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33 SOBRE A DISCUSSAO ACERCA DA HETEROCOLOCACAO EM PERIGO CONSENTIDA ! Ciaus Roxin Prof. em. Dr. Dr. h. c, mult., Universidade de Ludwig Maximilian, Munique, Alemanha, ‘SumAato: I. Introdugdo ~ Il. A existéncia de uma figura juri- a auténoma da heterocolocago em perigo consentida — Ii. A. distingdo enire heterocoiocagao em perigo consentida & contribuicao a autocolocacio em perigo dolosa - IV. Solugao do consentimento ou solugio da imputagio?: 1. A solugio do consentimento; 2. A solugio da imputagio. 1. INTRODUGAO. A figura juridica da heterocolocagao em perigo consentida, por mim Propagada desde 1973? tomou-se um dos componentes teéricos mais discutidos, mas também mais controvertidos, da parte geral. A decistio mais Thulo original: «Zum Streit um dic cinverstindliche Fremdgefahrdung>. Tradugao Augusto Assis, *Roxin, Festschrift Gallas, 1973, p. 241 ss > 564 DIREITO PENAL COMO CRITICA DA PENA. recente sobre o tema, o denominado caso do teste de aceleragio, até ensejou diversas manifestagdes, mas acabou por aumentar ainda mais a confusio do debate. Larsson’ refere-se «ao mais controverso problema que o direito penal alemao tem a oferecer», SteateNweRTH pretende colocar orcem em uma «confusa e dificilmente ainda abarcavel discussiom, e MuRMANN’ Vé-se diante «de uma auséncia de clareza raramente ainda encontravel». Também Juarez Tavares se ocupou da tematica em ao menos duas oportunidades,* Fazio pela qual creio oportuno retomnar a ela neste estudo a ele dedicado, A discussdo concentra-se especialmente em trés problemas, os quais eu, Por conta disso, quero analisar mais detalhadamente na sequéncia, Primeira, mente, € controverso se a existéncia da figura jurfdica da heterocolocagdo em perigo consentida sequer se justifica (Il). Afirmando-se tal existéncia, surge a Pergunta de como diferenciar a contribuigao a uma autocolocagao em perigo dolosa da heterocolocaco em perigo consentida (III). Caso seja assegurado 4 heterocolocagio em perigo consentida um Ambito de aplicagio auténomo, emerge 0 problema decisivo: se, ¢ sob quais circunstincias, ela pode set tratada segundo as regras do consentimento’ (IV, 1) ou se ela deve excluir a imputacéo objetiva, de acordo com critérios também a serem, nesse aspecto, melhor determinados (IV, 2) II, A EXISTENCIA DE UMA FIGURA JUR{DICA AUTONOMA DA HETEROCOLOCACAO EM PERIGO CONSENTIDA Eu entendo como heterocolocagiio em perigo consentida 0 caso de alguém que coloca um terceiro em perigo: este, no entanto, se expe ao perigo criado plenamente consciente do risco. Hi insimeros casos desse géncru. A situagio mais comum é a de alguém pegar carona com um motorista embriagado, apesar de saber que este niio est em condigdes de dirigir por Entscheidungen des Bundesgerichtshofs in Strafsachen (BGHS1), v. 53, p. 55 ss. Browns, ZIS 2009, p. 194; Dottins, FS Geppert, 2011, p. 53 ss.: Ducrrce, NStZ, 2009, P. 690; Kou, NIW 2009, p, 1158; Lassox, ZIS 2009, p. 359 ws, FS Puppe, 2011 . 767: Puvre, GA 2009, p. 486; Reszixowskl, HRRS 2009, p. 170; Roxis, JZ 2009, p. 399; ‘Smaaressweata, FS Puppe, 2011, p. 1017 ss.; Thre, Z1S 2009, p. 170 ss. 44 sobre o julgado da instancia precedente, ReNcien, Jutratio, 2008, p. 8. 5 Lasson, ZIS 2009, p. 359. © Srearenwexra, FS Puppe, p. 1017. 7 Murwass, FS Puppe, p. 767, Tavares, Teoria do injusto penal, 3. ed., Belo Horizonte, 2002, p. 290 e s.; idem, Teoria do crime culposo, 3° ed., Rio de Janciro, 2009, p, 372 s5. ° (N-T.} Roxtw fala diversas vezes das regras do consentimento a0 longo do texto. No entanto, como perceberd o leitor, a referéncia a tas regras, especialmente ao efeito justificante do consentimento, & feta de forma geral, ou seja, alhsia A discussdo sobre se o consentimento deve exclu a tipicidade ou a antijuridicidade da conduta. ai a d aw 2 sic a su qu ae pr ter m 10 de erigo nero. orista ¥ por 2008, 2011, 9. 