, 8; 2.12, 15, 18ss; 3.9, 13ss; 4 .4 ), p a ra su a
concretização em forma de injúrias (cf. 2.12, 15; 3.16; 4.4), também para o contraste
entre sofrimento justo e injusto (2.20; 3.17), para o sofrimento por causa da ligação
da fé (2.19; 3.14), para o sofrimento segundo a vontade de Deus (2.19; 3.14), bem

194
uma mudança de perspectiva. O testemunho para fora retrocede, sendo
insinuado só ainda no ôo^aCéxco de 4.16. Ao invés disso, aborda-se fun­
damentalmente as perguntas sobre o sofrimento, as crises de fé daí
advindas e sua avaliação teológica. Sofrimento é consequência da
pertença à comunidade dos eleitos e significa prova (v. 12); no sofri­
mento, os cristãos participam do sofrimento de Cristo, recebendo as­
sim também participação em sua glória (v. 13); essa é a razão pela
qual os que sofrem já são agora declarados bem-aventurados (v. 14);
eles glorificam a Deus (v. 16) e já antecipam para si o juízo final, que
ainda aguarda os outros (v. 17s). Assim, as declarações da carta feitas
até agora sobre o sofrimento são agrupadas e desenvolvidas, a fim de
assumir um posicionamento sobre esse problema central da IPe com
um rigor ainda não alcançado até esse ponto. De maneira análoga,
muda também o “clima”.

V. 12 Sobre o sofrimento fala-se agora sem nenhuma suavização como


“fogo ardente”, e também as provações daí resultantes são indicadas,
especialmente quando é dito que o fato não deveria causar “estra­
nheza”, como se ocorresse aos cristãos algo “surpreendente”. Ade­
mais, de início, frisa-se mais uma vez que se trata, nessa questão, de
uma “prova/tentação”. Juntamente com a imagem tradicional do “fogo
ardente”^^^, o autor recorre inicialmente à sua interpretação fornecida
em 1.6s, em que o sofrimento, em tradição profética^^^ e sapiencial'^^^,
havia sido comparado com a fundição do metal e interpretado como
provação e possibilidade para a purificação. A “estranheza” em rela­
ção ao sofrimento imerecido (sublinhada duas vezes) mostra, contu­
do, que o escândalo vai mais fundo. Não fica claro a que se refere o kv
úlitv na irúpuaLç: geralmente as palavras são traduzidas por “entre vós”;
o paralelismo com a expressão sobre a “esperança que está em vós”
em 3.15, em que o kv úpXv igualmente se encontra entre artigo e subs­
tantivo, poderia, no entanto, também ser entendido assim que agora
estivesse sendo feito uma referência explícita ã aflição interior. De
qualquer maneira, a interpretação do sofrimento unicamente como
prova não é mais suficiente. Por essa razão seguem agora fundamen­
tações adicionais, mais profundas.

como para a interpretação dessas ocorrências como purificação e neLpaafióç (1.6s).


Como em 3.14, os que sofrem são tidos como bem-aventurados, eles devem alegrar-
se (1.6, 8), e isso é fundamentado, como em 2.21ss e 3.18 (cf. também 4.1), com a
correspondência aos sofrimentos de Cristo. De 2.5 é retomada a imagem da casa de
Deus, sendo que o juízo sobre os descrentes já se encontra insinuado em 2.7s.
A metáfora do irúpcooLç, resp., a comparação com ele também pode ser empregada para
o “crisol” do sofrim ento em outros textos (Pv 27.21; Did 16.5); cf. o em prego do
equivalente hebraico em 1 QS 1.17s; VlII.Ss, 17s; 1 QH X III.16.
’’22 Cf. Jr 9.6; Zc 13.9.
’’22 Cf. SI 66[65].10; Pv 17.3; Sir 2.5; Sab 3.6 e outros.

195
V. 13 A primeira fundamentação é cristológico-escatológica, que, em
sua essência, provavelmente remonta a Paulo (Fp 3.10s; cf. 2Co 1.5­
7; Rm 8.17). A IPe refere-se a ela também em outra passagem. Nesse
versículo, ela é desenvolvida em três passos argumentativos:
a) Os sofrimentos no discipulado de Cristo são concretizações da
união com o Cristo sofredor;
b) essa comunhão com o Cristo sofredor fundamenta a partieipação
em sua glória quando de sua “revelação” - uma provável alusão ã
parúsia de Cristo. Por isso,
c) os cristãos já podem se alegrar agora, e não só apesar do sofrimen­
to, mas - simultaneamente, antecipando o júbilo do tempo final - in­
clusive por causa do sofrimento.’’2'*

V. 14 O versículo seguinte repete esse enunciado, fundamenta-o e o


sobrepuja, no sentido de que aqueles que são injuriados por causa de
Cristo são declarados bem-aventurados. Essa injúria por causa de
Cristo refere-se à discriminação social, sendo que esse “odi[um] erga
nomen Christianorum”'^^^ podia aumentar rapidamente e transformar-
se em ação contra os cristãos. De forma idêntica ao sofrimento “como
cristão”, mencionado um pouco mais tarde, essas “injúrias” prova­
velmente indicam para uma situação que já fora testemunhada por
Plínio: não existem ainda, é verdade, perseguições aos cristãos orga­
nizadas pelo Estado'^^®, mas a filiação á comunidade cristã como tal -
Plínio fala do nomen ipsum (Plin, Ep X,96,2) - já pode, em caso de
denúncia, ser vista como motivo suficiente para uma ação contra os
cristãos (e em caso de recusa da apostasia, ser entendida como
obstinatio e, assim, como motivo para a sentença de morte) (X,96,3).^^^
O macarismo - nesse ponto a IPe parece aludir a uma tradição
sinótica'^^®, depois de referir-se à tradição paulina - é fundamentado
com uma citação de Is 11.2: “Pois o Espírito da glória e de Deus re­
pousa sobre vós“ (4.14). A presença desse Espírito divino, que, segun­
do 3.18, vivificou o Cristo morto “na carne”, é agora prometido aos
cristãos que sofrem, sendo que isso é ainda melhor definido por meio
de três alterações redacionais efetuadas no texto profético:

™ Cf. DAVIDS, 1990, p. 167: “Essa alegria escatológica antecipada é um tema comum
a IP e e Tiago (Tg 1.2; IP e 1.6)” .
Tert, Apol 1,4.
Essas ocorrem só a partir da metade do século III d.C.
™ V. Introdução, p. 16ss.
™ Cf. sobretudo a bem-aventurança aos injuriados por causa de Cristo em Mt 5.11; cf.
também Mc 9.37, 39, 41; Lc 21.12. GOPPELT, 1978: “Novamente, como em 2.24,
afirmações similares são formuladas, primeiramente em linguagem paulina, depois
em sinótica” ; em relação à in flu ência exercida por Mt 5.11 sobre IP e 4.13s, cf.
M ETZNER, 1995, p. 34-38.

196
a) O futuro àvairaúieTai,, testemunhado por todos os manuscritos da LXX
que nós conhecemos, é transformado no presente àvamijeTaL; dessa for­
ma é acentuada a presença desse Espírito prometido no sofrimento;

b) pelo acréscimo “sobre vós” (èc|)’ í)|iâç), a profecia messiânica é expli­


citamente relacionada com os destinatários;

c) pelo acréscimo de rfiç ôó^riç é estabelecida - especialmente logo após a


referência à “revelação da sua glória” no versículo anterior - uma rela­
ção explícita com a exaltação de Cristo depois do seu sofrimento/^®

Dessa maneira, contrapõe-se a promessa da presença do Espírito di­


vino à experiência angustiante e presente do sofrimento. Espírito esse
que, por sua vez, é “penhor” para a participação na glória divina (2Co
1.22; cf. Rm 8.23). A bem-aventurança aos sofredores é assim a
contraparte positiva da admoestação introdutória para que não se
estranhe o sofrimento.

V. 15 Uma vez mais (cf. 2.20; 3.13) a IPe sente-se compelida a espe­
cificar melhor que todas as referidas promessas não valem para um
sofrimento merecido em razão de mãs ações. A corrente de possíveis
delitos (assassino, ladrão, malfeitor) é de própria autoria. Qual o sen­
tido da advertência para não sofrer como assassino? Pode ser aventa­
do se a IPe estã fazendo aqui alusões a acusações “com as quais, na
forma de difamações e denúncias caluniosas, se tornava difícil a vida
dos cristãos”.'^®“ Permanece obscuro qual poderia ser o sentido do
hapax legomenon à/\,A.oTpLeiTÍoKoiToç.

O significado básico desse termo, não atestado na literatura grega


antes da IPe, parece ser o de “um que se intromete em assuntos
alheios”. U m a explicação plausível oferece inicialmente um para­
lelo em Epiteto (Diss 111, 22,97), onde o filósofo defende o cínico con­
tra a acusação de que ele esteja se preocupando com assuntos alheios
(tà àÃlótpL«) quando observa as práticas humanas (èiuoKOfrfi). Deprecia­
ções das “práticas dos gentios” em catéilogos de vícios como IPe 4.3
pode-se entender muito bem nesse sentido; tais censuras segura­
mente não contribuíram para a estima dos cristãos, como o testemu-

Como já mostrado por diversas vezes, é um a característica da IP e que essa carta liga
intimamente o conceito da ôó^a com o sofrimento: como no caso do Cristo sofredor
(cf. 1.11; 2.21), tam bém nos seus discípu los a glória vem depois do sofrim ento
(1.6s; 4.13; 5.1, 10).
’ 3» BROX, 1993, p. 217.
’■3' Cf. BEYER, H. W. Verbete èiuoKéirroiiai kzX. In: T h W N T . Stuttgart, 1935. v. II, p. 595­
619, esp. 617-619.

197
nha IP e 4.4 indiretamente e como o conhecemos da polêmica
anticristã. Contra essa explicação fala, porém, por um lado, o fato de
que com isso a IPe estaria colocando a critica por ela própria defen­
dida contra a sociedade pagã numa mesma sequência de claros deli­
tos criminosos; por outro, não fica transparente até que ponto essa
critica apresenta a existência de uma situação de incriminação que
seja análoga à existente em relação aos primeiros membros da
sequência. Mas, considerando-se que a última possibilidade levan­
tada é provável com base no todo da série, foi aventada a tradução no
sentido de “denunciante” ou “ocultador”, sem que se conseguisse
fundamentã-la de maneira realmente convincente. De qualquer for­
ma, a sequência, iniciando com o assassino, passando pelo ladrão e
malfeitor e terminando com o enigmático àÀloTpLeiTLOKOTTOç, parece mos­
trar uma “descending order of gravity and specificity” [ordem decres­
cente de gravidade e especificidade].'^®^

V. 16 O V. 16 formula o equivalente positivo: quem sofre por ser cris­


tão não necessita envergonhar-se disso. Esse versículo constitui-se
num dos mais antigos textos comprobatórios para a designação de
“cristão”'^®® e no testemunho mais antigo para a estigmatização e
eriminalização ligadas a esse voeábulo.'^®"^ Essa exelusão social e a
incerteza jurídica daí decorrente formavam um escândalo que não
pode ser subestimado (cf. Mc 4.17), o qual, aliás, já ressoou no
“estranhamento” de IPe 4.12 e ao qual agora novamente é feita refe­
rência no termo do “envergonhar-se” - um termo que também se en­
contra nas palavras sobre o discipulado nos e v a n g e l h o s . A IPe con­
trapõe a isso a possibilidade de uma comprovação ativa justamente
no sofrimento: a identificação como cristão deve ser assumida preci­
samente como chance de glorificar a Deus “nesse nome”.’^®®

ELLIOTT, 2000, p. 783.


