Você está na página 1de 10

QUINTA-FEIRA, 30 DE JULHO DE 2009

Técnica e Ciência enquanto “Ideologia” – Jürgen Habermas -


fichamento
Técnica e Ciência enquanto “Ideologia” – Jürgen Habermas (trad. Zeljko Loparic e Andréa
Maria Altino de Campos Loparic, Col. Os Pensadores, editora Abril Cultural, São Paulo
1983). Texto em homenagem aos 70 anos de Herbert Marcuse*

“Racionalidade” é o conceito utilizado por Max Weber para determinar a forma da atividade
econômica capitalista, do direito privado burguês e da dominação burocrática.

“Racionalização” significa a expansão dos setores sociais submetidos a padrões de decisão


racional, correspondendo a isso a industrialização do trabalho social, cuja conseqüência será a
expansão do agir instrumental a outros domínios, como urbanização dos modos de vida,
tecnificação dos transportes e da comunicação. A diferença entre um e outro é que, no tocante
ao agir racional-com-respeito-a-fins, neste se trata da escolha dos meios, naquele diz respeito à
escolha entre alternativas. A planificação é um agir racional-com-respeito-a-fins de segundo
grau (dos meios). Serve a consecução, aperfeiçoamento ou ampliação do próprio sistema de
racionalização.

Habermas afirma que a racionalização da sociedade está ligada à institucionalização do


progresso científico e técnico. A penetração da ciência e da técnica nas instituições implica na
transformação dessas mesmas instituições no que diz respeito a sua legitimação, que agora
obedecem a uma secularização e a um desenfeitiçamento como imagem do mundo que orienta a
ação.

i)

Marcuse compreende que a “racionalização” (cuja origem Weber remonta ao agir racional-com-
respeito-a-fins do empresário capitalista, do trabalhador industrial, da pessoa jurídica abstrata e
do funcionário administrativo) possui implicações materiais – “racionalização” não é mera
racionalidade, mas uma forma de dominação política.

Na medida em que a “racionalização” diz respeito “à escolha correta entre estratégias, ao


emprego adequado de tecnologias e à organização de sistemas de acordo com fins” (p. 313) ela
perde a reflexão sobre os interesses globais da sociedade. Além disso, a racionalização aplica-se
a relações que podem ser manipuladas tecnicamente, e portanto é um agir que requer dominação
– seja sobre a natureza ou sobre a sociedade. Diz Habermas, resenhando Marcuse:

O agir racional-com-respeito-a-fins é, segundo sua estrutura, o exercício do controle (p. 314).


A racionalização das relações da vida é, então, nada mais que a institucionalização de uma
dominação que acaba por ser irreconhecível enquanto política, pois aparece como razão técnica.

A conclusão da crítica de Marcuse a Weber indica que é interior à própria técnica fins e
interesses determinados, pois a compreende como um projeto histórico-social, cujo conteúdo é a
dominação do homem e das coisas. A essa dominação material corresponde a forma da razão
técnica (conclusão que data de 1965).

Em 1956 Marcuse encara a questão em outro contexto, a partir do qual o seu diagnóstico aponta,
nas sociedades industrialmente avançadas, que a dominação tende a perder seu caráter
explorador e opressivo, tornando-se “racional”, muito embora a dominação política permaneça.
A racionalidade da dominação encontra dois medidores que remetem a um mesmo fundo
comum: 1) o progresso ou crescimento das forças produtivas, que passa a legitimar o sistema
como um todo (esse crescimento ligado, bem entendido, à técnica e à ciência); 2) esse mesmo
crescimento, potencialmente considerado, demonstra a irracionalidade da continuidade das
privações e ônus impostos aos indivíduos.

O registro, portanto, ao contrário do juízo negativo da apreciação anterior (de 1965), é


ambivalente: as forças produtivas em seu desenvolvimento como fundamento de legitimação,
mas também como potencial aberto para a superação dessa dominação. O amálgama entre
crescimento das forças produtivas e progresso técnico institucionalizado é o fundamento de
legitimação da sociedade. A contradição entre relações de produção e forças produtivas é
apagada em favor da apresentação dessa contradição como apenas a forma de organização
tecnicamente necessária.