398: ado da Teoria to. No Ficante CLAUS ROXIN 565 terconsumido bebidas alcoGlicas. Quando a incapacidade de dirigir conduz a um acidente, surge a pergunta se o motorista deve ser punido pelo homicidio culposo do passageiro, ou pelas les®es corporais culposas a ele causadas, ou sea anuéncia da vitima com a colocagao em perigo a qual ela se expés deve impedir a punigao do motorista. Os casos de drogas tém relevancia similar. Alguém permite que um terceiro Ihe injete herofna. Ambos esto cientes dos riscos inerentes ao ato. ‘Aquele que injetou a droga responde por homicfdio culposo, caso 0 que a recebeu venha a falecer em decorréncia da injecao? A jurisprudéncia nos fornece intimeras outras constelagdes desse género, como 0 «caso do Memel»,"!" decidido pelo entio Tribunal do Império ¢ ainda hoje famoso. Nesse caso, o comandante de um barco cedeu a pressio cexercida por dois viajantes que, apesar de terem sido avisados por aquele dos riscos, queriam cruzar 0 rio em um dia de tempestade e em que o nivel de Agua estava alto. O barco virou, os viajantes afogaram-se e 0 comandante foi salvo. Ele pode ser punido nos termos do § 222 do Cédigo Penal alemdo (homicidio culposo)? © «caso da Aids», em que alguém mantém relagdo sexual desprote- sida com um parceiro portador do virus, conhecendo a infeccao deste, é um clissico da época do pés-guerra. Uma heterocolocaco em perigo consentida esta da mesma forma presente no «caso do pequeno vefculo transportador»:?> Um homem que trabalhava em uma construgdo sentou-se, a despeito de ter sido advertido em sentido contrério pelo motorista, na parte desprotegida do veiculo; ele foi atirado A via em decorréncia de um acidente em que o motorista no teve culpa e faleceu. Muito discutido é também «O caso do surfista do carro»,"* em que jovens tentavam manter-se no teto de um carro que se movia a 70, 80 kin/h. Um deles caiu do carro e sofreu lesGes corporais graves, O motorista responde pelas lesdes? A decisio mais recente, que concedeu novamente destacada atualidade 20 caso, cuidou do «teste de aceleragio», mencionado no inicio.'* Jovens protagonizavam uma corrida ilegal de automéveis. No decorrer dessa eles tentaram ultrapassar um terceiro — nao participante e desprevenido — carro a mais de 240 km/h, em um trecho em que a velocidade maxima permitida era de 120 km/h. Durante a manobra, por conta de uma movimentag3o um pouco IN-T] Memel € 0 nome de um tio Enischeidungen des Reichsgerichts in Strafsachen (RGS0), v. 57, p. 172 BayObLG. IR 1990. 473 ® OLG de Zweibricken, JR 1994, p. 519 ss, * OLG de Diisseldorf, NStZ-RR 1997, p. 325 * BGHSt, v.53, p. 55s. —— 566 DIREITO PENAL COMO CRITICA DA PENA mais rispida do volante realizada pelo seu condutor, um dos carros derrapoy © capotou. Os passageiros morreram e a pergunta levantada foi se os dois condutores podem ser responsabilizados por homicidio culposo, j4 que os passageiros estavam de acordo com o teste de aceleracio, filmaram toda a corrida e deram o sinal de partida para o que resultou no acidente fatal, A escolha desses casos ilustrativos deve bastar para delinear a esiry. tura fitica desse grupo de casos.'* O fato de a heterocolocagao em perigo consentida constituir um grupo de casos prdprio é dado como certo pela jurisprudéncia. E 0 que se infere das seguintes passagens da decisio do teste de acelerago:"” «A distingdio entre auto~ e heterocolocacdo em perigo consentida pauta-se nos delitos culposos pelo dominio sobre o desenrolar do acontecimento... levando isso em conta, trata-se de um caso de hetero~e no de autocolocacdo em perigo». Se essa ¢ uma distingao precisa, seré analisado posteriormente. Enquanto a antiga jurisprudéncia (a exemplo da decistio no caso Memel) ainda desconhecia a figura auténoma da heterocolocagao em perigo consentida, & recente niio restam dividas acerca da sua existéncia, Por outro lado, a autonomia do grupo de