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A Explicação Para os Aparentes Casos de Perda da


Salvação

Wayne Grudem

[Título original: “Aqueles Que Acabam Se Afastando Podem Dar Muitos Sinais Exteriores
de Conversão”]

Será sempre fácil distinguir os membros da igreja que têm autêntica fé salvífica daqueles
que tem apenas um convencimento intelectual da verdade do Evangelho, mas não a
autentica fé no coração? Não, nem sempre é fácil, e a Bíblia afirma em varias passagens
que descrentes em aparente comunhão com a igreja podem dar alguns sinais ou indicações
exteriores que os façam parecer crentes verdadeiros. Por exemplo, Judas, que traiu Cristo,
deve ter agido quase exatamente como os outros discípulos durante os três anos em que
esteve com Jesus. Tão convincente era a sua conformidade à conduta dos outros discípulos,
que, ao final dos três anos de ministério de Jesus, quando ele declarou que um dos seus
discípulos o trairia, nem todos suspeitaram de Judas, mas “começaram um por um a
perguntar-lhe: Porventura, sou eu, Senhor?” (Mt 26.22; cf. Mc 14.19; Lc 22.23; Jo 13.22).
Porém, Jesus sabia que não havia fé genuína no coração de Judas, pois disse a certa altura:
“Não vos escolhi eu em número de doze? Contudo, um de vós é diabo” (Jô 6.70). João mais
tarde escreveu no seu evangelho que “Jesus sabia, desde o principio, quais eram os que não
criam e quem o havia de trair” (Jo 6.64). Mas os discípulos mesmos não sabiam.

Paulo fala dos “falsos irmãos que se entremeteram” (Gl 2.4), e afirma que nas suas viagens
esteve “em perigos entre falsos irmãos” (2 Co 11.26). Afirma também que os servos de
Satanás se transformam “em ministros de justiça” (2 Co 11.15). Isso não significa que
todos os descrentes da igreja que dão alguns sinais de verdadeira conversão sejam servos de
Satanás agindo secretamente para minar a obra da igreja, pois alguns podem estar ainda
ponderando as declarações do Evangelho e avançando rumo à verdadeira fé, outros podem
ter ouvido uma explicação incorreta da mensagem evangélica, e outros podem não ter ainda
alcançado a verdadeira convicção do Espírito Santo. Mas as declarações de Paulo
significam que alguns descrentes dentro da igreja são falsos irmãos e irmãs enviados para
perturbar a comunhão, enquanto outros são simplesmente descrentes que acabarão
alcançando a genuína fé salvífica. Nos dois casos, porém, eles podem dar diversos sinais
exteriores que os façam parecer crentes autênticos.

Podemos ver isso também na declaração de Jesus sobre o que acontecerá no juízo final:

“Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! Entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a
vontade de meu Pai, que está nos céus. Muitos, naquele dia, hão de me dizer: Senhor,
Senhor! Porventura, não temos nós profetizado em teu nome, e em teu nome não expelimos
demônios, e em teu nome não fizemos muitos milagres? Então, lhes direi explicitamente:
nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniqüidade.” (Mateus 7.21-23)
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Embora essas pessoas profetizassem, expulsassem demônios e fizessem “muitos milagres”


em Nome de Jesus, a capacidade de fazer tais obras não garantia que eram cristãs. Diz
Jesus: “Nunca vos conheci”. Não diz: “Eu vos conheci um dia, mas já não vos conheço”
nem “Eu vos conheci um dia, mas vos afastastes de mim”, e sim: “Nunca vos conheci”.
Nunca foram crentes de verdade.