A racionalização aparece, desse modo, em suas duas distintas faces: não apenas como padrão de
crítica a partir do qual “a repressão objetivamente supérflua das relações de produção
historicamente caducas pode ser desmascarada” (p. 315), mas também como “padrão
apologético” por meio do qual essas mesmas relações podem ser legitimadas dentro de um
quadro institucional funcional, padrão que passa a ser corretivo no interior do sistema. Sob o
nível de desenvolvimento técnico-científico as forças produtivas, em sua relação com as
relações de produção, ao invés de fundamento de crítica, passam a fundamento de legitimação.
Isso, para Marcuse, é uma novidade na história mundial.

A racionalidade dos sistemas do agir racional-com-respeito-a-fins sofreram uma “restrição”.


Não se trata de reduzir técnica e ciência a uma racionalidade submissa à lógica do sucesso, mas
compreender a restrição como absorção de um “a priori material” surgido historicamente e
passível de ser superado. Segundo Marcuse, a ciência moderna foi estruturada de modo a
priori a poder servir de instrumento de controle produtivo automático. A dominação da natureza
promovida pelo método científico permitiu o avanço da dominação do homem pelo
homem através da natureza. A dominação não ocorre apenas através da tecnologia,
mas enquanto tecnologia, o que influi decisivamente na legitimação do poder político.
A “racionalização” em Weber também apresenta um sentido análogo a de Freud: a verdadeira
causa (a manutenção de uma dominação objetivamente caduca) é encoberta por razões de outra
ordem (razões técnicas). Essa associação só é possível na medida em que a racionalidade da
ciência é imanentemente dominadora e manipuladora. Habermas elenca os precursores da crítica
de Marcuse: Husserl, Heidegger e Bloch (este último achava que o capitalismo desfigura a
ciência, transformando a técnica em algo outro que não mera força produtiva).

A originalidade de Marcuse, segundo Habermas, reside em fazer da análise da “razão técnica” o


ponto de partida da análise da sociedade capitalista tardia. Habermas, todavia, acha que Marcuse
se embaraça ao tentar dar confirmação sociológica às suas teses filosóficas.

ii)

O argumento de Marcuse implica na consideração de que a uma revolução política e social


deveria se seguir uma revolução na técnica e na ciência – consideração essa que tem como
premissa a fusão entre técnica e dominação, como técnica conjugada a um projeto de mundo
(Weltenentwurf). Na medida mesma do avanço técnico, dá-se a subordinação, em razão do
aumento da produtividade e comodidade, aos que controlam o aparato técnico. Aí reside a fusão
entre dominação e técnica.

Habermas diz que a superação da ciência capitalista em Marcuse aponta para a promessa de
uma natureza decaída como nova ciência. O que Marcuse tem em vista é uma ciência cuja
metodologia e princípios sejam novos, não mais submissos ao agir instrumental, mas sim a uma
ação que liberasse os potenciais da natureza, através do “zelo” e “carinho” (p. 317). Habermas
argumenta que somente é possível concluir que a ciência moderna é um projeto particularmente
histórico se for possível mostrar que outro projeto de ciência é possível (o que, por sua vez,
englobaria uma nova técnica). É justamente disso que Habermas duvida.

Com Arnold Gehlen, Habermas pensa a técnica como objetivação progressiva do agir racional-
com-respeito-a-fins. O modelo é o organismo humano, sobre o qual o desenvolvimento técnico
incidiria no sentido da substituição das ações elementares do agir racional-com-respeito-a-fins
por meios técnicos. A substituição na história foi progressiva – mãos e pernas (movimento),
corpo humano (produção de energia), olhos, ouvidos e pele (sensorial) e, por fim, cérebro
(funções do centro de controle).