Segundo At 11.26, em Antioquia os cristãos foram assim denominados pela primeira
vez; cf. tam bém A t 26.28; essa designação feita p or estranhos rapid am en te foi
assumida como autodesignação; cf. além de IP e 4.6, ainda Did 12.5; IgnEph 11.2;
IgnRom 3.2; IgnPol 7.3; Tac, An X V ,44; Suet, Caes(Nero) 16.2; Plin, Ep X ,96,1-3;
Luc, A lex 25.38; Luc, PergrM ort l l s s . Segundo PETERSO N, a term inação -avoç
aponta para uma origem em ambiente de fala latina e remonta a autoridades romanas
(cf. PETERSON, E. Christianus. In: IDEM. Frühkirche, Judentum und Gnosis. Studien
und Untersuchungen. Rom, 1959. p. 69-77).
Cf. Plin, Ep X,96,2; v. Introdução, p. 16s.
Mc 8.38par.; Lc 9.26; cf. também a negação em Rm 1.16.
' Cf. IP e 2.12; tam bém 4.11. A concepção da glorificação de D eus p or m eio de
sofrim ento próprio tam bém se encontra no judaísm o antigo; o Terminus technicus
para o martirio na literatura rabinica é qiddusch ha-schem, a “santificação do nome”
(cf. sobre isso REN TEN , J. W. van; AVEM ARIE, F. Martyrdom and Noble Death.
Selected Texts from Graeco-Roman, Jewish and Christian Antiquity. London; New
York, 2002. p. 3, 132).

198
V. 17 Como fundamentação adicional vale a referência ao juizo. O
absoluto TÒ Kpí|j,a só pode referir-se ao juízo final, para o qual a carta já
apontou diversas vezes (1.17; 2.23; 4.5). Enquanto nas passagens até
aqui a perspectiva desse juízo era sempre a de um evento futuro, ago­
ra é acentuado que ele já iniciou (ò Kaipòç xoG apÇaoêai), a saber, na casa
de Deus. Como essa afirmação se relaciona com os enunciados sobre
o sofrimento pelo ou causativo, esse juízo que inicia na casa de Deus
só pode significar o sofrimento que assola os cristãos no presente. A
concepção de que o juízo principia no próprio povo de Deus já se en­
contra em Ez 9.6 e Jr 25[32]. 29. Reiser^®'^ aponta com razão para o
fato de que nas passagens proféticas se trata de um juízo de destrui­
ção, enquanto que na IPe, de purificação. Não se pode descartar, con­
tudo, a possibilidade de que a IPe tenha assumido este pensamento
de que o juízo inicia no santuário de Deus dos textos bíblicos. Isso se
torna tanto mais provável, quanto tais pensamentos podem ser
enfatizados escatologicamente no judaísmo antigo, de tal forma que
as catástrofes históricas sejam interpretadas como antecipação da­
quele juízo que ainda está á frente dos outros: “e o Senhor julgará
como primeiro a Israel por causa da injustiça que há nele [...] e então
julgará ele todas as nações” (TestBen 10.8s)^®®. Que esse juízo permi­
te, a minore ad maius, depreender o que aguarda aqueles que, como
descrentes, até agora ainda foram preservados desse “fogo ardente”,
encontra-se implícito, embora não se entre em maiores explicações a
esse respeito. Mais importante, provavelmente, é que se possa deter­
minar o lugar histórico-salvífico daquilo que causa “estranheza” em
relação ao sofrimento.

V. 18 Isso é fundamentado com uma citação de Pv 11.31, uma sen­


tença originalmente sapiencial que, a partir da retribuição ao justo,
deduz sobre a retribuição muito maior em relação ao pecador e injus­
to: “Se o justo é punido na terra, quanto mais o perverso e pecador!”
Pelo fato de (“haverá de ser retribuído”) ser reproduzido pela LXX
com iróÃLç ocóCe-uKL, além de receber um acréscimo de irou cj)“ ^eLtai. no
segundo membro, a sentença sapiencial pode ser interpretada como
se referindo ã retribuição no juízo final, da mesma maneira que a IPe
faz aqui.

REISER, 1994, p. 175.


Cf. SlSal 7 e 10; também 2Bar 13.9-11: “Por isso ele não preservou inicialmente os
próprios filhos, mas os afligiu como aqueles que os odiavam, porque tinham pecado.
Por isso, naquela época, eles foram punidos, a fim de que pudesse ser-lhes perdoado.
Mas agora, vós povos e tribos, eis que vos tomastes culpáveis [...]” (tradução de A. F.
J. Klijn).

199
V. 19 O trecho é concluído com a exortação de que, aqueles que
sofrem segundo a vontade de Deus, encomendem sua alma a Deus.
Essa é a promessa do amparo divino, como é formulado mais uma vez
explicitamente no v. 5, embora aqui no v. 19 esteja formulado numa
forma que lembra a paixão de Cristo (Lc 23.46; cf. IPe 2.23). Deus é
definido como “criador fiel”. Essa referência ã criação surpreende, e
isso tanto mais que o termo “criador” (ktîottiç), tão comum a nós, que
remonta á linguagem do judaísmo helenista incipiente'^^®, se encon­
tra no Novo Testamento só nessa passagem. Se, pois, aqui - em cone­
xão com o juízo - novamente^'*“ se recorre à criação, então isso subli­
nha a superioridade de Deus sobre o mundo, sua salutar transcen­
dência. Não é por acaso que também aqui mais uma vez se encontra o
termo “alma”, que, como já foi mostrado^'^^ designa na IPe o outro
diante de Deus e o destinatário do seu plano salvífico.

O trecho mostra mais uma vez o que ê importante para esse escrito;
diante dos sofrimentos abordados sem maquiagem e as provações cau­
sadas por eles, a IPe interpreta o presente totalmente a partir do juturo
de Deus - de um futuro que, tanto em relação á salvação como ao juízo
finais, já iniciou. É precisamente na negatividade dos sofrimentos ex­
perimentados que a IPe quer abrir para seus destinatários uma di­
mensão positiva, revelando-lhes como que uma experiência com a
experiência, a saber, a alegria nos sofrimentos. Dessa forma, os “es­
tranhos”, como aqueles que foram regenerados por Deus, são confir­
mados como “renascidos”. Se, porém, também esse consolo ao final
mais uma vez é formulado com a especificação adicional “pela práti­
ca do bem” (cf. 2.20; 3.13; 4.15), então esse condicionamento da pro­
messa documenta (praticamente como ato reflexo) de forma renovada
o outro propósito desta carta, a saber, o de unir intimamente promes­
sa de salvação com parênese.

2.2 Domínio e serviço na comunidade (5.1- 5*)

V. 1: Rogo, pois, aos presbíteros que há entre vós, como co-


presbítero e testemunha dos sofrimentos de Cristo, tam­
bém coparticipante da glória que há de ser revelada:
V. 2: pastoreai o rebanho de Deus, [confiado] a vós, cuidan­
do dele não como por coação, mas espontaneamente.

™ Cf. Sir 24.8; A rist 16; 2M ac 1.24; 7.23; 4M ac 5.25; 11.5; Filo, S pecLeg 1,30 e
outros.
™ Sobre a criação já havia sido falado em 1.20, no contexto da prom essa de que o
plano salvífico de Deus já havia sido estabelecido por ele “antes da fundação do
mundo”, razão pela qual também aponta para além da sua nulidade e transitoriedade.
V. acima o excurso 4: Alm a e salvação das almas na IPe, p. 84ss.

200
como corresponde a Deus, não por sórdida ganância,
mas de boa vontade,
V. 3; não como opressores daqueles que vos foram confia­
dos, antes, tornando-vos modelos do rebanho.
V. 4; Assim, quando aparecer o protótipo de todo oficio de
pastor^'^^, recebereis a imarcescível coroa da glória.
V. 5: Do mesmo modo, vós mais moços, sede submissos aos
que são mais velhos. Todos juntos, cingi-vos em vossas
relações mútuas com a humildade, porque Deus “re­
siste aos soberbos, mas aos humildes concede graça”.

*Literatura sobre IPe 5.1-5: NAUCK, W. Problème des frühchristlichen Amtsver-


stándnisses. I Ptr 5,2 f. ZNW 48, p. 200-220, 1957.

O problema da autoridade na comunidade, a relação entre os diri­


gentes “mais idosos” (presbiteros) e os membros e a obediência dos
“mais moços” são assuntos tematizados particularmente mais ao fi­
nal da carta em 5.1-5. Nesse contexto é solicitado aos “mais jovens”
que se submetam aos “mais idosos”. Essa repetição da palavra-chave
ÚTOráooeoGai,, central já para a parênese de 2.13 - 3.7, pode induzir
com facilidade a que se leia esse texto somente como uma continua­
ção intracomunitária das instruções sobre obediêneia e subordina­
ção de 2.13 - 3.7, interpretando-o dessa forma só como mais um exem­
plo para a ética repressiva da IPe.^"^^ Tal interpretação, porém, violen­
ta o trecho e, com ele, toda a IPe. Sobre as instruções em 2.13 - 3.7 -
formuladas com vistas, sobretudo, à relação para com superiores não-
cristãos - era característico que inicialmente a palavra era sempre
dirigida aos subordinados e que essa subordinação era fundamenta­
da teologicamente de forma exaustiva. Praticamente não foram con­
sideradas ali as obrigações dos superiores; unicamente na terceira
recomendação encontrou-se, conectado com óiíolcoç, uma exortação
adicional aos homens para um comportamento atencioso (3.7). Con­
siderando-se a necessidade de corroboração da vida cristã num en­
torno hostil, a ênfase das recomendações incidia totalmente sobre a
aquiescência dos subordinados, sobre a sua obediência consciente
“por causa do Senhor” (2.13), assim que era precisamente nessa liga­
ção que se corroborava a liberdade cristã (2.16). As exortações de 5.1­
5 são elaboradas de maneira contrastante; no seu centro encontram-

™ Sobre a fundamentação para essa tradução, v. abaixo em 5.4.


Isso, p. ex., é típico para a pesquisa de Balch, que não se detém em nenhuma parte
para analisar as particularidades desse trecho, apresentando-o tão-somente como mais
um exemplo para a pretensa ética de submissão da IPe; cf. BALCH, 1981, p. 98: ‘“Be
subm issive’ might be viewed as the superscript o f the whole code [“Subordinai-vos”
pode ser considerado como o sobrescrito de todo o código] (2:13, 18; 3:1, 5; cp. 5:5)”.

201
se diretrizes para o uso correto do poder. Isso deve ser considerado
tanto mais já que, justamente no tempo da segunda e terceira gera­
ções das Cartas Pastorais até as de Santo Inácio, se percebe a tendên­
cia a compensar, por meio de fortalecimento decidido da hierarquia,
o vácuo de poder e as diferentes turbulências daí resultantes'^"*"* de­
pois do desaparecimento (natural ou violento) das personalidades lí­
deres da primeira geração, assegurando dessa maneira a unidade da
igreja contra as forças centrifugais atuantes. Tendo em vista uma dis­
puta declarada por poder dentro da comunidade de Corinto, p. ex., a
Primeira Carta de Clemente, só um pouco mais recente que a IPe, faz
remontar a hierarquia eclesial diretamente a Deus, passando por cima
do apóstolo e de Cristo (IClem 42.1-5). Além disso, os detentores de
cargos são legitimados adicionalmente por meio da concepção de uma
sucessão apostólica (44.Is). De maneira análoga, a carta pede:
“Subordinai-vos aos mais idosos/presbíteros” (57.1), e acrescenta ao
mesmo tempo a exigência; iiáGere ÚTroTáoaeoBKi, “aprendei a vos subme­
ter!” (57.2). É provável que esse desenvolvimento tenha sido inevitá­
vel, e a IPe também participa dele, embora - em relação a outros es­
critos do cristianismo primitivo - com uma sensibilidade notória para
os perigos do poder'’"*® e para a necessidade de uma orientação teológi­
ca para as lideranças.