Ensinamento semelhante se encontra na parábola do semeador em Marcos 4. Diz Jesus:


“Outra caiu em solo rochoso, onde a terra era pouca, e logo nasceu, visto não ser profunda a
terra. Saindo, porem, o Sol, a queimou; e, porque não tinha raiz, secou-se” (Mc 4.5-6).
Jesus explica que a semente plantada em solo rochoso representa aqueles que “ouvindo a
palavra, logo a recebem com alegria. Mas eles não têm raiz em si mesmos, sendo, antes, de
pouca duração; em lhes chegando a angústia ou a perseguição por causa da palavra, logo se
escandalizam” (Mc 4.16-17). O fato de eles não terem “raiz em si mesmos” indica que não
avia fonte de vida dentro dessas plantas; do mesmo modo, as pessoas representadas por tais
plantas não têm vida genuína em si. Exibem uma aparência de conversão e aparentemente
se tornam cristas, pois aceitaram a palavra “com alegria”, mas, quando vem a dificuldade,
elas não são mais encontradas em lugar nenhum – a sua conversão aparente não foi genuína
fé salvífica no seu coração.

A importância de persistir na fé é também confirmada na parábola de Jesus como videira,


na qual os cristãos são retratados como ramos (Jo 15.1-7). Diz Jesus:

“Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o agricultar. Todo ramo que, estando em mim,
não der fruto, ele o corta; e todo o que dá fruto limpa, para que produza mais fruto ainda.
Se alguém não permanecer em mim, será lançado fora, à semelhança do ramo, e secará; e
o apanham, lançam no fogo e o queimam.” (João 15.1,2,6)

Os arminianos alegam que os ramos que não dão fruto são ainda assim ramos genuínos da
videira – Jesus fala de “todo ramo que, estando em mim, não der fruto” (v.2). Portanto, os
ramos que são apanhados, lançados no fogo e queimados devem representar crentes
autênticos que foram um dia parte da videira, mas caíram e ficaram sujeitos à condenação
eterna. Mas essa questão não é uma implicação necessária do ensinamento de Jesus sobre
essa questão. O símile da videira usado nessa parábola é limitado quanto ao volume de
detalhes que pode dar. Na verdade, se Jesus quisesse ensinar que associados a ele havia
crentes verdadeiros e falsos, e se quisesse usar a analogia da videira e seus ramos, então o
único modo de se referir às pessoas que não tinham vida genuína em si seria falar de ramos
que não dão fruto (lembrando a analogia das sementes que caíram no solo rochoso: “eles
não têm raiz em si mesmos” [Mc 4.17]). Aqui em João 15, os ramos que não dão fruto,
embora estejam de certo modo ligados a Jesus e exibam uma aparência de ramos legítimos,
assim mesmo dão indicação da sua verdadeira condição pelo fato de não dar fruto. Isso é
igualmente indicado pelo fato de a pessoa “não permanecer” em Cristo (Jo 15.6) e ser
lançada fora para secar como ramo arrancado da videira. Se tentamos esticar a analogia um
pouco mais, dizendo – por exemplo – que todos os ramos de uma videira estão de fato
vivos, senão nem estaria ali, então o que fazemos é estender a metáfora além daquilo que
ela é capaz de ensinar – e nesse caso nada haveria na analogia que pudesse representar os
falsos crentes. O objetivo da metáfora é simplesmente dizer que aqueles que dão fruto, dão,
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portanto, provas de que permanecem em Cristo; aqueles que não dão fruto, não
permanecem nele.

Finalmente, há duas passagens de Hebreus que também afirmam que aqueles que acabam
se afastando podem dar muitos sinais exteriores de conversão e parecer cristãos em muitos
aspectos. A primeira delas, Hebreus 6.4-6, foi muitas vezes usada pelos arminianos como
prova de que os crentes podem perder a salvação. Mas num exame mais detido essa
interpretação não se revela convincente. Escreve o autor:

“É impossível, pois, que aqueles que uma vez foram iluminados, e provaram o dom
celestial, e se tornaram participantes do Espírito Santo, e provaram a boa palavra de Deus
e os poderes do mundo vindouro, e caíram, sim, é impossível outra vez renová-los para
arrependimento, visto que, de novo, estão crucificando para si mesmos o Filho de Deus, e
expondo-o à ignomínia.” (Hebreus 6.4-6)

O autor continua com um exemplo extraído da agricultura:

