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BIBLIOTECA DE FILOSOFIA

E HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS


VOL. 22

Coorde1zador
Roberto Machado
Roberto Machado

Nietzsche e a verdade
© Roberto Machado

CIP-Brasil. Catalogação-Na-Fonte

(Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil)


Machado, Roberto Cabral de Melo, 1942-
Nietzsche e a verdade/ Roberto Machado. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
ISBN 85-7038-007-0

M133n

1. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900. 2. Arte de ciência.


3. Metafísica. 4. Verdade. 5. Ética.
I. Título.

99-0152 CDD-193
CDU-1(43)

EDIÇÓES GRAAL LTDA.


R. Hermenegildo de Barros, 31-A- Glória
20241-040- Rio de Janeiro-RJ
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Fax: (011) 223-6290

1999
Impresso no Brasil I Printed in Brazil
Sumário

INTRODUÇÃO . . .. . . .... . . . . . . . .............. . . . 7

I
ARTE E CIÊNCIA

1. A arte trágica e a apologia da aparência ... . . . . . . . .. 17

2. Metafísica de artista e metafísica racional. . .. . . . . .. . .. 29

3. Arte e "instinto de conhecimento" . .. . . . . . ... .. . .. . 35

li
CIÊNCIA E MORAL

1.Conhecimento e tipos de vida .. . . . . . . . .. . . .. . . . . . . 51

2. Genealogia da moral e vontade de potência . . ...... . 59

3. A "vontade de verdade" .... ... . . . . .. . . .. .. . ... . 75


.

III
V ERDADE E VALOR

1.A transvaloração de todos os valores. ... ... . .. .. .. . 85

2. O conhecimento e a perspectiva da potência .... . .... 91


3.As estratégias da crítica da verdade . .... . . . ....... . 99

5
INTRODUÇÃO

A reflexão sobre a oencia. isto é, uma investigação


sobre as questàes afins do conhecimento, do pensamento, do
intelecto, da razão, da consciência, do conceito, da verdade,
encontra-se no âmago da filosofia de Nietzsche.
Tema constante de seus estudos, dos primeiros aos últi­
mos textos, a presença desta problemática não indica porém a
elaboração de um conceito de ciência. Situando-se em uma
perspectiva tão global que, na maioria das vezes, não esta­
belece uma diferença essencial entre a racionalidade filosófica
clássica e a racionalidade científica moderna, o que interessa a
Nietzsche é realizar uma crítica radical do conhecimento ra­
cional tal como existe desde Sócrates e Platão.
Se não existe em Nietzsche propriamente uma questão
epistemológica, se ele formula uma recusa de uma teoria do
conhecimento, é porque o problema da ciência não pode ser
resolvido no âmbito da própria ciência. Em outras palavras,
não tem sentido criticar a ciência em nome ou a partir da
ciência visando a seu aperfeiçoamento, ao estabelecimento de
uma verdade cada vez mais científica. A ciência. considerada
pela primeira vez como problemática, suspeita, questionável,
foi o problema novo, "terrível" e "apavorante" tematizado por
Nietzsche.
Fundamentalmente esta crítica da ciência é uma crítica da
verdade. Não no sentido de procurar estabelecer um conceito
rigoroso e sistemático de verdade, de denunciar as ilusàes, de
superar os obstáculos à realização da racionalidade. Ponto cen­
tral do ambicioso projeto de "transvaloração de todos os valores",
a investigação sobre a verdade é uma crítica da própria idéia
de verdade considerada como um "valor superior", como ideal;
uma crítica, portanto, ao próprio projeto epistemológico.

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Roberto Machado

Negando à ciência a possibilidade de ela mesma elucidar


sua questão, negando a uma crítica interna do conhecimento a
possibilidade de se constituir como uma verdadeira crítica, o
essencial da démarche consiste em articular a ciência com uma
exterioridade capaz de revelar as reais dimensões e os ob­
jetivos do projeto científico; consiste em explicitar os funda­
mentos morais da ciência, apontando, ao mesmo tempo, a arte
como um modelo alternativo para a racionalidade. Daí o pri­
vilégio da arte e da moral como instâncias que possibilitam o
discurso nietzschiano sobre a ciência, indicando-lhe suas duas
direções principais.
A oposição entre arte e conhecimento racional percorre
toda a obra de Nietzsche, que valoriza a arte trágica ao com­
bater a pretensão, que caracteriza a ciência, de instituir uma
dicotomia total de valores entre a verdade e o erro . Essa anti­
nomia é fundamental: o "espírito científico" - que nasce na
Grécia clássica com Sócrates e Platão e dá início a uma idade
da razão que se estende até o mundo moderno, que Nietzsche
chega a chamar de "civilização socrática" - tem como con­
dição a repressão da arte trágica da Grécia arcaica. Aí se en­
contra o modelo que lhe permite pôr em questão, ao assinalar
o seu nascimento, o valor da racionalidade, ressaltando a posi­
tividade da arte como experiência trágica da vida. Colocar-se
na escola dos gregos é aprender a lição de uma civilização
trágica para quem a experiência artística é superior ao conhe­
cimento racional, para quem a arte tem mais valor do que a
verdade. Se Sócrates e Platão significam o início de um grande
processo de decadência que chega até nossos dias é porque os
instintos estéticos foram desclassificados pela razão, a sabe­
doria instintiva reprimida pelo saber racional.
Se a tese de um antagonismo entre arte e ciência é carac­
terística de toda a obra de Nietzsche, ela não mereceu, no
entanto, a mesma atenção em termos de análise em todas as
fases de sua reflexão. Cronologicamente a questão da ciência e
da verdade, que se constitui como o ponto central de sua
reflexão, aquilo para o qual tudo converge, é marcada por um
deslocamento de uma análise da experiência artística - con-

8
J
·
Nietzsche e a verdade

siderada como única antagonista da ciência - para uma aná­


lise da moral, considerada como aquilo que dá sentido, que dá
valor ao conhecimento. Assim, enquanto a oposição entre arte
e racionalidade é tematizada de modo mais explícito nos escri­
tos que compõem o primeiro período de sua obra, de 1869 a
1876, a crítica da moral se impõe como a questão mais cons­
tante a partir de Humano, demasiado humano. Deslocamento
que não é total na medida em que a preocupação com a moral
já aparece nos primeiros escritos, embora seja mais assinalada
do que desenvolvida, como se só progressivamente fosse sen­
do descoberta sua importância como fundamento da racionali­
dade; por outro lado, a reflexão sobre a arte também não
desaparece dos últimos escritos, depois que foi descoberto o
fi�ão da moraL Mesmo que importantes precisões sobre a no­
ção de trágico sejam introduzidas, a questão da arte não me­
rece mais a atenção dos primeiros textos. Isto porque a posi­
ção de Nietzsche já estava firmada desde o primeiro momento:
a arte é mais importante do que a ciência .
A segunda direção da reflexão nietzschiana é o proJl!ndo
parentesco entre a ciência e a moraL Sua idéia é clara: se há
Ôposição entre ciência e arte, há continuidade entre ciência e
moraL Nietzsche suspeita justamente da independência da ciên­
cia com relação à moral, assim como da pretensa oposição
entre as duas. A ciência não está isenta de juízos de valor; mais
ainda: é a moral que dá valor à ciência. Uma genealogia da
verdade, tal como Nietzsche a elabora nesse momento, só pode
ser feita no âmbito de uma genealogia da moral, posição que não
implica uma teoria do conhecimento nem mesmo uma moraL A
perspectiva que estabelece uma relação intrínseca entre ciência e
moral é propriamente uma genealogia da vontade de potência:
uma análise histórico-filosófica dos valores em que a moral, em
vez de ser ponto de vista crítico para avaliar o conhecimento, é
ela mesma avaliada de um ponto de vista "extramoral", capaz de
atingir as bases morais do projeto epistemológico.
Pensando a ciência a partir de seu antagonismo com a
arte e de sua continuidade com a moral, o que faz Nietzsche é
avaliar o conhecimento racional e a pretensão de verdade por

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Roberto Machado

meio de dois fenômenos culturais profundamente heterogê­


neos - um considerado positivo e o outro negativo - que
exprimem um aumento ou diminuição de força, de potência. A
arte expressa uma superabundância de forças: remete aos ins­
tintos fundamentais, à vontade apreciativa de potência. A mo­
ral atesta uma deficiência de forças: remete a instintos secun­
dários, mais fracos, à vontade depreciativa de potência.
Malgrado as diferenças conceituais, as transformações me­
todológicas e as variações de perspectiva, a idéia de avaliar a
verdade a partir da dimensão das forças é um importante in­
variante da filosofia de Nietzsche. Neste sentido, a crítica do
niilismo e da decadência e a proposta de uma transvaloração
de todos os valores implicam uma reflexão sobre a vida como
criação de valor.

Este livro se compõe de três partes.


A primeira parte trata da relação entre arte e ciência. Pre­
tendo, primeiramente, expor a noção nietzschiana de "metafí­
sica de artista" estudando os dois "instintos estéticos da na­
tureza" - o apolíneo e o dionisíaco - que estão na base da
arte trágica. Trata-se sobretudo de mostrar em que sentido a
filosofia da arte que Nietzsche realiza na primeira etapa de sua
reflexão - como aspecto positivo e normativo de sua crítica à
racionalidade - se estrutura através das categorias metafísicas
de essência e aparência. Isto é, diferentemente de textos poste­
riores em que pensa a vida como aparência ou em que pre­
tende eliminar a oposição essência-aparência, nesta época, sob
a influência de Kant e Schopenhauer, sua filosofia parte das
dicotomias entre aparência e essência, fenômeno e coisa em si,
representação e vontade para tematizar a relação entre beleza
e verdade e, por conseguinte, entre apolíneo e dionisíaco. Pre­
tendo mostrar que, embora trabalhe com a oposição metafísica
essência-aparência, a grande singularidade do pensamento filo­
sófico de Nietzsche nesta época é fazer uma apologia da apa­
rência como necessária à vida e a única via de acesso à essên­
cia: uma apologia, portanto. da arte.

10
Nietzsche e a verdade

Estudarei, em segundo lugar, a antinomia entre metafísica


racional e metafísica de artista, ou em que sentido o racionalis­
mo estético socrático é o marco que assinala a morte da arte
trágica. Análise do aparecimento das categorias de razão, cons­
ciência, crítica, clareza do saber como princípios que devem
nortear e avaliar a criação artística; análise da oposição entre
instinto estético e instinto racional, entre a força da arte e a
força do conhecimento, considerados como matrizes de dois
diferentes tipos de saber; análise da questão da verdade nas
perspectivas da metafísica de artista e da metafísica socrática a
partir da relação entre essência e aparência.
Estudarei, finalmente, como a crítica à verdade científica
já se faz nos textos imediatamente posteriores a O nascimento
da tragédia sem referência ao projeto de metafísica de artista.
Neste momento o fundamental da análise passa a ser a crítica
ao instinto ilimitado de conhecimento pela explicação de sua
gênese - que já detectará o seu solo moral - e pela afir­
mação da relatividade do conhecimento, de seu "antropomor­
fismo", de sua força dominante de ilusão. O que conduzirá à
apologia da arte e da filosofia trágicas como forças capazes de
controlar o instinto de conhecimento e instaurar um tipo de
vida e de conhecimento determinado por valores artísticos.
A segunda parte trata da relação entre ciência e moral tal
como foi reformulada sobretudo a partir de Assim falou Zara­
tustra. Pretendo, em primeiro lugar, mostrar como a questão
da ciência, que continua sendo fundamentalmente a questão
da verdade, não pode ser elucidada através de uma análise
interna da própria ciência, mas remete necessariamente a uma
genealogia da moral: não uma teoria moral, mas uma teoria da
vontade de potência em que a vida é considerada como prin­
cípio último de avaliação tanto do conhecimento quanto da
moral.
Em seguida, analisarei o projeto de constituição de uma
genealogia da moral que investiga o nascimento e o valor da
moral judaico-cristã, expondo as três figuras fundamentais que
possibilitam inclusive definir o niilismo: o ressentimento, a má­
consciência e o ideal ascético. A análise histórico-filosófica da

11
Roberto Machado

moral também remete à concepção da vida como força, como


potência ou como vontade de potência que lhe serve de fun­
damento. E o que se revela, então, é a grande antinomia entre a
moral e a vida: a moral, como manifestação da fraqueza e insur­
reição contra a vontade afirmativa de potência, é uma negação
da vida, um combate contra seus valores mais fundamentais .
Será então possível compreender como a genealogia da
moral é o fundamento de uma genealogia da verdade: o ele­
mento-chave da argumentação é o conceito de vontade de
verdade . A articulação entre ordem epistemológica e ordem
moral ou o estabelecimento das condições de possibilidade
morais da ciência se realiza pela relação entre vontade de ver­
dade e vontade de potência. A vontade de verdade, que é a
crença de que nada é mais necessário do que o verdadeiro, de
que o verdadeiro é superior ao falso, de que a verdade é um
valor superior - crença que funda a ciência e constitui a es­
sência da moral e da metafísica - é a expressão de uma
vontade negativa de potência. Se a ciência não se opõe ao
niilismo moral e deve mesmo ser considerada sua forma mais
recente e mais bem elaborada é porque a vontade de verdade
que a caracteriza se encontra no âmago do ideal ascético.
A terceira parte trata da relação entre verdade e valor
situando a posição central que a questão da verdade ocupa no
projeto de "transvaloração de todos os valores" . Pretendo, em
primeiro lugar, analisar como toda a filosofia de Nietzsche é
uma filosofia do valor no sentido de uma crítica radical dos
valores dominantes na sociedade moderna e uma proposta de
transformação do próprio princípio de avaliação de onde deri­
vam os valores . Se a criação de valores superiores - porque
não existe valor em si, todo valor é criado - é expressão do
tipo negativo de vontade de potência, a vontade afirmativa de
potência é o princípio de uma nova instituição de valores. A
questão do valor, e da verdade como valor, remete, portanto, à
avaliação e esta à vontade de potência .
Aprofundarei, em seguida, esta condição básica da trans­
valoração de todos os valores assinalando a importância que
na filosofia de Nietzsche têm os instintos ou os impulsos con-

J
12
Nietzsche e a verdade

siderados como um conjunto de forças, inconscientes e quali­


tativamente diferentes, em luta. A "fisiologia da potência" é
uma concepção do corpo como sede de um conjunto de ins­
tintos em relação que funciona como uma crítica das defi­
nições do homem pela consciência ou pela razão - o niilismo
é a subordinação dos instintos fundamentais à consciência, à
razão - e explica como e por que uma teoria do conhe­
cimento é substituída por uma teoria da perspectiva dos instin­
tos que considera o conhecimento como a expressão dessa
pluralidade de forças em luta .
Voltarei, finalmente, à problemática da verdade para assi­
nalar a .inflexão que sofre a trajetória histórica de sua reflexão
de uma metafísica de artista para uma genealogia dos valores.
Mas sobretudo para tematizar, na análise genealógica, a coexis­
tência - pois não se trata de uma "evolução" - de perspecti­
vas estratégicas diferentes sobre a verdade: denúncia da ver­
dade como mentira e reivindicação da aparência como única
realidade - sem dúvida, procedimento de inversão da me­
tafísica; superação da oposição metafísica de valores, que é a
última e mais radical palavra de Nietzsche . Criticando a opo­
sição de valores que está na origem da metafísica, da moral, da
ciência e propondo a arte trágica , dionisíaca, como única força
·capaz de se opor ao niilismo, à negação da vida, uma das
grandes criações da filosofia de Nietzsche é a exigência de
uma perspectiva para além de bem e mal e de verdade e erro.

13
I
ARTE E CIÊNCIA
J
1

A arte trágica e a apologia da aparência

O que é a arte? Que importância tem ela para a vida?


Que relação mantém com a força e a fraqueza? As respostas a
essas questões fundamentais de sua filosofia, Nietzsche as su­
gere, desde o primeiro momento, a partir de uma reflexão
sobre a Grécia arcaica que sempre lhe serviu de modelo privi­
legiado na crítica aos valores da decadência.
Se é possível estabelecer um ponto de partida de sua
reflexão sobre a arte na Grécia, este se encontra na correlação
entre uma sensibilidade exacerbada para o sofrimento e uma
extraordinária sensibilidade artística que caracteriza os gregos e
que se explica pela força de seus instintos. "Por causa da força
de todos os seus instintos a vida dos helenos era mais rica em
sofrimentos. Qual era o antídoto?" 1
Extremamente sensível, capaz d e grande sofrimento, bas­
tante vulnerável à dor, o grego tem nessa condição um perigo
para a vida: a dolorosa violência da existência pode levá-lo ao
pessimismo, à negação da própria existência. A materialidade
desse pessimismo radical constitui o que Nietzsche denomina
"sabedoria popular''/ "filosofia do povo"3 da Grécia e ilustra
pela sabedoria de Sileno, personagem lendário, companheiro
de Dioniso. Diz a lenda que Midas, rei da Prígia, encontrando
nos bosques o sábio Sileno, que por lá vivia bebendo, rindo e
cantando, pergunta-lhe o que existe de mais desejável para o
homem, isto é, qual é o bem supremo. A princípio sem querer
responder, pressionado, o sábio afmal responde: "Miserável raça
de efêmeros, filhos do acaso e da pena, por que me obrigar a
dizer o que não tens o menor interesse em escutar? O bem
supremo te é absolutamente inacessível: é não ter nascido, não
ser, nada ser. Em compensação, o segundo dos bens tu podes
ter: é logo morrer". 4

17
Roberto Machado

A arte grega tem origem nesta problemática. Arte e re­


ligião estão, para os gregos, intimamente ligadas, ou melhor,
são idênticas: o mesmo instinto que produz a arte produz a
religião. 5 Por que os gregos criaram os deuses olímpicos ou a
arte apolínea1' Para tornar a vida possível ou desejável, dando ao
mundo uma superabundância de vida. A criação da arte apo­
línea, que tem na epopéia homérica sua mais importante reali­
zação, é a expressão de uma necessidade. "A vida só é possível
pelas miragens artísticas"/ esta idéia acompanha Nietzsche em
toda sua reflexão. Mas neste momento ela possui um sentido
preciso: para que o grego, povo mais do que qualquer outro
exposto ao sofrimento, pudesse viver foi necessário mascarar
os terrores e atrocidades da existência com os deuses olímpi­
cos, deuses da alegria e da beleza, resplandecentes filhos do
sonho.
A epopéia, poesia da civilização apolínea, é um modo de
reagir a um saber pessimista do aniquilamento da vida. A im­
portância da arte apolínea, sua força maravilhosa como an­
tídoto, é ser capaz de inverter a sabedoria de Sileno, o deus
silvestre, criando a evidência que "o mal supremo é morrer
logo, o segundo dos males é ter que morrer um dia" .8 Os
deuses olímpicos não foram criados como uma maneira de
escapar do mundo em nome de um além-mundo, nem ditam
um comportamento religioso baseado na ascese, na espirituali­
dade, no dever; são a expressão de uma religião da vida, intei­
ramente imanente, religião da beleza como floração - e não
da falta -, que diviniza o que existeY
Divinizar, neste contexto, significa fundamentalmente tor­
nar belo, embelezar. A arte apolínea é a arte da beleza: se os
deuses olímpicos não são necessariamente bons ou verdadei­
ros - como o deus das religiões morais depois analisadas por
Nietzsche -, eles são belos. Para o grego beleza é medida,
harmonia, ordem, proporção, delimitação mas também signi­
fica calma e liberdade com relação às emoções, isto é, sereni­
dade. Contra a dor, o sofrimento, a morte o grego diviniza o
mundo criando a beleza. "Não existe belo natura1.''10 O mundo

18
Nietzsche e a verdade

grego da beleza é o mundo da "bela aparência"; a beleza é


uma aparência.
A questão da aparência é central em toda a filosofia de
Nietzsche. Em O nascimento da tragédia e nos escritos e frag­
mentos póstumos desta época seu pensamento se estrutura,
inspirado em Kant e Schopenhauer, utilizando as dicotomias
essência e aparência, coisa-em-si e fenômeno, vontade e repre­
sentação. "O homem filósofo tem mesmo o pressentimento que
sob a realidade em que vivemos e onde estamos se oculta uma
segunda, totalmente diferente, de tal modo que a realidade
também é uma aparência."11 Se a beleza é uma aparência é
porque há u�a verdade que é a essência. Mais ainda: a beleza
é uma aparência, um fenômeno, uma representação que tem
por objetivo mascarar, encobrir, velar a verdade essencial do
mundo. Para escapar do saber popular pessimista, o grego cria
um mundo de beleza que, ao invés de expressar a verdade do
mundo, é uma estratégia para que ela não ecloda. Produzir a
beleza significa se enganar na aparência e ocultar a verdadeira
realidade. "O que é belr?. - uma sensação de prazer que nos
oculta em seu fenômeno as verdadeiras intenções da vontade
[. .. ] Objetivamente: o belo é um sorriso da natureza, uma su­
perabundância de força e de sentimento de prazer da existên­
cia [. ..] Negativamente: a dissimulação do infortúnio, a supres­
são de todas as rugas e o olhar sereno da alma da coisa [. . .] O
alvo da natureza neste belo sorriso de seus fenômenos é se­
duzir outras individualidades em favor da existência."12 Não é
pelo Belo que as coisas belas são belas. Quando se diz que
algo é belo apenas se diz que tem uma bela aparência, sem
nada se enunciar sobre sua essência. Mascarando a essência, a
vontade, a verdadeira realidade, a beleza é uma intensificação
das forças da vida que aumenta o prazer de existir.
Trata-se porém de uma aparência necessária. Uma das
teses principais de O nascimento da tragédia, sua "hipótese
metafísica", é que o ser verdadeiro, o "uno originário" tem
necessidade da bela aparência para sua libertação; uma liber­
tação da dor pela aparência.15 A "vontade", termo que é utili­
zado por Nietzsche no sentido que tem em Schopenhauer de

19
Roberto Machado

núcleo do mundo, essência das coisas, mundo visto de dentro,


ou "força que eternamente quer, deseja e aspira", 14 tem neces­
sidade do apolíneo como consciência de si. "Conhece-te a ti
mesmo" é o lema apolíneo. O mundo apolíneo da beleza é o
mundo da individuação (do indivíduo, do Estado, do patri­
otismo), da consciência de si. A individualidade, a consciência,
é uma aparência, uma representação do uno originário; através
do principium individuationis se produz a transfiguração da
realidade que caracteriza a arte: é isso que constitui o processo
artístico originário. E a necessidade dessa transfiguração ar­
tística, esse "desejo originário de aparência" é o que possibilita
a muralha capaz de resistir à sabedoria pessimista de Sileno.
"Com os gregos a 'vontade' queria se contemplar nesta trans­
figuração que lhe ofereciam o gênio e o mundo da arte [. ] Por
. .

um jogo de espelho da beleza, em que os gregos viam os


deuses como seus belos reflexos, a 'vontade' helênica comba­
tia a aptidão, correlata ao dom artístico, para o sofrimento e
para a sabedoria do sofrimento. E o monumento dessa vitória
é Homero, o artista ingênuo, que se eleva diante de nós."15 O
mundo dos deuses olímpicos é um espelho que transfigura a
"vontade" que desejava se contemplar nesta transfiguração.
Assim, o primeiro importante resultado da análise nietzschia­
na, ao mostrar como os gregos ultrapassaram, encobriram ou
afastaram um saber que ameaçava destruí-los, graças a uma
concepção apolínea da vida, é o elogio da aparência. A apolo­
gia da arte já significa, como sempre significará para Nietzsche,
uma apologia da aparência como necessária não apenas à ma­
nutenção, mas à intensificação da vida.

Mas isso não é tudo nem mesmo o mais fundamental.