V. 1 Mais uma vez um trecho inicia com TTapaKaA,c5, como em 2.11.


Também isso não representa tom de exigência; o autor coloca-se como
“copresbitero”, no mesmo nível dos “presbíteros” para os quais escre­
ve, sendo que o termo ouinTpeopúxepoç provavelmente seja de sua própria
autoria.^"*® Talvez nesse ponto o autor real esteja caindo fora de sua
ficção de ser o apóstolo, passando a falar como aquele que de fato é,
como presbítero cristão.^"*^^ Como quer que seja - de qualquer forma
ele desiste de reivindicar autoridade apostólica (uma possibilidade
que também seria real numa autoria ficcional), colocando-se em pé
de igualdade com seus destinatários. “Fica claro, assim, que se trata
de um termo inclusivo que, em vez de realçar sua autoridade, enfatiza

™ Essas turbulências referiam-se, por um lado, a perguntas teológicas, como se pode


observar no Novo Testamento nas polémicas extremamente intensas contra os hereges
na Carta de Judas, na Segunda Epístola de Pedro (2Pe 2), bem como nas cartas do
Apocalipse (Ap 2-3), e, por outro, a perguntas sobre a conduta de vida e ética (cf. Mt
7.15ss; 24.11s; 2Tm 3.1-5)
Essa sensibilidade já havia se evidenciado tam bém na parénese aos escravos; v.
acim a em 2.18ss.
A IP e tem predüeção pela formação de tais palavras com -oúv (3.7; 5.13), que sublinham
a união; cf. ELLIOTT, 2000, p. 806; “O termo único sym presbyteros [...] não ocorre
em nenhum outro lugar na literatura grega e representa outro neologismo do autor”.
Sobre esse titulo e sua im p ortân cia no m undo circu nvizin ho greco-rom ano, cf.
CAM PBELL, R. A. T h e E ld e rs . Seniority W ithin Earliest Christianity. Edinburgh,
1994.

202
sua empatia com os mais idosos no que concerne à sua tarefa.
Isso também pode ser lido como exemplo para a “humildade”, que
vem a ser a meta de toda a exortação (5.5b; cf. 5.6). Ao mesmo tempo,
o autor dá a entender que também ele é detentor de um ministério
eclesiástico de l i d e r a n ç a . S u a segunda reivindicação é a de ser
testemunha dos sofrimentos de Cristo. Caso se queira compreender
essa referência no sentido de um testemunho ocular da paixão, ha­
vería não só a dificuldade histórica de que Pedro, segundo as narra­
tivas de todos os evangelhos, justamente não esteve presente na pai­
xão, mas também o problema argumentativo ainda maior, ou seja, que
os motivos para a ausência do testemunho ocular - a negação e a
fuga do discípulo - pouco contribuiríam para reforçar sua autorida­
de. Nesse sentido, muitos aspectos defendem que p,ápxuç não deva ser
entendido aqui como testemunho ocular da paixão, mas como um
testemunho de ação^®° daquele que “tem comunhão com os sofrimen­
tos de Cristo” (4.13). Como tal, Pedro tem autoridade - especialmente
caso a carta, o que ê provável, esteja relembrando o martírio do após­
tolo na qualidade de escrito pseudepigrafo. Essa interpretação de papiuç
também combinaria melhor com a explicação introduzida com ò kocí,
segundo a qual a testemunha dos sofrimentos de Cristo é, simulta­
neamente, “participante” de sua glória futura, pois o nexo entre os
próprios sofrimentos pelos quais se tem que passar e a glória que em
função deles é concedida, resp. prometida, é explicitamente apresen­
tado diversas vezes na carta, seja em relação ao próprio Cristo (1.11,
21), seja também em relação aos seus seguidores (4.14s; cf. 2.19). Os
irpeolliJTepoL interpelados devem “pastorear” o rebanho de Deus; trata-
se, pois, de pessoas em posições de liderança. Como tais, elas são men­
cionadas com especial frequência nos Atos dos Apóst olo s.D ife re n­
temente das Cartas Pastorais^®^, na IPe os presbíteros são os únicos
“detentores de cargos” citados explicitamente.’’®® Sua atuação em 5.2,

™ DAVIDS, 1990, p. 176.


749 STUH LM ACH ER, P. B ib lis c h e T h e o lo g ie d es N e u e n T e s ta m e n ts . G öttingen, 1999.
Bd. 2; Von der Paulusschule bis zu r Johannesoffenbarung, p. 79.
Cf. STRATHMANN, H. Verbete [iáptuç ktà. In: ThW NT. Stuttgart, 1966 (= 1942). v. IV,
p. 499; “u m a p a rtic ip a ç ã o p e s s o a l, a sa b er, n os s o frim e n to s de C r is to ” ;
semelhantemente MICHAELIS, W. Verbete iráoxco ktã . In: ThW NT. Stuttgart, 1966 (=
1954). V. V, p. 934; CAM PENHAUSEN, H. v. D ie Id e e d es M a rty riu m s in d e r a lten
K irch e. 2. ed. Göttingen, 1964. p. 63-65; BROX, 1993, p. 229s.
’■=1 At 11.30; 14.23; 15.2, 4, 6, 22s; 16.4; 20.17; 21.18.
Em IT m 5.17-23, eles são citados ao lado de bispos (3.1-7) e diáconos (3.8-13).
Como os bispos (3.5), também eles têm funções de direção, sendo que se esforçam
especialm ente na “palavra e no ensino” .
Poder-se-ia perguntar, quando m uito, se o “pastor” e “bispo” Cristo em 2.25 faz
alusão im plicita a cargos eclesiásticos.

203
porém, também é designada de èiuaKOTreuv, o que indica que a diferen­
ciação dos cargos está recém começando nessa épocaJ®“*

V. 2 A asseveração da unidade entre o remetente e os mais idosos no


V. 1 forma a introdução para o pedido de pastorear o rebanho de Deus.
A imagem do pastoreio como metáfora eclesiológica é tão tradicional
como a do rebanho.’’^® O mesmo vale para o motivo do pastor (cf. SI
23[22]). Na IPe, Cristo já havia sido descrito em 2.25 como o pastor
das almas; no v. 4, mais uma vez se faz também referência ao seu
exemplo. Antes, no entanto, é descrito mais detalhadamente, em três
antíteses, o que significa pastorear o rebanho de Deus. A primeira
pede que não se exerça a direção da comunidade de maneira força­
da, mas de livre vontade. Ao que parece, já naquela época as pessoas
aptas nem sempre eram necessariamente aquelas que também esta­
vam dispostas a assumir um cargo Além disso, detentores de car­
gos de direção também se encontravam mais expostos e sob maior
perigo em caso de medidas tomadas contra cristãos. A referência ao
fato de tal realização do ofício por livre vontade corresponder a Deus
(Ktttà 0eóy) soa como adendo (sendo, talvez, em razão desse fato omiti­
do pelo texto majoritário); mas ela originalmente deve ter feito parte
do enunciado e deixa claro - em alusão ã designação da comunida­
de como rebanho de Deus no mesmo versículo - que se trata da causa
de Deus para a qual a gente se coloca ã disposição por meio do servi­
ço na c o m u n i d a d e . O pedido para que se assuma uma tarefa de
liderança nesse rebanho recebe dessa forma, pela dupla alusão a Deus,
uma ênfase adicional. Na segunda antítese, o acento desloca-se para
a possibilidade do mau uso do oficio. Já que os detentores de um
oficio de direção nas comunidades aparentemente recebiam certa
forma de compensação’^®®, existia sempre o perigo de que esses ofícios
fossem aceitos em função das vantagens materiais e das comodida-

Na Carta de Tito, bispos e presbíteros ainda parecem significar a mesma coisa (cf. Tt
I . 5 com 1.7); em Atos o quadro é semelhante (cf. At 20.17 com 20.28).
No A n tigo Testam en to, cf. J r 23.1ss; Ez 34.2ss; Zc l l . l õ s s ; SI 7 9 [7 8 ].1 3 ; em
Qumrã, CD XIII.7-12 e IQ S VI. 12, 20; o paralelo mais claro no Novo Testam ento é
o pedido três vezes feito pelo Jesus ressuscitado a Pedro em Jo 21.15-17: ßooKt,
resp. noí|oai.ve xà tTpópaTct pou; cf. ainda At 20.28 ou a aplicação da parábola da ovelha
perdida em Mt 18.12-14 à situação da com unidade. No Antigo Testam ento, essa
imagem pertence ao pensamento do povo de Deus (cf. WOLFF, 1975, p. 336).
De um a época mais tardia, poder-se-ia citar como exemplo Agostinho, que iniciou
muito a contragosto seu cargo de bispo em Hippo Regius.
Cf. H EC KEL, U. H irte n a m t u n d H e rrs ch a fts k ritik .. Die u rch ristlich en Ä m ter aus
johan neischer Sicht. Neukirchen, 2004. p. 53: “ O genitivo toö 0eoO destaca Deus
como proprietário, perante o qual os presbíteros devem responsabilizar-se e em cuja
vontade necessitam se orientar” .
Já Paulo pressupõe o fato com o n atural (IC o 9.9ss; cf. tam bém M t lO .lO p a r.),
m esm o que ele próprio ten ha desistido desse direito por diversas vezes (cf. 2Co
I I . 8; Fp 4.10),

204
des^5®, um problema também conhecido das Cartas Pastorais (ITm 3.3,
8; Tt 1.7) e da Didaqué (15.1), contra o qual elas procuram prevenir. A
IPe contrasta a “sórdida ganância” antiteticamente com o pedido de
que a motivação para a aceitação de tal ofício deveria originar-se a
partir do interior das pessoas.

V. 3 Sobre o perigo do abuso do ofício discorre igualmente o terceiro


par contrastante, sendo que agora não se trata do dinheiro, mas do
poder. Também a direção da comunidade concede poder sobre ou­
tros, como mostra o pedido de submissão aos “mais jovens” (5.5a). O
exercício de tal poder, contudo, só é justificado, segundo a IPe, quan­
do se orienta em Cristo. A formulação lembra, pelo emprego da pala­
vra-chave KaxaKupL6ijei.v usada para o abuso do poder, um dito sinótico
de Jesus^®°, no qual ele, referindo-se ã sua própria doação de vida
interpretada como “serviço, rejeita categoricamente a forma usual de
domínio como subjugação no relacionamento dos cristãos entre si,
colocando em seu lugar o s e r v i ç o . A “subjugação”^®^ é contrastada
aqui com um comportamento de liderança que - cunhado pelo pró­
prio Cristo - agora, por sua vez, procura, por meio da exemplaridade
do próprio comportamento, cunhar o “rebanho” (túitol yivó\i.ívoi toO
TiOLUVLou) e dirigi-lo de forma correspondente. Essa concepção de lide­
rança encontra-se difundida no Novo Testamento. O próprio Jesus
sempre se colocou como exemplo (Mc 10.42-45; Lc 6.40; Mt 10.24s;
Jo 13.16; 15.20), podendo-se constatar o mesmo também em Paulo
(ICo 11.1; Fp 3.17) e em sua escola (2Ts 3.9).^®^ O termo KA,f|poç (lite­
ralmente; “sorte, parte”; daí vem nossa palavra clero), em virtude da
paralelização com o iroipyLoy no v. 2, provavelmente designe a parte da
comunidade atribuída a cada um dos “mais idosos”.