casos da heterocolocagio em perigo consentida esta longe de ser reconhecida unanimemente pela doutrina, Prova disso € que ainda em 2011, ao analisar 0 julgamento do BGH sobre a corrida de aceleragio e a minha manifestacio & decisio," Srratenwerti” chega conclusio de que «a “heterocolocagao em perigo consentida” nas condutas culposas deveria ser excluida do catalogo de grupos de casos proprios». Enquanto STRATENWERTH considera esse um caso normal de consentimento (sobre isso IV.), Ture,” em seu comentirio a decisdo, enxerga a heterocolocagio em perigo consentida como «variante da autocolocacao em perigo autorresponsavel», de forma que emprega a ela outra construcao, ainda que também divergente da de STRaTENWERTH. Consideragdes do género nao sao recentes, mesmo jé antigamente a figura juridica da heterocolocago em perigo consentida esbarrou em deci- didas recusas. E verdade que Cancio Mst1*' realga que a diferenciagio por "* Eu dediquei artigos aurdnomos a duas outras formas de heterocolocagao em perigo que desencadeiam problemas adicionais: o «Selbstmord durch Einschaltung eines vorsatzlosen Tatmittlers» (Suicidio através da utilizagio de um instrumento sem dolo}, FS Otto, 2007, p. 41: aFuillen verungltickter “Retter"» (Casos de «salvadores» acidentados). FS Puppe, 2011. 909. " BGHSt, v.53, p. 53¢ 61. ® Roxin, JZ 2009. © Steatenwerert, FS Puppe, p. 1024. ” Twwre, ZIS 2009, p. 175. % Caxcto MeLth, ZStW 111 (1999), p. 357 ss. (p. 366-367 ~ Com extensa comprovacio bibliogritfica). derrapou © 0s dois id que os m toda a atal, raestry. m perigo erto pela :cisio do m perigo nrolar do ro-e€ nao analisado zcisiio no sagdo ein éncia. ago em doutrina, 3H sobre NWERTH” tida” nas de casos nmal de venxerga olocacio astrugio, imente a em deci- ago por perigo que sratzloven 9, 2007, p. pe. 2011, CLAUS ROXIN 567 mim desenvolvida entre contribuigdo a uma autocolocagio em perigo e hete- focolocagdo em perigo consentida «se tornou uma das concepgdes dogmé- ticas mais difundidas na doutrina alema, e também na de outros paises»; ainda ssim, conclu que estabelecer «a distingdo entre auto e heterocolocagéio em perigo como base do tratamento dogmitico & conduta da vitima carece de um embasamento consistente».* Dez anos antes, ao se referir a um exemplo por mim criado, Orro* jé havia dito: «Se, por um lado, a participagao como piloto em uma corrida insegura de motocicletas for considerada para os integrantes como contri- buigdo impuntvel a autocolocacao em perigo alheia, mas, por outro, levar alguém no banco do passageiro deva ser considerado para 0 motorista como heterocolocagiio em perigo consentida, estar-se-4 argumentando a partir do acaso do acontecimento... em relacdo & colocagio em perigo em si, nao hi aqui diferenciagdes pertinentes». Nao obstante, é correto tratar a heterocolocagio em perigo consentida ‘como um grupo de casos auténome, ao invés de consideré-la, como fazem os que a negam, pertencente aos casos de autocolocac%o em perigo dolosa ou de consentimento. A contribuigio a autocolocacao em perigo dolosa é, sabidamente, julgada impunivel desde a decisio BGHSt 32, 262. A fundamentagéo do BGH baseia-se na impunidade da participagdo em suicidio © autolesoes dolosas: «quem provoca, possibilita ou fomenta de forma culposa uma acio autorresponsdvel que conduzird a autolesGes ou ao suicidio néo pode ser punivel, se nem sequer no caso de provocacao, possibilitagao ou fomentagio Goiosa ele seria punivel» (cit., p. 264). No entanto, a opinido majoritari fa doutrina fundamenta a impunidade do terceiro na autorresponsabilidade daquele que se autolesiona ou se autocoloca em perigo. Apesar da discussiio existente, ambas as fundamentagdes ndo se excluem, pois a impunidade da contribuigo a autolesio dolosa embasa-se justamente na autorresponsabili- dade daquele que se autolesiona.