O desenvolvimento técnico obedece à lógica do agir racional-com-respeito-a-fins, cujo critério é


o sucesso. Habermas identifica, nesse sentido, essa estrutura à estrutura mesma do trabalho, o
que o leva a duvidar de uma outra técnica possível enquanto a natureza humana continuar
necessitando do trabalho e dos meios – técnicos – que substituem esse trabalho com vistas a
garantir a subsistência da espécie.

Habermas não nega, porém, uma atitude diferente do homem frente à natureza – não mais tratá-
la como mero objeto de manipulação, mas como um sujeito de interação, dando subjetividade
aos seus componentes –, embora pense que isso ocorreria apenas quando os homens
mutuamente se tratassem assim. Importa notar, no entanto, que de uma atitude nova frente a
natureza não se deriva uma nova técnica – justo por residir na natureza humana a estrutura que
implica no trabalho.

Habermas desloca a questão para um campo diverso do agir – e não para uma nova técnica. Não
se trata de uma nova ciência ou técnica, mas de compreender essa questão como um
desenvolvimento da estrutura do trabalho, em oposição à linguagem. Portanto, trata-se de se
virar a atenção a uma atitude fundada na linguagem.

Habermas mostra que há uma ambigüidade em Marcuse no que diz respeito a consideração da
técnica como projeto humano ou como um projeto historicamente superável. A mudança, em
um caso, poderia situar-se apenas ao nível do quadro institucional cujos valores orientam a
técnica, e não a própria racionalidade dela.

Habermas, desse modo, desconfia do retorno de Marcuse à concepção mais ortodoxa da relação
entre forças produtivas e relações de produção como uma resposta legítima à questão; também
rejeita a historicização da técnica – o modelo do pecado original e o modelo da inocência.

Em que pese a rejeição das respostas, Habermas pensa que Marcuse formulou corretamente a
questão:

O a priori tecnológico é um a priori político na medida em que a transformação


da natureza envolve a do homem e na medida em que as “criações feitas pelo
homem” surgem de um ensemble [conjunto, acordo] societal e nele reingressam. É
possível insistir ainda que a maquinaria do universo tecnológico, “como tal”, é
indiferente a fins políticos – pode revolucionar ou retardar uma sociedade. Um
computador eletrônico pode servir igualmente a uma administração capitalista ou a uma
socialista; um cíclotron pode ser um instrumento tão eficiente para um partido belicista
como para um partido pacifista [...] Contudo, tornando-se a forma universal de
produção material, a técnica circunscreve toda uma cultura; ela projeta uma totalidade
histórica – um “mundo” (Der eindimensionale Mensch, p. 246 [p. 319]).

Cabe compreender, portanto, a maneira pela qual a técnica expandiu-se a ponto de projetar um
“mundo do viver” (idem).

Weber, segundo Habermas, com o conceito de racionalização da sociedade quis chamar a


atenção para o mesmo processo – embora, ainda segundo Habermas, não tenha alcançado êxito.
O projeto de Habermas é reavaliar o conceito de racionalização para então examinar a crítica de
Marcuse a Weber bem como a tese da dupla função do progresso técnico-científico (como força
produtiva e como ideologia).

iii)

Habermas identifica nos freqüentes pares de conceitos weberianos (status e contrato,


comunidade e sociedade etc.), articulados pelo conceito de racionalização, a tentativa de
compreender a transição de uma sociedade tradicional para uma sociedade moderna através da
mudança de seus quadros institucionais. Para Habermas, racionalização é o reflexo do progresso
técnico-científico sobre o quadro institucional. Habermas ainda analisa a tentativa de Parsons
em formular uma lista exaustiva das orientações valorativas através das quais é possível
compreender o processo de racionalização. Habermas, porém, rejeita a tentativa de Parsons
alegando que ele as retira de um contexto histórico muito particular (de modo que não são
universais, o que o próprio Parsons pretende que seja), além de compartilhar um ponto de
partida subjetivo com Weber, com vistas a compreender a racionalização.