V. 4 A orientação da liderança comunitária em Cristo é sublinhada


pela designação de Cristo como àp^Ltroípriy (5.4). Esse termo não se
encontra nem na LXX nem em outras partes do Novo Testamento; a
tradução usual de àp^LiroLpriy por “supremo pastor”'^®'* é possíveF®®, mas

Cf. a descrição em Luciano (PergrMort 11-13), segundo a qual Peregrinus se tornou


temporalmente cristão e alcançou destaque como figura de direção, vindo a receber
consideráveis ganhos na qualidade de “profeta, tiasarca e mestre de sinagoga” .
Mc 10.42par.; a palavra-chave KaTaKvpi-eúeLV encontra-se, além de Mc 10.42par. Mt
20.25, só ainda em At 19.16 e IP e 5.3.
A negação objetiva oúx, em pregada em Mc 10.43, sublinha que essa possibilidade
está excluída.
Segundo BAUER, 1988, p. 838, o significado de K«TaK\jpi.eúeLv é; “ 1. tom ar-se senhor,
dominar, subjugar, reprim ir [...] 2. ser senhor, dom inar (com bm talidade)” .
C f DAVIDS, 1990, p. 181.
BAUER, 1988, p. 226.
O termo só se encontra em 4Reg 3.4 o bem como em TestXII.Jud 8.1, aí para o pastor
líder. Esse é possivelm ente tam bém o significado do título sobre um a tabuleta de

205
acentua por demais unilateralmente, nesse eontexto da IPe, o cará­
ter de poder, não esclarecendo que no termo àp^ií (latim: prinãpium)
não se encontra só o pensamento do dominio, mas também e até em
primeiro lugar o da origem determinante, ou seja, um momento
normativo. Cristo como àpxLTToípT|y é mais do que unicamente o “che­
fe” de todos os pastores; como o “bom pastor” que se sacrifica a si
próprio pelas suas ovelhas (2.21-25; Jo 10.1 Iss; cf. 21.16; Hb 13.20),
ele é protótipo, “arquétipo” de todo o ministério pastoral, qualificado
como convívio alternativo, “de serviço”, com o poder dado em confian­
ça sobre outras pessoas.^®®

Para tal condução do ministério orientada na protoimagem de Cristo


vale também a promessa da glória. O motivo da ôó^a como expressão
para a distinção concedida na parúsia àqueles que seguiram a Cristo
no sofrimento e que, por isso, serão glorificados como ele próprio foi
(1.11, 21; 4.13), caracteriza toda a carta (1.7; 4.13s; 5.1, 10). Aqui ele
ainda é reforçado pela metáifora da grinalda e coroa^®^, que faz refe­
rência à honra ao mérito esportivo ou militar, além de deixar ressoar
mais uma vez o motivo paulino da vida cristã como uma batalha^®®,
talvez não por acaso justamente na área do poder, em que a incidên­
cia de risco é maior! A correspondência com a honra ao mérito espor­
tivo ou militar é, ao mesmo tempo, superada na medida em que essa
coroa é designada de “imarcescivel”. Também nesse ponto a carta faz
uso de uma imagem de Paulo (cf. ICo 9.25), embora estabeleça si­
multaneamente em 1.4 uma relação com a “herança imareescível”^®®,
sublinhando assim, referindo-se ã soteriologia da primeira parte prin­
cipal, que também a relação dos cristãos com o poder não é mera
questão “terrena”, mas que, ao contrário - justamente por se tratar do
“rebanho” do povo de Deus -, tem implicações para a salvação.

V. 5a A essa exortação aos mais idosos segue-se, introduzido por


ó|aoLO)ç, como em 3.7, o pedido conciso aos mais moços de submete­
rem-se aos “mais idosos” (5.5a). Dentro das pressuposições citadas
existe, portanto, uma hierarquia seguramente também na comuni­
dade cristã. Por quem são constituídos os dois grupos? Uma vez que
os TTpeapÚTepoL em 5.1 eram detentores de cargos e que nos versículos

m adeira do tempo dos imperadores, colocado ao redor do pescoço de um a m úm ia


para posterior identificação (cf. DEISSMANN, 1923, p. 77-79; Abb. 9, f., p. 78).
Significado semelhante possuem também as explanações sobre o pastor verdadeiro
em contraste com o “servo assalariado” de Jo 10.1-18; com um realce soteriológico,
o motivo do pastor igualmente se encontra em Hb 13.20.
Cf. Tg 1.12; Ap 2.10; 3.11 e outros; TestX ll.Ben 4.1; Asis 7.22; 8.26 e outros.
™ Cf. esp. IC o 9.24s; 2Co lO.Sss; também Fp 3.14; IT s 5.8; Rm 13.12; E f 6.10-17;
IT m 6.12 e outros.
™ Cf. esp. 1.3s, 18-20, 23-25.

206
entre 5.1 e 5.5 o assunto girou em torno do referido cargo, uma mu­
dança abrupta de significado no sentido único de “mais idosos” bio­
logicamente não seria convincente nesse momento. Se os “mais ido­
sos” são dirigentes comunitários, quem então são os “mais jovens”?
Possivelmente o termo se refira a um grupo especial e, nesse caso,
dever-se-ia pensar preferencialmente nos novos b a t i z a d o s . M a s tal
interpretação parece forçada. Se até agora o assunto girava em torno
da relação dos irpeopúiepoL com todo o “rebanho de Deus”, por que, no
caso da subordinação, haveriam de ser interpelados unicamente os
novos batizados? Contudo, se a exortação diz respeito a todos os que
não são dirigentes comunitáirios - por que então a designação de “mais
moços”? Uma explicação possível poderia ser que aqui na IPe foi in­
corporada uma peça da tradição que solicitava a subordinação dos
mais moços aos mais idosos e que a isso acabou se dando uma impor­
tância especial em razão do relacionamento contextuai com os pres­
bíteros, sem que se pudesse identificar os “moços” com um determi­
nado g r u p o . É provável que tal processo possa ter sido favorecido
pelo fato de constituir o termo “ancião” uma titulação de honra na
antiguidade, designando uma posição de destaque, relativamente
independente de idade biológica.^^^ Assim, a recomendação aos mais
novos deveria ser relacionada complementarmente com os cristãos
restantes’’^^, aos quais cabe obedecer e prestar especial consideração
aos que são os seus detentores de ofícios; coisa semelhante já se pode
ler também em Paulo (cf. ITs 5.12s; ICo 16.16).

Importante é que se veja, em especial aqui, onde o pedido por subor­


dinação agora também é acatado dentro do âmbito comunitário, si­
multaneamente as diferenças que acima já foram insinuadas. En­
quanto em 2.18-3.7 todo o peso residia na instrução para a subordi­
nação, aqui o acento recai claramente sobre as instruções para o cor­
reto relacionamento com o poder recebido e o alerta contra o abuso da
autoridadeJ'^'^ O “ser-diferente” dos cristãos com certeza se exterioriza.

™ ELLIOTT, J. H. M inistiy and Church Order in the NT. A Traditio-Historical Analysis,


1 Pt 5,1-5 & plls. C B Q 32, p. 379ss, 1970; ELLIOTT, 2000, p. 838: “recent convert”
[recém convertidos).
Assim BROX, 1993, p. 234s.
Posição de destaque também assinala o termo Tipeapúrepoç como designação para a
aristocracia leiga (ao lado dos representantes das famihas dos sumos sacerdotes, os
àpxiepeli;) nas histórias sinóticas da paixão.
™ Cf. WINDISCH, 1951, p. 79; GOPPELT, 1978, p. 331. Notório é o paralelo na Primei­
ra Carta de Clemente, redigida um pouco mais tarde, onde o tumulto na comunidade
é condenado, entre outros motivos, também por ser tumulto dos véoL contra os nptopúrepoi,
(IC lem 3.3), sendo que se conclama à subordinação aos irpeopútepoL (como detentores
de cargos) (57.1).
™ Com isso combina também que o autor da carta, que nessa exortação refere-se uni­
camente a si próprio, não apela para sua autoridade como apóstolo (independente­
mente do grau de legitim idade que houvesse para tanto), mas faz uso da palavra

207
para a IPe, numa ética que se diferencia decididamente do relacio­
namento em geral tido como normal com o poder; o exercício de po­
der precisa permitir que possa ser medido pelos critérios que, de modo
geral, valem para o convívio mútuo dos cristãos. Em 4.8-11, essa ati­
tude havia sido caracterizada como amor e serviço, agora ela é - como
já em 3.8 - esboçada como xaireLvoctjpooúyri.

V. 5b Por duas vezes IPe 5.5b fala de TaneLvoetipooúvri, resp. t (xïï6lvôç, a fim
de caracterizar agora na exortação a todos a “humüdade” como o com­
portamento que corresponde à vontade de Deus na relação com o po­
der. Tal TaireLvoct)poaúi/r|> literalmente, “a mente direcionada para coisas
pequenas”, “automoderação”, “autorrebaixamento”, é um termo rele­
vante numa época para a qual o ideal é a autonomia do indivíduo. A
partir dessa perspectiva, axareivocljpoaúi^T) é rapidamente identificada com
autorreducionismo desprezível, seja por coação religiosa, seja por hi­
pocrisia, que, em verdade quer o contrário, como, p. ex., Nietzsche insi­
nua em relação ao etos cristão: “quem se humilha a si próprio quer ser
exaltado”. T a l entendimento, contudo, não faz jus à concepção bí-
bliea do ser humano, que o compreende de forma consequente a partir
da sua ligação com Deus^^®, e que entende a aceitação existencial dessa
ligação como vocação humana, que não diminui seu valor, mas antes
de mais nada o fundamenta pela relação com Deus.

Excurso 10: “Humildade”/xaTTeLvoc})pooiJvr|


Já n a antiguidade encontra-se a crítica ã postura da xaiiei.vo(t)pooúvTi. O
estoico Epiteto a condena como mentalidade subserviente originária de u m a
falsa orientação de existência.’^'^'^ O platônico médio Plutarco, por sua vez, acu­
sou o relacionamento com D eus determinado pelo medo (õeioiõaLpovLa, latim:
superstitió) pelo fato de que esse “rebaixaria” e “esmagaria” o ser humano, sen­
do por isso ainda pior que a indiferença do ateísmo.^''® Alguns decênios mais
tarde, esse é um dos pontos pelos quais Celso ataca diretamente os cristãos:
“Quem se humilha [sc. entre os cristãos], humilha-se sem postura e dignidade,
jazendo sobre os seus joelhos n a poeira e jogando-se imprudentemente sobre o

“como copresbítero e testem unha dos sofrimentos de Cristo”, ou seja, como corres-
ponsável e cossofredor.
Assim, num a correção debochada de um dito de Jesus (NIETZSCHE, 1980, p. 87:
“Lucas 18,14 verbessert” [Lucas 18.14 melhorado]).
Cf. ZIMMERLI, W. D a s M e n sch en b ild des A lte n Testam ents. München, 1949. p. 16;
“O Antigo Testamento conhece o ser humano em seu ser proto-original só como ser
chamado à existência pelo Deus único. Ele desconhece um ser humano que pudesse
ser também entendido à parte desse Deus” . De maneira análoga, “felicidade [...] é a
p a rtic ip a ç ã o do ser h u m a n o no lo u v o r de D e u s ” (S P IE C K E R M A N N , H. D er
theologische Kosmos des Psalters. B T h Z 21, p. 73, 2004).
Epict, Diss 111,24,56.
Plut, Superst Í65B.