* No entanto, nao é possivel simplesmente transportar tais consideragdes, para 0 caso de alguém expor-se conscientemente a uma heterocolocacdo em perigo. Afinal, como eu jé havia dito em outra oportunidade,* com essa exposigao traz-se para si «algo imprevistvel, que nao pode mais ser contro- lado ou interrompido, tal como ainda é o caso na autocolocagao em perigo. ® Cancto Metis, ZStW 111 (1999), p. 368-368. ® Orro, FS Tréndle, 1989, p. 157 5s. (170). Mais manifestagdes de opinido que refutam 0 posicionamento traz DOLUNG, JR 1994, p. 520, n. 6. 2” Mais sobre autocolocagio perigo, Frisct, NS{Z. 1992, p. ss. * Roxtn, ZIS 2009, p. 250. ee 568 DIREITO PENAL COMO CRITICA DA PENA, Quem se expde a uma heterocolocagao em perigo normalmente também nip consegue avaliar a capacidade do terceiro de dominar a situag3o de risco com a mesma preciséo com que € capaz de avaliar a extensio e limites da sua propria habilidade». No mesmo sentido diz Dona: «Deve-se dife- renciar a contribui¢ao a autocolocagao em perigo da heterocolocagio em Perigo consentida, pois nesta o risco para aquele que se expe a0 perigo nig € na mesma medida domindvel...». Ainda segundo ele, o agente interferitia jetamente na esfera jurfdica alheia, o que ndo se daria na autolesao. SrRATENWERTH no consegue enxergar nisso nenhum motivo para um tratamento diferenciado” e Orro® argumenta, 2o referir-se & distincdo entre © caso da corrida perigosa de motocicletas e o caso da carona, «que 0 passa. geiro poderia a qualquer momento apés o infcio da earona... encerté-la por intermédio da manifestagio correspondente». Também MurM@axn apoia-se no fato «de que aquele que consente pode revogar 0 seu consentimento a qualquer momento € 0 autor aceitaria tal revogacéion. Contudo, justamente 0 exemplo da carona dado por Orto também demonstra que a esséncia do perigo nao é simplesmente a mesma, pois o passageiro nao consegue saber tio bem quanto o proprio motorista em qual medida este é capaz de controlar riscos. Além do que, quando o motorista esta iniciando uma manobra especialmente perigosa, o passageito dificilmente ainda pode «encerré-la por intermédio da manifestagdo correspondente», Tudo isso se passa em fragdes de segundo e é mais do que duvidoso se motorista daria ouvido a uma «manifestacto» do passageiro nessa situacdo. A propésito, no caso do teste de aceleraco, que durou no total apenas 18 segundos.” a instncia que analisa maiéria de favo concluiu que os passa- geiros nfo tiveram mais possibilidade de interferir na fatidiea manobra de ultrapassagem, Oem regra — nem sempre ~ menor «poder de evitar» (Vermeidemacht) daquele que se expée a uma heterocolocagio em perigo é um indicio de que o seu déficit de conirole e conhecimento nao pode ser simplesmente ignorado, mas de que deve ensejar uma equiparagio & autocolocagio em perigo. Tal equiparagao deve estar vinculada, ao menos, & exigéncia de que essa lacuna seja compensada por uma responsabilidade de igual valor pela criagdo do risco (sobre isso IV, 2), Dotuiss, JR 1994, p, 520: igualmente agora na FS Geppert, p. 55. ‘Sreareswerth, FS Puppe, p. 1020. > Orro, FS Trondle, 1989. p. 170. % MunMann, FS Puppe, p. 786 n. 89. “Mais sobre, Roxts, JZ 2009, p. 402 nbém no > de risco limites da e-se dife- cacao em verigo no aterferiria Zo. » para um Ifo entre 20 passa- rré-la por » apoia-se timento a » também 1a, pois 0 aem qual orista esté icilmente ondente». doso se 0 situacao. tpenas 18 98 passa- anobra de demacht) ade quea ignorado, xtigo. Tal sa lacuna riagao do CLAUS ROXIN 569 ‘A heterocolocaeiio em perigo consentida nao é, portanto, um simples caso de autocolocaciio em perigo dolosa. Contudo, ela também no pode ser wratada como um problema unicamente de consentimento, a exemplo do que fazem a jurisprudéncia e, em adesao a ela, parte da literatura (mais Sobre a soluco do consentimento em IV, 1). Também na titima deciso do genero —0 caso clo «teste de aceleraciio» — 0 BGH aplicou, fazendo