“Porque a terra que absorve a chuva que freqüentemente cai sobre ela e produz erva útil
para aqueles por quem é também cultivada recebe bênção da parte de Deus; mas, se
produz espinhos e abrolhos, é rejeitada e perto está da maldição; e o seu fim é ser
queimada.” (Hebreus 6.7-8)

Nessa metáfora agrícola, os condenados no juízo final são comparados à terra que não
produz vegetação ou fruto útil, mas só espinhos e abrolhos. Quando lembramos outras
metáforas bíblicas em que o bom fruto é sinal de verdadeira vida espiritual e a ausência de
frutos denuncia os falsos crentes (por exemplo: Mt 3.9-10; 7.15-20; 12.33-35), já temos
uma indicação de que o autor está falando de pessoas cuja prova mais confiável da sua
condição espiritual (o fruto que produzem) é negativa, sugerindo que o autor fala de
pessoas que não são verdadeiramente cristãs.

Alguns já objetaram que a longa descrição de coisas que aconteceram a essas pessoas que
se afastaram significa que elas devem ter nascido de novo. Mas essa não é uma objeção
convincente quando se examinam os termos usados. O autor diz que “uma vez foram
iluminados” (Hb 6.4). Mas essa iluminação significa simplesmente que eles
compreenderam as verdades acerca do Evangelho, não que tenham respondido a essas
verdades com genuína fé salvífica.

Do mesmo modo, a expressão uma vez, usada para falar daqueles que “uma vez foram
iluminados”, traduz o termo grego hapax, que é usado, por exemplo, em Filipenses 4.6
(quando os filipenses enviam doações a Paulo “não somente uma vez, mas duas”) e em
Hebreus 9.7 (que fala da entrada no Santo dos Santos “uma vez por ano”. Portanto, essa
palavra não significa que algo acontece “uma vez” somente e não pode ser repetida, mas
simplesmente que aconteceu uma vez, sem especificar se será ou não repetida.

O texto diz ainda que essas pessoas “provaram o dom celestial” e que “provaram a boa
palavra de Deus e os poderes do mundo vindouro” (Hb 6.4-5). Inerente à idéia de provar é
o fato de ser esse provar algo temporário e de a pessoa poder ou não decidir aceitar a coisa
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provada. Por exemplo, a mesma palavra grega (geuomai) é usada em Mateus 27.34 para
dizer que aqueles que crucificaram Jesus “deram-lhe a beber vinho com fel; mas ele,
provando-o, não o quis beber”. A palavra também é usada em sentido figurado com o
significado de “vir a conhecer algo”. Se interpretamos a palavra nesse sentido figurado,
como deve ser entendida aqui, pois a passagem não fala de provar comida de verdade,
então isso significa que essas pessoas compreenderam o dom celestial (o que
provavelmente significa que experimentaram parte do poder do Espírito Santo em ação) e
conheceram parte da Palavra de Deus e parte dos poderes do mundo vindouro. Não
significa necessariamente que tiveram (ou não) genuína fé salvífica, mas pode significar
simplesmente que a compreenderam e tiveram alguma evidência do seu poder espiritual.

O texto também diz que essas pessoas “se tornaram participantes do Espírito Santo” (Hb
6.4). A questão é o significado exato da a palavra metochos, que é aqui traduzida como
“participante”. Nem todos os leitores das traduções da Bíblia sabem que esse termo tem
uma ampla gama de significados e pode sugerir participação e apego bem íntimos, ou então
meramente uma associação mais tênue com a outra pessoa ou pessoas citadas. Por exemplo,
o contexto mostra que Hebreus 3.14 torna-se participante de Cristo significa ter uma
participação bem íntima com ele numa relação salvífica. Por outro lado, a palavra metochos
pode também ser usada num sentido muito mais livre, referindo-se meramente a associados
ou companheiros. Lemos que quando os discípulos pegaram grandes quantidades de peixes,
a ponto de as redes estarem já se rompendo, “fizerem sinais aos companheiros do outro
barco, para que fossem ajudá-los” (Lc 5.7). Aqui, o termo define os que eram meramente
parceiros ou companheiros de Pedro e dos outros discípulos na pesca. Efésios 5.7 usa uma
palavra muito próxima (symmetochos, composta de metochos e da preposição syn [“com])
quando Paulo exorta os cristãos a ficar atentos aos atos pecaminosos dos descrentes: “...
Não sejais participantes com eles” (Ef 5.7). Ele não está preocupado com a possibilidade de
a própria natureza deles se transformar pelo contato com os descrentes, mas simplesmente
com a hipótese de o testemunho deles ficar comprometido, de a própria vida deles vir a ser
influenciada pelos descrentes.