208
rosto, trajado de vestimenta miserável e espalhando cinzas sobre si próprio”/™
Pressuposto para essa critica é um a concepção do ser humano cujo ideal vem a
ser a autoelevação por meio de superação dos outros, formulado de forma clãs-
sica na palavra de Homero: “ser sempre o melhor, superando todos os demais”/®“
É bem verdade que também o ensoberbecimento inapropriado, a arrogância de
pessoas, p. ex., em relação aos deuses (lippii;; latim: superbia) são criticados,
m as o extremo oposto da autodepreciação era considerado de igual m aneira
indigno de um ser hum ano livre, sendo desprezado como servilismo.
A imagem bíblica teônima do ser humano, ao contrário, não vê no curvar-
se ao poder de Deus a sua autodegradação; esse é, antes, o lugar destinado aos
crentes em relação àquele Deus que é contrário aos soberbos, mas dá graça aos
humildes e os eleva por meio de su a “mão poderosa”, como a sequência em
5.5b-6 sublinha explicitamente. De forma semelhante, no Magrúficat de Maria,
Deus é enaltecido como aquele que dispersou os de coração orgulhoso, mas exal­
tou os humildes (Taireivoúç) (Lc 1.52) - sendo que com “alto” e “baixo” sempre se
tem ambas as coisas em mente, a condição, mas também o comportamento, como
mostra o contraste dos humildes tanto com os poderosos quanto com os “orgu­
lhosos de coração”. Nesse contexto, o destaque especial do Novo Testamento é
que o pedido para a humildade fundamenta-se n a aproximação am orosa e no
autorrebaixamento de Cristo, que a si próprio designou de itpaijç xal xairíLvòç xf|
Kttpôíç:, de “manso e humilde de coração” (Mt 11.29). De maneira análoga, o hino
de FUipenses (Fp 2.6ss) expressa toda a vinda de Jesus Cristo com as palavras-
chave èxavsLycooev éauxóv, ou seja, como autorrebaixamento (Fp 2.8). Segundo o
texto, a existência cristã concretiza-se, para Paulo, no fato de que todo o compor­
tamento dos crentes se adapta a essa nova realidade (Fp 2.5), o que se mostra
justamente pelo fato de a gente não mais se preocupar com o que é seu, mas com
aquilo que serve ao outro (Fp 2.4). Um pouco mais tarde (96 d.C.), a Primeira Carta
de Clemente, nesse mesmo sentido, irá destacar da seguinte forma a imagem
ideal da vida da comunidade cristã por meio de renúncia prograimática ao poder: “É
preferível estar disposto a submeter-se do que a submeter outros”.’^®'
Tendo em vista precisamente a pergunta pelo poder, a carta designa a
humildade como a síntese do comportamento orientado no próprio Cristo: “Pois
Cristo pertence aos hum ildes [xaTreLvocjipoyoíjyxeç], não aos que se elevam acima
do seu rebanho. O cetro da majestade de Deus, o Senhor Jesus Cristo, não veio
com pompa, com arrogância e orgulho, em bora pudesse tê-lo feito, m as com
humildade [xaTrei.yo(|jpoycõy] [...]” (IClem 16.Is; tradução de J. A. Fischer). A partir
daí o caminho até o ideal da humildade não é mais longo - humildade, não como
sujeição servil, mas como resposta dos crentes á própria aproximação amorosa de
Deus no Filho, que passa então, por sua vez, a constituir-se no conteúdo da ação
mútua entre as pessoas”J^^ De maneira análoga, também se encontra nos evan­
gelhos o princípio: “Pois todo o que se exalta será humilhado; e o que se hum i­
lha será exaltado” (Lc 14.11; 18.14; Mt 23.12), um princípio que, em Lucas, real­
ça a dedicação amorosa àqueles que nada possuem para retribuir (Lc 14.13s), e
em Mateus, no serviço mútuo inaugurado por Cristo (Mt 23.11; cf. 20.25-28).

Orig, Cels V I,15. Segundo Celso, trata-se nesse caso de um mal entendim ento de
Platão por parte dos cristãos.
Horn, II VI,208; XI,784; sobre a importância desse “ideal de vida agonístico” (MARROU,
H.-I. G eschichte d er E rzieh u n g im K la ssischen A ltertu m Herausgegeben von R. Harder,
übersetzt von Ch. Beumann. Freiburg; München, 1957. p. 26) para a imagem do ser
humano e a educação no mundo helenístico, cf. ibidem, p. 26s.
IC le m 2.1: úiroxaooóptyoi. pâtlov f| ímoTáoooyTeç.
' GRUNDMANN, W. Verbete taxeLyóç kxA.. In: ThW N T. Stuttgart, 1969. v. VIII, p . 23.

209
Diante desse pano de fundo devem ser interpretadas as recomenda­
ções da IPe para a humildade. No v. 5ba, a atual regulamentação das
relações de poder é mais uma vez excedida pelo pedido a todos para,
em seu relacionamento mútuo, cingir-se de humildade como o es­
cravo se cinge com seu pano^®^, portanto, para preparar-se no sentido
de poder prestar aos “irmãos e irmãs” um serviço orientado em Cristo,
tomando a cl)LAaôeÀ(t)La uma realidade (1.22; cf. 2.17; 4.8ss) e renuncian­
do a tentativas de impressionar e de intimidar a outros. A expressão
ilustrativa usada na IPe, “colocai um nó ao redor de vós” (assim o
imperativo €YKO|iPa5oao0e, literalmente) sublinha que tal alternativa,
quando vivenciada, requer esforço para sua efetivação, trabalho em si
próprio. A ascese cristã (sobretudo no monasticismo) assumiu esse
aspecto da humilitas como postura de vida, criando com isso uma con­
cepção alternativa diante das estmturas de poder sociais, que ques­
tionou o pensamento hierátrquico de forma bem mais fundamental do
que poderia tê-lo feito qualquer rebelião (até mesmo aquela contida
no paradigma do poder).

A solicitação para a humüdade recíproca é fundamentada no v. 5bp


pela referência a Deus que resiste aos soberbos, mas concede graça
aos humildes. Isso sublinha mais uma vez que o local de origem do
pedido pela humildade está no relacionamento com Deus, com o Deus
que não confirma simplesmente as condições de domínio baseadas
no desejo de poder e na habilidade para impor-se, mas que também
pode frustrá-las segundo os seus próprios critérios. A IPe recorre a
esse aspecto de crítica ao poder do Deus bíblico (cf. ISm 2.4-8; Arist
263; Lc 1.51-53) na versão oferecida por Pv 3.34 em razão de poder
introduzir dessa forma a palavra-chave da graça, que havia sido im­
portante ao longo de toda a carta (cf. 1.10, 13; 3.7; 4.10; 5.10), es­
pecialmente também para a nova qualificação teológica da situação
de sofrimento (cf. 2.19s; 5.12). Os versículos seguintes haverão de
referir-se explicitamente também a essa situação de sofrimento e tor­
nar claro, além disso, com o termo-chave da “exaltação”, o que exata­
mente se quer dizer na IPe, em termos de conteúdo, com essa graça.

A transição mostra mais uma vez a peculiaridade deste escrito, que


praticamente não possui inícios abruptos, preferindo conexões e tran­
sições fluentes. É bem verdade que o trecho seguinte de 5.6-11 forma
- sinalizado pelo oCv sumarizante’’®"^ - uma peroratio concisa, na qual

GRUNDMANN, 1969, p. 24. Um paralelo para isso em termos de conteúdo seria Jo


13.4 (cf. Lc 12.37).
Contra BROX, 1993, p. 236, que liga os v. 6s ao trecho anterior.

210
a IPe renovadamente resume e destaca o mais importante."^®® Mas
também esse trecho encontra-se diretamente unido ao anterior por
meio da recepção da palavra-chave “humildade”.

2.3 Exortação final e consolo (5.6-11)

2.3.1 A exortação final (5.6-9)

V. 6: Humilhai-vos, portanto, sob a poderosa mão de Deus,


para que ele vos exalte em tempo oportuno,
V. 7: lançando sobre ele todas as vossas preocupações, por­
que ele tem cuidado de vós.
V. 8; Sede sóbrios, vigiai; vosso adversário, o diabo, anda
em derredor como leão que ruge e procura alguém
para devorar.
V. 9: Resisti-lhe firmes na fé e sabei que sofrimentos seme­
lhantes aos vossos estão atingindo vossos irmãos no
mundo.

V. 6 A palavra-chave “humildade”, tomada do versículo anterior, é


agora empregada de maneira diferente, na medida em que não se
trata mais de renúncia à opressão no inter-relacioneimento pessoal
(mais precisamente, no relacionamento intracomunitário), mas de
humildade perante Deus. Como mostram os versículos subsequentes
7-9, é mais uma vez a situação aflitiva dos crentes que estã sendo
tematizada, que cabe ser aceita como proveniente da mão de Deus.
Se é solicitado dos crentes que se “humilhem” nessa situação, então
também se trata de “enquadrar-se” naquilo que Deus ordenou. É pro­
vável que sobre a “mão poderosa” de Deus seja expressamente falado
como continuação do enunciado sobre a ação de Deus no v. 5b. Com
o poder e domínio de Deus - explicitamente louvados nas duas doxo-
logias (IPe 4.11; 5.11) - a IPe não associa (como, aliás, toda a tradi­
ção bíblica) subjugação, mas proteção^®®; o poder de Deus diferencia-

Cf. UEDING, G. E in fü h ru n g in die Rhetorik. Geschichte, Technik, Methode. Stuttgart,


1976. p. 220: “A Peroratio compõe a parte final de um a fala ou de parte de um a fala
e tem um a dupla finalidade: ela deve, por um lado, resum ir os fatos e pontos de
vista emitidos na fala, e, por outro, ‘dar ênfase com sentenças pertinentes’ à linha
de pensamento da fala, a fim de conseguir ganhar, por meio de efeitos emocionais,
a aprovação do ouvinte aos pontos de vista defendidos” . Embora isso valha inicial­
mente só para a fala oral, não permanece, contudo, reduzido a ela. “Em sua função
como parte final, a P. pode ser transferida para outros gêneros retóricos escritos e
orais, como carta, documento, prédica, textos Hterários, artigo” (MÄNNLEIN-ROBERT,
I. Verbete Peroratio. In: H is to ris ch e s W örterb u ch d e r R h etorik . Darm stadt, 2003. v.
VI, p. 778).
Já em 4.9, a IP e frisava que os sofredores confiam suas almas ao “fiel criador”.

2 11
se do poder humano arbitrário pelo fato de vir em favor dos impoten­
tes Ela o faz à medida que, como acentuado no versículo anterior,
resiste ao poder humano arbitrário, destrutivo e arrasador; ao mesmo
tempo, para os que no presente são humilhados, ela é motivo de espe­
rança, porque Deus os irá exaltar em “tempo oportuno” - uma prová­
vel referência á parúsia.