Habermas então propõe uma distinção fundamental para entender esse


processo: trabalho e interação. Habermas compreende trabalho como o agir racional-com-
respeito-a-fins por excelência, seja ele o agir instrumental ou a escolha racional – e mesmo a
combinação dos dois. O agir instrumental é regido por regras técnicas fundadas no saber
empírico, o que implica em prognósticos condicionais sobre acontecimentos observáveis. A
“escolha racional” é o comportamento fundado em estratégias baseadas no saber analítico; são
descrições a partir de regras de preferência (sistemas de valores) e máximas universais. Esse
agir é uma dedução que avalia possíveis comportamentos.

Por “agir comunicativo” (ou interação) Habermas entende uma interação mediatizada
simbolicamente, regida por normas que definem expectativas de comportamento recíprocas, que
devem ser reconhecidas e compreendidas por dois agentes e cuja validade é obrigatória. Ao
contrário do agir racional-com-respeito-a-fins, cuja verdade das proposições depende de serem
empiricamente verdadeiras ou analiticamente corretas, fundadas, portanto, no sucesso, as
normas sociais fundam-se na intersubjetividade e são asseguradas pelo reconhecimento
universal das intenções. A interiorização das normas dá origem à disciplina de estruturas de
personalidades, ao passo que o agir racional-com-respeito-a-fins dá origem a disciplina
de habilidades.

Essa distinção é o que permite classificar os sistemas sociais sob o critério de predominância do
agir racional-com-respeito-a-fins ou a interação. O quadro institucional de uma sociedade, por
exemplo, consiste em normas que guiam as interações verbais, mas há o sistema econômico e o
aparato de Estado que se guiam, sobretudo, por proposições sobre ações racionais-com-respeito-
a-fins. Subsistemas de interação são família a parentesco, por exemplo.

Habermas, “no plano analítico” (p. 322), faz a seguinte distinção:

(1) O quadro institucional de uma sociedade ou mundo do viver sócio-cultural e (2)


os subsistemas do agir racional-com-respeito-a-fins “encaixados” nesse quadro
institucional (idem).

iv)

Habermas passa, então, a comentar as “sociedades tradicionais”. Quanto a elas, Habermas


entende uma sociedade em oposição aos sistemas sociais primitivos em três pontos: 1) há um
poder central (estatal) de dominação (em oposição ao poder tribal); 2) há separação da
sociedade em classes (em oposição às relações de parentesco); 3) há uma imagem mítica ou
religiosa para a legitimação do poder.

As culturas avançadas, por sua vez, estabelecem-se sobre o fundamento de uma técnica
relativamente desenvolvida e sobre uma divisão do trabalho social. Isso põe o problema da
superprodução que, por conseguinte, põe o problema de como dividir desigualmente,
mas legitimamente, a riqueza segundo critérios que não se sustentam através do parentesco.

Habermas nota que “o esquema estável” (p. 323) de um modo de produção pré-capitalista e de
uma técnica e ciência pré-moderna possuem uma relação com o quadro institucional “típica”: os
subsistemas do agir racional-com-respeito-a-fins, embora em progresso, ainda não puseram em
xeque a autoridade das tradições culturais que legitimam a dominação – em outras palavras, não
há ainda racionalização. As “sociedades tradicionais” são aquelas cujos subsistemas de agir
racional-com-respeito-a-fins é contido nos limites da legitimação das tradições culturais. Marx e
Schumpeter, na interpretação habermasiana, compreendem o capitalismo como um mecanismo
que garante a propagação permanente dos subsistemas de agir racional-com-respeito-a-fins, o
que abala o quadro institucional quando seu fundamento é a tradição cultural. O capitalismo,
durante a história mundial, chegou a institucionalizar o crescimento auto-regulado, mas foi
capaz de se livrar de todo quadro institucional ao valorizar o capital de forma puramente
privada.

O avanço técnico que pressiona as mudanças da estrutura institucional não é a novidade do


processo de modernização, mas sim o fato de que a ampliação dos subsistemas de agir racional-
com-respeito-a-fins chega a substituir a interação. O próprio capitalismo põe e soluciona esse
problema. A legitimação é, dessa maneira, promovida pela instituição mercado, sob a
expectativa de reciprocidade nas trocas. A legitimação do capitalismo é fundada, portanto, no
próprio sistema de trabalho social. Diz Habermas:

O quadro institucional da sociedade é imediatamente econômico (p. 325).