mengao | decisées anteriores, a figura do consentimento; por conta disso, analisou a validade da anuéncia manifestada pelo passageiro falecido & luz. «do fim da norma do § 228" do cédigo penal, e da intengio do legislador, extraivel da regra do § 216" do e6digo penal». Eniretanto, tampouco o tratamento da heterocolocaao em perigo consentida como caso de consentimento é de alguma maneira convincente (detalhadamente sobre isso IV, 1). E ndo 0 é, pois em casos como esse no hi, segundo a concepgio correta, consentimento; este deve dirigir-se a0 resultado, ¢ aquele que se expde a uma heterocolocacao em perigo confia, em todos 0s casos com relevancia pritica, em um final feliz. Assim, é uma discussdo sem sentido se e, em caso afirmativo, em que medida as limitagdes impostas a0 consentimento pelos §§ 216, 228 do cédigo penal, formuladas pata delitos dolosos, podem ser transportadas para delitos culposos. Ademais, sio clencadas, como ainda demonstrar-se-4, tantas exigéncias distintas para a validade de um consentimento desse género, que na verdade outros aspectos acabam decidindo acerca da punibilidade, II. A DISTINCAO ENTRE HETEROCOLOCAGAO EM PERIGO CONSENTIDA E CONTRIBUICAO A AUTOCOLOCAGAO EM PERIGO DOLOSA. Enquanto a distingdo entre heterocolocagio em perigo consentida & consentimento evidencia-se jé a partir do fato de o consentimento dirigir-se 4 [N:T] § 228 ~ «Consentimento. (1) Quem realizar uma lesio corporal com 0 consen- timento da pessoa lesionada apenas tera agido de forma antijuridica caso a conduta, apesar do consentimento, viole os bons costumes». Dessa forma, apenas umm consentimento que nio viole os bons costumes esti apto a justficar uma lesio Corporal tipica. Atualmente 0 BCH interpreta a cléusula dos bons costumes no sentido de que o consentimento apenas nao deve ser possivel quando o resultado morte for de se esperar «a partir de uma perspectiva anterior objetivay, como explica, com as devidas referéncias, o proprio Roxts no presente texto. ©" [NT] §216~«Homicidio a pedido (Totung auf Verlangen). (1) Seo autor foi determinado a realizar © homicidio por pedido expresso e sério de quem foi morto, ser imposta pena privativa de liberdade de seis meses a cinco anos. (2) A tentativa € punvel». Da opcio por Punir 0 homicidio a pedido, deduz-se a intengao do legislador de niio permitir um consen- timento vilido em uma lesio dolosa ao bem juridico vida. E a essa inten, portanto, que a decisio citada por Roxie se refere. * BGHSt. v.53, p. 62-63, | est 510 DIREITO PENAL COMO CRITICA DA PENA a0 resultado, a distingdo entre aquela e a autocolocag’o em perigo necesita de maiores esclarecimentos. Até 0 momento, 0 BGH apoia-se para tanto ng dogmatica da autoria e participag: fato. , especialmente na ideia de dominio do Ele faz isso com especial clareza também na sua mais recente decisio, © caso do teste de aceleraco:* «A linha divisotia entre autoria e participacts € um critétio proficuo para distinguir a impunivel contribuicao a autoco. locagio em perigo ou a autolestio autorresponsdvel da, em esséncia tipica, heterocolocagio em perigo. Se nao apenas aquele que se autocoloca em perigo ou se autolesiona detiver 0 dominio do fato sobre a ago perigosa ou ago lesionante, mas 0 colaborador ao menos também o detiver, cometeria este um fato proprio. Dessa forma, ele nao poderia estar livre de pena por razGes de acessoriedade, ou seja, em decorréncia da auséneia de um fato principal do autolesado... isso se aplica da mesma maneira aos casos culposos de auto- ou heterocolocagio em perigo. Portanto, também aqui a distingao entre auto- ¢ heterocolocagio em perigo dé-se a partir do dominio sobre o desenrolar do acontecimento, que pode ser satisfatoriamente determinado com base nos critérios objetivos desenvolvidos para averiguar o dominio do fato nos delitos dolosos...». Esse critério do BGH gerou surpresa e critica por dois