V. 7 Isso é também sublinhado pelo que segue, comprovado como ex­


plicação do V. 6 já pela construção participial. A submissão à “poderosa
mão de Deus” possibilita “lançar” sobre esse Deus todas as preocupa­
ções, como é dito de forma drástica, possibilitando dessa maneira que
seja possível “des-preocupar-se” em relação às próprias cargas. Essa
promessa encontra-se mais vezes no Novo Testamento (cf. Mt 6.25-34;
Fp 4.6). A IPe, com maestria, condensou-a numa sentença - acatando
para isso Hnguagem bíblica (cf. SI 55[54].23) -, sendo que a promessa
do Salmo ainda é reforçada pela referência à proteção divina, que lem­
bra Mt 6.26, 28: irepl qiúu acentua que os crentes estão no coração
desse poderoso Deus, que ele se preocupa com eles e cuida deles.

V. 8 Ainda mais explicitamente que nos versículos anteriores, os v.


8-9 tematizam a situação aflitiva dos crentes. Essa situação é
introduzida com a dupla exortação: “sede sóbrios” e “vigiai”. A metá­
fora da vigilância aparece seguidamente no Novo Testamento^®®; a da
sobriedade, só em algumas passagens; o paralelo mais próximo de
IPe 5.8 é ITs 5.6, onde igualmente há o paralelismo das exortações
para a sobriedade e vigilância. O sentido da dupla exortação depreen­
de-se do seu contrário: quem está bêbado, resp. quem dorme, perde o
contato com a realidade, não consegue aperceber-se de perigos amea­
çadores e perde sua capacidade de juízo em relação aos fenómenos
que ocorrem; ele troca a fantasia pela realidade, é enganado com fa­
cilidade, sendo, por isso, também carente de ajuda e vulnerável. Exa­
tamente isso é transferido para uma postura que, de tão absorta que
se encontra pela realidade que jaz diante dos seus olhos, perde a
visão de Deus e por isso não mais conta com ele no mundo, com uma
palavra, o suprime. Em oposição a isso, vigiar e ser sóbrio caracterizam

T am b ém n esse detalh e a IP e acata um aspecto da im agem de Deus do Antigo


Testamento. Pelo fato de esse Deus colocar de pernas para o ar a ordem hierárquica
estabelecida do mundo, ele se tom a em refugio para aqueles que por si próprios são
fracos e oprim idos (cf. IS m 2.3-8).
A exortação à vigilância encontra-se, por um lado. nas parábolas escatológicas (Mc
13.33-35par.; Lc 12.37; 21.34-36; Ap 3.2s), e, por outro, na aflição da paixão (Mc
14.38par.) ou do tempo final (Ap 15.15). Em Paulo, “vigiar” é sinônimo para uma
orientação da vida em Deus (IC o 16.13; cf. Cl 4.2), sendo que o aspecto escatológico
parcialm ente ressoa junto de form a explicita (IT s 5.6). Mais tarde, acrescenta-se a
“vigilância” contra os hereges (At 20.31).

212
uma postura que não se deixa iludir em vista da aparente evidência
daquüo que se encontra diante dos olhos, mas persiste em ver o pre­
sente à luz do futuro de Deus e em viver de forma correspondente.

De forma impactante, essa exortação à sobriedade e vigilância é fun­


damentada com a referência à mortal ameaça do diabo, que, tal qual
o predador par excellence, o leão que vai à caça (protegido pela noite
e, por isso mesmo, não visível?), ataca e devora os desatentos. Deve-se
observar que aqui - e só aqui - se fala sobre o diabo na IPe. Isso
corresponde aos objetivos da peroratio que, por meio de ênfase
linguística crescente, procura inculcar o mais importante no ouvin­
te/leitor. O diabo ê o inimigo máximo dos que creem; aqui ele inclu­
sive é designado explicitamente com um hapax legomenon do Novo
Testamento como “vosso adversário”. P o r outro lado, deve ser ob­
servado que tudo o que até agora foi designado como mal, sejam as
hostilizações de fora ou os perigos de dentro (da comunidade, bem
como dos indivíduos), foi designado concretamente como concupis­
cência, pecado, prática do mal, astúcia, hipocrisia, etc., não tendo
havido necessidade de recorrer à personificação do mal. O diabo tam­
bém não é empregado para a demonização dos perseguidores; a esses
os cristãos devem, ao contrário, como a todas as pessoas, tratar com
honra (2.17). Essa reserva diante do diabo corresponde em sua es­
sência ao que se encontra na Bíblia como um todo, em que o diabo,
ao contrário do que se associa seguidamente’^®° com ele, não se en­
contra a serviço de uma explicação do mal em si por meio de um
princípio antidivino próprio.

Excurso 11: Diabo/Satanás

No Antigo Testamento, o diabo/Satanás praticamente não desem penha


nenhum papel. A maioria dos escritos e também os mais importantes dentre eles
(Pentateuco, Salmos, profetas’^®*) não o conhecem. “Satanás” aparece pela primei­
ra vez n a m oldura do livro de Jó (Jó 1.6-12; 2.1-7). Ali ainda é parte da corte
divina, por assim dizer um promotor celeste, que, aliás, já é preferencialmente

O àvTLÔLKoç é, na verdade, o opositor num processo (cf. Mt 5.25par.; Lc 12.58); aqui


provavelm ente há um a referência ao acusador de Jó 1.6ss, sendo que o raio de
significação de äi'tiöi.KOi; eventualmente já se ampliou para o significado de adversário
em geral (cf. BAUER, 1988, p. 147). Como designação para o diabo, a literatura
bíblica só faz uso desse termo aqui em IP e 5.8.
Cf. sobre isso, FE LD M E IE R , R. E u er W id ersach er, der Teu fel. Frü h ch ristlich e
Konzeptionalisierungen des Bösen am Beispiel des 1. Petrusbriefes. In: RITTER, W.
H.; SCHLUMBERGER, J. A. D a s B öse in d e r Geschichte. Dettelbach, 2003. p. 61-76;
sobre a concepção popular do diabo como uma espécie de antideus do mal, veja os
testemunhos iconográficos, ibidem, p. 75s; sobre a crítica a isso, cf. ibidem, p. 62s.
A única exceção é Zc 3.1s.

213
responsável pelos lados obscuros da realidade, em razão de suas perguntas
tentadoras e do seu poder sobre morte e doença. Isso favorece então su a
gradativa exclusão da esfera da ação de Deus. Elucidativo nesse sentido é o
primeiro texto, em que “Satanás” aparece claramente como figura que age de
forma má e autônoma. Trata-se da história do censo ordenado por Davi, da qual
nos foram transmitidas duas versões distintas; um a mais antiga em 2Sm 24.1,
e outra mais recente em IC r 21.1

2Sm24.1: IC r 21.1;
E a ira do Senhor acendeu-se novamente E Satanás se levantou contra
contra Israel, e ele incitou a Davi contra o Israel e incitou a Davi a
povo e falou: vai, levanta o censo de Israel levantar um censo de Israel.
e de Judá. (Tradução: Lutero) (Tradução; Lutero)

No lu gar de D eus, m ais precisamente, de su a ira^®^, surge, n a versão


posterior da história, Satanás como deflagrador do censo. O texto de 1Cr 21.1 é
também o primeiro que não emprega mais o artigo em Satanás, como ainda é o
caso em Jó Is e Zc 3.1. Satanás tom ou-se aqui nome próprio para o opositor
divino. U m a ocorrência semelhante encontra-se no Livro de Jubileus, onde o
ataque de D eus a Moisés (Êx 4.24) é substituído por um ataque de Mástema (Jub
48.2). Os escritos posteriores aparentemente estão interessados em tirar de
D eus mesmo a responsabilidade pelo mal. O que favoreceu também a formação
de u m a concepção de Satanás foi talvez o dualismo da religião persa, que distin­
gue entre um deus bom e outro mau. De qualquer maneira, estabeleceu-se no
judaísm o incipiente um a figura do diabo, designada por diversos nomes, como
Satanás, Beelzebul, Belial/BeUar, Sammael, etc., e que aparece em vários es­
critos como adversário de Deus, o que pode chegar até a um verdadeiro dualismo
em certos rolos de Q um rã - mesmo que, a bem da verdade, seja o próprio Deus
que permite a existência desse adverséirio (cf. IQ S III. 13 - IV. 18), o que faz com
que su a atuação também esteja escatologicamente limitada (cf. IQ S IV. 18-26).
Mesmo nesse caso extremo, estava-se, portanto, empenhado em subordinar ao
monoteísmo bíblico a tendência inerente ao dualismo na concepção do diabo.
Pela história da tentação no início dos sinóticos fica claro que a atividade
pública de Jesus encontrava-se determinada desde o início pelo confronto com
o mal, corporificado em Satanás (Mc 1.13; Mt 4.1-11; Lc 4.1-13). O papel que
desempenha o diabo a seguir, no entanto, é secundário. É verdade que Jesus
por vezes pode fazer alusão á ação satânica (Mc 4.15; Mt 13.39; Lc 8.12; 10.18;
13.16; 22.31), embora n a maioria das vezes o poder destrutivo seja designado
particularmente de pecado, doença, possessão, obstinação, etc., sem que haja
necessidade de recorrer ã figura de um adversário antidivino. N a literatura
epistolar, a situação é semelhante. Nela, sem exceção, é pressuposta a exis­
tência do diabo/Satanás, geralmente para prevenir contra o perigo que correm
os crentes (IC o 7.5; 2Co 2.11; 2Ts 2.9; E f 4.27; ITm 3.6s; Tg 4.7; IPe 5.8), às
vezes também para caracterizar o âmbito exterior ã comunidade (IC o 5.5; ITm
1.20; 5.15; 2Tm 2.26) ou para interpretar de forma genérica u m a experiência
hostil da resdidade feita pela comunidade ou por pessoa isolada (2Co 12.7; ITs
2.18; IJo 3.8-10). Mas também nesses casos a importância do diabo é limitada.
N a Carta aos Romanos, p. ex., que tem tanto a dizer sobre o problema do pecado
e do mal no mundo, a única referência a Satanás encontra-se n a asseveração

Já isso representa uma diferenciação que não identifica por completo essa ação com
Deus.