Esse primeiro resultado é ainda preliminar inclusive para a con­
cepção da aparência, que adquire toda sua importância
quando é pensada além das fronteiras de uma arte apolínea. A
razão é que a consciência apolínea é apenas um véu - o véu
de Maia - que dissimula ao grego um mundo que, pelo que
encerra de verdade, não pode ser ignorado. Pretendendo substi­
tuir o mundo da verdade, ou a verdade do mundo, pelas belas

20
Nietzsche e a verdade

formas, a arte apolínea deixa de lado algo essencial; virando as


costas para a realidade, dissimulando a verdade, ela desconsid­
era o outro . instinto estético da natureza que não pode ser
esquecido - o dionisíaco.
Para que se possa compreender a concepção nietzschiana
do dionisíaco e inclusive avaliar as semelhanças e diferenças
que ela encerra com relação ao que Nietzsche posteriormente
afirmará, é preciso salientar que o dionisíaco, considerado como
aniquilador da vida, a que a arte apolínea se contrapõe, não é
propriamente grego. Para o grego apolíneo ele é pré-apolíneo,
isto é, titânico, ou extra-apolíneo, isto é, bárbaro. Dioniso é o
deus· de uma religião que vem do estrangeiro. Mas o culto,
vencendo a resistência apolínea, foi, pouco a pouco, penetrando
na Grécia e se afirmando, como se pode ver em As bacantes
de Eurípedes.
Foi um momento de grande perigo e grande medo para o
mundo grego. "As musas das artes da 'aparência' empalideciam
diante de uma arte que, em sua embriaguez, proclamava a
verdade e em que a sabedoria de Sileno gritava: 'Infelicidade!
Infelicidade!' na cara da serenidade olímpica. O indivíduo -
seus limites e sua medida - caía no esquecimento de si carac­
terístico dos estados dionisíacos e perdia completamente a me­
mória dos preceitos apolíneos. A desmesura se desvelava co­
mo a verdade; a contradição e a volúpia nascida da dor se
expressavam do mais profundo da natureza."16 O novo culto
da religião dionisíaca punha em questão os valores mais fun­
damentais da Grécia. A oposição entre os dois instintos, as
duas pulsões, as duas potências, as duas forças artísticas da
natureza_ - o apolíneo e o dionisíaco - era totalP A expe­
riência dionisíaca, em vez de individuação, assinala justamente
uma ruptura com o principium individuationis e uma total
reconciliação do homem com a natureza e os outros homens,
uma harmonia universal e um sentimento místico de unidade;
em vez de autoconsciência significa uma desintegração do eu,
que é superficial, e uma emoção que abole a subjetividade até
o total esquecimento de si; em vez de medida é a eclosão da
hybris, da desmesura da natureza considerada como verdade e

21
Roberto Machado

"exultando na alegria, no sofrimento e no conhecimento";18 em


vez de delimitação, calma, tranqüilidade, serenidade, é um com­
portamento marcado por um êxtase, por um enfeitiçamento,
por uma extravagância de frenesi sexual que destrói a família,
por uma bestialidade natural constituída de volúpia e cruelda­
de, de força grotesca e brutal; em vez de sonho , visão onírica,
é embriaguez, experiência orgiástica.
Dessa forma , o êxtase dionisíaco produz, enquanto dura,
um efeito letárgico que dissipa tudo o que foi vivido no pas­
sado: é uma negação do indivíduo, da consciência, do Estado,
da civilização, da história. Metamorfoseados em sátiros e si­
lenos, seres da natureza protótipos do homem verdadeiro, os
"loucos de Dioniso" desintegram o eu, a consciência, a indi­
vidualidade e se sentem na verdadeira natureza.
Mas há ainda um segundo perigo decorrente do primeiro:
o pesar, o desgosto pela existência, o sentimento de que tudo
é absurdo, impossível, que aparece com a volta ao estado de
consciência. O conhecimento, ou mais precisamente, porque
não se trata rigorosamente de conhecimento, a emoção, a ex­
periência dionisíaca tendo significado um acesso à verdade da
natureza, uma verdade que mostra que a natureza é desme­
surada ou que verdade é desmesura, faz o homem compreen­
der a ilusão em que vivia ao criar um mundo de beleza jus­
tamente para, mascarar a verdade. A visão da essência eterna e
imutável das coisas faz com que ele desista de agir e construir
uma civilização. A civilização, que é um mundo aparente, fe­
nomenal, é revelada como impostura pela natureza, pelo nú­
cleo eterno das coisas, pela verdade dionisíaca. "Quando a
consciência foi penetrada por essa verdade, o homem só vê
em tudo o horror e o absurdo do ser [ . . .] Reconhece então a
sabedoria de Sileno, o deus silvestre. E é tomado pelo des­
gosto."19 Neste sentido, a experiência dionisíaca é uma "em­
briaguez do sofrimento" que destrói o "belo sonho".

Não é esse porém o dionisíaco de que Nietzsche fará o


elogio. Expondo suas características, ressaltando seus perigos,
seu terrível instinto destruidor, o filósofo visa a realçar ainda

22
Nietzsche e a verdade

mais a importância do novo antídoto que contra ele foi criado.


Porque é novamente pela arte que o grego é salvo do perigo
representado por essa religião dionisíaca bruta, selvagem, na­
tural, destruidora. Ou melhor, pela segunda vez a própria vida
salva o grego utilizando a arte como instrumento. "A arte o
salva, mas pela arte é a vida que o salva em seu proveito" , diz
Nietzsche enunciando um pensamento que cada vez adquirirá
mais importância em sua filosofia20. Novo tipo de arte, que
representa o apogeu da civilização grega, que não pretende
mais estabelecer uma trincheira, um anteparo, uma muralha
que impossibilite a entrada e a expansão do dionisíaco, como
procurou fazer a arte apolínea, a poesia épica. A característica
da nova estratégia artística é integrar, e não mais reprimir, o
elemento dionisíaco transformando o próprio sentimento de des­
gosto causado pelo horror e pelo absurdo da existência em
representação capaz de tornar a vida possível. Mérito ainda de
Apolo, mérito do deus do sonho e da beleza, porque mérito
da arte. Se desta vez Apolo salva o mundo helênico atraindo a
verdade dionisíaca para o mundo da bela aparência é porque
transforma um fenômeno natural em fenômeno estético. E se
essa transformação do dionisíaco puro, bárbaro, oriental em
arte salva a civilização grega é porque integra a experiência
dionisíaca ao mundo helênico aliviando-a de sua força destrui­
dora, de seu "elemento irracional", espiritualizando-a.21 A ilu­
são apolínea, característica da arte, liberta da opressão e do
peso excessivo do dionisíaco, 22 permitindo à emoção se des­
carregar em um domínio apolíneo.23
É esta arte apolíneo-dionisíaca, reconciliação entre Apolo e
Dioniso,Z4 que constitui para Nietzsche o momento mais im­
portante da arte grega.2s Importância que ele exprime em ter­
mos médicos afirmando que ela possui um verdadeiro efeito
terapêutico, é um eficaz ato de cura: a arte dionisíaca trans­
forma um veneno - a poção mágica, o filtro das feiticeiras -
em remédio, retirando de Dioniso suas "armas destruidoras" . 26
"O pavoroso filtro das feiticeiras feito de volúpia e crueldade
perdia a força: apenas o lembravam - mas como os remédios
lembram os venenos mortais - a surpreendente mistura nos

23

---
Roberto Machado

afetos e a duplicidade dos loucos de Dioniso . . . "27 Se o puro


dionisíaco é um veneno, é porque é impossível de ser vivido;
é porque acarreta necessariamente o aniquilamento da vida. Se
a arte é capaz de fazer participar da experiência dionisíaca sem
que se seja destruído por ela, é porque possibilita como que
uma experiência de embriaguez sem perda de lucidez .28
A arte dionisíaca, a arte trágica é um jogo com a em­
briaguez, uma representação da embriaguez que tem justamen­
te por objetivo aliviar a embriaguez; ou, em outras palavras,
não propriamente embriaguez ou orgia, mas idealização da
embriaguez ou da orgia. "Mas se a embriaguez é o jogo da
natureza com o homem, a criação do artista dionisíaco é o
jogo com a embriaguez [. . .] O servidor de Dioniso deve estar
em estado de embriaguez e ao mesmo tempo permanecer pos­
tado atrás de si como um observador. Não é na alternância
entre lucidez e embriaguez, mas em sua simultaneidade, que
se encontra o estado estético dionisíaco."29 Essa noção de jogo
é fundamental para compreender a diferença entre o dioni­
síaco orgiástico e o dionisíaco artístico e como o grego, através
da beleza, reprimiu no dionisíaco bárbaro seus elementos des­
truidores, ensinando-lhe a medida e transformando-o em arte.
A arte trágica controla o que há de desmesurado no instinto
dionisíaco como se Apolo ensinasse a medida a Dioniso, ou
como se servisse a poção mágica, a bebida trágica, em sonho.
"A tragédia é bela30 na medida em que o movimento instintivo
que cria o horrível na vida nela se manifesta como instinto artís­
tico, com seu sorriso, como criança que joga. O que há de emo­
cionante e de impressionante na tragédia em si é que vemos o
instinto terrível tornar-se, diante de nós, instinto de arte e de
jogo."31 É evidente, portanto, a distinção assinalada por Nietzsche
entre as duas manifestações dionisíacas. Está claro também que o
dionisíaco artístico não se opõe ao apolíneo, mas supera esta
oposição justamente por ser artístico e implicar necessariamente
aparência. E, finalmente, . também o dionisíaco celebrado por ele
não é o do culto orgiástico mas o do artista trágico.
A arte trágica possibilita, portanto, a união entre a aparên­
cia e a essência. Sendo capaz de articular os dois instintos, as

24
Nietzsche e a verdade

duas pulsões artísticas da natureza, na medida em que trans­


põe em imagens os estados dionisíacos, a tragédia não se li­
mita, como a poesia épica, ao nível da aparência, mas possi­
bilita uma experiência trágica da essência do mundo. Só que
essa união, ela a estabelece através de um conflito. A tragédia
representa o conflito entre o apolíneo e o dionisíaco, entre o
principium individuationis e o uno originário; ou, mais pre­
cisamente, ela 'epresenta a derrota do saber apolíneo e a vi­
tória do saber dionisíaco na medida em que faz da individua­
ção um mal e a causa de todo sofrimento. "A forma mais
universal do destino trágico é a derrota vitoriosa ou a vitória
alcançada na derrota. A cada vez a individualidade é vencida:
e entretanto sentimos seu aniquilamento como uma vitória. Pa­
ra o herói trágico é necessário perecer, por onde ele deve
vencer. Nessa antítese, que faz pensar, nós pressentimos a su­
prema avaliação da individuação, como já evocamos uma vez:
o Uno originário tem necessidade dela para atingir o fim últi­
mo de seu prazer, de modo que o desaparecimento se torna
tão digno e venerável quanto o nascimento e que aquilo que
nasceu deve cumprir, com o desaparecimento, a tarefa que lhe
incumbe como individualidade."32 Na tragédia o destino do he­
rói é sofrer - como sofreu Dioniso quando foi despedaçado
- para fazer o espectador aceitar o sofrimento como inte­
grante -da vida.
Segundo Nietzsche a finalidade da tragédia é produzir ale­
gria. A tragédia, mostrando o destino do herói trágico como
sendo sofrer, não produz sofrimento mas alegria: uma alegria
que não é mascaramento da dor, nem resignação,33 mas a ex­
pressão de uma resistência ao próprio sofrimento. Idéia es­
boçada nesta época nos termos de uma "metafísica de artista"
que pretende conjugar na arte trágica aparência e essência: "A
alegria metafísica que nasce do trágico é a tradução, na lin­
guagem da imagem, da instintiva e inconsciente sabedoria dio­
nisíaca: o herói, manifestação suprema da vontade, é negado
para nosso prazer porque é apenas manifestação e porque o
seu aniquilamento em nada afeta a vida eterna da vontade ."34

25
Roberto Machado

Representando a luta e a vitória de Dioniso, a tal ponto que


todo herói deve ser compreendido como seu substituto ou sua
máscara, a alegria que proporciona a tragédia é o sentimento
de que o limite da individualidade será abolido e a unidade
originária restaurada.
Situando os valores a políneos como causa do sofrimento
humano, a tragédia nega os valores da aparência em nome da
unidade de tudo que existe, o que é a condição de um prazer
mais fundamental. A arte dionisíaca nos quer persuadir do pra­
zer eterno da existência, coisa em que Nietzsche sempre acre­
ditou. A diferença é que nesta época, pensando a partir das
categorias de essência e aparência, ele afirma que este prazer
só é possível à condição de o procurarmos não nos fenô­
menos, mas atrás deles. Na experiência trágica, que a arte pro­
porciona, o homem se torna o próprio ser originário, sentindo
o seu desejo e o seu prazer de existir: "não obstante terror e
piedade, conhecemos a felicidade de viver não como indiví­
duos, mas como este vivente único que engendra e procria e
no orgasmo de quem nos confundimos ."y; Enquanto a arte
apolínea nega - pela aparência, pela mentira, pela ilusão - o
sofrimento da vida e afirma a eternidade do fenômeno, a tra­
gédia nega o indivíduo justamente por ser fenômeno, mani­
festação, representação, afirmando a eternidade da vontade.36
Eis a estranha "consolação" que proporciona a tragédia: a
certeza ele que existe um prazer superior a que se acede pela
ruína e pelo aniquilamento do herói, da individualidade, da
consciência: pela destruição dos valores apolíneos. O que po­
deria dar a impressão de uma negação da aparência em nome
ela essência. Isso porém seria um equívoco, na medida em que
3 negação elos valores apolíneos só pode ser realizada em
forma ele representação. ele imagem, de ilusão, isto é, apo­
lineamente. Se o dionisíaco puro é aniquilador da viela, se só a
arte torna possí,·el uma experiência dionisíaca, não pode haver
dionisíaco sem apolíneo. A visão trágica do mundo, tal como
Nietzsche a interpreta nesse momento, é um equilíbrio entre a
ilusão e a verdade, entre a aparência e a essência : o único
modo de superar a radical oposição metafísica de valores.

26
Nietzsche e a verdade

Notas

1. Nietzsche, Fragmentos póstumos (Frag. Post.), final de 1870 - abril de


1871, 7 [531. Citarei (salvo aviso em contrário) pela edição Colli e Montinari
das obras completas de Nietzsche indicando o número do aforismo ou do
fragmento póstumo. Quando for necessário indicarei as páginas da edição
alemã da Deutscher Taschenbuch Verlag de Gruyter e da tradução francesa
da Gallimard.

2. O nascimento da tragédia (N.T.l, § 3.

3. '"A visão dionisíaca do mundo" (V. D.), § 2, in f.Scrituspôstumos.

4. .V T, § 3.

5. Cf. Frag. Post., 1871, 9 [102]; NT, § 3.

6. Nietzsche chama esse tipo de arte de apolínea porque considera Apolo o


deus mais importante do Olimpo.

7. Frag. Post., final de 1870- abril de 1871, 7 [1S2l.

8. N.T, § 3.

9. Cf. Frag. Post., inverno de 1869- primavera de 1870, 3 [42].

10. Frag. Post., final de 1870- abril de 1871, 7 [116].

11. N.T, § 1.

12. Frag. Post., final de 1870- abril de 1871, 7 [27].

13. Cf. NT, § 4.

14. NT, § 6.

15 N.T, § 3.

16..VT, § 4.

17. Sobre essas denominaçóes, cf N. T, § 1 e 2.

18. :V.T, § 4.

19. ,VT. § 7.

20. ,VT, § 7.

21. l'D. § 1. "Foi o pO\'O apolíneo que impôs os liames da beleza ao instinto
todo-poderoso: subjugou os elementos mais perigosos ela natureza. suas bes­
..
tas mais selvagens . Ibid.

22. Cf. N.T, § 21.

23. Cf. N.T, § 24.

24. Cf. Fraff. Post, im·erno de 1869-70, primavera de 1870, 3 [25].

2S. "Na realidade a tragédia helênica é apenas o signo anunciador de uma


civilização mais elez'ada: ela foi o ponto extremo que pôde atingir a heleni-

27
Roberto Machado

dade e também o mais alto. Esta etapa era a mais difícil de atingir. Nós
somos seus herdeiros." Frag. Post, setembro de 1870 - janeiro de 1871, 5 [94).
26. N.T, § 2.
27. N.T, § 2.
28. Crepúsculo dos ídolos, depois de afirmar que "o essencial da embriaguez
é o sentimento de plenitude e de intensificação das forças" ("incursões de
um intempestivo", § 8), caracteriza tanto o apolíneo quanto o dionisíaco
como estados de embriaguez e distingue-os pelo fato de que enquanto um
intensifica o olhar, o outro intensifica o sistema inteiro dos afetos. (Ibíd., §
10.)
29. V.D., § 1; cf. íbíd., § 3.
30. Às vezes Nietzsche distingue o belo do sublime. Um fragmento desta
época diz, por exemplo: "Se o belo tem como base um sonho do ser, o
sublime tem por base uma embriaguez do ser." Frag. Post., final de 1870 -
abril de 187.1, 7 [46).
3 1 . Frag. Post., final de 1870 - abril de 187 1 , 7 [29).
32. Frag. Post., final de 1870 - abril de 1871, 7 [128).
33. Cf. Frag. Post., primavera de 1884, 25 [951.
34. N.T, § 16.
35. N.T, § 17.
36. Cf. N. T, § 16.

28
2

Metafísica de artista e metafísica racional

(M etafísica de artista" é a concepção de que a arte é a


atividade propriamente metafísica do homem, a concepção de
que apenas a arte possibilita uma experiência da vida como
sendo no fundo das coisas indestrutivelmente poderosa e ale­
gre, malgrado a mudança dos fenômenos.1 Mas que significado
tem a apologia dessa experiência estética da verdade dioní­
síaca do mundo - experiência metafísica possibilitada pela
arte trágica grega - na estrutura mais geral da reflexão filo­
sófica de Nietzsche nessa época? Significa a criação de uma
"contra-doutrina'} de uma contra-noção, na luta contra a me­
tafísica e a ciência. Por um lado, é a formulação de uma de­
núncia: depois de ·uma vida breve, a arte trágica desapareceu
um dia bruscamente, tragicamente, do campo do saber grego
através de uma morte violenta e rápida cujos marcos são Eurí­
pedes e Sócrates. Eurípedes e Sócrates contra a tragédià dioni­
síaca: eis o antagonismo fundamental que assinala Nietzsche
quando analisa pela primeira vez as relações entre arte e ciên­
cia. O que em termos conceituais quer dizer a oposição entre
razão científica e instinto estético ou entre duas formas de
saber: o saber racional e o saber artístico. Por outro lado, a
valorização da arte - e não do conhecimento - como a ativi­
dade que dá acesso às questões fundamentais da existência é a
busca de uma alternativa contra a metafísica clássica criadora
da racionalidade. Idéia que sempre permaneceu fundamental
no pensamento de Nietzsche: a arte tem mais valor do que a
ciência por ser a força capaz de proporcionar uma experiência
dionisíaca.
O ponto de partida da análise é a crítica do "socratismo
estético". Se Eurípedes é o marco que assinala a morte da arte
trágica é porque com ele, pela primeira vez, o poeta se subor-

29
Roberto Machado

dina ao pensador racional, ao pensador consciente. O que ca­


racteriza a ''estética racionalista", a "estética consciente", é in­
troduzir na arte o pensamento e o conceito3 a tal ponto que a
produção artística deriva da capacidade crítica. Momento em
que a consciência, a razão, a lógica despontam como novos
critérios de produção e avaliação da obra de arte.
Quando a racionalidade faz uma crítica explícita à pro­
dução artística na perspectiva da consciência, quando toma
como critério o grau de clareza do saber, a tragédia será des­
classificada como irracional ou como desproporcional: "um com­
promisso de causas parecendo sem efeitos e de efeitos pare­
cendo sem causas",� ou uma profundidade enigmática e infinita,
incerta, indiscernível, sombria, em suma, obscura.� Por não ter
consciência do que faz e não apresentar claramente o seu sa­
ber, o poeta trágico será desvalorizado, desclassificado pelo
saber racional.
A perspectiva socrática de Eurípedes, o poeta sóbrio que
condenou os poetas embriagados, assinala uma ruptura na ma­
neira de considerar a arte. Assim, enquanto Eurípedes critica
Ésquilo por considerar que ele fazia mal o que fazia por não
saber o que fazia, Sófocles, por exemplo, ainda considerava
correto o que Ésquilo fazia, mesmo que ele o fizesse incons­
cientemente. "Se Sófocles disse de Ésquilo que ele fazia bem,
mas sem sabê-lo, Eurípedes sem dúvida pensou que ele fazia
mal por não saber." E Nietzsche enuncia o que constitui o
fundamental da distinção entre esses dois momentos: "Nenhum
poeta antigo anterior a Eurípedes estava em condições de de­
fender, por motivos estéticos, o que ele tinha de melhor. Pois a
particularidade maravilhosa de toda essa evolução da arte gre­
ga é que o conceito, a consciência ainda não estavam expres­
sos e tudo o que o discípulo podia aprender com o mestre
tinha relação com a técnica".6 O que faz a diferença é a subor­
dinação da beleza à razão, é o estabelecimento do postulado
socrático segundo o qual só pode ser belo aquilo que é cons­
ciente, racional.
Erigindo como fundamento de sua estética o princípio
"para poder ser entendido tudo eleve ser da ordem do entendi-

30

j
Nietzsche e a verdade

mento",7 Eurípedes se torna o poeta do racionalismo socrático:


sua crítica da arte é o prolongamento da crítica socrática aos
homens de sua época que por não terem consciência de seu
ofício o exercem apenas por instinto. É neste "apenas por ins­
tinto" que se encontra, segundo Nietzsche, a essência do so-
·' cratismo. "O socratismo despreza o instinto e portanto a arte.
Nega a sabedoria justamente onde se encontra seu verdadeiro
reino."8 Desprezando o instinto em nome da criação artística
consciente que tem como critério a razão, o discernimento, a
clareza do saber, o socratismo condena a arte e o saber trági­
cos9. Se algo só é bom se for consciente, se há relação ne­
cessária entre saber-virtude-felicidade, o saber trágico, que
é um saber inconsciente, se encontra necessariamente desclas­
sificado. Em suma, pelo Jato de ser impossível expressar con­
ceitualmente- expor e comprovar racionalmente, logicamen­
te - o trágico, Sócrates e Eurípedes negaram um saber como
o de Ésquilo, que deve o que tem de melhor a uma "criação
inconsciente".

Assim, o estudo da relação entre metafísica de artista e


metafísica conceitual, que tem como ponto de partida a crítica
do socratismo estético, vai muito mais longe do que uma sim­
ples questão de estética, remetendo em última instância, como
sempre em Nietzsche, ao problema da verdade. É, fundamen­
talmente, um modo de pôr em questão o "espírito científico",
caracterizado na época por Nietzsche como a crença, que nas­
ceu com Sócrates, na penetrabilidade da natureza.10 O que é a
metafísica racional criadora do espírito científico? É justamente
''a crença inabalável de que o pensamento, seguindo o fio da
causalidade, pode atingir os abismos mais longínquos do ser e
que ele não apenas é capaz de conhecer o ser, mas ainda de
corrigi-lo" _11 Para Nietzsche, em toda sua investigação e mes­
mo nesse momento em que defende uma "metafísica" de artis­
ta, o saber trágico não foi vencido propriamente pela verdade,
mas por uma crença na verdade, por uma "ilusão metafísica"
que está intimamente ligada à ciência. Afirmar que o problema

31
Roberto Machado

da ciência não pode ser elucidado no nível da própria ciência,


'

a partir dos critérios postulados pela ciência, significa trazer a


questão, ou melhor, para considerar Nietzsche como um es­
trategista, situar o combate no terreno da ilusão. A luta contra
a ilusão é uma forma de ilusão. Essa idéia é o ponto central da
argumentação de Nietzsche mesmo quando considerou a es­
trutura conceitual, racional, da metafísica como imprópria ou
como a mais imprópria para exprimir a essência do mundo;
mesmo quando pensou em termos de essência do mundo. Foi
a "ilusão metafísica" - a crença de que o conhecimento é
capaz de penetrar conscientemente na essência, na natureza,
no fundo das coisas separando a verdade da aparência e con­
siderando o erro como um mal - que destruiu a arte trágica.
O poder criador do artista trágico foi negado pela metafísica
por não ser uma penetração consciente na essência das coisas.
O antagonismo entre o espírito científico e a experiência
trágica é em Nietzsche uma crítica da prevalência da verdade
ou da verdade como valor superior pela afirmação tanto do
caráter fundamental da aparência quanto da exigência de su­
peração da oposição essência-aparência, verdade-ilusão. Se­
parar o dionisíaco e o apolíneo é matar os dois. O herói foi
morto não pelo trágico, mas pelo lógico.12 A "metafísica de
artista" que Nietzsche defende no primeiro momento de sua
reflexão filosófica é a denúncia da verdade como única deusa
da ciência - sua ilusão constitutiva - em nome da afirmação
de que o ser verdadeiro tem necessidade da bela aparência, de
que a arte é uma unificação desses dois elementos: "se o artista,
cada vez que a verdade se desvela, permanece em suspense,
extasiado com o véu que permanece depois do desvelamento, o
homem teórico é aquele que tem sossego e satisfação ao ver o
véu arrancado e não conhece prazer maior do que conseguir,
por suas próprias forças, tirar novos véus. A ciência não exis­
tiria se não tivesse por única deusa a verdade nua e nada
mais".13 Se a arte tem mais valor do que a ciência, e é sempre
utilizada por Nietzsche como paradigma em sua crítica da ver­
dade, é que enquanto a ciência cria uma dicotomia de valores

32
Nietzsche e a verdade

que situa a verdade como valor supremo e desclassifica inteira­


mente a aparência, na arte a experiência da verdade se faz
indissoluvelmente ligada à beleza, que é uma ilusão, uma men­
tira, uma aparência.