Por analogia, Hebreus 6.4-6 fala das pessoas que “se associaram ao” Espírito Santo e que,
portanto, tiveram a vida influenciada por ele, mas isso não implica que eles vivenciaram a
obra redentora do Espírito Santo, nem que foram regenerados. Aplicando analogia
semelhante ao exemplo dos companheiros de pesca de Lucas 5.7, Pedro e os discípulos
poderiam estar associados a eles e até ser influenciados por eles, sem sofrer uma completa
mudança de vida por conta dessa associação. A própria palavra metochos possibilita uma
gama de influencia que vai da razoavelmente fraca à razoavelmente forte, pois significa
somente “aquele que participa de, partilha de ou acompanha alguém numa atividade”. Foi
aparentemente isso que aconteceu a essas pessoas mencionadas em Hebreus 6, que
participaram da igreja e portanto tiveram contato com a obra do Espírito Santo, sendo sem
dúvida nenhuma influenciados por ele de algum modo.

Por outro lado, diz o texto que é impossível renovar “para arrependimento” as pessoas que
experimentaram essas coisas e depois cometeram apostasia. Alguns já argumentaram que se
esse é um arrependimento ao qual elas precisam ser renovadas, então deve ser um
arrependimento autêntico. Mas isso não é necessariamente verdadeiro. Primeiro, é preciso
que esse “arrependimento” (gr. metanoia) não implica necessariamente arrependimento
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íntimo do coração para a salvação. Por exemplo, Hebreus 12.17 usa essa palavra para falar
da mudança de idéia que fez Esaú buscar desfazer a venda do seu direito de primogenitura e
refere-se a ela com o termo “arrependimento” (metanoia). Esse não seria um
arrependimento para salvação, mas simplesmente uma mudança de idéia e o cancelamento
da venda do direito de primogenitura. (Repare também o exemplo do arrependimento de
Judas, em Mateus 27.3 – conquanto com uma palavra grega distinta.)

O verbo cognato “arrepender-se” (gr. metanoeό) é às vezes usado para indicar não
arrependimento salvífico, mas meramente pesar por ofensas individuais, em Lucas 17.3-4:
“Se teu irmão pecar contra ti, repreende-o; se ele se arrepender, perdoa-lhe. Se, por sete
vezes no dia, pecar contra ti e, sete vezes, vier ter contigo, dizendo: Estou arrependido,
perdoa-lhe”. Concluímos que “arrependimento” significa simplesmente pesar por atos
realizados ou pecados cometidos. Nem sempre será possível dizer se é ou não genuíno
arrependimento salvífico, “arrependimento para salvação”. O autor de Hebreus não se
preocupa em especificar se se trata ou não de arrependimento genuíno. Diz simplesmente
que se alguém sente pesar pelo pecado, compreende o Evangelho e experimenta as várias
bênçãos da obra do Espírito Santo (se dúvida em comunhão com a igreja), mas depois se
afasta, não será possível restaurar tal pessoa novamente a uma atitude de pesar pelo pecado.
Mas isso não implica que o arrependimento foi genuíno arrependimento salvífico.

