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Antes de tudo, talvez seja interessante fazer um comentário a respeito da noção de “expositio”
que intitula este parágrafo sobre a natureza metafísica (pura) do tempo. A expositio consiste
na exposição clara, não exaustiva, mas suficiente, das principais características que
pertencem a um determinado conceito (§2). Ela difere de uma “dedução”, do ponto de vista
da terminologia kantiana, porquanto a dedução tenha um propósito mais, digamos,
complicado: investigar as origens de um elemento da razão pura cuja posse ela reivindica
como legítima, a fim de que se possa dar a ela algum atestado da validade de sua pretensão,
provando assim a legitimidade daquela posse por meio de um exame das fontes do elemento
em questão. (Cf. Dieter Heinrich “Kant’s notion of Deduction and the methodological
background of the first critique” )
(Por que não seria possível perceber simultaneidade e sucessão se o tempo não fosse
a priori?)
2) O tempo é um dado a priori, necessário, que serve de fundamento a todas as
intuições, pois não se pode suprimir o tempo do mundo dos fenômenos, já que ele é
condição universal da possibilidade dos fenômenos. Toda a realidade dos fenômenos,
daquilo que aparece a nós na intuição, dá-se somente no tempo.
(Não sei bem o porquê, mas esse argumento me parece um tanto tautológico)
3) Os axiomas do tempo, princípios apodíticos das relações temporais, não podem ser
extraídos da experiência, pois essa não nos pode fornecer a universalidade estrita
nem a certeza apodítica em que eles implicam. Portanto, se temos noção desses
axiomas eles devem estar fundados em um conceito apriori, cuja necessidade
fundaria a possibilidade daqueles princípios apodíticos. Tal conceito é o próprio
conceito de tempo.
(Esse argumento já pressupõe a verdade dos outros dois anteriores, que provam que
há uma necessidade apriori do conceito de tempo porque ele não é empírico. Por
algum motivo ele me lembra o propósito da exposição transcendental, pois ele parece
pretender provar a possibilidade de conhecimentos sintéticos apriori incontestes (os
axiomas do tempo) a partir de um “conceito” (a forma tempo) cuja pureza, uma vez
em disputa, agora ele quer estabelecer.)
(Antes de tratar desse parágrafo, talvez seja interessante mencionar a sua brevidade, bem
como o fato de que ele não constava na primeira edição da crítica, o que parece indicar que,
de algum modo, a exposição transcendental do conceito de tempo não parecia assim tão
necessária aos propósitos da filosofia crítica quanto a exposição do espaço, bem mais
extensa e presente desde o texto original.)
TESES: o tempo é forma pura do sentido interno, ou seja, forma pura da intuição interna, por
meio da qual se condiciona também as representações do espaço. Logo, o tempo tem certa
primazia sobre o espaço. O tempo é irreal do ponto de vista noumênico, ideal do ponto de
vista transcendental, e real do ponto de vista empírico.
a) O tempo não é algo que subsista por si mesmo, pois assim ele seria algo real mesmo
sem objeto real. (Isso significa que a objetividade do tempo não é inerente a ele, e
que sua realidade depende de uma objetividade a qual ele não pode sozinho aceder?)
A falta de figura do tempo é por nós suprida por meio de analogias com intuições
externas, como uma linha reta que prossegue “ao infinito”, na qual o diverso se
exprime em uma série de uma só dimensão, uma continuidade. Das propriedades da
linha inferimos as do tempo, mas não conseguimos, apesar disso, inferir a sucessão
que caracteriza o tempo da simultaneidade dos pontos da reta.
No entanto, já por essa possibilidade de analogia prova-se novamente que o tempo é
uma intuição, pois, mesmo que seja forma da intuição interna, uma intuição externa é
capaz de exprimir ainda assim suas relações.
Desse modo, se digo que todos os fenômenos externos são determinados a priori por
relações de espaço, segundo os princípios formais do sentido externo, então devo
dizer, com igual universalidade, que todos os fenômenos em geral, isto é, todos os
objetos dos sentidos estão no tempo e são determinados por relações temporais.
Conclui-se que, enquanto o tempo é condição imediata do sentido interno, da intuição
de nossa própria alma, o tempo também é, por outro lado, condição mediata do
sentido externo, por meio do qual nos são dados os fenômenos fora de nós, pois,
embora o tempo não se relacione diretamente com os objetos do sentido externo, ele
condiciona toda representação que é produzida a partir da sensibilidade.
Se, por um lado, não se pode dizer que todas as coisas em geral estão no tempo, sem levar
em consideração as condições sob as quais as coisas aparecem a nós enquanto objetos,
deve se dizer que todas as coisas, enquanto fenômenos, objetos de nossa intuição sensível,
estão necessária e universalmente no tempo, pois o tempo pertence a representação das
coisas por meio da qual elas se constituem como objetos para nós.
Por isso, talvez, é que não basta negar a realidade absoluta do tempo e afirmar sua validade
objetiva no âmbito empírico. Deve-se estabelecer o campo em que ele deverá ser pensado e
analisado, ou seja, o campo transcendental, das condições de possibilidade da experiência,
e, portanto, também o modo como ele forçosamente deverá ser conhecido, isto é, não
enquanto ente em si, mas enquanto forma pura da intuição humana.