Notas
1 . Cf. N. T., § 7.
2. Cf. N.T., "Tentativa de autocrítica", § 5.
3. "Sócrates e a Tragédia", in Escritospóstumos, edição alemã, t. I, p. 535,
tradução francesa, t. I, v. 1, p. 35.
4. N.T., § 14.
5. Cf. N.T., § 1 1 ; "Sócrates e a tragédia", ed. ai., t. I, p. 539; tr. fr., t. I, v. 1 , p.
38 .
6. "Sócrates e a tragédia", ed. ai., t. I, p. 539-40; ; tr. fr., t. I, v. 1 , p. 38.
7. Ibíd, ed. ai., p. 537; tr. fr., p. 36.
8. Ibíd., ed. ai., p. 542; tr. fr. , p. 40.
9. Cf. N. T., § 13.
10. Cf. N.T., § 17.
11. N.T., § 15.
1 2 . Cf. "Sócrates e a tragédia", in ibíd., ed. ai., p. 546; tr. fr., p. 43.
13. N.T., § 15; Frag. Post., final de 1870, 6·[16).

33
3

Arte e "instinto de conhecimento"

A presentei o que considero o essencial da crítica da


racionalidade científico-filosófica tal como é formulada em O
nascimento da tragédia e nos escritos e fragmentos que lhe
servem de preparação. É indispensável porém salientar que
essa crítica é sempre retomada por Nietzsche, impondo-se co­
mo tema constante, malgrado as diferenças conceituais que
servem para formulá-lo. Os textos imediatamente posteriores,
como, por exemplo, o conjunto de fragmentos que deveriam
constituir O livro do filósofo, retomam a mesma problemática
da relação entre arte e conhecimento. Mas se a crítica à meta­
física persiste nesses escritos, como em toda a obra de Nietzsche,
ela não mais se faz em nome de uma metafísica de artista, isto
é, de uma dimensão metafísica da arte ou de uma experiência
artística da essência do mundo- o elemento da arte é a ilusão.
A crítica à institução da dicotomia metafísica verdade-aparência
agora é realizada a partir do conceito de "instinto de conhe­
cimento" ou instinto de verdade, sem que o elogio da arte
explicite uma dualidade de elementos ou de forças, mesmo
que seja para afirmar uma síntese, uma reconciliação ou uma
unificação.
O que é o "instinto de conhecimento"? Para sabê-lo é
preciso resolver um problema: alguns textos negam claramente
a existência de um instinto de conhecimento, de um "instinto
de verdade honesto e puro" .1 O que Nietzsche pretende então
é ressaltar que o conhecimento não faz parte da natureza hu­
mana, ou melhor, não está no mesmo nível que os instintos e
que não é possível dizer, por exemplo, como Aristóteles no
início da Metafísica, que todos os homens desejam natural­
mente conhecer. O conhecimento não é um instinto do ho­
mem, quer dizer, não é da mesma natureza que os instintos. O

35
Roberto Machado

conhecimento foi produzido, o conhecimento foi inventado,


como enuncia a bela fábula criada por Nietzsche: "Em algum
ponto do universo inundado por cintilações de inúmeros siste­
mas solares houve um dia um planeta em que animais inteli­
gentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais orgulho­
so e mais mentiroso da 'história universal', mas foi apenas um
minuto. Depois de alguns suspiros da natureza o planeta se
congelou e os animais inteligentes tiveram que morrer". 2 Quando
afirma não haver instinto de conhecimento, ele quer salientar
que não se deve definir o homem pelo conhecimento ou o
conhecimento como o valor principal do homem porque os
instintos são mais fundamentais do que o conhecimento.
Por outro lado, quando ele se expressa em termos de
instinto de conhecimento ou de verdade, a expressão deve
sempre ser entendida como se referindo a um instinto da cren­
ça no conhecimento ou na verdade. Propriamente o instinto de
que fala Nietzsche é de crença e não de conhecimento. É o
que significa, por exemplo, a afirmação, à primeira vista enigmá­
tica, de que "não existe instinto de conhecimento e de verdade,
mas apenas um instinto de crença na verdade; o conhecimento
puro é privado de instinto".3 E se "instinto de conhecimento"
tem o sentido, não de uma tendência natural para a verdade,
mas de uma crença - produzida - na verdade é porque não
há posse da verdade, mas apenas convicção, suposição de pos­
suir a verdade. "Análise da crença na verdade: pois toda posse
da verdade é, no fundo, apenas uma convicção de possuir a
verdade. O pathos, o sentimento do dever, vem desta fé e não
da pretensa verdade."4 A verdade não tem como critérios a
evidência e a certeza; tem como condição um esquecimento e
uma suposição.
Ora, dizer que o instinto de conhecimento - denomi­
nação que em Nietzsche é geralmente utilizada criticamente,
com a conotação de signo de baixeza, de decadência, de de­
clínio; signo de que a vida envelheceu e de que os instintos
fundamentais se tornaram fracos5 - é produzido significa di­
zer que sua análise remete às condições de seu nascimento, de
seu aparecimento. É então que aparece uma idéia que cada

36
Nietzsche e a verdade

vez mais se imporá a seu pensamento: as condições de possi­


-�lidade do conhecimento são sociais, políticas ou, mais pre­
cisamente, morais. Relação entre verdade e moral que é assina­
lada inúmeras vezes em O livro dofilósofo. Eis alguns exemplos:
§ 9 1 : "A crença na verdade é necessária ao homem. A verdade
aparece como uma necessidade social; por uma metástase ela
é, em seguida, aplicada a tudo, mesmo onde não é necessária.
Todas as virtudes nascem de necessidades. Com a sociedade
começa a necessidade de veracidade, senão o homem viveria
em eternos véus. A fundação dos Estados suscita a veracidade.
O instinto de conhecimento tem uma fonte moral." § 130: "Por
natureza o homem não existe para o conhecimento - a vera­
cidade (e a metáfora) produziu a inclinação para a verdade.
Assim, um fenômeno moral, esteticamente generalizado, produz
o instinto intelectual." § 133: "A necessidade produz, às vezes,
a veracidade como meio de existência de uma sociedade. O
instinto se reforça por um exercício freqüente e é agora injus­
tamente transposto por metástase. Torna-se a tendência em si.
Do exercício para casos determinados se faz uma qualidade.
Temos agora o instinto de conhecimento." § 134: "O homem
bom também quer ser verdadeiro e acredita na verdade de
todas as coisas. Não apenas da sociedade, mas também do
mundo."
Nessa época, é em "Verdade e mentira no sentido extra­
moral" que a relação entre verdade e sociedade é mais explici­
tamente tematizada. Partindo da distinção entre estado de na­
tureza e estado de sociedade, Nietzsche negará a existência de
um desejo natural de verdade através de uma concepção do
intelecto como tendo um efeito específico de dissimulação. O
intelecto, que é um meio de conservação dos indivíduos mais
fracos, tem originariamente por função produzir disfarce, más­
cara, ilusão, mentira com o objetivo de compensar uma falta
de força.
É sobre esse fundo de mentira que vai ser formulada a
questão da verdade no estado de sociedade. Para instaurar a
paz ou fazer desaparecer o aspecto mais brutal da guerra de
todos contra todos, são fixadas leis da verdade a partir das leis

37
Roberto Machado

da linguagem: são essas leis que instituem pela primeira vez a


oposição entre verdade e mentira. A partir do momento em
que se estabelece uma designação . uniformemente válida e obri­
gatória para as coisas, o mentiroso é aquele que utiliza as
palavras, as designações pertinentes, para fazer o irreal parecer
real. É esta convenção que estabelece a verdade. A verdade
não é uma adequação do intelecto à realidade; é o resultado
de uma convenção que é imposta com o objetivo de tornar
possível a vida social; é uma ficção necessária ao homem em
suas relações com os outros homens.
Conclusão: O homem não ama necessariamente a verdade:
deseja suas conseqüências favoráveis. O homem também não
odeia a mentira; não suporta os prejuízos por ela causados. O
que se proscreve, o que não se aceita e não se deseja é o que
é considerado nocivo: são as conseqüências nefastas tanto da
mentira quanto da verdade. A obrigação, o dever de dizer a
verdade nasce para antecipar as conseqüências nefastas da men­
tira. Quando a mentira tem valor agradável ela é muito bem
permitida.6
Pelo modo como tematiza. a questão do aparecimento do
instinto de conhecimento e de verdade podemos facilmente ·

observar - o que é uma característica permanente de suá


reflexão - como a análise de Nietzsche nunca se situa em um
nível propriamente epistemológico, que teria por objetivo esta­
belecer critérios de demarcação entre o verdadeiro e o falso
conhecimento. Desde o início, a investigação nietzschiana so­
bre o conhecimento não se limita ao interior da questão do
conhecimento, mas o articula com um nível propriamente po­
lítico ou social com o objetivo de mostrar que a oposição entre
verdade e mentira tem uma origem moral. Articulação do conhe­
cimento com o social que neste momento pretende sobretudo
elucidar como a exigência de verdade surge da exigência da
coexistência pacífica entre os homens, da exigência da vida gre­
gária. Paz, segurança e lógica estão intrinsecamente ligadas.7
A relação entre conhecimento e moral não é, entretanto,
estabelecida por uma teoria moral. A perspectiva que denuncia
a oposição verdade-mentira como fundada na moral é, como

38
Nietzsche e a verdade

Nietzsche a denominou, "extramoral" - ou empregando um


termo que já aparece neste momento e que posteriormente
ganhará toda sua importância- "fisiológica". 8 É essa perspec­
tiva extramoral que, criticando o instinto de conhecimento e
de verdade, afirma a necessidade da ilusão, isto é, "de não-ver­
dades tidas como verdades", salientando que o conhecimento
verdadeiro tem o mesmo valor que a mentira, a falsidade, a
ilusão, a aparência. Desde o início de sua reflexão Nietzsche
luta contra a oposição metafísica de valores, afirmando a posi­
tividade do aspecto que foi subestimado: a ilusão é a essência
que o homem se criou.9

Daí a perspectiva extramoral implicar uma apologia da


arte. Se a crítica da ciência e sua pretensão de verdade, insur­
gindo-se contra a desclassificação da aparência, luta pelo re­
nascimento da arte, é porque a arte é o domínio da aparência.
Isto significa o desaparecimento da oposição, não fundamental
nos textos que analisamos, entre o apolíneo e o dionisíaco, ou
entre um dionisíaco bárbaro e um dionisíaco grego: por ser
necessariamente artístico, o dionisíaco nietzschiano implica o
apolíneo. Desaparece o conflito entre a bela aparência e uma
verdade fundamental dionisíaca. A afirmação da vida, da reali­
dade, que caracteriza a arte trágica é afirmação da aparência
porque a própria vida é aparência. Se a arte, diferentemente da
ciência, está do lado da vida, é porque a vida quer a aparên­
cia, não despreza seus véus e ilusões. O que era característica
da arte apolínea torna-se condição indispensável de toda arte
digna desse nome, isto é, da arte dionisíaca; radicalização, atra­
vés da aparência, de um parentesco entre arte e vida que sem­
pre esteve presente no pensamento de Nietzsche. "Única pos­
sibilidade de vida: na arte. De outro modo nos desviamos da
vida. O movimento instintivo das ciências é o aniquilamento
completo da ilusão: se não houvesse arte, a conseqüência seria
o quietismo."10 .
A perspectiva extramoral critica o desejo de verdade co­
, mo sendo um esquecimento de que o homem é um artista, um
criador, isto é, um criador de aparência, situando o antago-

39
Roberto Machado

nismo entre arte e ctencia no próprio campo da ilusão. No


fundo, dois tipos de ilusão: a ilusão socrática, ilusão metafísica,
que considera a verdade superior � aparência; e a ilusão ar­
tística, consciente do valor da ilusão, que sabe que tudo é
ilusão, "figuração", "transfiguração", criação. Utilizando o pro­
cedimento de inversão tão caro a Nietzsche, poder-se-ia dizer
que enquanto a "mentira" da ciência seria querer encontrar a
verdade do mundo como outra coisa que não a aparência, a
"verdade" da arte é acreditar na imagem como imagem, na
aparência como aparência. Ou, em outros termos, enquanto "a
humanidade tem no conhecimento um belo meio de perecer", 11
a superioridade <ia arte sobre a ciência é não opor verdade a
ilusão, é afirmar integralmente a vida.
Nessa propriedade de afirmação ou de negação da vida
se encontra o essencial da reflexão nietzschiana sdbre a re­
lação entre arte e ciência, que se faz não na perspectiva da
verdade e da falsidade, mas na perspectiva da força. O an­
tagonismo entre arte e ciência é um antagonismo de forças. A
força da arte é a afirmação da vida, que é totalmente incom­
p_:Itível com a negatividade que caracterizà a ciência. "A arte é
mais potente do que o conhecimento, pois ela quer a vida,
enquanto o objetivo final que o conhecimento atinge nada
mais é do que - o aniquilamento." 1 2 Mais forte do que o
conhecimento, a arte foi, no entanto, desclassificada por ele
em seu desejo de verdade. O que significa justamente o início
de um período de decadência que, sob diferentes formas, se
tem perpetuado na história. A alternativa proposta por Nietzsche
é inverter essa correlação de forças, negando a negação da
vida através da arte trágica considerada como afirmação. Se a
força científica reprimiu a força artística dionisíaca, isto é, se a
arte, e com ela a vida, foi desvalorizada pela metafísica so­
crática, é preciso revalorizar a arte - que cria uma super­
abundância de forças, que é o grande estimulante da vida,
uma embriaguez de vida - para obrigar o saber a um retorno
à vida.
No conflito entre o instinto estético e o instinto de conhe­
cimento, Nietzsche toma claramente posição ao lado da arte. O

40
Nietzsche e a verdade

que de modo algum significa um projeto de destruição, de


aniquilamento da ciência. Sua idéia é que cabe à arte, e à
filosofia, estabelecer o valor da ciência ou, o que vem a ser o
mesmo, dominar o instinto de conhecimento. Alguns textos de
O livro do filósofo enunciam claramente esta idéia. § 28: "Não
se trata de um aniquilamento da ciência, mas de seu domínio.
Em todos os seus fins e todos os seus métodos, ela depende,
na verdade, inteiramente de pontos de vista filosóficos, mas o
esquece facilmente. Mas a filosofia dominante também deve
levar em consideração o problema de saber até que ponto a
ciência pode se desenvolver: ela deve determinar o valor. " § 3 1 :
"Os mais antigos filósofos gregos devem ser entendidos como
os que dominam o instinto de conhecimento. Como foi pos­
sível que a partir de Sócrates ele tenha caído de suas mãos?" §
46: "O conteúdo da arte e da filosofia antiga coincidem, mas
nós encontramos elementos isolados da arte utilizados como
filosofia para dominar o instinto de conhecimento." § 38: "(O
último filósofo) demonstra a necessidade da ilusão, da arte e
da arte dominando a vida. Não nos é possível produzir no­
vamente uma linhagem de filósofos como fez a Grécia no tem­
po da tragédia. A partir de então, apenas a arte realiza a tarefa
deles." E o § 39 completa a idéia: "A partir de então o domínio
da ciência só se produz pela arte. "
É preciso esclarecer, antes de mais nada, o parentesco
que esses textos estabelecem entre a filosofia e a arte. Eis uma
opção importante da filosofia nietzschiana - filosofia trágica,
dionisíaca - em luta contra a filosofia racional. A filosofia de
Nietzsche é célebre não só por estabelecer uma ruptura entre
filósofos pré e pós-socráticos, como também por afirmar a su­
perioridade dós primeiros. O critério que permite esta divisão
e possibilita esta valorização é fornecido pela antinomia
arte-ciência: Sócrates é o divisor de águas entre dois tipos de
filosofia que têm como modelos a arte trágica e a racionali­
dade científica. A importância dos filósofos pré-socráticos, dos
filósofos da Grécia arcaica, e sua superioridade com relação
aos socráticos ou platônicos, é que eles filosofaram no' "mundo
esplêndido da arte", "quando a vida atingiu sua realização",

41
Roberto Machado

sem desprezar os véus e as ilusões, características fundamen­


tais da arte e da vida.13 Por isso a filosofia trágica, a filosofia
dionisíaca, "o verdadeiro filosofar" , se insurgindo contra a filo­
sofia socrática, que fez fracassar o fim originário da filosofia,
deve retomar a direção da filosofia pré-socrática reabilitando o
profundo parentesco com a arte.
Mas a relação entre a arte e a filosofia se esclarece mais
completamente através da compreensão da tarefa que Nietzsche
lhes assinala de dominar a ciência. Dominar a ciência significa
discipliná-la, controlar seus excessos . O que caracteriza a posi­
ção socrática , e é criticado por Nietzsche, não é exatamente o
conhecimento; é o "instinto de conhecimento sem medida e
sem discernimento", o "instinto ilimitado de conhecimento" , o
"instinto desencadeado do saber", o "conhecimento incessante",
"a verdade a qualquer preço". Dominar a ciência é determinar
seu valor no sentido de controlar a exorbitância d� suas pre­
tensões, no sentido de estabelecer até onde ela pode se desen­
volver. É formular a questão dos limites. Idéia que já se encon­
tra em O nascimento da tragédia quando, assinalando a luta
entre uma concepção teórica e uma concepção trágica do mun­
do, afirma que só haverá um renascimento da tragédia quando
o espírito científico tiver atingido seus limites, e sua pretensão
a uma validade universal tiver sido aniquilada.14 Idéia que rea=-­
parece em O livro do filósofo ao afirmar que "o instinto de
conhecimento, tendo àtingido seus limites, se volta contra si
mesmo para chegar à crítica do saber" .15 Não é por si mesmo, ·
não é por exaustão, que o conhecimento atingirá seus limites.
O que Nietzsche assinala e analisa é uma luta, uma correlação
de forças; um combate entre o trágico e o racional, entre uma
civilização socrática e uma civilização artística , dionisíaca. A
crítica à universalidade do conhecimento só pode vir do exte­
rior do próprio conhecimento; não é uma autocrítica. É uma
perspectiva inerente ao caráter afirmativo da arte trágica com
relação à vida.
E como uma civilização socrática se funda em uma re­
pressão do trágico, a crítica, o controle, do instinto ilimitado de
conhecimento, do instinto desenfreado de saber, se faz pela

42
Nietzsche e a verdade

edificação de um novo tipo de vida em que os direitos da arte,


que foram confiscados pela racionalidade científica, sejam res­
tituídos, reconquistados. " O filósofo do conhecimento trágico.
Ele domina o instinto desenfreado de saber, mas não por uma
nova metafísica. Não estabelece nenhuma nova crença. Sente
tragicamente que o terreno da metafísica lhe foi retirado e
entretanto não pode se satisfazer com o turbilhão confuso das
ciências. Trabalha pela edificação de uma nova vida: restitui à
arte seus direitos."16 "O filósofo do futuro? Ele deve tornar-se a
Corte Suprema de uma civilização artística, uma espécie de
segurança pública contra todas as transgressões. 'm O que, já se
sabe, implica uma reabilitação da ilusão, da aparência como
características essenciais da arte e da vida. Assim, enquanto a
ciência e as filosofias que nela continuam _ainda a agir têm
prétensão ao "conhecimento absoluto", 18 enquª-nto a "filosofia
do conhecimento desesperado" é dominada por uma ciência
cega, isto é, pelo saber a qualquer preço, I9 a filosofia trágica
deve ajudar a viver, acentuando a "relatividade de todo conhe­
cimento" e sua força de ilusão.20 O conhecimento a serviço da
melhor vida. Deve-se querer até a ilusão - é isso que é. o
trágico.21
Daí a importância que Nietzsche reconhece, e não cansa
de assinalar, à filosofia pré-socrática e à arte trágica como mo­
delos de um tipo de filosofia e de arte capaz de superar a
decadência. A superioridade do grego arcaico, esse modelo de
povo forte, sadio, esse povo que filosofou em uma civilização
trágica, está no fato de ter dominado o instinto ilimitado de
conhecimento em nome de uma afirmação da vida: "os gregos
dominaram seu instinto de conhecimento, em si mesmo in­
saciável, graças ao respeito que tinham pela vida, graças à
exemplar necessidade que tinham da vida - pois o que apren­
diam logo queriam viver. "22 Enquanto Sócrates é aquele em
quem o instinto de conhecimento se desenvolveu exacerbada­
mente, subordinando todos os outros, hipertrofia do lógico que
corresponde a uma atrofia dos instintos fundamentais, a lição
da arte trágica aponta em uma direção inteiramente diferente.
Prometeu é um exemplo de como uma exigência excessiva de

43
--
Roberto Machado

conhecimento é prejudicial, 23 Édipo também mostra como o


desejo de saber excessivo e ilimitado é um crime contra a
natureza.24
A arte aparece sempre na filosofia de Nietzsche como a
alternativa para a ciência, ou, utilizando a terminologia dos
textos que estamos analisando, para o "instinto ilimitado de
conhecimento". Isto não quer dizer, no entanto, que a perspec­
tiva nietzschiana pretenda uma negação do conhecimento ou
uma redução da totalidade do campo do saber à arte. Significa
que na luta contra o desejo de verdade a todo custo, na crítica
à tese metafísica de que a verdade é um valor superior, a arte
não só é reabilitada por sua força afirmativa da vida, como
também é escolhida como modelo capaz de impregnar o pró­
prio conhecimento com a dimensão do trágico. A grande am­
bição da filosofia de Nietzsche é dar ao conhecimento as ca­
racterísticas da arte.
Que significado pode ter a proposta de pensar o conhe­
cimento a partir da arte instituída como critério senão a reafir­
mação do grande princípio da aparência? Contra a oposição
metafísica de valores, a arte oferece uma valorização da apa­
rência, da ilusão que dá conta çle um valor essencial da vida
menosprezado pela racionalidade._ Controlar -ª- ciência, limitan­
do o instinto de conhecimento, é impor ao conhecimento o
valor da ilusão ou a ilusão como um valor tão importante
quanto a verdade; é, portanto, pensar o valor do conhecimen­
to neutralizando a questão da verdade ou falsidade e privile­
giando a dimensão da força, que é a- marca dos valores artísticos.
No pensamento de Nietzsche valorizar a aparericia é afir­
mar a força; é porque a arte é uma afirmação da vida como
aparência que ela cria uma superabundância de forças. Pois
esse reconhecimento de que a vida tem necessidade da ilusão
quando aplicado ao domínio do conhecimento vai significar
que o valor de um conhecimento é dado não pelo "grau de
certeza", mas pelo "grau de necessidade absoluta para os J:!o­
mens".25 Partindo da constatação de que a utilização dos pro­
cedimentos de demonstração, de prova, tem uma origem his­
tórica - é o resultado da confiscação dos procedimentos de

44
Nietzsche e a verdade

verdade pela lógica, realizada por Sócrates26 -, Nietzsche vai


afirmar que o valor de um conhecimento, seja ele verdadeiro
ou falso, é estabelecido não por provas lógicas, mas por seus
efeitos, isto é, pela prova da força. "Quando se trata do valor
do conhecimento e que, por outro lado, urna bela ilusão, se só
se acredita nela, tem o mesmo valor que um conhecimento,
vê-se então que a vida tem necessidade de ilusões, isto é, de
não-verdades tidas como verdades. Ela tem necessidade da cren­
ça na verdade, mas então a ilusão basta, isto é, as 'verdades' se
demonstram por seus efeitos, pela prova da força, e não por
provas lógicas".27 Ou como diz outro texto: "Os efeitos levam a
admitir 'verdades' não demonstradas". 28
Privilegiando a aparência e, através dela, a força na ava­
liação do conhecimento como um modo de neutralizar o ins­
tinto de verdade, o que pretende Nietzsche é opor o trágico ao
lógico ou utilizar critérios estéticos, valores artísticos, para de­
finir o conhecimento. "Não existe filosofia à parte, distinta da
ciência: lá como aqui se pensa do mesmo modo. O fato de
que uma filosofia indemonstrável ainda tenha um valor, e na
maior parte das vezes mais do que uma proposição científica,
provém do valor estético deste filosofar, isto é, de sua beleza e
I .
sua sublimidade. O filosofar está ainda presente como obra de
arte, mesmo que não se possa demonstrar como construção
filosófica. Mas não acontece o mesmo em matéria científica?
Em outros termos: o que decide não é o puro instinto de conhe­
cimento, mas o instinto estético: a filosofia pouco demonstrada
de Heráclito tem um valor artístico superior a todas as pro­
posições de Aristóteles."29
Em suma, no momento em que analisa de modo mais
persistente a relação entre arte e ciência com o objetivo de
criticar o "espírito científico" nascido com a metafísica, a filo­
sofia de Nietzsche apresenta uma de suas características essen­
ciais: uma negação do privilégio da verdade e uma afirmação
do valor da aparência. A crítica da ciência - seja quando é
realizada pela contraposição da metafísica racional a urna me­
tafísica artística ou através da explicitação do significado do
instinto de conhecimento - tem sempre na arte trágica, con-

45
Roberto Machado

siderada como uma superabundância de forças afirmadoras da


vida, a positividade capaz de inspirar a proposta de um mo­
delo alternativo. E como não se trata, malgrado . a intensidade
da crítica, de negar a ciência, a criação artística e o tipo de
relação que a arte estabelece com a vida estão na base de uma
concepção trágica do conhecimento; concepção que não opõe
verdade e mentira, mas, neutralizando a questão epistemológi­
ca, privilegia o caráter de força do conhecimento. Problemática
que será aprofundada na análise da relação entre ciência e
moral.