motivos: Normal- mente no se distingue entre autoria e participagao nos delitos culposos ¢ © dominio do fato consiste no dominio da agao tipica, o que na auto- ou heterocolocacdo em perigo culposa ja de partida no se verifica.s A meneao a teoria do dominio do fato realmente esti equivocada. Afinal, decisivo nio € quem tem o dominio do fato ~ que em relagiio & realizacio do tipo nenhum dos participantes possui -, mas de quem parte a colocagd em perigo que resulta diretamente no resultado. Partindo essa colocacao da vitima — que, por exemplo, injeta em si mesma a dose fatal de herofna ou que pilota a sua propria motocicleta em uma corrida ilegal -, existira uma auto- colocaco em perigo, e a contribuigdo de terceiros permanecerd em todos 8 casos impune. Partindo essa ago decorrente do pacto, por outro lado, de alguém diverso da vitima, que apenas se expoe conscientemente ao perigo, existird uma heterocolocagao em petigo consentida: ¢ esta deverd ser tratada a partir das suas préprias regras, ainda a serem esclarecidas, Além de cientificamente incorreta, a confusiio da colocagéo em perigo que conduz diretamente ao resultado com as regras da dogmitica da parti- * BGHSt, v. 53, p. 60 e s., a decisio ora citeda menciona outras decisdes no mesmo sentido Purve fez diversas vezes, e com destacado impeto, esse apontamento, que foi corroborado por diversos autores: por tltimo, Aligemeiner Teil, 2 ed. 2010, § 6 nm. 6; NK, 3." ed. 2010, vor § 13 nm. 179 s8.:€ n. 3, p. 492 ss. Kew, NIW'2008, p. 1158. ressita anto na inio do ecisio, ago utoco- tipica, ea em, yosa ou neteria ’na por m fato \Iposos stingao wobre 0 ninado inio do ormal- "S05 € to- ou Afinal, izagio aeagdo cio da ou que 2 aulo- todos do, de serigo, ratada perigo parti mesmo sborado 4.2010, CLAUS ROXIN STL cipagio também conduz frequentemente a distingdes equivocadas. E 0 que oe erifica, por exemplo, no citado caso Aids, em que se discute se, na hipo~ ace de a vitima ter conhecimento da infeccio do seu parceiro, o infectado tpniribui a uma autocolocagio em perigo ou se hii uma heterocolocagao em Tigo consentida. Caso 0 parimetro elencado seja o do dom{nio do fato, ersbos participantes o terdo, pois a relagao sexual foi levada a cabo de forma conjunta. E verdade que o BGH, a partir dos elementos acima citados, ainda txsim concluiria existir nesse caso uma heterocolocagao em perigo consen- tida, pois 0 dominio do fato «nao era detido apenas por quem foi colocado tm perigor. O BayObLG,* por outro lado, afirmou existir uma contribuigdio fm autocolocacio em perigo, o que pode ser funcamentado da mesma forma no argumento de que aquele colocado em perigo também possuia dominio do fato. Caso enxergue-se, contudo, a exemplo do aqui proposto, a conduta que conduz.diretamente & colocagio em perigo tipica como decisiva, existiré independentemente de todas as consideracdes acerca do dominio do fato um caso claro de heterocolocagaio em perigo consentida. Tal é assim, pois o perigo partiu exclusivamente do infectado. ‘Também no caso do teste de aceleragao fica claro que a orientagio a partir do dominio do fato conduz a equfvocos. Isso vale principalmente para quando se considera, como faz a maioria dos autores, que a «coautoriay do colocado em perigo enseja uma autocolocacdo em perigo dolosa. Eu dou 1az30 a0 BGH no sentido de que aqui nao houve autocolocagao em perigo do passageiro, mas sim uma heterocolocacao em perigo consentida, Entretanto, tal conelustio decorre de que a colocaco em perigo que conduziu direta- mente & morte partiu exclusivamente do condutor. Acerca do dominio do fato e das consequéncias a serem dele extraidas para a distingio em questo, pode-se, com raziio, novamente discutir. E, por exemplo, o que faz Kon” a0 comentar a decisio do BGH: «Em corridas de rally... 