Trata-se uma legitimação “de baixo para cima”.

A superioridade do capitalismo em relação aos modos de produção anteriores, segundo


Habermas, reside em dois fundamentos: 1) a criação de um mecanismo econômico que assegura
o desenvolvimento permanente dos subsistemas de agir racional-com-respeito-a-fins e 2) a
criação de uma legitimação econômica a partir da qual o sistema de dominação pode ser
permanentemente rearranjado a fim de garantir as novas exigências desses subsistemas em
desenvolvimento. Essa adaptação é concebida por Weber como a racionalização, que pode
ocorrer “de baixo para cima” e “de cima para baixo”.

De baixo para cima é uma pressão adaptativa permanente advinda do modo de produção,
através da troca e da empresa capitalista. De cima para baixo é a substituição das antigas
legitimações culturais que agora cedem lugar a éticas e credos subjetivos.
Cabe ainda notar que as legitimações de novo tipo surgem em substituição das tradicionais e
pretendem possuir um caráter científico. Mas, na medida em que passam a encobrir relações de
violência tornam-se ideologias. Por essa razão é que só há ideologias burguesas – e não pré-
burguesas.

v)

A crítica de Marcuse a Weber diz respeito a este se fixar em um conceito abstrato de


racionalização, sem levar em consideração Marx e a crítica da economia política enquanto um
modo de crítica da ideologia burguesa, o que faz Weber não conseguir ver a adaptação do
quadro institucional específico de cada classe. No entanto, isso não significa endossar Marx,
que foi capaz apenas de diagnosticar o capitalismo em sua fase liberal.

Habermas, nesse sentido, nota dois novos fatos no capitalismo atual: 1) a crescente intervenção
do Estado na economia e 2) uma cada vez maior interdependência entre pesquisa e técnica, cujo
resultado é transformar a ciência na principal força produtiva. É a partir disso que se dá a
ressalva de Habermas quanto às condições de aplicabilidade da economia política de Marx.
Habermas, então, endossa a tese de Marcuse segundo a qual a técnica e a ciência passam a
legitimar a dominação.

Quanto a tese 1, devido ao fato do intervencionismo estatal, não é mais possível continuar a
aplicar a crítica da economia política na medida em que o Estado não é mais simplesmente uma
“superestrutura”. O Estado passa a regular a sociedade, o que acaba por implodir a ideologia da
troca justa. E a crítica da economia política, enquanto uma crítica da ideologia, cai por terra.
Isso implica em dizer que o sistema de dominação não pode mais ser criticado imediatamente a
partir das relações de produção.

A dominação política, desse modo, exige outra espécie de legitimação. A legitimação pré-
burguesa é insustentável em razão do enfraquecimento das tradições. Habermas fala que no
lugar da ideologia da troca livre é posto um programa de substitutivos, cujo objetivo é
compensar as disfunções da troca. O sistema continua com o momento da ideologia burguesa do
rendimento, mas a desloca do mercado para o sistema escolar, além disso, garante um mínimo
de bem-estar social, segurança no trabalho e estabilidade dos vencimentos. Esse modelo,
embora restrinja as instituições de direito privado, assegura a valorização do capital e vincula a
si a hegemonia sobre as massas.

Nesse sentido, a política assume um caráter negativo, cujo objetivo é corrigir disfunções do
próprio sistema. A política não serve à realização de objetivos práticos, mas apenas à solução de
questões técnicas. A política de tipo antigo legitimava-se na contextura da interação – Habermas
diz que na sociedade burguesa também –, mas o programa de substitutivos inverte essa lógica,
excluindo questões genuinamente práticas por técnicas. Ele continua:

A solução de tarefas técnicas não depende da discussão pública. Discussões públicas poderiam,
antes, problematizar as condições de contorno do sistema, dentro das quais as tarefas da
atividade do Estado se apresentam como técnicas. A nova política de intervencionismo
do Estado exige, por isso, uma despolitização da massa da população (p. 330).