Notas
1 . "Verdade e mentira no sentido extramoral" (V. M.), in Escritos póstumos,
ed. ai. , t. I, p. 876; tr. fr. , t. I , v. 2, p. 278.
2. V M., ed. ai., t. I , p. 875; tr. fr., t. I, v. 1, p. 277.
3. O livro do filósofo (L. F.), III, § 180. Citarei sempre pela edição bilíngüe
francês-alemão publicada pela Aubier-Flammarion.
4. L. F., III, § 177.
5. Cf. L. F., I, § 20, § 25.
6. Sobre este desenvolvimento, cf. V M., in Escritos póstumos, ed. ai., t. I, p.
876-878; tr. fr., t. I, v. 2, p. 278-279.
7. Cf. VM., in ibid., ed. ai., p. 883; tr. fr. , p. 284.
8. "A verdade e a mentira são de ordem fisiológica", L. F., I, § 7 1 .
9 . Cf. L . F., I, § 1 26.
10. Frag Post. , inverno de 1869-70 - primavera de 1870, 3 [60].
1 1 . L. F., I, § 1 25; cf. também, L. F., III, § 176.
1 2 . "A paixão pela verdade", in Escritos póstumos, ed. ai., t. I, p. 760; tr. fr. , t.
I , v . 2, p. 172.

13. Cf L. F., I § 18.


14. Cf N T, § 17.
15. L. F., I, § 37.
16. L. F., I, § 37.
17. L. F., I, § 59.
18.Cf L. F., I § 40.
19. Cf L. F., I, § 37.

46
Nietzsche e a verdade

20. Cf. L. F., I, § 38, § 4 1 .


2 1 . L . F., I, § 37.
22. "A filosofia na época trágica dos gregos", in Escritos póstumos; ed. ai., t.
I, p. 807; tr. fr., t. I, v. 2, p. 2 14-21 5 . "Nossa época não deve acreditar que
seu nível é muito superior com respeito ao instinto de saber: apenas com os
gregos tudo tornava-se vida! Conosco permanece em estado de conheci­
mento." L. F. , I § 47.
23. Cf. V D., § 2.
24. Cf. N. T, § 9.
25. L. F., I, §, 40, § 4 1 .
26. Cf. L. F., I, § 143.
27. L. F., I, § 47.
28. L. F., I, § 7 1 .
29. L . F., I, § 6 1 .

47
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II
CIÊNCIA E MORAL
1

Conhecimento e tipos de vida

A reflexão nietzschiana sobre a ciência, quando con­


frontada com a problemática da arte em seus primeiros escri­
tos, tem como tema central uma crítica da verdade. O mesmo
.
acontece quando a relação é estabelecida com a moral. Em
Nietzsche, a crítica nunca é uma teoria do conhecimento que
tenha por objetivo denunciar os pseudoconhecimentos, suas
ilusões, seus erros e estabelecer as condições de possibilidade
da verdade, o ideal do conhecimento verdadeiro. A novidade e
a importância do projeto nietzschiano em todas as fases de sua
realização é a crítica, não dos maus usos do conhecimento,
mas do próprio ideal de verdade; é a questão, não da verdade
ou falsidade de um conhecimento, mas do valor que se atribui
à verdade, ou da verdade como valor superior; é a negação da
prevalência da verdade sobre a falsidade.
Nada mais distante do projeto nietzschiano do que uma
crítica interna do conhecimento, exame de seus pressupostos,
busca de seu fundamento, como a crítica da faculdade de conhe­
cer que pretende submeter a razão ao tribunal da razão. "[. . . ]
não seria um pouco estranho exigir que um instrumento criti­
casse sua própria justeza e sua própria competência? que o
próprio intelecto 'reconhecesse' seu valor, sua força, seus li­
mites? não seria mesmo um pouco absurdo?"1 Uma crítica in­
terna da faculdade de conhecer é algo sem sentido. Chega a
ser cômico, segundo Nietzsche, querer reduzir a filosofia a uma
teoria do conhecimento: "É quase cômico ver os filósofos exi­
girem que a filosofia comece necessariamente por uma crítica
da faculdade de conhecer: não é inverossímil demais que o
órgão do conhecimento possa se 'criticar' a si próprio quando
nos tornamos desconfiados com relação aos resultados anteri­
ores do conhecimento? A redução da filosofia à 'vontade de

51
Roberto Machado

uma teoria do conhecimento' é cômica. Como se pudéssemos


assim ter uma certeza!"2.
Malgrado os diferentes níveis em que situou sua análise,
independentemente das transformações conceituais por que pas­
sou sua obra, a posição de Nietzsche sobre esse ponto per­
maneceu sempre a mesma: o problema da ciência é indis­
cernível no terreno da ciência, a questão do conhecimento não
pode ser elucidada isoladamente. A apreciação do valor do
co_nhecimento - pois é disso fundamentalmente que se trata
na démarche nietzschiana - exige que se leve em conside­
ração outros valores. O conhecimento é um valor que deve ser
situado entre uma pluralidade de valores e que não deve, en­
tre eles, gozar de nenhum privilégio particular.
Se a questão da verdade não pode ser resolvida no âm­
bito exclusivo da ciência ou do conhecimento - por uma
espécie de autocrítica - é porque remete necessariamente pa­
ra um exterior. Mas é preciso que se entenda bem o que é essa
exterioridade. Pois não se trata da reivindicação do sentimento
ou da experiência tomados como instâncias exteriores à razão
e capazes de julgá-la. O que caracteriza o projeto nietzschiano
é a relação, mas uma relação imanente, intrínseca, do conhe­
cimento com outra ordem de fenômenos que lhe serve de
motivação, que lhe revela os pressupostos: a relação entre ver­
dade e bem ou, em termos metodológicos, a extensão da aná­
lise genealógica da ordem moral até a ordem epistemológica.
Só articulando o conhecimento com a moral é possível con­
siderá-lo de um ponto de vista crítico porque os dois fenô­
menos existem intrinsecamente ligados.
Não existe, por exemplo, filosofia independente da moral.
Mesmo quando os filósofos parecem preocupados com a cer­
teza e a verdade é sob o encantamento da moral que se en­
contram. 3 "Quando a melhor época da Grécia acabou, vieram
os filósofos da moral: a partir de Sócrates, com efeito, todos os
filósofos gregos são, antes de tudo, e no mais profundo de si
mesmos, filósofos da moral."4 A filosofia instauradora da ra­
cionalidade, criadora da oposição verdade-aparência, é UJl1a
filosofia moral. Platão, por exemplo, se desviou de todos os

52
Nietzsche e a verdade

instintos fundamentais dos gregos arcaicos, está impregnado


de moral, é cristão antes do cristianismo, já postula a idéia de
'
bem como conceito supremo.5 A posição de Nietzsche é clara:
o móvel da filosofia é um determinado projeto moral; uma
filosofia não só é a confissão de seu autor, mas uma confissão
que tem como germe intenções morais.6
Qual é o objetivo de Nietzsche ao rejeitar uma crítica
interna do conhecimento e articular a questão da verdade com
uma genealogia da moral? Consiste em remeter, ou melhor, em
subordinar, por intermédio da moral, a questão da verdade a
uma teoria das formas de vida, dos estilos de vida, que fun­
ciona como critério de avaliação do conhecimento? Em outras
palavras, se a questão do conhecimento remete à da morali­
dade, se a norma do conhecimento não é epistemológica mas
moral, é porque a vida é o critério último de julgamento tanto
do conhecimento quanto da moral.
Em Além do bem e do mal, por exemplo, Nietzsche enun­
cia claramente essa relação entre conhecimento e vida. § 2:
"Seja qual for o valor que se venha atribuir à verdade, à veraci­
dade ou ao desinteresse, pode ser que se deva dar à aparên­
cia, à vontade de enganar, ao egoísmo e aos apetites um valor
mais alto e mais fundamental para qualquer vida." § 4: "Não
vemos na falsidade de um juízo uma objeção contra esse juízo
[. . .] A questão é de saber em que medida um juízo está apto
para promover a vida [. . .] renunciar aos falsos juízos seria re­
nunciar à própria vida. " § 1 1 : "[ . . .] já é tempo de substituir a
questão kantiana: 'como os juízos sintéticos a priori são
possíveis?' por esta outra questão: 'por que é necessário acredi­
tar em tais juízos?', isto é, já é tempo de compreender que a
conservação de seres de nossa espécie exige que acreditemos
neles. O que não impede, bem entendido, que esses juízos
possam ser falsos [. . .]8 Devemos, no entanto, acreditar na ver­
dade deles com uma fé que se contenta com a fachada e a
aparência, uma crença que pertence à ótica da vida e à sua
perspectiva. " § 34: "'É por puro preconceito moral que atri­
buímos mais valor à verdade do que à falsidade; esta é mesmo
a hipótese mais mal fundada que existe. Reconheçamos: nenhu-

53
Roberto Machado

ma vida pode subsistir a não ser por estimações e aparências


inerentes à sua perspectiva. "

O caminho d a argumentação de Nietzsche e m direção ao


mais fundamental se faz, portanto, em duas etapas: do con­
hecimento à moral e da moral à vida. Em primeiro lugar, o
projeto de fundar a verdade ou a certeza é desclassificado e
reduzido a uma questão subsidiária, a um problema de se­
gunda ordem,9 na medida em que a confiança na razão é um
fenômeno moral10 e é a partir dele que é possível revelar os
interesses mais secretos do conhecimento. A questão dos valo­
res, e no seu âmago a dos valores morais, é mais fundamental
do que a questão da certezaY
Mas isso não é tudo porque a análise nietzschiana da
moral não é propriamente uma reflexão moral. Como pensar a
moral sem estar na dependência de seus pressupostos, sem
continuar escravo de seus preconceitos? Esta é uma exigência
crítica fundamental colocada por Nietzsche e uma exigência
difícil pois, segundo ele, esta tarefa ainda não tinha sido reali­
zada por ninguém.
"Até o momento, os historiadores da moral contam muito
pouco: eles estão geralmente sob o comando de uma moral e
na realidade apenas fazem sua propaganda."12 "Para que 'pen­
samentos sobre preconceitos morais' não sejam mais uma vez
preconceitos sobre preconceitos eles supõem uma posição fora
da moral, algo para além de bem e mal para o qual é preciso
subir, escalar, voar. "13 Essa posição exterior à moral, esse para
além da moral a que é preciso se elevar para ter uma perspec-
'- tiva do alto é justamente a vida considerada como instinto,
como força, como vontade, como potência, e seus diversos
tipos, ou, para designar o conceito que se impõe a partir de
Assim falou Zaratustra, como vontade de potência. E se essa
perspectiva é a única que ele considera crítica é porque a
: moral é um sintoma que remete a algo de mais fundamental: é
a "linguagem simbólica das paixões", 14 e é como tal que deve
ser investigada, se se quiser revelar seu significado, suas reais
dimensões. No fundo a moral é "imoral", os valores morais são

54
Nietzsche e a verdade

valores vitais. É essa relação intrínseca entre moral e vida que


torna possível o projeto de uma genealogia da moral como
genealogia da vontade de potência que tem como objetivo
avaliar os valores morais a partir da vida - e das forças que
servem para defini-la - considerada como critério último de
julgamento.
Uma das motivações principais da filosofia de Nietzsche é
considerar irrelevante saber se os juízos de valor sobre a vida
são verdadeiros ou falsos. A razão é que, sendo a vida o prin­
cípio, o fundamento da criação de valores - sendo a vida que
avalia quando instituímos valores - ela não pode ser julgada,
seu valor não pode ser taxado.15 Um juízo de valor depende
das condições de vida e varia com elas; seja ele positivo ou
negativo, uma exaltação ou uma condenação da vida, deve ser
unicamente considerado como sintoma; sintoma de uma espécie
determinada de vida. "[. . .] tem-se necessariamente a filosofia de
sua própria pessoa; entretanto, existe uma grande diferença:
em uns são suas faltas que se põem a filosofar, em outros, suas
riquezas e suas forças [. . .] É legítimo considerar as audaciosas
loucuras da metafísica e particularmente as respostas que ela
dá à questão do valor da existência antes de tudo como sin­
tomas de constituições corporais próprias a determinados in­
divíduos [. . .] como sintomas da constituição viável ou falha do
corpo, de sua abundância e de sua potência vitais, de sua
soberania na história ou, ao contrário, de suas indisposições,
de seu esgotamento, de seu empobrecimento, de seu pressen­
timento do fim, de sua vontade de acabar. "16
Assim, quando a genealogia avalia o conhecimento, o im­
portante não será perguntar se ele é verdadeiro ou falso. Inú­
meras vezes Nietzsche assinala que o falso tem uma positivi­
dade quando considerado na perspectiva da vida, ressaltando
mesmo o caráter negativo da verdade pelo fato de ser a su­
pressão de um erro, de uma ilusão que é uma exigência básica
da vida. 17 O que é significativo nessa tentativa de inversão dos
valores estabelecidos, como toda vez que Nietzsche elogia a
aparência, é que o importante não é a verdade mas a força do
conhecimento. E como a força não se encontra no grau de

55
Roberto Machado

verdade, 18 a análise do conhecimento em termos de forças que


realiza a genealogia deve determinar se ele é a expressão de
um excesso ou de uma indigência vital, de uma afirmação ou
de uma negação da vida. Que tipo de existência tem quem diz
tal tipo de coisa? - pergunta o genealogista remetendo os
valores à potência daquele que institui os valores. Em suma, a
questão nietzschiana do conhecimento pode ser enunciada
nos- seguintes termos: se existe um tipo de vida ativa e um tipo
de vida reativa, a serviço de que tipo de vida se coloca o
conhecimento?
Vou, portanto, expor, em primeiro lugar, a genealogia nietzs­
chiana da moral e a concepção da vida como vontade de
potência, que lhe é subjacente e lhe serve de fundamento; em
seguida, analisarei a relação entre ciência e moral, ou, mais
precisamente, a genealogia nietzschiana da verdade.

Notas
1 . Aurora (A), prefácio, § 3.

2. Frag. Post., outono de 1885 primavera de 1886, 1 [60); cf. também


-

outono de 1885 - outono de 1886, 2 [87) e 2 [161); verão de 1886 -

outono de 1887, 5 [11).

3. Cf. A., prefácio, § 3.


4. Fra. Post. , primavera de 1884, 25 [17).

5. Cf. Crepúsculo dos ídolos (C.I.), "O que devo aos antigos", § 2.

6. Cf. Além do bem e do mal (B. M.) § 6.

7. Para evitar possíveis equívocos talvez seja necessário esclarecer que esta
hipótese não é infirmada pelo § 1 2 1 da Caia ciência intitulado "a vida não é
um argumento" . Esse aforismo diz que, se os homens não podem viver sem
o mundo que construíram, isso não demonstra que este mundo esteja certo
como está na medida em que "entre as condições da vida poderia figurar o
erro". Para Nietzsche, "o primeiro problema é o da hierarquia dos tipos de
vida" (Frag. Post, final de 1886 - primavera de 1887, 7 [42)).
8. "Os juízos sintéticos a priori são possíveis, mas são - juízos falsos." Frag.
Post. , abril-junho de 1885, 34 [171).
9. Cf. Frag. Post, outono de 1885 - outono de 1886, 2 [1691 .

10. Cf. A., prefácio, § 4.

56
Nietzsche e a verdade

1 1 . Cf. Frag. Post., final de 1886 - primavera de 1887, 7 [491.


12. Frag. Post., outono de 1885 - outono de 1886, 2 [1631.
13. A Caia ciência (G. C.). § 380.
14. B. M., § 187; "A moral é apenas uma linguagem simbólica, uma sintoma­
tologia: é preciso já saber de que se trata para tirar proveito dela." C./., "Os
'melhoradores' da humanidade", § 1 .
15. Cf. C./., " O problema de Sócrates", § 2.
16. G. C., § 2.
17. Cf. Frag. Post., primavera de 1884, 25 [1651.
18. Cf. G. C., § 1 10.

57
2

Genealogia da moral e vontade de potência

"li: e mostrar o problema da moral, fazer uma crítica


radical da moral: essa é uma das tarefas essenciais da filosofia
de Nietzsche, que ele considera nunca ter sido realizada antes.
"Não vejo ninguém que tenha ousado fazer uma crítica dos
juízos de valor morais [. . .] até o momento ninguém examinou
o valor da mais famosa das medicinas chamada moral: o que
exigiria que se colocasse esse valor- em questão. Pois bem! É
esse justamente nosso projeto."1 9_projetq genealógico - daí
toda sua relevância e ambição - é uma tentativa de super�o
da metafísica através de uma história descontínua dos valores
morais que investiga tanto a origem - compreendida como
nascimento, como invenção - quanto o valor desses valores.
Ligar a filosofia à história - como ele também faz com a
filologia, com a fisiologia, com a psicologia - é um_ modo de
marcar uma posição, de assinalar sua diferença com relação a
uma filosofia que ele pretende denunciar com metafísica e mo­
ral. Se a genealogia é uma reflexão filosófica que pode ser
considerada como uma extensão da noção de história, um dos
motivos é que Nietzsche não acredita mais em valores eternos:
os valores são históricos, advindos ou em devir. "O que nos
separa mais radicalmente do platonismo e do leibnizianismo é
que não acreditamos mais em conceitos eternos, em valores
eternos, em formas eternas, em almas eternas; e a filosofia, na
medida em que é científica e não dogmática, é para nós ape­
nas uma maior extensão da noção de 'história'. A etimologia e
a história da linguagem nos ensinaram a considerar todos os
conceitos como advindos, muitos dentre eles como ainda em
devir."2
Os valores não têm uma existência em si, não são uma
realidade ontológica; são o resultado de uma produção, de

59
Roberto Machado

uma criação do homem: não são fatos, são interpretações in­


troduzidas pelo homem no mundo. "Tudo o que tem algum
valor no mundo atual não o tem em si, não o tem por sua
natureza - a natureza é sempre sem valor - mas um dia
ganhou valor, como um dom, e nós somos os doadores. Fomos
nós que criamos o mundo que diz respeito ao homem!".3 O
mesmo acontece com os valores morais. Não existem fatos mo­
rais, fenômenos morais, mas apenas uma interpretação moral. 4
Nietzsche torna preciso seu pensamento, acrescentando:
uma falsa interpretação. 5 É inegável que ele sempre afirmou
que a moral é falsa. Mas isso, sem dúvida, não é a direção
mais importante de seu pensamento porque não se pode afir­
mar que a questão do valor dos valores seja uma crítica da
verdade desses valores. E a razão é evidente: é que a questão
da verdade nasce para Nietzsche no bojo da moral; este é o
seu aspecto mais essencial, a ponto de não se poder escapar
da moral sem se libertar da vontade de verdade. Neste sentido,
em vez de a genealogia ser uma pesquisa sobre a verdade do
valor, ela é muito mais propriamente uma pesquisa sobre o
valor da verdade. Dizer que a moral é uma "falsa" interpre­
tação é dizer que ela não é fundamentalmente moral; ela é
"imoral" ou de origem extramoral.6 Quer dizer, ela é um sin­
toma que, para poder ser compreendido, remete a um nível
mais elementar que muitas vezes Nietzsche chamou de fisio-:_ .
lógico: nível da vida e suas forças; nível da vontade de potên­
cia? Por isso, colocando a questão do valor, a genealogia da
moral está sobretudo avaliando sua força: "fazer sua crítica,
isto é , questionar: qual é sua força? sobre o que ela age? o que
acontece com a humanidade (ou com a Europa) sob o seu
domínio? Que forças ela favorece, que forças ela reprime? Tor­
na ela mais sadio, mais doente, mais corajoso, mais ávido de
arte etc.?"8 Colocando a questão das forças, considerando os
valores morais como valores vitais, a genealogia é , assim, tam­
bém uma interpretação; só que uma interpretação que se reco­
nhece "imoral",9 afirma uma incompatibilidade entre a moral e
a vida e proclama que é preciso destruir a moral para libertar a

60
Nietzsche e a verdade

vida.10 Suspeitando do valor da moral, a genealogia pretende


desvalorizar os valores prevalentes até entãô.
Em suma, insurgindo-se contra a tendência a considerar
"o valor desses 'valores' como dado, como real, como além de
todo questionamento", n a genealogia tem por objetivo colocar
em questão o próprio valor desses valores pelo conhecimento
das condições de seu nascimento, desenvolvimento e modifi­
cação. Contra hipóteses metafísicas no azul, a cinza história
genealógica do que realmente existiu formula seu problema:
"Em que condições o homem inventou os juízos de valor bom
e malvado? E que valor eles têm?"12 São signos de declínio ou
de plenitude da vida?