214
consoladora ao final da carta; “E o Deus da paz em breve esm agará a Satanás
debaixo dos vossos pés” (Rm 16.20; cf. Hb 2.14).
Num exame cuidadoso, mais um a coisa cham a a atenção no diabo/Sata­
nás: ele não possui - ao contrário de Deus - um nome pessoal. Os nomes que
conhecemos identificam, antes, seu detentor como personificação de u m a de­
terminada atividade: Satanás significa “acusador”; diabo (ÔLaPoloç), “difamador”;
Befial, “m aldade” ou “perversidade”; e o Sammael rabínico deve ser traduzido
provavelmente por “princípio de veneno”. A s s i m como falta ao diabo o nome
pessoal^®“', faltam-lhe também história e individualidade. Foi somente a especu­
lação que tramou um a história pessoal para o diabo a partir de Ez 28.11-19, a
palavra de juízo sobre o rei de Tiro.’'®^ N a Biblia não se encontram tais pressu­
posições de um a pessoalidade em relação ao diabo. À semelhança da falta dos
nomes nos demônios, a nomeação do oponente de D eus com u m a designação
de função é indicação de que esse não tem personalidade em seu sentido real,
sendo somente “funcionário”, personificação de um modo de agir do mal”.
Esse modo de agir tem como propósito a destruição da relação do ser huma­
no com o Deus único. Ele pode residir, p. ex., no fato de confundir os planos de
Paulo ou de afligi-lo com doença.’'®® O diabo mesmo, em contraste com os demô­
nios, dificilmente aparece como espirito destruidor, que aniquila a relação que
alguém tem consigo próprio; pelo contrário, ele intensifica a relação da pessoa
consigo m esm a (por intimidação, tanto quanto por sedução). Mesmo que nem
sempre se consiga distinguir bem claraimente a ação do diabo e dos demônios’’®’ ,
poder-se-ia, não obstante, empregando um a tipificação idealizada, determinar a
diferença entre am bas no sentido de que os demônios procuram destruir a relação
das pessoas consigo mesmas e com o mundo, enquanto o diabo busca destruir a
relação com Deus. Dito de outra forma: o possesso não é mais senhor de si, já o
que está seduzido pelo diabo não consegue mais sair de si. O relacionamento
da pessoa consigo mesma, essencial para a vida e de forma algum a censurável,
torna-se assim absolutizado e reprime a relação com D eus. Sim, parece até
que, quanto mais o relacionamento com o D eus uno se transforma na base da
orientação existencial, tanto mais claramente passa-se a experimentar a ação
de u m a força contrária. Isso pode ser observado muito bem n a história da ten­
tação, no início da atividade de Jesus (Mt 4.1-11/Lc 4.1-13), a única narrativa
neotestamentária na qual o diabo entra em cena como um a pessoa e passa a
falar (até ao ponto de reivindicar adoração). Toda a su a ação tem como propósito
único fazer Jesus desprender-se da su a ligação com D eus e levá-lo a fixar-se
em si próprio. O diabo quer um semideus, que se baste a si mesmo em sua

793
O nome é uma combinação do aramaico “samma” (veneno) com o elemento teóforo -el.
794
Somente Beelzebul é algo assim como um nome verdadeiro, a saber, a forma aramaica
da divindade originalm ente filistéia Baal Zebul = “Senhor das m oradias celestes” .
O nome é transcrito de 4Reg 1.2, 6 o (cf. 2Rs 1.2, 6) como BeeXCePoúp = “Senhor das
m oscas” - se isso aconteceu por descuido ou intencionalmente é difícil de afirmar;
esse, no Novo Testamento, por vezes aparece como “Senhor dos demônios”, idêntico
ao diabo (Mc 3.22; Mt 12.24; Lc 11.15).
Cf. Tert, Marc 11,10
2Co 12.7; não obstante, nesse caso se trata, surpreendentemente, só de um anjo de
satanás.
Um tipo de “possessão” pelo demônio parece ser sugerido por Lc 22.3 na explicação
da traição de Judas; cf. também a história de Gn 3, recontada no ApkM os 15-30,
onde a pessoa que se deixa “in sp irar” pelo diabo acaba perdendo não só o seu
relacionamento com Deus, mas também a si própria. Também esse tipo de possessão,
no entanto, deve ser clciramente distinguido da destruição doentia do relacionamento
consigo e com o mtmdo causada por demônios.

215
abundância de poder (e o sirva exatamente dessa maneira); ele quer um filho
sem pai, um filho de deus sem deus.

Também na IPe o diabo não explica mitologicamente a origem do


mal como uma espécie de antideus negativo, mas “personifica” o mal
como um poder incidente sobre o centro da pessoa, que procura des­
truir a orientação dos crentes em Deus. A referência ao diabo subli­
nha dessa forma que por trás das aflições dos cristãos encontra-se
uma vontade deliberada, uma energia destrutiva, que só aqui no Novo
Testamento é designada como “adversário” dos que creem.’’®®

Em bora o leão pertença a metáforas tradicionais de inimigos™®, a comparação


leão - Satanás encontra-se explicitamente“ ® nos escritos bíblicos só aqui em
IPe 5.8. O motivo parece, contudo, já ter sido pré-formado no judaísm o, como
mostra JosAs 12.9-11, onde o poder antidivino, que persegue a mulher que faz a
oração, é designado como ó téuv ò ctYpLoç ó ircttaLÓç e, simultaneamente, como “pai
dos deuses do Egito”. No contexto da IPe, essa metáfora para o diabo recebe
su a profundidade incisiva em razão do contraste com o cordeiro Cristo, introdu­
zido no início (l.lS s s ). Enquanto o cordeiro entregou-se a si próprio como sacri­
fício para os outros, o leão é um predador que, como especialmente destacado,
procura devorar os outros, vivendo, portanto, da vida alheia. De forma análoga,
o leão, por causa de su a própria vida, traz a morte p ara outros, enquanto o
cordeiro, pela su a morte, oferece a vida (eterna) para outros.®“^ Pela comparação
do diabo com um leão que vai à caça é assim também colocado em evidência o
caráter destruidor desse poder antidivino, em contraste com o poder divino de
ação salvífica.

A personificação da ameaça no diabo concede ao pedido por vigilân­


cia uma ênfase adicional.®®^ Assim, sublinha-se o perigo que correm
os cristãos, até aqui ainda não referenciado de forma tão clara (cf.
1 .6s), um perigo ao qu£il não se pode reagir senão por meio de resolu­
ta orientação em Deus.

V. 9 O versículo seguinte destaca isso por meio da ligação de resis­


tência e fé.®°® Por mais que seja exigido esforço pessoal, não há como
os crentes ganharem esse combate por força própria, sendo, porém,
dependentes de proteção pelo poder de Deus (cf. 1.5). Isso vale tanto
mais “que sofrimentos semelhantes aos vossos estão atingindo vos­
sos irmãos no mundo”. Assim é sublinhada mais uma vez a universa-

V. acima, nota 790.


A im agem provém do SI 22.14; cf. tam bém Ez 22.25; 1 QH X III.9, 13s, 18s (ai
relacionado com opositores humanos).
A metáfora é insinuada, quando muito, na “salvação da boca do leão” em 2Tm 4.17.
Cf. FELDMEIER, 2003 (Lam m ).
Cf. BROX, 1993, p. 237: “Pela figu ra m ítica do diabo com o leão aparece a nova
observação de firmeza e resistência (v. 9a) no texto, enquanto até aqui sempre havia
sido aconselhado submissão, tem perança e coisas sem elhantes” .
A fé foi abordada só na primeira parte principal da carta (1.5, 7, 9, 21).

216
lidade da ameaça. Ao mesmo tempo, esse conhecimento (elõóteç) tam­
bém é responsável pelo eonsolo de que nesses sofrimentos “estra­
nhos”, em verdade, não ocorre “nada de estranho” (4.12), mas algo
que é ceiracterístico para a vida dos cristãos na sociedade - e isso,
além do círculo dos destinatários, para todos os irmãos “em [todo o]
mundo”. A expressão àõeX(j)órr|ç (uma palavra que em todo o Novo Tes­
tamento encontra-se só na IPe; cf. 2.17), empregada para a totalida­
de dos cristãos, acentua precisamente a união existente entre todos
os crentes atingidos pelos sofrimentos. Para o pano de fundo históri­
co da IPe, a referência generalizante a uma cristandade espalhada
pelo mundo outrora conhecido (f) kv xw KÓojico àôeÀ(|3ÓTTiç) comprova que
a exclusão social e opressão dos cristãos já se havia tornado caso nor­
mal no império. Esse é um dos argumentos mais importantes para a
admissão de uma autoria tardia, pseudepigráfica.

2.3.2 Encorajamento e doxologia finais (5.10-11)

V. 10: O Deus de toda a graça, porém, que em Cristo vos cha­


mou à sua eterna glória, haverá de, depois que tiverdes
sofrido por pouco tempo, vos restaurar, firmar, fortale­
cer, e fortificar com um fundamento.
V. 11: A ele seja o domínio pela eternidade. Amém.

A figura de Satanás como o leão que ruge e procura quem possa devo­
rar é contrastada de forma impressionante, através de um “porém”
adversativo, com a promessa que se fundamenta no “Deus de toda a
graça”. Mesmo que graça e Deus apareçam constantemente unidos,
sobretudo nos escritos paulinos e lucanos, a IPe aparentemente de­
finiu com a expressão “Deus de toda a graça”, singular no Novo Tes­
tamento, Deus como a origem de toda a graça, graça como a resposta
experimentada de Deus ã opressão precisamente em meio a sofrimen­
tos (5.5, 12; cf. 2.19s). Isso é especificado inicialmente por meio da
locução participial “que em Cristo vos chamou ã sua eterna glória”,
que resume de forma bem comprimida afirmações teológicas funda­
mentais da carta: os crentes foram vocacionados em Cristo, i. e., per­
tencem ao povo de Deus, nasceram de novo, tendo assim também
participação na “eterna glória” de Deus. A conexão entre sofrimento e
glória determinou toda a carta (cf. esp. 1.6s; 4.13s). No nosso versículo,
o peso recai sobre o contraste consolador entre sofrimento por pouco
tempo e glória eterna. Tudo isso fundamenta a afirmação da frase prin­
cipal, cujos quatro verbos se focam na transferência de força e firmeza
por Deus: o próprio (aüxóç) Deus haverá de conservar os seus no cami­
nho correto, amparando-os e fortificando-os. No último verbo 6etieA.LÓco
(“prover com um fundamento”) é provável que se esteja fazendo refe-

217
rência à metáfora da “casa espiritual” (IPe 2.5), resp. da “casa de Deus”
(4.17). A promessa de proteção divina diante do sofrimento, com a qual
iniciou a carta em 1.5s, é também a que a encerra.®““^

V. 11 O corpo da carta é finalizado com uma doxologia. Assim como


ela iniciou com uma eulogia, um louvor de gratidão a Deus, assim
também encerra com um louvor reverente. Tudo o que nesse escrito
foi afirmado provém do louvor a Deus e conduz para ele. Isso não
deixa de ser essencial para o caráter desse escrito, que, apesar de
toda a opressão pressuposta, apresenta-se isento de toda leimúria e
amargor, sendo dominado, antes, por confiança e alegria. A doxologia
mesmo encontra-se, se comparada ã primeira e mais extensa em 4.11,
focada na situação: diante da opressão pelo diabo, é sublinhado mais
uma vez o poder de Deus, e diante do “sofrimento por pouco tempo”,
mais uma vez a eternidade de Deus.

Após o final festivo da doxologia com “Amém”, segue o encerramento


da carta com a menção de Silvano, uma retrospectiva sobre a inten­
ção do escrito e as saudações. Ele forma, junto com a introdução da
carta em l.ls, a moldura epistolar da IPe.

rV - Final da carta (5.12-14*)

V. 12: Por meio de Silvano, que, segundo minha convicção, é


irmão fiel, eu vos escrevi com poucas [palavras], para
exortar e testificar que justamente esta é a verdadeira
graça de Deus: nela permanecei!
V. 13: Vos saúdam a coeleita [comunidade] na Babilônia e
Marcos, meu filho.
V. 14: Saudai-vos uns aos outros com o beijo do amor. Paz a
todos vós, os que estais em Cristo.
* Literatura sobre IPe 5.12-14: HUNZINGER, C.-H. Babylon als Deckname für
Rom und die Datierung des 1. Petrusbriefes, ln: GRAF REVENTLOW, H. (Ed.).
Gottes Wort und Gottes Land. (FS H.-W . Hertzberg). Göttingen, 1965. p. 67-75.

V. 12 Pela primeira vez - se abstrairmos da indicação do autor em 1.1


e de figuras bíblicas como Noé e Sara -, é citado um nome individual
na carta: Silvano. Este deveria ser idêntico ao Silas/Silvano que, se­
gundo At 15.22, 27, 32, era um dos delegados da comunidade primi-

DELLING, 1973, p. 105: “Deus é o que atua nos cristãos, desde o inicio até o fim,
aquele que, por causa do evento de Cristo em cruz e ressurreição, cria e conserva
vida nova por meio da sua palavra".