Resta ainda um ponto aparentemente cego do programa de substitutivos: como fazer que a
despolitização das massas seja plausível a elas próprias? Habermas cita Marcuse em sua
possível resposta: “fazendo com que técnica e ciência assumam também o papel de uma
ideologia” (idem).

vi)

Habermas buscar caracterizar uma nova tendência no capitalismo: a cientifização da técnica.


Com a pesquisa industrial em grande escala (financiada pelo Estado e destinada, sobretudo, ao
setor militar), técnica, ciência e valorização passaram a fazer parte de um mesmo circuito. A
teoria do valor trabalho de Marx torna-se inaplicável na medida em que é impossível calcular a
mais-valia de certos bens à base da força de trabalho não qualificada.

A institucionalização do progresso técnico-científico (antes dois âmbitos plenamente separados)


fez regredir na consciência dos homens o dualismo entre trabalho e interação.

A partir dessa regressão da consciência é analisada toda a sociedade. Habermas, considerando o


esquema de Arnold Gehlen de objetivação das funções humanas por meio da técnica, pensa na
possibilidade de um homo fabricatus, ele próprio integrado nos dispositivos técnicos que criou.

vii)

As duas principais categorias marxistas, a saber, luta de classes e ideologia, devido às


modificações da sociedade atual, não podem mais ser aplicadas sem restrições.

O conflito entre as classes é atenuado por uma política de indenizações do Estado. Habermas,
no entanto, pondera: “Isto não significa superação, mas latência da oposição entre as classes”
(p. 334). O conflito continua na periferia do sistema, em setores sociais que não são explorados
(o sistema não vive de seu trabalho), mas privados de direitos – o que implica na diferença entre
formas de resistência: é impossível uma recusa de cooperação (uma greve, por exemplo), mas
sim apenas protestos sociais que acabam por ganhar a forma de um apelo.

O fundamento da legitimação assentada na técnica e na ciência não mais é da antiga figura da


ideologia. Ela é menos ideológica na medida em que não apenas encobre a não-realização da
satisfação de interesses, mas efetivamente realiza parte deles. E, por outro lado, a transformação
da ciência em fetiche é a mais abrangente ideologia, pois destrói toda possibilidade de ação
prática e não só justifica e oprime classes determinadas, mas inviabiliza a emancipação humana
enquanto tal. Isso decorre da eliminação do âmbito da interação.

viii)

Se forem aceitas as restrições aos conceitos de luta de classes e ideologia, cabe uma
reformulação mais geral no materialismo histórico, que começaria por recolocar a dualidade
entre relações de produção e forças produtivas em um nível mais abstrato; substituir esses
conceitos pelos deinteração e trabalho.

As relações de produção só estiveram presentes no quadro institucional no desenvolvimento do


capitalismo liberal. As forças produtivas, por sua vez, não podem ser mais vistas como o motor
do desenvolvimento social, na medida em que ao invés de provocarem choques que seriam
sucedidos por movimentos emancipatórios, tem seu desenvolvimento hoje conjugado ao
progresso técnico-científico, o qual legitima o sistema. A hipótese de Habermas consiste em
mostrar que a relação entre interação (quadro institucional) e trabalho (subsistemas de agir
racional-com-respeito-a-fins) é mais adequada para reconstituir o desenvolvimento histórico da
espécie.

No período Mesolítico qualquer ação racional-com-respeito-a-fins estava ligada ritualmente às


interações. A partir do sedentarismo (culturas do pastoreio e do plantio) algumas formas de ação
racional-com-respeito-a-fins separaram-se da vivência comunicativa dos sujeitos. A
autonomização do saber racional-com-respeito-a-fins, no entanto, só ocorre em culturas
avançadas, sociedades que possuem Estado. A época moderna é caracterizada pela
vulnerabilidade do quadro institucional frente aos subsistemas de agir racional-com-respeito-a-
fins (isto é, a racionalização), que passa a forçar novas legitimações desse quadro.