Tese central de Nietzsche: a existência, não de uma única,


mas de uma dupla origem dos valores morais e de uma oposição
histórica irredutível entre dois tipos fundamentais de moral:
uma "moral dos mestres" e uma "moral dos escravos"13, ou,
para usar as expressões de Crepúsculo dos ídolos, uma "moral
sadia" , natural, regida pelos instintos da vida, e uma "moral
contranatural" voltada contra os instintos da vida.14 Dois tipos
de moral, afirma Nietzsche, mas que na realidade são total­
mente heterogêneos, nada têm em comum, implicam uma di­
ferença de níveis, uma hierarquia, mesmo que, como tipos,
existam em uma mesma sociedade e até em um mesmo in­
divíduo. 15 Em outros termos, a "moral dos mestres" , a "moral
sadia", mais propriamente do que uma moral, é uma "ética'� 16
A "moral aristocrática" é uma ética do bom e do mau
considerados como tipos históricos, como valores imanentes,
como modos de vida; ética dos modos de ser das forças vitais
que define o homem por sua potência, pelo que ele pode,
pelo que ele é capaz de fazer. Em contrapartida, a "moral
plebéia" é propriamente uma moral: um sistema de juízos em
termos de bem e de mal considerados como valores metafísi­
cos e que, portanto, refere o que se diz e o que se faz a
valores transcendentes ou transcendentais. Duas formas de con­
sideração da existência humana que se diferenciam irredutível­
mente como uma positividade e uma negatividade, não porque

61
Roberto Machado

uma seja verdadeira e a outra falsa, mas porque uma é signo


de plenitude e a outra de declínio da vida.
O objetivo fundamental da genealogia é realizar uma crí­
tica radical dos valores morais dominantes na sociedade mo­
derna. Mais precisamente, analisar a "moral altruísta" e demons­
trar que não existe uma relação necessária entre o bom e as
aÇões "não-egoístas". Neste sentido, a ética aristocrática do bom e
do mau desempenha claramente o papel de um princípio de
avaliação e de modelo de alternativa crítica aos valores domi­
nantes. Como se Nietzsche julgasse a moral a partir da ética.
Mas sobretudo como se denunciasse a moral pela destruição
dos valores da ética. Daí, várias vezes ter afirmado a existência
de um momento e um lugar em que os valores aristocráticos
foram dominantes: a Grécia arcaica, que para ele sempre signi­
ficou o apogeu da civilização, é onde vai encontrar na arte-
na epopéia, na poesia lírica, na tragédia - os valores que
opõe à moralidade. Assim, do mesmo modo que a filosofia
socrático-platônica estabelece uma ruptura entre o trágico e o
racional, a religião judaico-cristã institui a ruptura entre ética e
moral. Balizamentos históricos diferentes mas que têm em co­
mum assinalar o nascimento de um período de decadência.
Há, portanto, entre a moral cristã e a ética aristocrática
conflito e vitória; vitória parcial da moral que transformou o
"homem-fera" em animal doméstico, uma ave de rapina em
cordeiro. Metáforas estas que evidenciam duas coisas: que a
análise não é só global, caracterizando povos e grandes perío­
dos, mas também molecular no sentido de privilegiar tipos
individuais; e, ao mesmo tempo, que o essencial da análise é a
dimensão das forças. A decadência é uma diminuição, um en­
fraquecimento do homem; é a transformação do tipo forte no
tipo fraco, o triunfo das forças reativas sobre as forças ativas; é
a decomposição das forças ativas, a subtração da força dos
fortes que fez com que os próprios fortes assumissem os valo­
res dos fracos. 17 "Eu distingo um tipo de vida ascendente e um
outro, do declínio, da fraqueza [. ..] Esse tipo mais forte já exis­
tiu freqüentemente: mas como acaso feliz, como exceção, nunca

j
como desejado. Muito pelo contrário, era ele justamente que

62
Nietzsche e a verdade

mais se combatia, que mais se entravava - ele sempre teve


contra si o grande número, o instinto de toda espécie de me­
diocridade, melhor ainda, ele teve contra si a astúcia, a sagaci­
dade, o espírito dos fracos e - por conseguinte - a 'virtude'
[. . .] e foi o medo que ele inspirava que levou a querer, a criar,
a obter o tipo oposto: o animal doméstico, o animal gregário, o
animal doente, o cristão. " 18
Três características distinguem, de modo geral, a "moral
gregária" da "ética aristocrática" . A ética aristocrática é afirma­
tiva, é o resultado de um sim a si mesmo. É nobre, é bom, é
forte aquele que cria, que determina os valores e sabe muito
bem disto. "A humanidade aristocrática sente que ela deter­
mina os valores, não tem necessidade de aprovação, julga que
aquilo que lhe é nocivo é nocivo em si mesmo, sabe que é ela
que confere dignidade às coisas, é criadora de valores."19 Ela
também é positiva no sentido em que os aristocratas se posi­
cionam como bons, se sentem bons, estimam seus atos bons,
sem se incomodarem com os maus que - não interferindo
nesta autoposição de valores - são considerados secundários
ou simplesmente desconsiderados. Finalmente, a ética aristo­
crática pressupõe uma atividade livre, criadora e alegre; no
forte, atividade e felicidade estão intrinsecamente ligadas. �
aili'idade- é uma afirmação da potência: "o que faz agir não é a
necessidade mas a plenitude. . . contra a teoria pessimista segun­
do a qual todo agir se reduziria a querer · se livrar de uma
insatiifação, o prazer consigo mesmo seria o alvo de qualquer
ação . . . "20 Em contrapartida, a moral dos escravos, além de con­
siderar a felicidade como passividade, paz, repouso, é negativa
e reativa : funda-se na negação dos valores aristocráticos, da­
quilo que lhe é exterior e diferente. E, como é esse não que
instaura valores, sua ação nada mais é do que uma reàção.
Enquanto a equação dos valores aristocráticos, tal como
Nietzsche a estabelece a partir do poeta lírico grego Theognis
de Megara, pode ser enunciada como: bom = nobre = belo =

feliz= amado dos deuses, a moral judaica realizou uma total


inversão de valores, uma "vingança espiritual pura", ao afirmar
que bons são apenas os miseráveis, pobres, necessitados, im-

63
Roberto Machado

potentes, baixos, sofredores, doentes, disformes e que os nQ� _


bres e poderosos são malvados, cruéis, lúbricos, insaciáveis,
í� . 21 Ou, como afirma Além do bem e do mal, "os judeus
�onseguiram essa prodigiosa inversão dos valores que, durante
milênios, deu à vida terrestre um atrativo novo e perigoso:
seus profetas fundiram em uma mesma noção 'rico', 'ímpio',
'malvado', 'violento', 'sensual' e pela primeira vez deram um
sentido infamante à palavra 'mundo' . Essa inversão dos valores
(que também pretende que 'pobre' seja sinônimo de 'santo' e
de 'amigo') mostra toda a importância do povo judeu: com ele
começa a revolta dos escravos na ordem moral.'122 De um pon­
to de vista extramoral, o "escravo" é um fraco, um infeliz que
denomina malvado o "aristocrata" , o tipo forte de homem. _A
moral judaico-cristã, inversão total dos valores positivos da éti­
ca aristocrática, expressa um enorme ódio contra a vida - o
ódio dos impotentes -, contra o que é positivo, afirmativo,
ativo, na vida; negação da vida que tem justamente a função
de "aliviar a existência dos que sofrem". 23 Em uma palavra, é
niilista.
A genealogia da moral define esse tipo de niilismo a par­
tir de suas três figuras principais: o ressentimento, a má-cons­
ciência, o ideal ascético. Situarei os resultados mais importan­
tes dessa análise.
O ressentimento24 é o predomínio das forças reativas so­
bre as forças ativas. O ressentido é alguém que nem age nem
reage realmente; produz apenas uma vingança imaginária, um
ódio insaciável. "Visto que o homem se consumiria rapida­
mente se reagisse, acaba por não reagir: eis a lógica. E nada
consome mais rapidamente do que os afetos do ressentimento.
O desgosto, a suscetibilidade doentia, a impotência em se vin­
gar, a inveja, a sede de vingança, o envenenamento em todos
os sentidos: eis para o homem esgotado o modo mais nocivo
de reagir. "25 Compreende-se a afirmação de Nietzsche de que é
preciso proteger os fortes contra os fracos. 26 Criando um ini­
migo que considera malvado e imaginando uma vingança con­
tra seus valores, o que faz o ressentido é dar sentido a sua
falta de força: o outro é sempre culpado do que ele não pode,

64
Nietzsche e a verdade

do que ele não é. Concebendo o inimigo forte como malvado,


o ressentido - que é fraco, que é o seu oposto, que é a
negação dos valores que o outro institui - pode então se
considerar, ou melhor, se imaginar bom. Atitude diametralmente
oposta à dos aristocratas que se autoposicionam bons, consi­
deram mau o que é comum, o que não lhes é igual, e não
desprezam, ao contrário, veneram os inimigos, isto é, também
os consideram bons. "Os bons são urna casta; os maus uma
massa, urna poeira. Bom e mau são, por um tempo, sinônimos
de nobre e vil, mestre e escravo. Por outro lado, não se olha o
inimigo como mau: ele pode revidar. Em Homero tanto o gre­
go quanto o troiano são bons. Não passa por mau aquele que
nos inflige algum dano, mas aquele que é desprezível. '>27
A má-consciência ou o sentimento de culpa tem, segundo
a genealogia nietzschiana, uma dupla origem. A primeira é a
transformação do tipo ativo em culpado28 que se deu com o
nascimento do Estado, "a mudança mais profunda que se pro­
duziu na humanidade" . 29 A argumentação de Nietzsche nesses
importantes textos que analisam essa forma de surgimento da
má-consciência se faz pela relação entre instinto e consciência.
A idéia central é a seguinte: a força coercitiva, repressora, do
Estado - uma tirania terrível - abatendo-se sobre uma popu­
lação nômade, selvagem, livre, desvalorizou abruptamente os
instintos - instintos de liberdade, reguladores da vida, incons­
cientemente infalíveis -, reduzindo esses "semi-animais" ao
pensamento, à consciência, "a seu órgão mais miserável e mais
sujeito ao erro". 30 Impossibilitados de agir no exterior, esses
instintos fundamentais, que Nietzsche assimila à vontade de
potência,31 inverteram sua direção, voltaram-se para dentro, para
o interior, ou melhor, criaram a interioridade. A interiorização
do homem se produz quando os instintos mais potentes, não
podendo se expandir por causa de uma forte repressão social,
voltam sua força contra o próprio indivídu�. É a interiorização
desta força ativa, da vontade de potência, que cria a má-cons­
ciência. "Esse instinto de liberdade tornado latente pela violên­
cia - já o compreendemos - esse instinto de liberdade recal­
cado, coibido, preso no interior e só podendo se expandir e se

65
Roberto Machado

desencadear sobre si próprio: é isso, e nada mais do que isso,


a má-consciência no início" . 32
O segundo modo de surgimento da má-consciência é a
transformação do ressentido em culpado realizada pelo padre
ascético.33 O papel do padre é descarregar, aliviar seu rebanho
do ressentimento acumulado que ele considera um explosivo
capaz de destruir tanto um quanto o outro. Como se dá esse
alívio descompressor? O ressentido é alguém que sofre e por­
que sofre procura espontaneamente uma causa - um culpado
- de seu sofrimento para sobre ele descarregar seu ódio, "dis­
trair a dor pela paixão". Esse culpado, o padre lhe oferece: é
ele mesmo, o ressentido. "Alguém deve ser culpado de que eu
me sinta mal!" , diz o ressentido, ignorando a causa de seu
sofrimento; o padre ascético lhe responde: "Tem razão, minha
ovelha, alguém deve ser culpado, mas esse alguém é você
mesmo; é você mesmo e apenas você que é culpado de você!"34
Sua culpa, sua culpa, sua culpa! dizia incessantemente o res­
sentido; minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa! dirá
agora o culpado. É o padre que muda a direção do ressenti­
mento. A má-consciência é o ressentimento voltado contra si
próprio. Nasce assim, segundo essa "psicologia do padre", o
pecado.35
Terceira forma de niilismo: o ideal ascético. O que car��
teriza o ascetismo religioso? É considerar a vida um erro, negá­
la e fazer dela uma ponte para outra vida, a vida verdadeira:
invenção de um além para melhor caluniar um aquém;36 in­
venção de um outro mundo que só se explica pelo cansaço da
vida que impera na moral, na religião, na filosofia. "Inventar
fábulas sobre um 'outro' mundo diferente deste não tem sen­
tido a não ser que domine em nós um instinto de calúnia, de
depreciação, de receio: neste caso nos vingamos da vida com
a fantasmagoria de 'outra' vida distinta desta e melhor do que
esta. "37 Calúnia suprema da vida que, para tornar desej ável
essa negação da vida, supõe a existência de outra vida, de um
mundo do além, de um mundo supra-sensível. Mas o ideal
ascético não se distingue essencialmente das duas atitudes an­
teriores; constitui, pelo contrário, o sistema moral do ressenti-

66
Nietzsche e a verdade

mento e da má-consciência, mais propriamente, os meios de


organização do tipo de moral judaico-cristã. O que caracteriza
a moral é ela ser a maior caluniadora e envenenadora da vida.38
Por quê? Porque ela é niilista; porque com ela os "instintos de
decadência" dominam os "instintos de expansão", a vontade
de nada vence a vontade de viver. "O instinto niilista diz não;
sua afirmação mais moderada é que não-ser é melhor do que
ser, que o desejo de nada tem mais valor do que querer-viver;
sua afirmação mais rigorosa é que, se o nada é o que há de
mais desejável, esta vida, como sua antítese, é absolutamente
sem valor - condenável"39 Niilista, a moral exprime uma von­
tade de nada, isto é, uma vontade não de afirmar mas de
n�gar, de depreciar a vida, possibilitando assim o triunfe.-d:its
forças reativas.
Pode-se compreender a importância que Nietzsche con­
fere ao nascimento de uma moral do bem e do mal e o papel
central que a reflexão sobre a moral desempenha em sua obra.
A sociedade moderna é niilista, isto é, dominada pelos valores
morais, pelos valores superiores que são justamente os valores
da decadência. E se a humanidade vive um período de de­
cadência, de degenerescência - dois milênios de antinatureza
e profanação do homem40 - isso se deve à vitória da "revolta
dos escravos na moral" . Se a espécie humana não atingiu o
grau mais alto de potência e esplendor, isso se deve ao fato de
a moral ser o perigo dos perigos. 4 1 Daí a posição de Nietzsche
em defesa de uma ética aristocrática como aspecto positivo da
denúncia da negatividade da moral. Daí sua posição imoral,
amoral ou extramoral, que pretende desmascarar a moral para
desmascarar o não-valor de todos os valores em que se acre­
dita, 42 criticar a domesticação do homem realizada pela moral
em nome de um conceito de cultura como adestramento e
seleção. Porque não se deve confundir domesticação, que é
enfraquecimento, com adestramento: "Como o entendo, o ades­
tramento é um dos meios do enorme acúmulo de forças da
humanidade, de modo que as gerações possam continuar a
construir tendo por base o trabalho de seus ancestrais - cres-

67
'1
Roberto Machado

cer a partir deles não apenas exteriormente, mas interiormente,


organicamente, no que existe de mais forte". 43
É por isso que contra o enfraquecimento do homem, con­
tra a transformação de fortes em fracos - tema constante da
reflexão nietzschiana - é necessário assumir uma perspectiva
além de bem e mal, isto é, "além da moral" . 44 Mas, por outro
lado, para além de bem e mal não significa para além de bom
e mau.45 A dimensão das forças, dos instintos, da vontade de
potência permanece fundamental. "O que é bom? Tudo que
intensifica no homem o sentimento de potência, a vontade de
potência, a própria potência. O que é mau? Tudo que provém
6
da fraqueza." 4

A exposição das teses centrais de A genealogia da moral


mostra como - ao privilegiar na análise as forças, os instintos,
a vontade de potência - a genealogia dos valores morais se
realiza tomando a vida como critério de avaliação; mas eviden­
cia também a definição mais especificamente nietzschiana da
vida como vontade de potência: a natureza da vida é a von­
tade de potência. 47 Essa posição primordial da vontade de po­
tência na análise - situação de critério último de avaliação -
permite também definir a genealogia, seja qual for o ob$to a
que ela se aplique, como uma teoria da vontade de potência, É
assim que Nietzsche define, pelo menos duas vezes, a "psi­
cologia", no sentido bastante próprio que ele lhe dá de ciência
mestra que conduz aos problemas essenciais, e que acredito
poder identificar com a genealogia: "morfologia e teoria ge­
nética da vontade de potência" ; "(teoria dos afetos), concebida
como morfologia da vontade de potência" . 48
E o que ensina a teoria genealógica da vida como von­
tade de potência? Essa teoria "psicológica" ou mesmo "fisiológica"
- uma "fisiologia da vontade de potência"49 - que considera
a vontade de potência o fato elementar, "a forma primitiva do
afeto" a ponto de afirmar que "toda força motriz é vontade de
potência, fora dela não existe nenhuma força física, dinâmica
ou psíquica" , 50 tem como tese fundamental - e sem a qual a
filosofia de Nietzsche seria incompreensível - que a vontade

68
Nietzsche e a verdade

de potência não é unitária; é constituída de formas ou tipos


diferentes. O que o homem quer é sempre mais potência,51
mas o homem é uma pluralidade de vontades de potência;52
viver é sempre querer mais potência, querer ser mais forte,
mas isso significa tanto estender quanto conservar a potência.
Por um lado, a vida deseja fundamentalmente53 um má­
ximo de potência; não propriamente uma conservação ou uma
adaptação mas um aumento, um acúmulo, uma expansão, uma
intensificação de potência. Alguns textos enunciam explicita­
mente essa importante tese da filosofia de Nietzsche. "E eis o
segredo que a vida me confiou: 'Vê, disse ela, eu sou o que
deve se superar a si mesmo indefinidamente' ."54 Toc!ç> corpo
"deverá ser uma vontade de potêf1cia enq1snada, -qU;.erá cres­
cer, se estender, açambarcar, dominar, não por moralidade ou
imoralidade, mas porque vive e a vida é vontade de potên­
cia."55 "A vida, como a forma mais conhecida do ser, é especi­
ficamente uma vontade de acumulação de força: todos os pro­
cessos da vida têm aqui sua alavanca: nada quer se conservar,
tudo quer crescer e acumular. A vida [. . .] tende a um senti­
mento máximo de potência: é essencialmente um esforço para
6
mais potência."5 "Minha concepção é que todo corpo espe­
cífico tende a se tornar mestre de todo o espaço e a estender
sua força (sua vontade de potência) e a repelir tudo o que se
opõe a esta extensão. Mas ele se choca constantemente com
esforços similares de outros corpos e acaba por se 'arranjar'
('se unir') com aqueles que estão mais próximos: - então eles
conspiram juntos para tomar o poder. E o processo continua."57
Por outro lado, não só na força ativa mas também na
força reativa existe vontade de potência. A análise genealógica
considera a vida como vontade de potência mesmo quando
ela é reativa, negativa, fraca, isto é, quando exprime uma von­
tade de nada, quando é niilista. A afirmação final de A gene­
alogia da moral é justamente esta: o homem prefere querer o
nada do que nada querer; a vontade de nada, a revolta contra
as condições fundamentais da vida, ainda é vontade de potên­
cia.58 Por quê? Porque permite dar um sentido à vida, à própria
vontade de potência. "Muitas coisas o ser vivo avalia mais alto

69
Roberto Machado

do que a própria vida; mas, mesmo nesta avaliação, o que fala


é - a vontade de potência. " 59
Compreende-se o significado da moral para Nietzsche. A
moral não é a manifestação de uma vontade forte, que excede,
de uma "virtude que dá", mas a manifestação de uma vontade
fraca que deseja uma potência que não tem, uma potência
imaginária, uma representação. A tese de Nietzsche é que o
6
ideal ascético não só exprime uma vontade, 0 como até mesmo
é uma astúcia da conservação da vida: "o ideal ascético tem
sua fonte no instinto de defesa e de salvação de uma vida em
vias de degeneração que procura subsistir por todos os meios
6
e luta por sua existência" . 1 Defesa, adaptação, conservação
são objetivos de uma vontade fraca, doente, pobre, diminuída
que se utiliza justamente do ideal ascético como meio de con­
tinuar vivendo. "A vontade de conservação é a expressão de
uma situação desesperada, de uma restrição do instinto vital
que, por sua natureza, aspira a uma extensão de potência e por
isso freqüentemente põe em jogo e sacrifica a própria conser­
6
vação" . 2 Se a moral é uma astúcia da vontade de potência
com o objetivo de conservar a vida - e não de expandi-la
criativamente -, se através dela a vida luta contra a morte,
sabemos também que tipo de vida é essa: uma vida sem força,
sem vigor, sem intensidade; Nietzsche lhe deu um nome: uma
vida de escravo.
Em que sentido pode haver incompatibilidade entre mo­
ral e vida se a vontade de moral é vontade de potência? No
sentido em que a vontade de moral é vontade negativa de
potência. Se a moral é incompatível com a vida isso não signi­
fica que ela o seja com todo tipo de vida. A posição nietzs­
chiana é que, pelo fato mesmo de servir para conservar a vida,
a moral é nociva às forças que possibilitam a auto-expansão da
vida, que são as forças mais fundamentais. Se a moral é um
leito de Procusto,63 se a moral é um fenômeno contranatural é
porque se insurge contra os instintos primordiais da vida, con­
tra a vontade afirmativa de potência.
Pode-se também compreender por que a perspectiva da
análise nietzschiana é extramoral. É que ela considera a moral

70
Nietzsche e a verdade

tomando a vida como critério, a partir das forças vitais. Se a


vida, ou a vontade de potência, é "imoral" ou não-moral, tam­
bém a moral, que essencialmente é apenas a expressão de um
6
tipo de vontade de potência - o tipo negativo - é imoral. 4
A grande insolência de Nietzsche é proclamar, contra a
exigência, contra o ideal de moralidade que rege nossas so­
ciedades, que o homem moral nem é melhor, nem mesmo é
propriamente bom; é apenas fraco, negativo, reativo. "Chamar
a domesticação de um animal seu 'melhoramento' soa aos nos­
6
sos ouvidos quase como uma piada. " 5 "Na verdade ri muitas
vezes dos fracos que se julgam bons porque têm as mãos pa­
66
ralíticas" . Quando considerada na perspectiva das forças, a
moral é um poderoso instrumento de conservação do fraco;
mas por isso mesmo enfraquece a vida, transforma a força em
fraqueza. "Minha opinião: todas as forças e todos os instintos
que tornam possível a vida e o crescimento caem sob o golpe
da moral: moral como instinto de negação da vida. " E Nietzs­
che conclui enunciando uma exigência que dá à sua filosofia a
característica de um instrumento de combate: "É preciso ani­
6
quilar a moral para libertar a vida" . 7 Exigência de se livrar do
disfarce da moral, de se situar para além de bem e mal, de se
6
posicionar acima da ilusão do juízo moral 8 como condição de
ser aristocrata: de afirmar, de "enobrecer" a vida. "Para que
seroe afinal de contas a moral se a vida, a natureza, a história
6
· são 'imorais'?" 9 É nessa perspectiva que vai ser analisada a
relação entre ciência e moral.

Notas
1 . G.C., § 345.

2. Frag. Post., junho-julho de 1885, 38 [14).

3 . G.C., § 301 ; Frag. Post, outono de 1887, 9 [40).

4. Cf., por exemplo, Frag. Post., outono de 1885 - outono de 1886, 2 [1651,
2 [ 190).

5. Cf. C./., "Os 'melhoradores' da humanidade", § 1 .

6 . Cf. Frag. Post. , outono de 1885 - outono de 1 886, 2 [165).

71
Roberto Machado

7. Cf., por exemplo, Frag. Post, outono de 1885 - outono de 1886 2 [190].
8. Frag. Post., outono de 1885 - outono de 1886, 1 [531.

9. Cf. Frag. Post. , agosto-setembro de 1885, 39 [ 1 5] ; "Os bons e os justos


chamam-me destruidor da moral: minha história é imoral." Assim falou Zara­
tustra (Z), I, "Da mordida da víbora".
10. Cf. Frag. Post., final de 1886 - outono de 1 887, 7 [6].
1 1 . A genealogia da moral (G.M.), prefácio, § 6.
12. G.M., prefácio, § 3.
13. B.M., § 260.
14. Cf. C.!. , "A moral como contranatureza", § 4 .
1 5 . Cf. B.M., § 260; Frag. Post., junho-julho de 1885, 3 7 [8].
16. Foi Gilles Deleuze (Nietzsche et la Philosophie, Paris, PUF, 1 96 1 , p. 138,
139) quem demarcou essa distinção conceitual, fundamental no pensamento
de Nietzsche, através dessa diferença terminológica também utilizada por ele
para distinguir a moral de Espinosa das morais tradicionais. Cf. Spinoza et te
Probleme de l'Expression, Paris, Minuit, 1968, p. 244-25 1 .
1 7 . Frag. Post., primavera de 1888, 1 5 [791.
18. Frag. Post., primavera de 1888, 15 [1 20]; cf. O Anticristo (AC), § 3.
19. B.M., § 260.
20. Frag. Post., setembro-outubro de 1888 , 22 [20]. Sobre a posição de Nietzsche
com relação à felicidade, cf. a comunicação de Henri Birault, "De la Béati­
tude chez Nietzsche", in Nietzsche, Cahier de Royaumont (Paris, Minuit,
1 967), que comenta o importante fragmento póstumo: "Que devo fazer para
me tornar feliz? Isso eu não sei, mas eu lhe digo: seja feliz e faça então o
que você deseja".
21 . Cf. G.M., I, § 7.
22. B.M., § 195.
23. B.M., § 260.

24. Cf. G.M., I, § 10, § 1 1 , § 13; II, § 1 1 .


25. Ecce Homo (E.H.), "Porque sou tão sábio", § 6. " . . . o pathos agressivo é
tão inerente à força quanto o sentimento de vingança e ódio o é à fra­
queza."/bid., § 7.
26. Cf. G.M., III, § 14.
27. Humano, demasiado humano (H.D.H.), I, § 45 .
28. Cf. G.M., II, § 16, § 17, § 18.
29. G M , II, § 17.
30. G.M., II, § 16.
31 . Cf. G.M., II, § 18.