0 navegador que analisa 0 mapa e dé comandos de direcdo possui um dominio equivalente sobre o desenrolar da viagem. O caso em questo parece aproximar-se mais ao caso do rally.» Em Stratenwerre [é-se inclusive: «Aqui ndo se pode duvidar seriamente da autocolocagdo em perigo de todos os participantes, independentemente de qual deles sentava-se & diregio ou apenas estava no carro» OBGH aproxima-se mais de uma decisio correta quando posteriormente refere-se a «dominio da colocagio em perigo»” e, seguindo diversas vozes * IR 1990, p. 473; mais sobre isso, Roxis, Aligemeiner Teil, Bd. 1,42 ed. 2006, $ 11 nim 133, Kou, NEW 2009, p. L158. Sraatexwerri, FS Puppe. p- 1018, ” ‘BGHSt, v. 53, p. 61 572 DIREITO PENAL COMO CRITICA DA PENA na doutrina, complementa: «Na determinago de quem possui o dominio da colocagiio em perigo, 0 acontecimento que conduziu diretamente a0 ocor- rimento do resultado detém destacada importincia». No que conceme & anilise a ser feita do presente caso, isso corresponde plenamente & posiczo aqui defendida. Entretanto, a vinculago da colocagao em perigo que desen- cadeou 0 resultado com consideragées de dominio dé azo a mal-entendidos, Afinal, justamente no momento em que o resultado acaba por acontecer, aquele que coloca em perigo nao «domina» o desenrolar da colocacao em perigo. Pelo contrério, o dominio da situagao Ihe escapa. IV. SOLUGAO DO CONSENTIMENTO OU SOLUCAO DA IMPUTAGAO? Caso se considere, por conta do exposto, que a heterocolocacao em perigo consentida deva ser reconhecida como um grupo de casos auténomo € que ela seja claramente diferencidvel da autocolocacdo em perigo dolosa, surge a pergunta seguinte: deve ela ser tratada segundo as regras do consen- timento ou pode ela ser equiparada a uma autocolocacao em perigo dolosa, com a consequéncia de que uma imputagao ao tipo objetivo seria excluida? 1. A solugio do consentimento Apesar de reconhecer a heterocolocacao em perigo consentida como figura juridica auténoma, a jurisprudéncia trata-a segundo as regras do consentimento. Na prética acaba ela, portanto, incorrendo no mesmo erro dos autores que aplicam as regras do consentimento de forma direta, ou seja, sem fazer mengdo as consideragdes da heterocolocago em perigo (sobre isso, acima IL, no final). O BGH nao parece, entretanto, estar plenamente seguro da sua posico, pois menciona duas vezes que poderfamos estar diante de «uma heterocolocagao em perigo excepcionalmente equiparavel> a uma autocolocacdo em perigo,” o que teria como consequéncia a exclusio da imputagao ao tipo. Todavia, a ideia nao continuow a ser desenvolvida. Também as trés mais recentes manifestagdes sobre a nova decisio do BGH, as que MuRMANN e STRATENWERTH publicaram no livro de estudos em homenagem a PurPe (2011) a de DOLLING nos estudos em homenagem a Gerrert (2011), aplicam regras de consentimento, ainda que o fagam por motivos diversos, e que cheguem frequentemente a conclusdes distintas. Murmanw considera haver uma heterocolocacao em perigo consentida, mas nega a exclusio da imputaco ao tipo com o argumento de que isso «signi ficaria admitir a irrelevancia normativa da distingao entre auto- e heteroco- “ BGHS1, v. 53, p. 60; € praticamente com as mesmas palavras ao final da p. 61. a inio da > ocor. seme 3 >osigag desen. adidos, ontecer, #0 em slo em 6nomo, dolosa, onsen- dolosa, tuida? como ras do 10 erro vu seja, (sobre mente 5 estar wavel> clusio da. sto do los em gem a m por itintas. a, mas grupo amenie Perigo ‘incipal ambém Perigo gras. A tir em, noasi dano a > resul- vrispru- 1, nao é i lesdo, rréncia tanto, m final :aso de onivel. mando que se celui o espon- nicial- e pode tengao ocolo- ceita a nada 9 o teste as jure CLAUS ROXIN 575 dicas, listadas individualmente pelo BGH" cuja validade 0 consentimento do passageito no poderia afastar. Quem melhor sintetiza isso é Wetcenp,® quando diz. que 0 consenti- mento «no poderia referir-se & ago do agente, mas apenas & afetacZo do bem juridico objeto da conduta, ou seja, ao resultado em sentido amplo Como deveres de aco ¢ omissio ndo podem ser criados por individuos, mas apenas pela comunidade jurfdica, somente esta pode afastar 0 cumprimento deles... 