A esta altura podemos perguntar que tipo de pessoa se define com todos esses termos. São
sem dúvida pessoas que estiveram intimamente ligadas à comunhão da igreja. Sentiram
algum pesar pelo pecado (arrependimento). Compreenderam claramente o Evangelho
(forma iluminadas). Apreciaram os atrativos da vida cristã e a mudança que acontece na
vida das pessoas quando se tornam cristãs, e provavelmente foram atendidas nas suas
orações e sentiram o poder do Espírito Santo em ação, talvez até usando alguns dons
espirituais, como os descrentes de Mateus 7.22 (“uniram-se” à obra do Espírito Santo, ou se
tornaram “participantes” do Espírito Santo e provaram o dom celestial e os poderes do
mundo vindouro). Ouviram a verdadeira pregação da Palavra e apreciaram muitos dos seus
ensinamentos (provaram a bondade da Palavra de Deus).

Mas, depois, apesar de tudo isso, se “caíram [...] crucificando para si mesmos o Filho de
Deus e expondo-o à ignomínia” (Hb 6.6), então rejeitaram deliberadamente todas essas
bênçãos e se voltaram decididamente contra elas. É possível que todos conheçamos (às
vezes pela sua própria confissão) pessoas que estão há muito tempo na comunhão da igreja
sem ser cristãs nascidas de novo. Há muito tempo ponderam o Evangelho, mas continuam a
resistir ao chamado do Espírito Santo, talvez por causa da relutância em entregar a sua
soberania a Jesus, preferindo apegar-se a si mesmas.

Ora, o autor nos diz que se essas pessoas deliberadamente rejeitam todas essas bênçãos
temporárias, então é impossível renová-las para algum tipo de arrependimento ou pesar
pelo pecado. O seu coração estará endurecido, a sua consciência, insensível. Que mais se
poderia fazer para trazê-las à salvação? Se lhes dissermos que a Bíblia é a verdade, elas
dirão que já a conhecem, mas que resolveram rejeitá-la. Se lhes dissermos que Deus atende
a oração e transforma a vida do crente, elas responderão que também já sabem disso, mas
que não querem nada disso. Se lhes dissermos que o Espírito Santo tem poder para agir nas
pessoas e que o dom da vida eterna é indescritivelmente bom, elas dirão que compreendem,
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mas não querem nada disso. A sua constante familiaridade com as coisas de Deus e a forte
influencia do Espírito Santo só serviu para endurecê-las contra a conversão.

Ora, o autor de Hebreus sabe que na comunidade à qual ele escreve há alguns em perigo de
cair dessa maneira (ver Hb 2.3; 3.8,12,14015; 4.1,7,11; 10.26,29,35-36,38-39; 12.3,15-17).
Ele quer alerta-los de que, embora tenham participado da comunhão da igreja e
experimentado várias bênçãos divinas, ainda assim, se caírem depois de tudo isso não
haverá salvação para eles. Isso não implica que ele pense que os verdadeiros cristãos
possam se perder – Hebreus 3.14 implica bem o contrário. Mas ele quer que essas pessoas
alcancem a certeza da salvação mediante a persistência na fé, e, portanto, sugere que, se
vierem a cair, isso mostraria que jamais foram pessoas de Cristo (ver Hb 3.6: “...mas Cristo
é fiel como filho sobre a casa de Deus; e esta casa somos nós, se nos apegarmos firmemente
à confiança e à esperança da qual nos gloriamos). Portanto o autor quer fazer um grave
alerta àqueles em perigo de cair da fé cristã. Ele quer usar a linguagem mais forte possível
para dizer: “Vejam aqui até onde a pessoa pode chegar na experiência das bênçãos
temporárias, sem no entanto realmente estar salvas”. Ele os exorta a vigiar, pois não basta
depender de bênçãos e experiências temporárias. Para isso, ele fala não de uma verdadeira
mudança no coração ou de algum bom fruto, mas simplesmente das bênçãos e experiências
temporárias que essas pessoas tiveram e que lhes deram uma compreensão parcial do
Cristianismo.