72
_[
Nietzsche e a verdade

32. G.M., li, § 17.


33. Cf. G.M., III, § 15, § 16.
34. G.M., III, § 1 5 .
3 5 . Na Grécia antiga não havia sentimento de pecado; cf. G.C., § 135.
36. Cf. "Tentativa de autocrítica", § 5 in N. T.; Frag. Post., primavera de 1888,
14 [1341; E.H., "Porque sou uma fatalidade", § 8.
37. C.I., "A razão na filosofia", § 6; cf. Frag. Post., primavera de 1888, 14
[168).
38. Cf. Frag. Post. , outono de 1887, 10 [166).
39. Frag. Post., maio-junho de 1888, 17 [7).
40. E.H., "Nascimento da tragédia", § 4.
41. G.M. , prefácio, § 6.
42. Cf. E.H., "Porque sou uma fatalidade", § 8.
43. Frag. Post., primavera de 1888, 15 [65); cf. outono de 1887, 10 (68].
44. B.M., § 23.
45. G.M., I, § 17.
46. Frag. Post., novembro de 1887 - março de 1888, 11 [414); primavera de
1888, 1 5 [ 1 20); AC; § 2.
47. Cf. G.M., 11, § 12. Vários textos definem explicitamente a vida como
vontade de potência. Eis algumas referências: Z, li, "Do superar-se a si
mesmo"; Frag. Post, outono de 1885 - outono de 1886, 2 [190); verão de
1886 - outono de 1887, 5 [71) 10; final de 1886 - primavera de 1887, 7 [9)
e 7 [25); outono de 1887, 9 [1) e 9 [38); primavera de 1888, 14 [801.
48. Respectivamente, B.M., § 23; Frag. Post., início de 1888 - primavera de
1888, 13 [1).
49. Frag. Post., início de 1888 - primavera de 1888, 13 [1).
50. Frag. Post. , primavera de 1888, 14 [1 21). Este fragmento se intitula jus­
tamente: "A vontade de potência - de um ponto de vista psicológico" .
5l .Cf. Frag. Post., primavera de 1888, 14 [174).
52. Cf. Frag. Post., outono de 1885 - primavera de 1886, 1 [58).
53. "O desejo fundamental é a vontade de potência", ibid., 1, [591.
54. Z., li, "Do superar-se a si mesmo".
55. B.M., § 259.
56. Frag. Post, primavera de 1888, 14 [831.
57: Ibid., 14 [186).
58. Cf. G.M., III, §, 28.
59. Z, li, "Do superar-se a si mesmo".

73
Roberto Machado

60. Cf.. G.M., III, § 23.


61. G.M., III, § 13.
62. G.C., § 349.
63. Cf. C./., "Incursões de um intempestivo", § 43.
64. Cf. Frag. Post., final de 1886 - outono de 1887, 7 [6]; outono de 1887, 9
[159], 9 [173], 10 [206].
65. C./., "Os 'melhoradorés' da humanidade", § 2.
66. Z, II, "Dos sublimes".
67. Frag. Post., final de 1886 - primavera de 1887, 7 [6].
68. C.!., "Os 'melhoradores' da humanidade", § 1 .
69. G.C., § 344.

74
3

A "Vontade de verdade"

Q ue 'dação a ciência tem com a mornl, a ve,dade


com o bem? O estudo da problemática da moral e sua articu­
lação com a vontade de potência permitem retomar a questão
da ciência explicitando em que sentido a vida, concebida co­
mo vontade de potência, é um critério capaz de elucidar a
questão do conhecimento. E é preciso dizer antes de mais
nada que Nietzsche produz, com o objetivo de articular ordem
moral e ordem epistemológica, um conceito fundamental: o
conceito de "vontade de verdade" .
A análise nietzschiana da ciência tem como ternas princi­
pais: a oposição entre o universalismo e o perspectivismo do
conhecimento, a relação entre os instintos e a consciência, a
heterogeneidade entre conhecimento e mundo, a superação da
dicotomia essência-aparência, a crítica das noções de sujeito
e objeto . . . O ponto porém que se encontra na base de todas
essas reflexões é a crítica da vontade de verdade que atua no
conhecimento. A vontade de verdade é a crença, que funda a
ciência, de que nada é mais necessário do que o verdadeiro1 .
Necessidade não de que algo seja verdadeiro, mas de que seja
tido como verdadeiro. 2 A questão não é propriamente a essên­
cia da verdade, mas a crença na verdade .
Por que a verdade é tida como necessária? O que quer
quem procura a verdade? A originalidade e a importância da
filosofia de Nietzsche é ter compreendido que a crítica da ciên­
cia só pode ser eficazmente realizada como questionamento da
vontade de verdade, o que significa situar-se do ponto de vista
da vontade de potência. Se a questão do conhecimento não
pode ser elucidada limitando-se a seu interior é porque na base
do conhecimento está a vontade e porque a vontade de verdade
expressa sempre um determinado tipo de vontade de potência.

75
Roberto Machado

A teoria nietzschiana da ciência é, portanto, uma genealogia da


vontade de verdade que pretende determinar sua origem e seu
valor a partir da vontade de potência.
A genealogia da verdade prolonga e completa a genealo­
gia da moral. A crítica ao ideal de verdade, ao valor da ver­
dade é a extensão da crítica aos valores morais dominantes
que têm origem na moral judaico-cristã, cujo núcleo essencial
é o ideal ascético.3 A tese central da argumentação é que a
ciência supõe o mesmo "empobrecimento da vida" que carac­
teriza a "moral dos escravos" . Pobre de vida - em oposição à
riqueza, à plenitude características do forte - é quem modifica
o valor dado às coisas, empobrecendo-o. "Ao oposto daquele
que dá involuntariamente às coisas um pouco da plenitude
que ele encarna e sente, as vê mais plenas, mais potentes,
mais ricas de futuro - daquele que em todo caso sabe dar, o
esgotado diminui e desfigura tudo que vê, empobrece o valor;
é pernicioso. "4 Como sempre, é a partir da força ou da fra­
queza, da riqueza ou da pobreza, do excesso ou da falta que é
colocada a questão do valor. Isso aconteceu com os valores
morais, com a questão do bem; o mesmo acontece com os
valores epistemológicos, com a questão da verdade.
A ciência recebe da genealogia o mesmo tratamento que
a moral: é considerada do ponto de vista extramoral carac­
terístico da vontade de potência. "Seria portanto necessário exa­
minar como psicólogo a 'vontade de verdade' : ela não é uma
força moral, mas uma forma · da vontade de potência. Poder-se-ia
prová-lo pelo fato de que ela se serve de todos os meios imorais
- em primeiro lugar a metafísica - a pesquisa só se tornará
metódica quando todos os preconceitos morais forem ultrapassa­
dos."' Apenas essa postura permite equacionar o "problema" da
ciência. Do mesmo modo que o problema do significado da
moral é fundamentalmente o da potência da moral, 6 o pro­
blema da ciência - esse problema terrível, cheio de incógnitas
mas também rico de esperanças, que deverá ocupar ainda o
próximo século - é o da potência, da força da ciência: o do
significado da vontade de verdade.l

76
Nietzsche e a verdade

Assim colocado, o problema da ciência revela não só em


que sentido ela é dominada pelos valores morais mas também
em que sentido a vontade de verdade, como a vontade de
moral, está intrinsecamente vinculada à vontade de potência;
mas de uma forma de vontade de potência, de um tipo es­
pecífico que serve à conservação e não à expansão da vida.8
Tanto quanto a moral cristã, a ciência é uma atividade niilista
que possibilita a dominação da vida pelas forças reativas. O
perigo representado pela vontade ilimitada de conhecimento faz
Nietzsche aproximar vontade de verdade e vontade de morte,9 o
que mostra como para ele a ciência é um sintoma de decadência:
"Que a ciência seja possível, no sentido em que ela é praticada
hoje, isto prova que todos os instintos elementares, instintos de
legítima defesa e de proteção não funcionam mais" . 10 Em suma: a
ciência nem se opõe à moral nem pode ser sua superação por­
q�e não apenas tem as mesmas bases que ela como é a última
etapa de seu aperfeiçoamento; ainda que de modo insconsciente,
são os valores morais que reinam na ciência; até no melhor dos
casos, diz Nietzsche, a ciência "não é o contrário do ideal as­
cético, é antes sua forma mais recente e mais elevada" Y
Mas qual é o elo da argumentação que permite relacionar
tão profundamente a ciência com a moral? Se é possível esta­
belecer esta relação intrínseca, imanente, entre elas é porque a
vontade de verdade, que caracteriza a ciência, constitui o âma­
go do ideal ascético. Se a ciência não é antagonista da moral,
-
se ela depende da moral como instância que lhe dá valor -
. em vez de ser criadora de valor - é porque se funda na
·
verdade e a pesquisa da verdade é uma démarche moral; querer
a verdade é expressar o ideal ascético. Ciência e ideal ascético
"têm como base o mesmo terreno: a mesma superestimação da
verdade (mais exatamente: a mesma crença no caráter ines­
timável e incriticável da verdade), eles são portanto necessa­
riamente aliados, de modo que, se eles devem ser combatidos,
só podem ser combatidos, colocados em questão, juntos" Y
A vontade de verdade a todo custo é um fenômeno moral
porque a oposição verdade-aparência que ela institui signi­
fica a afirmação de uma "vida melhor", de um "mundo-ver-

77
Roberto Machado

�eira" e a negação da vida, do mundo em que vivemos;


criação de um outro mundo que justamente expressa o can­
saço da vida característico da moral. Se há continuidade entre
ciência e moral é porque tanto a verdade quanto o bem 13 sã_o
"valores superiores" ou aspectos da mesma realidade suprema
de onde derivam todos os valores. E como é a vontade de
nada que caracteriza os valores "superiores à vida", os valores
considerados superiores são negadores da vida: o que define o
01Ior dos valores superiores é o niilismo.
A argumentação de Nietzsche atinge assim o ponto culmi­
nante : a análise da relação intrínseca entre ciência e moral
revela a homogeneidade delas com a metafísica. Assim como a
moral dos escravos é uma moral metafísica porque julga� vi a 9
a partir de "valores superiores" - a metafísica é por natureza
niilista porque julga e desvaloriza a vida em nome de um mun­
do supra-sensível -, a condição de possibilidade da ciência é, ·
em última instância, a fé em um valor metafísico da verdade.
Privilegiando, na reflexão sobre a ciência, a vontade de ver­
dade, a crítica nietzschiana tem por objetivo esclarecer que ela
implica tanto a metafísica quanto a moral - uma moral me­
tafísica ou uma metafísica moral - na medida em que o valor
metafísico que se atribui à verdade, e que está na base da
vontade de saber e portanto da ciência, é a expressão do ni­
ilismo do ideal ascético. "[. . .] o ideal ascético dominou todas as
filosofias pelo fato de que a verdade era postulada como Ser,
como Deus, como instância suprema, pelo fato de que a ver­
dade não devia de modo algum constituir problema. " " [ . . . ] esta
vontade absoluta de verdade, não nos enganemos, é a fé no
próprio ideal ascético, mesmo quando for apenas seu impera­
tivo inconsciente; é a fé em um valor metafísico, em um valor
em si da verdade que apenas esse ideal garante e consagra
(ela subsiste e perece com ele) . " 14
A vontade de verdade é uma crença - crença na supe­
rioridade da verdade - e é nela que a ciência se funda. Não
há ciência sem o postulado, sem a hipótese metafísica de que
o verdadeiro é superior ao falso, de que a verdade tem mais

78
Nietzsche e a verdade

valor do que a aparência, a ilusão. "O grau de certeza a res­


peito das desejabilidades supremas, dos valores supremos, da
perfeição suprema era tão grande que os filósofos procediam
daí como de uma absoluta certeza a priori: 'Deus' no alto
como verdade dada."15 É porque privilegia em sua reflexão a
questão da vontade de verdade a todo custo que Nietzsche
não estabelece geralmente uma distinção essencial entre a ra­
cionalidade filosófica clássica e a racionalidade científica mo­
derna. O caráter incriticável da verdade como valor é o que
possibilita a afirmação da continuidade entre a ciência, a filosofia
e a moral. Pode-se ser ateu ou antimetafísico; basta porém
aceitar a "superestimação" da verdade - característica essen­
cial da reflexão sobre a ciência desde que Platão postulou que
"Deus é a verdade" ou que "a verdade é divina" - para que
�e_ expresse a crença metafísica que se encontra na base da
6
ciência. 1 "Alguns ainda têm necessidade de metafísica; mas
também esse impetuoso desejo de certeza que irrompe hoje
nas massas sob forma científico-positivista, esse desejo de querer
possuir alguma coisa absolutamente estável [. . .] tudo isso ainda
é prova da necessidade de um apoio, de um suporte, em su­
ma, do instinto de fraqueza que não cria mas conserva as
religiões, as metafísicas, e todo tipo de convicção."17 "A re­
ligião falsificou a concepção da vida: a ciência e a filosofia
sempre foram apenas ancillce desta doutrina. " 18
_ A posição de Nietzsche é clara: o ateísmo científico, o
positivismo nada mais são do que o aperfeiçoamento, o mo­
mento de maior refinamento da vontade de verdade criada
pela filosofia platônica e pelo cristianismo.19 Mesmo que a ciên­
cia critique a religião como dogma, essa crítica ainda está si­
tuada no terreno de seus valores, ainda é a conseqüência e a
expressão mais atual de sua moral, pois é a própria vontade
de verdade - como se sabe, a essência do ideal ascético -
que, se aperfeiçoando, proíbe a "mentira da crença em
Deus" .20
Nietzsche sabe muito bem que os valores são históricos e
portanto mutáveis. Mas sabe também que o fato de substituir

79
Roberto Machado

Deus pelo homem, de colocar valores reconhecidamente Q.u­


rnanos no lugar dos valores considerados divinos, não muda o
essencial . Não basta a "morte de Deus" para destruir e superar
o niilismo: isso pode representar apenas sua exacerbação. É
preciso destruir a moral. E a crítica do niilismo moral só é
�al com o questionamento da vontade de verdade.
Só através da crítica da vontade de verdade como von­
tade negativa de potência é possível elucidar o problema da
moral, da metafísica, da ciência. Só o questionamento do valor
da verdade é capaz de superar o niilismo e levar ao máximo
de sua radicalidade o projeto nietzschiano de "transvaloração
de todos os valores" .

Notas
1 . Cf. G.C., § 344.
2. Cf. Frag. Post., outono de 1887, 9 [38].
3. O principal conjunto de aforismos sobre o assunto se encontra em G.M.,
III, § 23 a § 28.
4. Frag. Post. , primavera de 1888, 14 [68].
S. Ibid., 14 [103].
6. Cf. GM., III, § 23.
7. Cf. G.M., III, § 27.
8. Cf. Frag. Post, outono de 85, 43 [1].
9. Cf. G. C., § 344; Frag. Post., agosto-setembro de 1885, 40 [391.
10. Frag. Post., primavera de 1888, 14 [2261.
1 1 . G.M., III, § 23.
12. G.M., III, § 25.
13. "[. . .] e quanto ao bem tal como Platão o compreendia (e depois o cris­
tianismo), ele me parece um princípio perigoso para a vida, caluniador da
vida, negador da vida": Frag. Post., final de 1886 - primavera de 1887, 7 [9].
14. GM., III, § 24.
15. Frag. Post., outono de 1887, 10 [ 1 501.
16. G.C, § 344; G.M. III, § 24.
17. G.C, § 347.
18. Frag. Post., novembro de 1887 - março de 1888, 1 1 [264).

80
Nietzsche e a verdade

19. É preciso não esquecer que para Nietzsche a história da filosofia é a


história do platonismo (cf. C./. "Como o 'mundo verdadeiro' acabou conver­
tendo-se em uma fábula" e a interpretação que Martin Heidegger dá desse
texto em Nietzscbe, I, "A vontade de potência como arte", Pfullingen, Neske
Verlag, 1 96 1 , tr. fr. , Paris, Gallimard, 197 1 , tr. ingl., Nova Iorque, Harper and
Row, 1968) e que o cristianismo é um platonismo para o povo (Cf. B.M.,
prefácio). O Frag. Post., novembro de 1887 - março de 1888, 1 1 [294]
qualifica Platão de "anti-heleno e semita instintivo".
20. G.M., III, § 27.

81
111
VERDADE E VALOR
1
1

A transvaloração de todos os valores

Q uando, em Crepúsculo dos ídolos,


mas obras, Nietzsche afirma de seu primeiro livro,
uma de suas últi­
O nasci­
mento da tragédia, que ele é sua primeira transvaloração de
todos os valbres, 1 não se trata de uma ilusão retrospectiva de
um autor que pretende projetar sobre o passado uma nova
problemática do presente. Embora o conceito de transvalora­
ção tenha sido produzido em 1883 e adquira toda sua im­
portância no momento desta afirmação, ele se presta perfei­
tamente para definir a homogeneidade temática que, malgrado
diferenças conceituais importantes, percorre sua reflexão res­
saltando o essencial de seu projeto.
Caracterizar a filosofia de Nietzsche como uma filosofia
do valor significa, antes de mais nada, salientar sua dimensão
crítica, destacar o fato de que tematizar os valores é justam€nte
questionar os valores, suspeitar do valor dos valores. "De fato
eu também não creio que alguém já tenha olhado o mundo
com uma suspeita tão profunda. "2 Os valores não são eternos,
imutáveis, inquestionáveis. Nietzsche rejeita o pretenso caráter
em si dos valores, o postulado metafísico da identidade entre
valor e realidade;3 os valores são históricos, sociais, produzi­
dos. Neste sentido, melhor do que caracterizá-la como uma
filosofia dos valores, a perspectiva nietzschiana deve ser de­
finida como uma filosofia da avaliação, da valoração que afirma
que só há valor graças à avaliação.4 Fomos nós que criamos o
mundo que tem valor. Por que então essa suspeita profunda,
essa desconfiança radical5 com relação aos valores que o pró­
prio homem criou? Porque são valores niilistas; porque o ni­
6
ilismo é a lógica de nossos valores e nossos ideais, o motor
de nossa história. E mesmo que a história tenha conhecido
vários sentidos do niilismo, todos eles são decorrência de um

85
Roberto Machado

primeiro sentido: a desvalorização da vida em nome dos valo­


res superiores. Tendência que remonta longe e que levará a
filosofia genealógica, na tentativa de investigar sua origem, a
privilegiar a crítica dos valores filosóficos.
A análise da relação da ciência com a moral e a arte
evidencia bem como a filosofia dos valores tal como Nietzsche
a realiza é fundamentalmente uma crítica das noções de ver­
dade, bem e beleza como objetos de uma filosofia-� ele
caracteriza como metafísica e moral. Crítica da existência des­
ses valores como entidades metafísicas: "Como o Bem e o
Verdadeiro, o Belo também não existe". 7 "Desde que se isola
um ideal da realidade se rebaixa, se empobrece, se calunia o
real. 'O Belo pelo Belo', ' o Verdadeiro pelo Verdadeiro ', ' o Bem
pelo Bem' - eis três formas de um mau olhar para o real."8
Crítica da identidade estabelecida pela metafísica entre esses
valores: "A maior de todas as trapaças e enganos: identificar
bom, verdadeiro e belo e representar esta identidade."9 "É in­
digno de um filósofo declarar: O bom e o belo são a mesma
coisa: se, além disso, ele acrescenta 'também o verdadeiro' ele
merece uma paulada. A verdade é feia: nós temos a arte a fim
de que a verdade não nos mate". 10 Afirmação polêmica dos
valores desvalorizados: "Concepção de uma nova perfeição; o
que não corresponde a nossa lógica, a nosso 'belo', a nosso
'bom', a nosso 'verdadeiro' poderia ser perfeito em um sentido
superior ao que é nosso próprio ideal" .U "Portanto, as coisas
que até agora foram tidas como o que havia de mais elevado:
como a 'verdade', o 'bem' , o 'racional', o 'belo' se revelam
como casos particulares das potências opostas - eu denuncio
essa monstruosa falsificação da perspectiva pela qual a figura
homem consegue se impor. "12 Percebendo a problemática de
uma filosofia intrinsecamente metafísica e moral como consti­
tuindo o âmago do niilismo, a filosofia de Nietzsche é, antes
de tudo, uma luta contra a filosofia, ou melhor, contra o pla­
tonismo da filosofia - o que significa para ele a mesma coisa
- a partir da qual a perspectiva trágica, dionisíaca critica os
valores metafísicos, morais, epistemológicos que vigoram na
modernidade.

86
Nietzsche e a verdade

Se, como interpreta Nietzsche, o platonismo é a doutrina


dos dois mundos, em que o mundo sensível e mutante é o
mundo da aparência e o mundo supra-sensível e imutável o
mundo verdadeiro, a refutação do platonismo assume no dis­
curso nietzschiano pelo menos duas posições estratégicas: tanto
inverter quanto superar a oposição de valores por ele criada;13
tanto afirmar que o mundo sensível é o mundo verdadeiro e o
supra-sensível o mundo aparente, quanto se insurgir contra a
dicotomia de dois mundos e a oposição metafísica entre a
verdade - identificada ao bem e à beleza - e a aparência. O
mais importante porém é que, em qualquer um dos casos, a
característica fundamental do projeto de transvaloração é opor
aos valores superiores, e mesmo à negação desses valores, 14 a
vida como condição do valor, propondo a criação de novos
valores, que sejam os valores da vida, ou melhor, propondo a
criação de novas possibilidades de vida.
Não haverá contradição em querer julgar os juízos de va­
lor sobre a vida a partir da vida considerada como critério de
valor? Pode-se sentir a dificuldade em que Nietzsche se encon­
trava ao propor uma transvaloração de todos os valores: como
realizar uma crítica dos valores a tal ponto radical que fosse
capaz de escapar dos valores niilistas da sociedade em que
vivia, que não permanecesse no bojo daquilo que justamente
pretendia criticar? Essa é uma motivação essencial de sua filo­
sofia, capaz inclusive de esclarecer as variações por que pas­
sou, as contradições que não temeu, sempre em direção a uma
postura de cada vez maior radicalidade .15 Se a crítica diz res­
peito a todos os valores prevalentes, uma das saídas que jus­
tamente se ofereciam a Nietzsche era inverter a hierarquia de
valores instaurada pelo niilismo como modo de escapar da
desvalorização que ele representa. Pode-se assim compreender
que a genealogia oponha o helenismo ao cristianismo, Roma à
Judéia, o Renascimento à Reforma; ou que denuncie a moral
- essência do niilismo, valor superior a partir de que tudo é
julgado - como imoral, o bem como mal, o verdadeiro como
falso. "Não poderíamos virar de cabeça para baixo todos os
valores? e o bem não seria o mal? e Deus uma pura e simples

87
Roberto Machado

invenção, uma astúcia do diabo? Em suma, não é possível que,


no fundo, tudo seja falso? E, se somos enganados, não somos
por isso mesmo também enganadores? Não somos obrigados a
sê-lo? - tais são os pensamentos que seduzem e conduzem (o
espírito livre) sempre mais longe, sempre mais à parte" . 1 6
Não h á dúvida de que a superação d o niilismo é a pos­
tura radical que significa dizer um sim dionisíaco a tudo que
foi negado, desvalorizado até então, mostrando que todo esse
outro lado não apenas é necessário, mas até mesmo desejável;
não há dúvida de que a transvaloração �ignifica uma desvalori­
zação dos valores dominantes na filosofia e uma valorização
dos valores subordinados. Mas ela é muito mais do que isso;
ou melhor, isso é apenas um de seus aspectos. Quando Nietzs­
che se propõe a valorizar os valores que foram historicamente
negados pelo niilismo não é apenas, nem fundamentalmente,
para mudar os valores de lugar, para substituir valores e por­
tanto conservar o lugar. Tirar os valores morais do lugar de
valores supremos, que dominam e dão sentido a todos os va­
lores, só será possível destruindo este lugar que foi instituído
pela própria moral. O que implica necessariamente mudar o
elemento de onde se originam os valores, o princípio de ava­
liação, a própria maneira de ser de quem avalia. Eis por que a
filosofia dos valores é na verdade uma filosofia da avalia_ção: o
mais importante da démarche é o fato de tematizar os valores
a partir do que está na base de toda avaliação; é o fato de
remeter as apreciações de valor à vida ou à vontade de potên­
cia. A vontade de potência é sempre o elemento básico, "o
fato mais elementar" que determina a reflexão nietzschiana so­
bre os valores. "Nossa inteligência, nossa vontade como nossas
sensações dependem de nossos juízos de valor. estes respon­
dem a nossos instintos e a suas condições de existência. Nos­
sos instintos são redutíveis à vontade de potência. A vontade
de potência é o fato último, o termo final a que podemos
chegar. "17
Se, como foi visto, o homem é uma multiplicidade de
vontades de potência, cada uma com uma multiplicidade de for­
mas e meios de expressão, que relação existe entre niilismo e

88
Nietzsche e a verdade

vontade de potência? O niilismo, a criação de valores morais,


de valores considerados superiores é a expressão de um tipo
específico de vontade de potência: uma vontade negativa de
potência. "[...] eu descobri que todos os juízos supremos de
valor, todos que dominam a humanidade, pelo menos a hu­
manidade domesticada, podem ser reduzidos a juízos de homens
esgotados."18 E o que significa o projeto de transvaloração de
todos os valores? Significa a mudança do princípio de ava­
liação e, por conseguinte, a vitória da vontade afirmativa de
potência, da superabundância de vida, sobre os valores domi­
nantes do niilismo. É neste sentido que Nietzsche opõe a vida,
a vontade de potência, ao niilismo, como nesse texto de O
Anticristo: "A vida é, para mim, instinto de crescimento, de
duração, de acúmulo de forças, de potência: onde falta a von­
tade de potência, há declínio. E eu afirmo que esta vontade
faz falta a todos os valores superiores da humanidade - é
que, sob os nomes mais santos, reinam sem restrição valores
de decadência, valores niilistas."19
Evidencia-se, assim, o sentido deste "contra-movimento"20
que é a transvaloração: ele segue uma trajetória vertiCal que
vai dos valores à avaliação e da avaliação à força de quem
avalia. A questão do valor é, em última instância, a questão
das condições de intensificação ou conservação, de aumento
ou diminuição da vida. 21

Notas
1. Cf. C.I., "O que devo aos antigos", § 5.
2. H.D.H., prefácio, § 1; Cf. G.C., prefácio, § 2.
3. Cf. Frag. Post., primavera de 1888, 14 [103).
4. Cf. Z, I, "De mil e de um alvos" .
S. Cf. G.M, prefácio, § 5.