218
tiva de Jerusalém para Antioquia e o qual Paulo depois levou junto
como acompanhante em sua viagem missionária (At 15.40; cf. 17.10).
A última informação é confirmada pelo próprio Paulo: em ITs 1.1, ele
é citado pelo apóstolo como coautor da ITessalonicenses e, segundo
2Co 1.19, ele inclusive foi cofundador da comunidade de Corinto.
Depois disso, não se tem mais informações a seu respeito. Uma apro­
ximação do cooperador de Paulo a Pedro não deixa de ser possível®“®,
ainda mais que ambos provavelmente já se eonheciam de Jerusalém
e missionavam como judeus-cristãos palestinos na diáspora.

Essa aproximação pode ter se dado em Roma ainda durante a vida de


Paulo ou - easo Paulo já tenha sido executado em razão do seu pro­
cesso no início dos anos 60®“®, enquanto Pedro, com muita probabili­
dade, acabou vitimado pela perseguição de Nero no ano de 64 d.C.®“'^
- nos anos entre sua execução e o martírio de Pedro. É possível que
Silvano tenha pertencido a um círculo permanente de discípulos de
Pedro em Roma. De qualquer maneira, sua designação como “irmão
fiel” pelo “apóstolo Pedro” documenta a fusão de tradições paulinas e
petrinas na comunidade de Roma.

A expressão de que o autor escreveu “com poucas palavras” soa muito


formal®“®, embora não deixe de dar a impressão de veracidade, uma
vez que, efetivamente, cabia dispor e agrupar por intermédio da carta,
num espaço relativamente pequeno, as diferentes tradições (princi­
piando pelo Antigo Testamento, passando pelo judaísmo incipiente,
pela tradição de Jesus, pela teologia paulina até a inclusão de con­
cepções pagãs) em grande densidade linguística e prepará-las argu-
mentativamente de tal forma que tudo viesse a contribuir para uma
só meta: interpretar aos “forasteiros” sua situação de exclusão social
e difamação de tal forma, que essa não viesse a perturbá-los como
expressão do abandono de Deus, mas pudesse, como confirmação da
comunhão com Deus, dar inclusive ensejo de alegria. Dessa manei­
ra, por meio de arremetidas sempre novas, procurou-se tornar acessí­
vel a “viva esperança” à realidade do presente. É precisamente isso

Apesar das tensões entre Paulo e Pedro em virtude do incidente de Antioquia (G1
2.1 Is s ), nada sugere um rom pim ento definitivo entre am bos; as referências do
apóstolo dos gentios a Pedro são - com exceção de G1 2 - sempre respeitosas. Se
hoje a possibilidade de tal aproximação sempre ainda é considerada com ceticismo,
isso provavelm ente se deve à reconstrução histórica de F. C. Bauer, que entendia
ser Pedro o antagonista da missão paulina.
Cf. LOHSE, E. Pa u lu s. Eine Biographie. München, 1996. p. 254s.
807 b ÖTTRICH, 2001, p. 211-220.
Cf. a expressão semelhante em Hb 13.22, um a carta comparativamente mais longa,
e também as asseverações em 2Jo 12; 3Jo 13 e Jo 21.25, segundo as quais poder-
se-ia ter escrito muito mais.

219
que o autor expressa aqui em retrospectiva, quando afirma ter escrito
esta carta “para exortar e testificar que justamente esta^°^ é a verda­
deira graça de Deus: nela permanecei!”

V. 13 Na saudação de despedida, o emprego do termo “coeleitos”®^°


deixa claro que a eleição, já citada em 1.1 ao lado do ser-forasteiro
como característica essencial dos cristãos, fundamenta também a
comunhão das comunidades entre si (cf. também 2.9). Sobre a indi­
cação do lugar “na Babilônia” são aventadas - após a exclusão da
suposição de que se refira a um lugar concreto com esse nome - duas
possibilidades de interpretação: criptograma para o Imperium Romanum
ou símbolo para a existência dos cristãos como forasteiros, sendo que,
como apresentado acima®” , as duas interpretações não são mutua­
mente excludentes. Nesse caso, estaria sendo sinalizado o seguinte
para os eontestados destinatários da Ásia Menor: também os coeleitos
em Roma são co-oprimidos “forasteiros na dispersão”. Ao mesmo tem­
po, a indicação de lugar. Babilônia, caso fosse referência para Roma,
seria de importância também em relação ã história do cristianismo
primitivo, pois a IPe seria, nesse caso, o primeiro escrito do cristia­
nismo primitivo que percorre agora o caminho do cristianismo do leste
para o oeste, trilhado pela missão e também empreendido pela pri­
meira literatura cristã primitiva (cf. a Carta aos Romanos), em sentido
contrário.®^^ Aqui se toma transparente aquela rede de uma àôeÀcljó-uTiç
èv Ttú KÓ0|i0) (5.9), que permitiu se tomassem as comunidades cristãs
primitivas, em espaço relativamente curto de tempo, uma igreja uni­
da em todo o império.

Ao lado da eomunidade, cita-se ainda mais um nome que manda


saudações aos cristãos da Ásia Menor: Marcos. Como no caso de Silas/
Silvano, também esse provavelmente seja idêntico ao (João) Marcos,
conhecido dos círculos paulinos (At 12.25; 13.5, 13), do qual Paulo, é
verdade, se separou segundo o testemunho dos Atos dos Apóstolos®^®,

Cf. BROX, 1993, p. 245s: “O dem onstrativo [sc. em x“ Plç] aponta para aquilo que
h avia sido ex p lica d o em tod a a carta. Os le ito re s n ecess ita m ca p ta r a gra ça
precisam ente como essa ‘lógica’ de fé, existência de ‘sofrim ento’ e soteriologia [...]
Graça é a possibilidade libertadora sobre a qual a carta queria falar e na qual pretendia
exercitar permanentemente: de poder ter esperança sob as condições precárias do
p resen te” .
Sobre a preferência da IPe por palavras compostas formadas com -aúv, v. acima em
3.7 e 5.1.
Sobre isso, v. acima na Introdução, ã p. 47s.
Cf. GOPPELT, 1978, p. 353: “Pela saudação em 5.13, n ossa carta transform a-se
explicitamente no primeiro escrito cristão que conhecemos a trilhar o arco do contato
eclesial de Roma até a Ásia Menor, que se tom ou, no século II, a base para a Igreja
C atólica” .
At 15.37-39; João Marcos seguiu Bam abé em sua viagem missionária para Chipre.

220
mas que mais tarde novamente reaparece no referido círculo (Fm 24;
cf. Cl 4.10), agora possivelmente em seu cativeiro em Roma (cf. 2Tm
4.11). João Marcos tem em comum com Pedro que taimbém ele pro­
vém da comunidade primitiva de Jerusalém (At 12.25) e que pelo
menos sua mãe parece ter sido bem conhecida dele (At 12.12ss). Por
isso é bem possível que esse Marcos - como Silas/Silvano, depois da
morte de Paulo em Roma? - ainda tenha colaborado com Pedro por
algum tempo. Em favor disso também podería falar a tradição que re­
monta a Papias (por volta de 120 d.C.), que vê em Marcos o discípulo e
intérprete de Pedro®^“*; Papias o considera também autor do Evange­
lho de Marcos que, segundo os seus dados, baseia-se em tradição
petrína. A designação “meu filho” podería referir-se - a exemplo da
designação anãloga xéKvoy (parcialmente com pronome possessivo) em
ICo 4.17; Fm 10; ITm 1.2, 18; 2Tm 1.2; 2.1 e Tt 1.4 - a uma relação
professor-aluno.

V. 14 Antes dos votos finais de paz, encontra-se como último pedido


a solicitação de saudar-se mutuamente com o “beijo do amor”. Essa
tradição é também conhecida de Paulo. Usando praticamente as mes­
mas palavras, por diversas vezes, ele solicita aos destinatários no fi­
nal de suas cartas que se saúdem mutuamente com o “beijo santo”
(Rm 16.16; ICo 16.20; 2Co 13.12; ITs 5.26). Esse beijo destaca a união
mútua dos cristãos como “fraternidade”. E m termos histórico-
traditivos, é provável que a prática remonte ao beijo entre parentes®^®;
eventualmente também desempenhe um papel o beijo como sinal de
reconciliação (cf. Lc 15.20).®*^ Ele talvez já tenha sido inclusive prati­
cado no circulo dos discípulos de Jesus como expressão da pertença
à familia Dei (cf. Mc 3.35par.), para o que podería apontar o beijo de
Judas (Mc 14.44par.). Como sinal de comunhão, ele parece ser genu­
inamente cristão, já que do judaismo não se conhece tal tradição e
no mundo pagão essa expressão de união “fraterna” de pessoas não
parentes entre si não raro causou estranheza.®^® Por meio de sua

Transm itida por Eus, HistEccl 11,15; 111,39,15.


Em IP e 2.17; 5.9 encontra-se para isso a palavra àôcXijiÓTric;, não testem unhada em
outras partes do Novo Testamento.
Textos com probatórios em STÃHLIN, G. Verbete itaXea) ktX. In; Th W N T. Stuttgart,
1973. V. IX, p. 124.
817
Cf. STÃHLIN, 1973, p. 121, 137s.
818
Essa estranheza em relação ao “beijo fraterno do amor” mostra-se, p. ex., na polêmi­
ca de Caecilius no Octavius de M inucius Felix: “Eles se reconhecem mutuamente
através de sinais e marcos distintivos secretos e já se amam [a m a n t mutuo] pratica­
m ente antes de se conhecer. Indiscrim inadam ente realizam entre si um a espécie
de ritual dos prazeres; eles se designam mutuamente de irmãs e irmãos, de maneira
que a costumeira licenciosidade sexual que existe entre eles se transform a até em
incesto pelo uso de uma palavra tão sagrada” (Min, Oct 9,2; tradução de B. Kytzler).
Indiretamente essa estranheza também é testem unhada por Tertuliano quando ele,
contrário que era ao novo casamento de um a cristã com um gentio, coloca, entre

221
especificação desse sinal como “beijo do amor”, a IPe sublinha mais
uma vez a importância central do amor mútuo para a comunidade
cristã®^®, considerando precisamente a opressão externa vigente.

O término é formado pela saudação da paz, que vale para todos “em
Cristo”. A expressão paulina èv XpioTcô, que fora do Corpus Paulinum se
encontra somente ainda três vezes na IPe, sublinha aqui que os cren­
tes são “cristãos”®^® precisamente pelo fato de terem, como renasci­
dos, participação em Cristo e no seu destino, o que significa, segun­
do o que foi apresentado pela carta, que são agora participantes de
um comportamento correspondente a Cristo e, com isso, também dos
seus sofrimentos (cf. 3.16) e, no futuro, da sua glória (cf. 5.10).

outras coisas, que o esposo pagão dificilm ente p erm itirá a ela “ a licu i fr a tr u m ad
os cu lu m c o n v e n ire ” (Tert, Ux 11,4).
O pedido para o amor fraterno é o único que é repetido em cada capítulo dessa carta
(1.22; 2.17; 3.8; 4.8s); sobre o deslocamento de acento em relação ao “beijo santo”
em Paulo, cf. GOPPELT, 1978, p. 354s: “Mais uma vez nossa carta destaca o aspecto
horizontal onde em Paulo encontramos o aspecto vertical, i. e., ela acentua a forma
terrena concreta da realização da salvação” .
Como mostra 4.16, essa designação já era conhecida da IPe.

222
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