Por essa razão, ele imediatamente passa da descrição desses que cometem apostasia a outra
analogia que mostra que tais pessoas que se afastam jamais deram fruto autêntico. Como já
explicamos acima, os versículos 7-8 falam dessas pessoas usando a metáfora dos “espinhos
e abrolhos”, tipo de frutos que nascem no solo que não tem em si vida prestável, ainda que
receba repetidas bênçãos de Deus (nos termos da analogia, ainda que a chuva
freqüentemente o regue). Convém notar aqui que as pessoas que cometem apostasia não são
comparadas a um campo que um dia deu bom fruto e agora já não dá, mas sim a uma terra
que jamais deu bom fruto, porém apenas espinhos e abrolhos. A terra pode parecer boa
antes do surgimento dos brotos, mas o fruto dá a prova incontestável de que a terra é ruim.

Forte apoio a essa interpretação de Hebreus 6.4-8 se encontra no versículo imediatamente


seguinte. Embora o autor venha falando com muita dureza sobre a possibilidade de
apostasia, ele agora volta a falar da situação da grande maioria dos leitores, que ele julga
serem cristãos de verdade. Diz: “Quanto a vós outros, todavia, ó amados, estamos
persuadidos das coisas que são melhores e pertencentes à salvação, ainda que falamos
desta maneira” (Hb 6.9). Mas a questão é: “coisas que são melhores” que o quê? O plural
“coisas que são melhores” forma um contraste apropriado com “boas coisas” mencionadas
nos versículos 4-6: o autor está convencido de que a maioria dos seus leitores experimentou
coisas melhores que as meras influências parciais e temporárias do Espírito Santo e da
igreja, mencionadas nos versículos 4-6.

De fato, o autor fala dessas coisas dizendo (literalmente) que se trata de “coisas que são
melhores e pertencentes à salvação” (gr. kai echomena sótérias). Essas não são somente as
bênçãos temporárias mencionadas nos versículos 4-6, mas coisas melhores, coisas que não
têm somente influência temporária, mas que são também “pertencentes à salvação”. Assim,
a palavra grega kai (“também”) mostra que a salvação é algo que não fazia parte das coisas
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mencionadas nos versículos 4-6 acima. Portanto, a palavra kai, que não é traduzida
explicitamente nas versões RSV e NVI (mas a NASB chega perto), proporciona uma chave
vital à compreensão da passagem. Se o autor quisesse dizer que as pessoas mencionadas
nos versículos 4-6 estavam realmente salvas, então seria muito difícil compreender por que
ele diria no versículo 9 que estava persuadido de coisas que são melhores para elas, coisas
pertencentes à salvação, ou que carregam em si a salvação além das coisas mencionadas
acima. Ele assim mostra que, se quiser, pode usar uma curta expressão para dizer que as
pessoas “têm salvação” (ele não precisa enfileirar muitas expressões) e mostra, além do
mais, que as pessoas de quem fala nos versículos 4-6 não estão salvas.

O que são exatamente essas “coisas que são melhores”? Além da salvação mencionada no
versículo 9, são coisas que dão real prova de salvação – fruto genuíno (v. 10), plena certeza
de esperança (v. 11) e fé salvífica, do tipo exibido por aqueles que herdam as promessas (v.
12). Dessa forma ele tranqüiliza os verdadeiros crentes – aqueles que dão fruto e
demonstram amor pelos outros cristãos, que exibem esperança e fé genuína que perdura até
o tempo presente, e que não estão prestes a se perder. Ele quer tranqüilizar esses leitores
(que certamente são a maioria), ao mesmo tempo lançando um forte alerta aos que dentre
eles possam estar em perigo de perdição.

Ensinamento semelhante se encontra em Hebreus 10.26-31. Ali diz o autor: “Se vivermos
deliberadamente em pecado, depois de termos recebido o pleno conhecimento da verdade,
já não resta mais sacrifício pelos pecados” (v. 26). A pessoa que rejeita a salvação de Cristo
e que “profanou o sangue da aliança com o qual foi santificado” (v. 29) merece castigo
eterno. Isso, novamente, é um grave alerta contra a apostasia, mas não deve ser tomado
como prova de que alguém que verdadeiramente nasceu de novo possa perder a salvação.
Quando o autor fala sobre o sangue da aliança “com o qual foi santificado”, a palavra
santificado é usada simplesmente para denotar a santificação exterior, como a dos antigos
israelitas, por uma ligação exterior com o povo de Deus. A passagem não fala de alguém
genuinamente salvo, mas de alguém que recebeu alguma influencia moral benéfica
mediante o contato com a igreja.