Da perspectiva kantiana é necessário que assim seja pois não pode haver mais espaço para
considerações ontológicas sobre o tempo. Na verdade, a partir da crítica não pode haver
propriamente uma ontologia. Kant escreve na Analítica transcendental: “As proposições
fundamentais [do entendimento] são apenas princípios da exposição dos fenômenos e o
orgulhoso nome de ontologia, que se arroga a pretensão de oferecer, em doutrina sistemática,
conhecimentos sintéticos a priori das coisas em si (p. ex., o princípio da causalidade) tem de
ser substituído pela mais modesta denominação de simples analítica do entendimento puro”
(B303). Suponho que, com as devidas alterações, o mesmo se aplica às formas puras da
sensibilidade na estética transcendental.
Considerações finais
O último período do parágrafo para mim foi bastante difícil. Não sei bem do que se trata
quando se diz “sub-repções das sensações”, quando se coteja isso com a idealidade, e
também não sei a que observação Kant se refere ao fim do parágrafo.
Ao menos levando em consideração o texto até aqui, parece interessante notar que a reflexão
filosófica que Kant faz na Estética sobre o tempo deliberadamente ignora uma série de temas
tradicionalmente ligados a questão filosófica da temporalidade. Não se fala em dimensões
temporais, passado, presente e futuro, nem em suas correspondentes atividades ou
faculdades mentais, como memória, atenção (ou “consciência”), expectativa (ou
“imaginação”).
Ao que me parece, os paradoxos ontológicos do tempo, cujo paradigma maior talvez ainda
seja Santo Agostinho (Livro XI das Confissões), não fazem mais sentido uma vez que se
compreenda o tempo não como um ente objetivo, mas como uma condição subjetiva, ligada
a nossa capacidade para a sensação, para a intuição das coisas, para a experiência que nos
é possível. Passa-se, assim, do pensamento ontológico sobre o que é o tempo enquanto um
ente objetivo para uma consideração do tempo enquanto uma forma da intuição responsável
pela própria objetividade das coisas enquanto fenômenos.
Parece fazer pouco sentido agora as problematizações do estatuto ontológico do tempo que
pareciam mostrar uma espécie de rarefação do ser do tempo, como vemos em Agostinho,
uma vez que, a partir de Kant, compreendemos o ser do tempo não de modo absolutamente
real, completamente objetivo no sentido das coisas tomadas em si mesmas, mas como uma
condição de nossa percepção das coisas enquanto objetos, um elemento constitutivo da
nossa constituição humana, bem como da objetividade das coisas enquanto fenômenos.
O problema de sua infinitude, por exemplo, não cai mais, a partir da noção de infinita
divisibilidade de intervalos de tempo, em contradições ontológicas, pois não se trata mais de
um infinito atualmente dado como objeto, mas de uma forma a priori que já é dada enquanto
absolutamente infinita, e portanto permite uma infinita possibilidade de divisão, como vimos
no ítem 4 do §2. O importante é que esse tempo não é agora de uma realidade absoluta, mas
de uma validade objetiva absoluta do ponto de vista empírico.
O texto de Kant até aqui me leva a crer que não há propriamente um ser infinito do tempo, no
sentido de uma matéria de nossa percepção e conhecimento que é dada em si mesma como
infinita, mas sim um tempo infinito que é mera forma, condição de possibilidade das coisas
enquanto objetos de nossos sentidos. É o caráter formal do tempo que permite que sua
infinitude não recaia em paradoxos ontológicos. Essa infinitude é ainda irrepresentável, como
fica claro, inclusive, pela analogia da linha geométrica, do ítem b do §6, mas é ao menos
concebível agora (Paráfrase de Lebrun, comentando a reformulação kantiana da definição de
espaço. LEBRUN, p.27). Ela pode seguir sendo pressuposta nas ciências da natureza, como
seria de todo modo, sem ser perturbada por elucubrações filosóficas dogmáticas.
O problema de um todo temporal também parece cair por terra. Dirá Lebrun a respeito da
consideração kantiana sobre o problema da infinita divisibilidade da matéria “Aqui, mais uma
vez, Kant fará entrar em jogo a lei da incomensurabilidade entre as noções puramente
intuitivas e as noções puramente intelectuais. Dizíamos agora há pouco: é falso aplicar a um
conceito puramente intelectual - o Todo infinito, a lei da intuição.” (LEBRUN, p.32). Se o tempo
é também uma das formas puras da intuição, e condição a priori dos fenômenos em geral,
talvez se possa dizer também que não se pode presumir que o tempo enquanto intuição pura
deve imediatamente respeitar a noção de todo infinito e assim se justificar desse ponto de
vista intelectual para ter sua possibilidade garantida em absoluto. Os filósofos que encontram
paradoxos ontológicos em suas reflexões sobre o tempo, de modo geral, tomam por
inconcebível e contraditório, em absoluto, aquilo que é tão somente irrepresentável na
intuição. (Paráfrase lebrun, p.27)
Por fim, cito uma passagem de Lebrun acerca do tratamento filosófico kantiano sobre o
espaço, mas que talvez também se aplica à reflexão sobre o tempo.
O papel do filósofo não consiste, pois, em provar ao físico que ele tem
razão, mas em colocar ao abrigo de todos os ataques possíveis da
metafísica dogmática "um teorema doravante físico". "Disso se segue,
dirá a Crítica da Razão Pura, que os fenômenos em geral não são nada
fora de nossas representações." E Kant acrescenta: aqueles que não
tivessem sido convencidos pela exposição mesma dessa doutrina do
fenômeno o serão, talvez, por essa prova indireta. De nossa parte,
pensamos que "a prova indireta" nos instrui melhor sobre a origem e a
função da noção de fenômeno e nos faz compreender que o "idealismo"
kantiano é bem menos uma teoria do conhecimento que uma estratégia
anti metafísica.” (LEBRUN, p.33)