6. Cf. Frag. Post., novembro de 1887 - março de 1888, 11 [41 11.


7. Frag. Post., outono de 1887, 10 [1671; novembro de 1887 - março de
1888, 1 1 [87).
8. Frag. Post., outono de 1887, 10 [194).

89
Roberto Machado

9. Frag. Post., final de 1886 - primavera de 1887, 7 [201.


10. Frag. Post., primavera - verão de 1888 , 16 [401.
1 1 . Frag. Post., final de 1886 - primavera de 1887, 7 [361.
12. Frag. Post., outono de 1885, 43 [11; a. Frag. Post., primavera de 1884, 25
[3091.
13. "LI 'o mundo verdadeiro e o mundo aparente - eu reduzo esta anti­
nomia a relações de valor." Frag. Post., outono de 1887, 9 [381.
14. "[ . . . 1 o valor, o sentido, a esfera dos valores eram sólidos, incondicionais,
eternos, sendo identificados com Deus [ . . .), transferiu-se o advento do 'REI­
NO DE DEÚS' no futuro, sobre a terra, no humano - mas no fundo se
manteve a crença no antigo ideal." Frag. Post., novembro de 1887 - março
de 1888, 1 1 [2261.
15. Sem dar valor ao caráter sistemático do pensamento, como testemunha
sua predileção pelo aforismo e pela poesia, Nietzsche nunca pretendeu ela­
borar urna visão global do mundo. "Profunda repugnância em repousar de
urna vez por todas em alguma visão global do mundo; charme da maneira
oposta de pensar; não perder o estímulo do caráter enigmático." (Frag. Post.,
outono de 1885 - outono de 1886, 2 [1551.) "Desconfiamos de todos os
homens de sistema, os evitamos com cuidado - a vontade de sistema é, ao
menos para nós, pensadores, algo que compromete, urna forma de imorali­
dade." (Frag. Post, primavera de 1888, 15 [1 181; cf. outono de 1887, 9 [881;
julho-agosto de 1888, 18 [41; C./., "Máximas e flechas", § 26.)
16. H.D.H, prefácio, § 3.
17. Frag. Post., agosto-setembro de 1885, 40 [611; cf. também, por exemplo,
Frag. Post. , novembro de 1887 - março de 1888, 1 1 1961; primavera de 1888,
14 [791.
18. Frag. Post., primavera de 1888, 15 [131; cf. ibid., 14 [1371.
19. AC, § 6.
20. Cf. Frag. Post., novembro de 1887 - março de 1888, 11 [41 11.
21. Cf. Frag. Post., outono de 1887, 9 [381 e 9 [391.

90
2

O conhecimento e a perspectiva da potência

E ssa problemática da avaliação, dos juízos de valor,


do conhecimento - pois é dele no fundo que se trata - pode
ser aprofundada através de uma "fisiologia da potência", para
usar uma expressão que Nietzsche algumas vezes utiliza, 1 que
tem como objeto principal os instintos, os impulsos, as pul­
sões, as impulsões, termos que utilizo como sinônimos.2
Fundamentalmente o instinto é uma força: "Urna quanti­
dade determinada de força corresponde a uma mesma quanti­
dade de instinto, de vontade, de atividade - melhor ainda,
nada mais é do que precisamente este instinto, esta vontade,
esta atividade."3 O instinto é força, vontade, atividade; e pode­
se aumentar essa lista de sinônimos da terminologia nietzs­
chiana acrescentando potência, energia, intensidade. . . Entre­
tanto, rigorosamente, o instinto não existe; o que há são instintos
múltiplos e heterogêneos. Eles formam um conjunto de forças
em que uma força está sempre em relação com outra força, se
exerce sempre sobre outra; uma relação que se dá em termos
de luta, de imposição, de domínio.
Além disso, existe uma diferença qualitativa entre os ins­
tintos. Enquanto alguns, como por exemplo os "instintos estéti­
cos", são considerados fundamentais ou primordiais, outros,
como é o caso dos "instintos morais", são secundários. Dife­
rença qualitativa que implica seja hierarquia entre eles, quando
se trata de uma vida afirmativa, seja, no caso contrário, anar­
quia, quando os instintos fundamentais não mais dominam. É
o que afirma Nietzsche reduzindo o conceito de vontade ao de
instinto: "A multiplicidade e a desagregação dos instintos, a
falta de um sistema que os coordene produz uma 'vontade­
fraca'; sua coordenação sob a predominância de um deles pro­
duz a 'vontade-forte' - no primeiro caso há oscilação e falta

91
Roberto Machado

de centro de gravidade; no segundo, preCisao e clareza de


direção" .4 E quando se pensa no texto de Crepúsculo dos ídolos
que interpreta a decadência de Sócrates pela anarquia dos instin­
tos e pela hipertrofia do lógico, 5 logo se compreende que para
__

Nietzsche a razão não é a luz que controla instintos cegos; o


domínio- dos instintos se dá no nível dos próprios instintos; são
eles que exercem sobre o conjunto uma ação reguladora.
Valorizando ós instintos, a "fisiologia" de Nietzsche é uma
posição estratégica contra as definições do homt;Jll pela cons­
éiência, ou pela racionalidade. Uma das motivações principais
de sua reflexão é a crítica ao primado ou à superestima da
consciência. Crítica que se realiza com uma violência avas­
satadora. A consciência não é o grau superior da evolução
orgânica, não é o critério, o valor nem o objetivo supremo da
vida; é um órgão, "como o estômago" ; apenas um meio, um
instrumento, entre outros, subordinado ao objetivo da vida que
6
é extensão e intensificação da potência. A consciência não faz
parte das condições mais fundamentais da existência individual;
só existe em função da necessidade de comunicação, é um
meio de comunicação desenvolvido na relação com o mundo
exterior; sua natureza é comunitária e gregária.7 Tendo-se de­
senvolvido tardiamente, a consciência é menos completa, me­
nos perfeita, menos forte do que os instintos; é mesmo um
estado freqüentemente doentio.8 Enfim, enquanto a consciên­
cia, além de ser superficial, é o "órgão mais miserável e mais
sujeito ao erro? os instintos são profundos: inconscientes, mais
fundamentais e certeiros.
É a essa crítica da consciência - crítica que ousa até
negar a existência da consciência, considerando-a uma ficção
inutilizáveP0 - que corresponde no discurso nietzschiano o
elogio da "animalidade" , dos sentidos, do corpo. O homem
não constitui um progresso com relação ao animal; 1 1 e por que
temer nossa animalidade e nos definir pela razão, se a afir­
mação do animal no homem é "a forma triunfante do inte­
lecto ''?12 Não seria isso sinal de fraqueza? Do mesmo modo, a
força dos sentidos é o que existe de mais essencial em um
homem completo, realizado. Os sentidos não nos enganam: "É

92
Nietzsche e a verdade

a 'razão' que é a causa de falsificarmos o testemunho dos


sentidos. Mostrando o devir, o perecer, a mudança, os sentidos
não mentem" .13 Contra a desclassificação dos sentidos, sua "es­
piritualização" . 14 Assim, também, o corpo, considerado como
um conjunto de instintos em relação, é um fenômeno mais
surpreendente, mais importante, mais cognoscível do que a
consciência. "Tomar o corpo como ponto de partida e fazer dele
o fio condutor, eis o essencial. O corpo é um fenômeno muito
mais rico e que autoriza observações mais claras. A crença no
corpo é bem melhor estabelecida do que a crença no espírito."15
Que sentido tem essa valorização da animalidade, dos senti­
dos ou do corpo, realizada pela "fisiologia da potência" em detri­
mento da consciência, senão a afirmação de que a perspectiva da
vida é fundamentalmente a perspectiva dos instintos, isto é, de
um sistema hierarquizado de forças em relação?
Por conseguinte, a consciência não pode ser erigida em
mestre dos instintos: ela nem é mais fundamental do que eles,
nem é uma força capaz de controlá-los. Privilegiar a consciên­
cia, subordinar-lhe os instintos, é a característica da decadên­
cia. "Vejo nos filósofos gregos um declínio dos instintos. senão
eles não teriam podido se perder a ponto de supor o estado
consciente como o mais precioso."16 Neste sentido, a história da
civilização tem sido a história da debilitação progressiva dos
instintos fundamentais. E se uma civilização se define pela for­
ça, pela qualidade dos instintos, é a valorização dos instintos
fundamentais, sua posição no topo da hierarquia da vida, que
pode instaurar um tipo alternativo de civilização.17
Do início ao fim da reflexão nietzschiana essa idéia está
presente. É assim que O nascimento da tragédia denuncia a
criação socrática da razão, ou o domínio do "instinto lógico"18
sobre os instintos artísticos, propondo o renascimento da ex­
periência trágica e "Sócrates e a Tragédia" critica a relação
necessária entre saber, virtude e felicidade.19 Ainda em Crepús­
culo dos ídolos Nietzsche se insurge contra a equação socrática
razão = virtude= felicidade - que instaura a luz diurna da
razão contra a pretensa obscuridade dos instintos - opondo­
lhe a relação mais fundamental característica de uma civili-

93
Roberto Machado

zação trágica, dionisíaca: felicidade


= instinto. "Ter que com­
bater os instintos - essa é a fórmula da ' décadance': enquan­
to a vida é ascendente felicidade é igual a instinto. "20

Esse privilégio dos instintos como ponto de partida e cri­


tério último da análise tem um papel tão importante na re­
flexão nietzschiana sobre o conhecimento que se pode afirmar
que a teoria do1 conhecimento é substituída por uma teoria da
perspectiva dos instintos; teoria que, de modo geral, afirma o
perspectivismo do conhecimento negando o seu caráter uni­
versal, objetivo e desinteressado.
Conhecer não é explicar; é interpretar}! Mas é uma in­
genuidade pensar que uma única interpretação do mundo seja
legítima. Não há interpretação justa;22 não há um único sen­
tido. A vida implica uma infinidade de interpretações, todas
das realizadas de uma perspectiva particular. Posição que tem
a vantagem de reconhecer que "hoje estamos longe da imo­
déstia de decretar a partir de nosso ângulo que só são válidas
as perspectivas a partir desse ângulo". 23 O que também implica
a coragem de assumir que não há verdade universal e que não
tem sentido procurar estar de acordo com a maioria: "meu
juízo é meu juízo e não admito que um outro a ele tenha
direito."24
Se não existe uma única interpretação, se o conhecimento
é perspectiva e as perspectivas são inúmeras é porque para
Nietzsche o conhecimento não tem por objetivo atingir uma
verdade, não tem nenhuma afinidade com o mundo. O motivo
é que simplesmente não há nada a ser interpretado; não há
nada a ser conhecido. "Contra o positivismo, que permanece
no nível do fenômeno, 'só existem fatos', eu objetaria: não,
justamente não existem fatos, mas apenas interpretações."25 Mes­
mo as leis da natureza- são interpretações a. que não corres­
pende nenhuma realidade. E se o conhecimento não tem ob-:- ­
jetividade não é por uma falta, por uma deficiência. É q_ue _o
seu objetivo não é procurar o sentido das coisas, mas intro­
duzir, impor um sentido. 26 Somos nós que damos valor ao mun-

94
Nietzsche e a verdade

do. "Os pensamentos são ações. '>27 Interpretar é se tornar mes­


tre de alguma coisa: dar forma, estruturar, dominar.
Mas a crítica da universalidade e da objetividade do conhe­
cimento remete, como sempre, ao aspecto mais fundamental
da análise; é uma conseqüência da afirmação de uma relação
intríseca do conhecimento com uma outra ordem, mais ele­
mentar, de fenômenos. O conhecimento não é "imaculado" :
não se realiza libertando-se dos afetos, dos desejos, das pai­
xões, das emoções, da vontade; na base do conhecimento se
encontra a perspectiva da vida definida como vontade de po­
tência, conceito que quando é produzido é, em geral, assimi­
lado ao de instinto. "Só há visão perspectiva, só há 'conheci­
mento' perspectivo; e quanto mais deixamos os sentimentos
entrarem em consideração a respeito de alguma coisa, quanto
mais sabemos incorporar novos olhos, olhos diferentes para
essa coisa, mais nosso 'conceito' desta coisa, nossa 'objetivi­
dade' será completa. Eliminar a vontade, afastar todos os senti­
mentos sem exceção, supondo que isso fosse possível, não
seria castrar o intelecto?"28
O conhecimento não é neutro, desinteressado, pois tem
nos instintos suas raízes ocultas, inconscientes. Afirmar que o
conhecimento não é da mesma natureza que os instintos, em­
bora tenha com eles uma relação imanente, é salientar a na­
tureza desta relação. Pode-se dizer, utilizando alguns termos de
Nietzsche, que o estatuto do conhecimento é de "sintoma",
"signo", "linguagem simbólica", "expressão" . . .29 O que carac­
teriza o conhecimento é estar em relação expressiva com um
elemento considerado por Nietzsche como tão real quanto o
mundo "material": o mundo dos instintos, dos apetites, das
paixões, dos afetos, dos desejos, ou, para utiHzar o conceito
fundamental, a vontade de potência.30 À questão "quem inter­
preta?" só existe, em última instância, uma resposta: a vontade
de potência.31
É indispensável porém explicitar um último ponto: um
determinado conhecimento não é a expressão de um único
instinto; é o resultado de uma relação entre instintos, mais

95
Roberto Machado

especificamente, da relação de luta e compromisso entre uma


pluralidade de forças instintivas inconscientes. O que se en­
contra na origem do conhecimento é um combate incessante
de forças, em que cada uma procura afirmar sua própria pers­
pectiva em detrimento de todas as outras. "Cada instinto é uma
determinada necessidade de dominação, cada um possui sua
perspectiva que gostaria de impor como norma a todos os
outros. "32 Essa apreciação perspectiva de cada instinto é "en­
travada" ou "f;vorecida" por cada um dos outros, 33 desse con­
flito nascendo um estado provisório de compromisso. O conhe­
cimento é o efeito ou o resultado dessa relação específica e
momentânea de instintos em luta; é a expressão, não de uma
força determinada, mas de uma situação global, do estado ge­
ral das forças e, portanto, tanto das forças dominantes quanto
das forças dominadas. 34
Vale a pena citar, para concluir essa análise, o importante
§ 333 de A gaia ciência que enuncia claramente em que con­
siste, ou como se processa, a relação entre o conhecimento e
os instintos, indicando os principais elementos dessa teoria da
perspectiva da potência: "Que significa conhecetf - Non ri­
dere, non lugere, neque detestari, sed intelligere! diz Espinosa
do modo simples e sublime que lhe é próprio. Entretanto, o
que é, no fundo, este intelligere senão a própria forma em que
os três outros logo se tornam sensíveis para nós? Um resultado
desses diferentes e contraditórios instintos que são as vontades
de rir, de deplorar e de detestar? Antes que um ato de conhe­
cimento fosse possível, foi necessário que cada um desses ins­
tintos manifestasse previamente sua opinião parcial sobre o
objeto ou acontecimento; posteriormente se produziu o con­
flito entre essas parcialidades e, a partir daí, às vezes um estado
intermediário, um apaziguamento, uma concessão mútua en­
tre os três instintos, uma espécie de eqüidade e de pacto entre
eles: pois, devido à eqüidade e ao pacto, esses três instintos
podem se afirmar na existência e ter mutuamente razão. Nós
que só tomamos consciência das últimas cenas de conciliação 1
dos últimos acertos de contas deste longo processo, pensamos

96
Nietzsche e a verdade

por isso que intelligere consistiria em algo de conciliador, de


justo, de bom, algo de essencialmente oposto aos instintos:
enquanto só se trata de um determinado comportamento dos
1, instintos entre eles. "

Notas
L Cf. Frag Post , outono de 1885 - outono de 1886, 2 [761, 2 [82]; verão de
1886 - outono de 1887, 5 [50].
2. De modo geral, Nietzsche não faz diferença entre os termos Instinkt, de
origem latina, e Trieb, de origem propriamente germânica, utilizando-os co­
mo equivalentes e formando a partir deles outros termos ou expressões
compostos. Eis alguns exemplos que dizem respeito mais diretamente ao
terna desse estudo: Kunsttrieb, Grnndtrieb, Wissenstrieb, Wabrbeitstrieb,
Erkenntnistrieb, logiscber Trieb, dionysiscbe Triebe, metapbysiscber Trieb, in­
tellektueller Trieb, Trieb zur Wabrbeit, Trieb nacb Erkenntnis und Wabrbeit,
Trieb nacb Glauben an die Wabrbeit, Instinkt der Freibeit, Instinkt der Wis­
senscbaft, décadence-/nstinkt, künstleriscbe Instinkte.

3. G.M., I, § 13.
4. Frag Post. , primavera de 1888, 14 [219].
5. Cf. C/., "O problema de Sócrates", § 4.
6. Cf. Frag Post. , outono de 1887, 10 [137]; novembro de 1887 - março de
1888, 1 J [74] e 1 1 [83].
7. Cf. G.C, § 354; Frag Post. , novembro de 1887 - março de 1888, 1 1 [145].
8. Cf. G.C, § 1 1 ; AC, § 14; Frag Post. , primavera de 1888, 14 [128].
9. G.M, II, § 16; Cf. Frag Post , primavera de 1884, 26 [41]; outono de 1885
- primavera de 1886, 1 [20]; final de 1886 - primavera de 1887, 7 [9].
10. "Nem existe 'espírito', nem razão, nem pensamento, nem consciência,
nem alma, nem vontade, nem verdade: são ficções inutilizáveis". Frag Post.,
primavera de 1888, 14 [1 22].
1 1 . Cf. Frag Post., primavera de 1888, 15 [8].
12. Frag. Post., outono de 1887, 10 [21].
13. C/., "A 'razão' na filosofia", § 2; cf. Frag. Post., verão de 1886 - outono
de 1887, 5 [34]; outono de 1887, 9 [60]; primavera de 1888, 14 [134].
14. Cf. Frag. Post., junho-julho de 1885, 37 [12].
1 5 . Frag. Post., agosto-setembro de 1885, 40 [15]; cf. junho-julho de 1885, 39
[18]; verão de 1886 - outono de 1887, 5 [56].

16. Frag Post., primavera de 1888, 14 [131].

97
Roberto Machado

17. "Objetivo: a santificação das forças mais potentes, mais temíveis e mais
desacreditadas, ou, para retornar urna velha imagem: a divinização do di­
abo." Frag. Post. , outono de 1885 - primavera de 1886, 1 [4).
18. N. T, § 13.
19. "Sócrates e a tragédia", in Escritos póstumos, ed. ai. , t. I, p. 547; tr. fr., t. I,
v.2, p. 44.
20. C.!., "O problema de Sócrates", § 1 1 ; cf. Ibid., § 4, § 10; cf. Frag. Post. ,
primavera de 1888, 14 [92), 14 [941, 14 [ 1 1 1).
21. Cf. Frag. Post. .._outono de 1885 - outono de 1886, 2 [86).
22. Cf. Frag. Post., ibid., [120), 1 [1 281.
23. G.C., § 374.
24. B.M., § 43; cf. Frag. Post., abril-junho de 1885, 34 [ 134), 34 [156); junho­
julho de 1885, 37 [2).
25. Frag. Post. , final de 1886 - primavera de 1887, 7 [60).
26. Cf. Frag. Post, verão de 1886 - outono de 1887, 6 [15); outono de 1887,
9 [48).
27. Frag. Post., outono de 1885 - primavera de 1886, 1 [16).
28. G.M., III, § 12. Daí Nietzsche ter várias vezes declarado não só ignorar o
que possam ser puramente problemas intelectuais como também haver colo­
cado em seus escritos toda sua vida e toda sua pessoa.
29. Cf., por exemplo, Frag. Post. , outono de 1885 - primavera de 1886, 1
[28), 1 [301, 1 [591, 1 [61), 1 [751; outono de 1885 - primavera de 1886, 2
[190).
30. "Se nada nos é 'dado' como real a não ser nosso mundo de apetites e
paixões, se não podemos nem descer nem subir para outra realidade a não
ser a de nossos instintos - pois o pensamento é apenas a relação mútua
entre esses instintos -, não é possível perguntar se este dado também não
basta para compreender, a partir do que a ele se assemelha, o mundo dito
mecânico (ou 'material')?" B.M., § 36.
3 1 . Cf., por exemplo, Frag. Post., outono de 1885 - outono de 1886, 2 [148),
2 [290); final de 1886 - primavera de 1887, 7 [60).
32. Frag. Post. , final de 1886 - primavera de 1887, 7 [60); cf. primavera de
1888, 14 [ 184).
33. Cf. Frag. Post., outono de 1885 - primavera de 1886, 1 [58).
34. Cf. ibid. , 1 [61).