Outra passagem, esta dos escritos de João, é usada para sustentar a possibilidade da perda
da salvação. Em Apocalipse 3.5, diz Jesus: “O vencedor será assim vestido de vestiduras
brancas, e de modo nenhum apagarei o seu nome do Livro da Vida”. Alguns sustentam que,
dizendo isso, Jesus sugere que é possível que ele venha a apagar os nomes de algumas
pessoas do Livro da Vida, pessoas que já tinham seus nomes escritos ali e que portanto já
estavam salvas. Mas o fato de Jesus afirmar enfaticamente que não fará algo não pode ser
usado para pregar que fará a mesma coisa nos outros casos! O mesmo tipo de construção
grega é usada para exprimir uma negação enfática em João 10.28, onde Jesus diz: “Eu lhes
dou a vida eterna; jamais perecerão”. Isso não significa que algumas das ovelhas de Jesus
não ouvem a sua voz nem o seguem, e por isso perecerão; afirma simplesmente que as suas
ovelhas com certeza não perecerão. Do mesmo modo, quando Deus diz – “De maneira
alguma te deixarei, nunca jamais te abandonarei” (Hb 13.5) – não sugere que deixará ou
abandonará outras pessoas; apenas declara enfaticamente que não deixará nem abandonará
o seu povo. Ou, numa analogia ainda mais próxima, de Mateus 12.32, Jesus diz: “Se
alguém falar contra o Espírito Santo, não lhe será isso perdoado, nem neste mundo nem no
porvir”. Isso não significa que alguns pecados serão perdoados no porvir (como alegam os
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católicos romanos para sustentar a doutrina da purgatório) – isso não passa de um erro de
raciocínio: dizer que algo não irá acontecer no porvir não implica que pode acontecer no
porvir! Do mesmo modo, Apocalipse 3.5 é apenas uma firme garantia de que aqueles que
estiverem trajando vestes brancas e que permanecerem fieis a Cristo não terão os seus
nomes apagados do Livro da Vida.

Finalmente, certa passagem do Antigo Testamento é muitas vezes usada para argumentar
que as pessoas podem perder a sua salvação: a história do Espírito Santo que se aparta do
rei Saul. Mas Saul não deve ser tido como exemplo de ninguém que perdeu a salvação, pois
o “Espírito do Senhor” se retirou de Saul (1 Sm 16.14) imediatamente depois de Samuel ter
ungido Davi rei, ocasião em que o “Espírito do Senhor se apossou de Davi” (1 Sm 16.13).
na verdade, a descida do Espírito do Senhor até Davi é relatada no versículo imediatamente
anterior àquele em que se narra que o Espírito saiu de Saul. Esse vinculo estreito significa
que a Bíblia não fala aqui de perda total da obra do Espírito Santo na vida de Saul, mas
simplesmente do afastamento do Espírito Santo como meio de consagrar Saul como rei.
Porém isso não significa que Saul foi condenado por toda a eternidade. É simplesmente
muito difícil dizer com base nas páginas do Antigo Testamento se Saul, ao longo de sua
vida, foi (a) um homem irregenerado que tinha liderança e foi usado por Deus como
demonstração do fato de que alguém digno de ser rei aos olhos do mundo não era só por
isso apto para ser rei do povo do Senhor, ou (b) um homem regenerado, mas falto de
entendimento, levando uma vida que cada vez mais se afastava do Senhor.

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Wayne Grudem. Teologia Sistemática. 1a Edição. São Paulo, Edições Vida Nova, 1999. pp.
664-671.

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