O modelo de desenvolvimento sócio-cultural da espécie foi determinado pelo aumento da


manipulação técnica sobre condições externas de existência e pela adaptação mais ou menos
passiva do quadro institucional aos subsistemas de agir racional-com-respeito-a-fins. O agir
racional-com-respeito-a-fins foi a adaptação ativa que contribuiu decisivamente para a
autoconservação dos sujeitos sociais. As adaptações passivas foram as modificações do quadro
institucional frente às novas tecnologias – passivas por não obedecerem à lógica de um agir
planejado racional-com-respeito-a-fins, mas apenas são produto de um desenvolvimento por
crescimento natural.

Habermas diz que o objetivo de Marx era transformar a adaptação passiva em ativa, submetendo
ao controle a mudança estrutural da sociedade. Embora não Marx, Habermas argumenta que
essa adaptação ativa foi pensada – tanto pelo planejamento capitalista quanto pelo socialismo
burocrático – através do modelo de agir racional-com-respeito-a-fins, e não na contextura da
interação. Isso leva à duplicidade do conceito de racionalização. Além do conceito já visto,
Habermas pensa em uma racionalização do quadro institucional, o que o faz apostar na
linguagem para tanto:

A racionalização no plano do quadro institucional só pode se perfazer num meio de


interação verbalmente mediatizada, a saber, por umadescompressão no domínio
comunicativo [...] Num tal processo de reflexão generalizada, as instituições seriam modificadas
na sua composiçãoespecífica para além dos limites de uma mera mudança de legitimação (p.
341).

ix)
Por fim, Habermas tenta identificar o deslocamento da zona de conflitos capaz de fazer frente à
legitimação do capitalismo tardio. Ele encontra potencial de protesto nos estudantes
secundaristas e universitários.

Habermas faz três considerações a respeito desse grupo social: 1) os estudantes são
economicamente privilegiados, sua atuação política não diz respeito a um incremento das
compensações sociais; 2) A proposta de legitimação do sistema encontra resistência desse setor
por razões várias. Além de estarem relativamente imunes ao sistema de compensação, os
estudantes provêm da área de ciências sociais e filológico-históricas, de modo que desconfiam,
de partida, de toda ideologia tecnocrática; 3) A educação desses jovens se deu em meios
liberais, seja na família ou mesmo nas subculturas que participaram. Essa educação choca-se
com a forma de vida conservativa da economia e proporciona um questionamento das
alternativas postas pelo próprio sistema. Diz Habermas que o protesto dos estudantes não se
dirige a mais compensações, mas sim contra a própria ideia de compensação.

É sob essa base que Habermas, sem fazer um prognóstico peremptório, aposta na ação política
dos estudantes para a repolitização da sociedade e o questionamento da legitimação do
capitalismo tardio.

* Seminário apresentado no interior do Grupo PET-Filosofia da Universidade Federal do Paraná no dia


29/07/2009 dentro do Ciclo de Seminários “Filosofia e Técnica”.

A obra trata de dois importantes autores da Filosofia Política contemporânea – Karl Marx e
Jürgen Habermas – para mostrar como a noção de emancipação deixou de estar atrelada à
sociedade do trabalho e ao socialismo para ser vinculada a lutas por direitos nos marcos das
democracias atuais. Se o conceito de revolução é fortemente empregado pelo movimento
operário no século XIX, os movimentos sociais posteriores à década de 1960 deixam de ser
definidos pelo conceito de classe social e evidenciam uma pluralidade de formas de vida e de
lutas políticas. O uso público da razão, a deliberação na esfera pública e a conquista de direitos
de cidadania passam a ser elementos centrais para a compreensão de emancipação. Para o
autor, não há uma escolha histórica pela reforma em detrimento da revolução – é a própria
oposição entre reforma e revolução que perde seu sentido nos debates políticos das
democracias contemporâneas.

Você também pode gostar