98
3

As estratégias da crítica da verdade

A explicitação do projeto de transvaloração dos valo­


res e do perspectivismo do conhecimento em sua relação com
a questão da potência possibilita compreender em toda sua
·
radicalidade a crítica nietzschiana da verdade. Retomarei, por=
tanto, para concluir este estudo, a questão da oposição me­
tafísica de valores - fio condutor da relação entre a ciência, a
arte e a moral - com um duplo objetivo: assinalar as princi­
pais transformações conceituais por que passa a análise, para,
em seguida, ressaltar os elementos comuns, ou a homogenei­
dade mais fundamental, da crítica da verdade como valor supe­
rior que é o alvo mais permanente da ftlosofia de Nietzsche, o
postulado contra o qual se insurge do primeiro ao último escrito.
No início de sua reflexão filosófica, em O nascimento da
tragédia e nos textos que lhe servem de preparação, a questão
da verdade é basicamente a crítica da ilusão metafísica da ra­
zão, isto é, da crença de que o pensamento é capaz de conhe-
-cera ser e corrigi-lo; a crítica do "instinto da ciência"1 a partir
da arte trágica considerada como atividade metafísica. A "me­
tafísica de artista" explicitada em O nascimento da tragédia,
que Níêtzsclle--censidera como a substância do livro e reivin­
dica como sua propriedade exclusiva, 2 é uma denúncia da me­
tafísica conceitual como ilusória através da idéia de que só a
arte é capaz de dar conta dos problemas filosóficos fundamen­
tais. A "natureza", o "mundo" , o "ser" não podem ser conheci­
dos, como pretende a filosofia socrático-platônica, através da
separação entre essência e aparência. Problemática que, neste
momento, levará Nietzsche inclusive a celebrar Kant e Scho­
penhauer como filósofos que assinalam um renascimento do
trágico e a utilizá-los como instrumentos na crítica da razão e
da ciência: "Por um prodígio de coragem e sabedoria, Kant e

99
Roberto Machado

Schopenhauer alcançaram a mais difícil das vitórias, a vitória


contra o otimismo na essência da lógica que está na base de
nossa civilização. Enquanto esse otimismo, apoiando-se em ae­
ternae veritates que imaginava indubitáveis, acreditava ser pos­
sível conhecer e elucidar todos os enigmas do universo, e tratava
o espaço, o tempo e a causalidade como leis absolutamente
incondicionadas e possuindo uma validade universal, Kant re­
velou como elas só serviam para erigir o simples fenômeno, a
obra de Maia, à posição de única e suprema realidade, a colocá­
lo no lugar da essência íntima e verdadeira das coisas e, por
isso, a tornar impossível o conhecimento efetivo, ou, para re­
tomar uma palavra de Schopenhauer, a adormecer mais pro­
fundamente o sonhador. Esta descoberta inaugura uma civili­
zação que eu ousaria qualificar de trágica."3
Concebendo os dois instintos fundamentais da natureza, o
apolíneo e o dionisíaco, respectivamente como aparência e
essência, a importância da reflexão filosófica de Nietzsche nes­
te momento se evidencia na tese que a arte trágica possibilita
uma experiência estética do mundo de onde está totalmente
ausente a oposição metafísica de valores: na tragédia Apolo
atrai a verdade dionisíaca para o mundo da bela aparência;4
Dioniso fala a linguagem de Apolo; Apolo, a linguagem de Dio­
niso. A "hipótese metafísica" formulada por Nietzsche é que o
ser verdadeiro tem necessidade da bela aparência; que a ver­
dade tem um desejo originário de aparência; que "a vontade
queria se ver transfigurada em obra de arte".5 Pensando a arte
trágica como uma transfiguração metafísica em que só a beleza
possibilita uma aproximação da verdade, Nietzsche está, 'ao
mesmo tempo, afirmando que a racionalidade filosófico-cien­
tífica nunca poderá dar conta desta verdade dionisíaca que é
desmesura trágica. Se, portanto, há antagonismo entre arte e
ciência é porque enquanto a ciência pretende chegar à ver­
dade desprezando a aparência, a ilusão, a arte trágica tem na
ilusão a única via de acesso possível à verdade. É por isso que
a arte é metafísica.
A "metafísica de artista" tem porém curta duração no pen­
samento de Nietzsche. Quando se consideram os textos ime-

100
Nietzsche e a verdade

diatamente posteriores a O nascimento da tragédia e os escri­


tos que lhe servem de preparação, nota-se que a crítica da
metafísica - que sempre se constituirá como um objetivo ftm­
damental do projeto nietzschiano - não mais exige que seja
oposta à racionalidade uma dimensão metafísica da arte. A
crítica da verdade científica, racional, conceitual não implica
·

mais a afirmação de uma verdade fundamental, originária, dio­


nisíaca; a denúncia da verdade socrática não exige mais o pos­
tulado de uma verdade dionisíaca, mesmo que seja para afirmar
que a experiência estética que dela se pode ter está intrinse­
camente ligada à aparência. O pensamento de Nietzsche se
radicaliza em direção da aparência, da ilusão, da superfície.
É assim, por exemplo, que o objetivo de "Verdade e men­
tira no sentido extramoral" é negar a universalidade e a ob­
jetividade do conhecimento estabelecendo que seu efeito espe­
cífico é a ilusão, a dissimulação, o disfarce. Não existe instinto
de conhecimento no sentido de uma inclinação natural para a
verdade, de um amor à verdade . .-G-qye se chama verdade_é
u_!lliLobrigação que a sociedade impõe como condição de sua
Qrópria existência: uma obrigação moral de mentir segundo
uma corrvenção estabelecida. É porque o homem esquece essa
obrigação que foi instituída socialmente, é porque mente in­
conscientemente que imagina a existência de um instinto de
verdade. Verdades são ilusões que foram esquecidas como tais.
Atrás da suposição de possuir um conhecimento do real existe,
portanto, uma convenção social que oculta as diferenças ao identi­
ficar o não-idêntico através do conceito. O homem supõe possuir
a verdade, mas o que faz é produzir metáforas que de modo
algum correspondem ao real: são transposições, substituições,
figurações.6 Ao "homem racional", conceitual, Nietzsche opõe o
"homem intuitivo", metafórico - o artista, o criador, o "herói
transbordante de alegria" - em quem o intelecto, mestre da
dissimulação, se liberta da obrigação de verdade e "pode en­
ganar sem prejudicar" _7 Ao conhecimento como adequação,
Nietzsche opõe a arte como criação, como transfiguração.
A grande diferença dos "estudos teoréticos" que deveriam

·�·. constituir O livro do filósofo com relação à problemática de O

j .
101
Roberto Machado

nascimento da tragédia é o desaparecimento da concepção de


uma metafísica de artista capaz de superar a oposição me­
tafísica essência-aparência pela união artística do dionisíaco e
do apolíneo na tragédia. O que é importante agora na crítica
do conhecimento e da verdade é ressaltar o "antropomorfis­
mo" que os caracteriza. O conhecimento é antropomórfico: -não
provém da "essência das coisas" , não se pode dizer que cor­
responda à essência das coisas; a verdade é antropomórfica:
"não contém nenhum ponto que seja 'verdadeiro em si', real e
válido universalmente, independentemente do homem". 8
Existe porém uma importante diferença entre esses textos
e os escritos que caracterizam a análise propriamente genea­
lógica realizada posteriormente: é o desaparecimento de toda
consideração sobre a essência, que neste momento ainda está
presente na argumentação, mesmo que seja apenas para afir­
mar o caráter antropomórfico do conhecimento. Uma das gra_l}­
des inflexões da trajetória de Nietzsche será o abandono do
conceito de mundo como "coisa em si", que permanece total- _

mente incognoscível, que nunca é captado pela linguagem e a


que nenhum conhecimento corresponde. A radicalização de
seu pensamento se fará no sentido de uma rejeição tanto da
"coisa em si" quanto do "fenômeno".9 O mundo não é or­
gânico, nem mecânico; o mundo não tem leis, não tem finali­
dade. "Em compensação, o caráter do conjunto do mundo é,
de toda eternidade, o caos, em virtude não da ausência de
necessidade, mas da ausência de ordem, de articulação, de
forma, de beleza, de sabedoria e quaisquer que sejam nossas
humanas categorias estéticas" como diz A gaia ciência.10 E seu
pensamento ainda se torna mais claro se se leva em conside­
ração que para ele é o juízo moral que se encontra por trás da
idéia de ordem do mundo: é um preconceito moral pensar que
"a ordem, a clareza, tudo o que é sistemático seja necessaria­
mente inerente à essência verdadeira das coisas; e que inver­
samente o que é desordenado, caótico, imprevisível, só apa­
reça no seio de um mundo de falsidade ou reconhecido como
inacabado - em suma, seja um erro" .U O mundo é caótico,

102
Nietzsche e a verdade

desorganizado, informe e, ao mesmo tempo, informulável, to­


talmente heterogêneo ao conhecimento: não existe para ser
conhecido e sobre ele o conhecimento não pode enuociar_ leis
que não existem.
O que abole qualquer idéia de falta ou de deficiência, na
medida em que o objetivo do conhecimento não é possuir a
verdade. O conhecimento nada tem a descobrir; ele tem é que
inventar. A vontade de verdade traduz uma impotência da yon­
tade de criar. 12 Procurar descobrir valores que tenham uma
existência em si é uma atitude desesperada do decadente, é
um desejo de segurança do fraco - é a manifestação dos
instintos de conservação. O que expressa a vontade afirmativa
de potência é a criação de valores. "Fomos nós que criamos o
mundo que tem valor! Reconhecendo isso já reconhecemos
também que o respeito que temos pela verdade é a conse­
qüência de uma ilusão."13 Ao criador não interessa reproduzir,
mas produzir o real.
Essa problemática da criação remete diretamente à apologia
da art�: criticar a vontade de verdade como vontade negativa de
potência significa valorizar ou revalorizar os instintos artísticos
como condição da criação de novos tipos de vida, de novas
condições de existência. O artista é aquele que dá forma, deter­
mina valor, se apossa.14 Se a arte é o que torna a vida possível, é
o grande estimulante da vida, a grande sedutora, e mesmo a
força superior capaz de se contrapor à vontade de negação da
vida15, isso se deve a seu poder criador, transfigurador.
A crítica da vontade de verdade e o elogio da invenção,
da criação, não se reduzem contudo a uma apologia da arte
como atividade específica. Um dos projetos mais ambiciosos
de Nietzsche é impregnar o pensamento e a atividade do ho­
mem de experiência dionisíaca, o que significa 'necessariamen­
te assumir uma postura artística diante da vida ou, em outras
palavras, considerar a arte trágica como modelo de um pen­
samento e uma atividade que, não mais dominados pela von­
tade de saber, expressem uma vontade afirmativa de potência.
O "espírito livre" é aquele que reinventa o real, que transfigura

J.jf
.
103
Roberto Machado

a vida. "Também no conhecimento, sinto apenas a volúpia de


minha vontade de procriar e devir; e se existe uma inocência
em meu saber, é que há nele vontade de procriar."16 Postura
ativa, positiva, afirmativa diante da vida que leva Nietzsche,
com o objetivo de ressaltar a importância que ele lhe dá, até
mesmo a definir a verdade como processo de criação e von­
tade afirmativa de potência: "Assim, a verdade não é alguma
coisa que existiria para ser encontrada e descoberta - mas
alguma coisa que deve ser criada e que dá nome a um proces­
so, mais ainda, a uma vontade de ultrapassar que não tem fim:
introduzir verdade como processus in infinitum, determinação
ativa e não como devir consciente de algo <que> seria 'em si'
firme e determinado. Nome próprio da 'vontade'."17
É preciso entretanto não se deixar enganar por um texto
como este. Efetivamente, Nietzsche várias vezes fala em nome
da verdade, como é fácil notar até em obras do último ano
como O Anticristo e Ecce homo. Isso não significa que a crítica
nietzschiana da verdade seja realizada a partir de uma verdade
mais verdadeira. Questionar a verdade do conhecimento não
implica necessariamente querer formular - nem que seja ine­
vitável formular - um discurso sobre a verdade da verdade.
Negando o privilégio da verdade, a filosofia de Nietzsche não
poderia reivindicar para si própria a verdade - mesmo que
fosse outra ou superior - sob penil de diminuir a radicalidade
de sua crítica. Mesmo quando utiliza o termo verdade - como
no texto citado -, o lugar de onde pretende considerar o
conhecimento e criticá-lo não é mais o lugar da verdade, mas
o da vontade de potência. O que é fundamental na posição
em que se situa - e que a meu ver deve se constituir como
critério para avaliar até mesmo o seu pensamento - é a di­
mensão das forças, é a perspectiva da potência. E1 considerar
as forças que se manifestam no conhecimento não significa
instituír a força como um novo critério de verdade. 18
Tenho procurado esclarecer esta questão desde o início
desse estudo. Gostaria agora, para concluir, de explicitar a sig­
nificação das posições assumidas pela genealogia da verdade
com relação à oposição metafísica de valores.

104
Nietzsche e a verdade

De um modo geral é possível dizer que a genealogia as­


sume duas posições bem caracterizadas com relação à verdade;
posições diferentes mas que, coexistindo em uma mesma época
e até nos mesmos textos, não devem ser interpretadas em ter­
mos de "evolução" ou de transformação histórica de seu pen­
samento: é mais fecundo considerá-las como direções ou po­
sições estratégicas da luta incessante de Nietzsche contra o
niilismo dos valores superiores.
A primeira direção é expressão do procedimento de in­
·versão tão característico de sua démarche. Contra a metafísica
que postula a verdade como valor superior, a genealogia afir­
ma o maior valor ou até mesmo o único valor do termo que
foi negado e considera a aparência, o erro, a ilusão, a mentira,
o sonho como mais fundamentais do que a verdade. "O que é
para mim a 'aparência'? Não, na verdade, o contrário de algum
ser - e que posso dizer de um ser que não seja enunciar os
atributos de sua aparência? Não é certamente uma máscara
inerte que se poderia pôr e sem dúvida também tirar a um x
desconhecido. A aparência para mim é a própria realidade ati­
va e viva. " 19 "Não coloco, portanto, a 'aparência' em oposição
à realidade, ao contrário, considero que a aparência é a reali­
dade, aquela que resiste a toda transformação em um ima­
ginário 'mundo verdadeiro' . Um nome preciso para essa reali­
dade seria 'a vontade de potência' . "20 "O mundo 'aparente' é o
único: o 'mundo verdadeiro' é apenas um acréscimo menti­
roso."21 A aparência não é o contrário da essência, não é uma
máscara que oculta a verdadeira realidade: é a única realidade.
E enquanto só a aparência é real, a verdade, o mundo ver­
dadeiro, é ilusão, mentira. Contra a oposição metafísica de va­
lores, Nietzsche afirma a existência de um dos valores e torna
os valores homogêneos como formas da aparência . Tudo é
erro; inclusive a verdade: "A verdade é o tipo de erro sem o que
uma certa espécie de seres vivos não poderia viver. O que tem
valor, do ponto de vista da vida, decide em última instância.'>22
Esse texto mostra muito bem que não se trata de erigir
um novo critério de verdade ou que não há propriamente con­
tradição em questionar a verdade a partir da aparência, se se
,

105
Roberto Machado

considera o conhecimento na perspectiva da força. O que Nietz­


�� é que a V<:>!ltade _Qc:__y��d� t�m �
.
mtnnseca com um--trpo _ de homem: o homem moral, o bom, o
fraco. Contra ele�--Õpoe avo�tade- aflrmativã-de potê�o
vontãde do falso, de mentira, de ilusão. A vida é o contrário da
verd,ade e da bondade. Dizer sim à vida é dizer sim à men­
tira. 23 E se a vida é falsa, o ideal de verdade é urna negação da
vida. Um dos grandes paradoxos da filosofia de Nietzsche é
denunciar o que é tido como verdade como sendo falsidade,
sem com isso assumir um conceito de verdade como norma,
mas, ao contrário, afirmar que tudo é falso. Afirmar que a vida
é aparência, reivindicar a positividade do falso é se insurgir
contra a possibilidade de um julgamento da vida a partir de
um critério de verdade; é ressaltar como a vontade absoluta de
saber é um ultraje à vida. Mas é evidente que a força desta
argumentação reside em seu caráter estratégico de denúncia: a
criação dos valores superiores, como bem e verdade, é uma
impostura moral. Se não houvesse moral não haveria sentido
em valorizar urna perspectiva imoral ou falsa . E como a moral
é justamente o que, segundo Nietzsche, dá sentido ao mundo,
compreende-se perfeitamente a criação de "contra-noções"24 des­
se tipo como um modo de luta contra a oposição metafísica de
valores.
O fundamental é que a estratégia de inversão que afirma
a positividade da aparência é uma maneira - mesmo que
terminologicamente imprópria - de se situar para além da
dicotomia de valores. É o que afirma um texto de Além do bem
e do mal: "Reconhecer a não-verdade como condição da vida. é
certamente uma maneira perigosa de se opor ao sentido dos
valores correntes e uma filosofia que assume esses riscos já se
situa, por isso mesmo, para além de bem e mal".25_�_filgsofia
de Nietzsche não pode ser reduzida a um platonismo inver­
tido. Fazer a apologia da aparência já é se libertar da oposição
verdade-mentira valorizando as diferenças de grau no seio da
própria aparência: "Pois, afinal de contas, o que nos força a
admitir que existe uma antinomia radical entre o 'verdadeiro' e
o 'falso'? Não basta distinguir graus na aparência, como cores e ,

106
Nietzsche e a verdade

matizes mais ou menos claros, mais ou menos sombrios -


'valores' diversos, para empregar a linguagem dos pintores?"26
É sempre na arte, como testemunha esse texto, que Nietz­
sche encontra o modelo alternativo tanto para a ciência quanto
para a moral. E visto que a arte, como tenho procurado mos­
trar, está sempre ligada à aparência, é por este "culto do não­
verdadeiro", por este "consentimento na aparência" que ela se
situa "para além da moral". 27 É em A genealogia da moral que
se encontra enunciada de maneira mais expressiva essa apolo­
gia da arte como inversão dos valores do niilismo e alternativa
para a ciência e a moral porque valoriza a mentira: "A arte, em
que a mentira se santifica, em que a vontade de enganar tem a
boa-consciência de seu lado, se opõe ao ideal ascético bem
mais fundamentalmente do que a ciência: foi isso que sentiu o
instinto de Platão, o maior inimigo da arte que a Europa já
teve. Platão contra Homero: eis o verdadeiro, o total antago­
nismo; de um lado, o voluntário do 'além', o grande caluniador
da vida; do outro, o seu adorador, a natureza de ouro".28
Novamente o fundamental da reflexão nietzschiana sobre
a arte - ao elogiar, contra a ciência e a moral, seu caráter de
ilusão, mentira, aparência - é, para além das oposições que
esses termos sugerem a dimensão das forças: da superabun­
dância de forças, da intensificação da vida. "O essencial dessa
teoria é a concepção da arte em suas relações com a vida: ela
é, tanto fisiológica quanto psicologicamente, o grande estimu­
lante, aquilo que impele eternamente para a vida, para a eter­
na vida. "29 "O essencial da arte permanece sendo sua reali­
zação existencial que faz nascer a perfeição e a plenitude; a
arte é essencialmente aprovação, bênção, divinização da ex­
istência. "30 A arte não é um narcótico; é um tõnico.31 O senti­
mento do belo é um aumento do sentimento de potência, da
vontade de potência. 32 Se a arte é o grande estimulante da
vida, isto é, se cria uma superabundância de forças e um senti­
mento de prazer para com a existência é porque é uma acei­
tação total da vida, sem instituir valores superiores; se a arte se
opõe à ciência - possuindo mais valor do que ela - e tem
profundo parentesco com a vida é porque valoriza a vida inte-

107
Roberto Machado

gralmente, é porque é um sim triunfante mesmo ao que nela


existe de "terrível", "problemático" e "pavoroso" . 33 Dionisíaco
significa consentir na vida em sua totalidade, sem nada negar,34
ou, de modo mais explícito, é um sim ao que fortalece que
tem como conseqüência um não ao que enfraquece.35 A pre­
ponderância do sim sobre o não é uma característica funda­
mental do excesso de força do dionisíaco, que " . . . pronuncia o
juízo 'belo' mesmo a respeito de coisas e situações em que o
instinto de impotência só saberia apreciar como odiento, como
feio".36
A reflexão sobre a arte permite compreender a posição
da filosofia dionisíaca com relação à questão dos valores e,
mais especificamente, no que diz respeito à verdade. Se a apo­
logia da aparência é uma característica básica da filosofia de
Nietzsche, ela remete sempre para algo ainda mais fundamen­
tal: a superação da dicotomia de valores que institui a aparên­
cia como valor inferior. Afinal não é ele próprio que afirma
que a linguagem pode se revelar incapaz de "ultrapassar sua
natureza grosseira e continuar falando de oposições onde só
existem graus e sutis transições"?37 A apologia da aparência, da
ilusão, da falsidade, da mentira, não é a mais radical nem a
última palavra de Nietzsche. Ela ainda se situa no campo dos
valores criticados, mesmo se a eles se opõe. O que Nietzsche
viu de mais profundo com sua filosofia foi a necessidade de se
situar para além de bem e mal e de verdade e aparência como
exigência de superação da oposição metafísica de valores.
A formulação mais radical do projeto de "transvaloração
de todos os valores" encontra-se, sem dúvida, na etapa final da
lapidar história da filosofia de Crepúsculo dos ídolos: "Elimi­
namos o mundo verdadeiro: que mundo restou? o aparente, 1

talvez?[. . .] Mas não! ao eliminarmos o mundo verdadeiro ta�


bém eliminamos o mundo aparentê."38 Seja quando reivindita
a aparência como característica básica da vida ou quando exi­
ge a superação de toda oposição metafísica de valores, a força
de sua filosofia reside na afirmação de que só é possível se
livrar do "além" pensando e agindo "para além" . 39

108
Nietzsche e a verdade

Eis o que é, em última instância, a filosofia trágica, dioni­


síaca: uma perspectiva para além de bem e mal e para além de
verdade e erro; uma perspectiva para além da moral.

Notas
1 . N. T, § 15.
2. Cf. carta de Nietzsche a Rohde de 4 de agosto de 187 1 , in Ch. Andler,
Nietzscbe, la vie et la pensée, 11, Paris, Gallimard, 1958, p. 2 1 .

3 . N. T, § 18; cf. ibid. , § 19.

4. Cf. V.D., § 2.
S . V.D., § 2.

6. Para os objetivos deste estudo não é necessário desenvolver este ponto,


mas convém assinalar que é a utilização da retórica como instrumento que
permite a Nietzsche invalidar a pretensão de verdade da linguagem concei­
tual da filosofia e da ciência e caracterizar a linguagem como sendo origi­
nariamente trópica, figurada, ou como designando apenas relações dos ho­
mens com as coisas através de metáforas. O uso explícito da retórica como
instrumento privilegiado de análise, que é bem freqüente nos textos posteri­
ores a O nascimento da tragédia até 1875, parece desaparecer da produção
posterior de Nietzsche. (Cf. Philippe Lacoue-Labarthe, "Le Détour, Nietzsche
et la rhétorique", in Poetique, nQ 5, 197 1 .)
7. V.M., in Escritos póstumos, ed. ai., t. I, p. 888; tr. fr., t. I, v. 1 , p. 288.
8. Jbid., ed. ai. , t. I, p. 883; trad. fr, t. I, v. 1 , p. 284; cf. ed. ai., p. 880, tr. fr. ,
p. 282; cf. também L.F, § 37, 4 1 , 77, 78, 84, 102, 150, 1 5 1 .
9. Cf., por exemplo, Frag. Post., verão de 1886 - outono de 1887, 6 [23];
outono de 1887, 9 [91].

10. G.C., § 109; cf. Frag. Post. , outono de 1887, 9 [89], 9 [106].

l' ;

,l·
1 1 . Frag. Post. , agosto-setembro de 1885, 40 [9].
12. Cf. Frag. Post. , outono de 1887, 9 [60].
f
.. ·.

13. Frag. Post. , primavera de 1884, 25 [505]; "Podeis criar um Deus? Então

f
\
calai-vos de uma vez por todas a respeito de todos os deuses! Mas bem
podeis criar o Super-homem." "Não mais querer, não mais avaliar, não mais
I� criar! Ah!, sempre fique longe de mim esse grande cansaço!" Z., 11, "Nas ilhas
bem-aventuradas".
14. Cf. Frag. Post. , outono de 1885 - outono de 1886, 2 [ 156].
15. Cf. Frag. Post. , novembro de 1887 - março de 1888, 11 [415]; maio­
junho de 1888, 17 [3].

109
Roberto Machado

16. Z, 11, "Nas ilhas bem-aventuradas"; E.H, "Asstmfalou Zaratustrd', § 8.


17. Frag. Post., outono de 1887, 9 [911.
18. Cf., por exemplo, B.M., § 22.
19. G.C., § 54.
20. Frag. Post., agosto-setembro de 1885, 40 [53].
21. C./. "A 'razão' na filosofia", § 2.
22. Frag. Post., abril-junho de 1885, 34 [253].
23. Cf. Frag. Post., primavera de 1884, 25 [101].
24. Cf. Frag. Post. , outubro de 1888, 23 [3] 3.
25. B.M., § 4.
26. B.M., § 34.
27. Cf. G.C., § 107.
28. G.M., III , § 25.
29. Frag. Post., primavera de 1888, 14 [23]; cf. outono de 1887, 9 [1021.
30. Frag. Post., primavera de 1888, 14 [47].
31. Cf. E.H., "Humano, demasiado humano", § 3; Frag. Post., primavera de
1888, 15 [10].
32. Cf. Frag. Post., outono de 1887, 10 [167]; primavera-verão de 1888, 16
[40]; C.L, "Incursões de um intempestivo", §§ 19 e 20.
33. Cf. C.L, "Incursões ... ", § 24; Frag. Post., outono de 1887, 9 [1 19]; novem­
bro de 1887 - março de 1888, 1 1 [228].
34. Cf. Frag. Post., primavera de 1888, 14 [89].
35. Cf. Frag. Post., primavera de 1888, 15 [13].
36. Frag. Post., outono de 1887, 10 [168]; cf. C.!., "O que devo aos antigos", §
§ 4 e 5; Frag. Post., outubro-novembro de 1888, 24 [1] 9.
37. B.M., § 24.
38. C./., "Como o 'mundo verdadeiro' acabou convertendo-se em uma fá­
bula", § 6.
39. Cf. Frag. Post.,verão de 1886 - outono de 1887, 5 [6].

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