0 individuo pode apenas fazer com que a agio nao se dirija a um “objeto proibido”». MuRMANN® tenta contomar essa consequéncia ao construir uma norma de conduta voltada apenas para a «protegdo da vitima»: «O consentimento suspende... a norma de conduta voltada para a protecdo da vitima no &mbito da relagio juridica concreta, 0 consentimento transforma, assim, um risco normalmente proibido em permitido», Com isso, entretanto, a norma de conduta de validade geral ¢ indivi- dualizada, com a consequéncia de que a conduta passa a ser, por um lado, permitida e, por outro, proibida. Ainda que se quisesse aceitar esse suposto «valor de ago» referido exclusivamente vitima, o problema da extensao do consentimento nao estaria superado. Afinal, enquanto aquele que consente nfo se conformar com a lestio do bem jurfdico, continuard a consentir apenas em uma colocaciio em petigo que nao conduza ao resultado, e nao no resul- tado em si. Que alguém, 20 mesmo tempo, proteja 0 seu bem juridico e deva ter consentido em uma ago que conduziré destruigdo dese bem, é uma contradigao inaceitivel. Por conta disso, deve-se evitar a relativizagaio da desaprovagio da conduta e manter a tese: A norma de conduta € estabelecida pelo legislador, ditige-se a todos € nio est A disposigao do detentor do bem juridico, que pode abrir mio do seu bem juridico, mas nao pode afastar a validade da norma de conduta. Uma conduta negligente permanece negligente, ainda que o prejudicado (atingido) tenha consentido nela. Nesse ponto também esbarram todas as solug6es que, mediante a existéncia de consentimento, negam a ilicitude da violagao de cuidado ou atestam a «adequacao social» da conduta do agente. Os contra-argumentos trazidos em favor da solucao do consentimento so pouco convincentes.* Acerca da questo do desvalor de ago eu jé me % BGHStv. 53, p. 58. 2 We1aeNo, ZStW 98 (1986), 70, n. 91 = Munsians, FS Puppe, p. 775 ss. % Frepuer, Zut Strafbarket, 1989, p. 16, é havia percebido que se procura «frequentemente 4 forma indtil por uma fundamentagio». Doutiva, FS Geppert,p. 59, resume os argumentos > 576 DIREITO PENAL COMO CRITICA DA PENA posicionei. Isoladamente também se argumenta que, ao se consentir com a heteracolocago em perigo, consente-se também com 0 resultado danoso, Assim diz Beutxe: «Soa simplesmente artificial e distante da realidade que aguele que consente com a colocagiio em perigo dos seus bens juridicos depois diga que no contava com a ocorréncia do dano». Acontece que € justo nessa concep¢o aparentementé distante da realidade que se apoia toda a distincao entre dolo eventual e culpa consciente: Quem coloca um bem juridico alheio em perigo age, caso algum dano ocorra, igualmente apenas de forma culposa se tiver confiado em um final feliz. E quem realiza uma perigosa excursio na montanha, ainda assim, néio conta com a prdpria morte. Distante da realidade nfio & a confianga de que a excursio na montanha acabaré bem, mas sim contar com a prépria morte. Srrantenwerti considera 0 consentimento na heterocolocagio em perigo «nfo muito consequente», entretanto questiona: «... Aquele a quem © consentimento € manifestado deve ser responsavel pelo resultado, caso perigo se transforme em resultado?». Porém, com isso se ignora que, com o repiidio A solugio do consentimento, nada ainda foi dito acerca da punibi lidade daquele que expe 0 outro a perigo. A solucao da imputagao (sobre isso IV, 2) possibilita a exclusao da tipicidade na heterocolocagdo em perigo consentida, sempre que isso for adequado. A mesma objegao aplica-se em relagdo & BRUNING," quando ela sustent «Quem quer aproveitar os ganhos ligados & conduta perigosa, deve também suportar os danos dela resultantes. Se 0 detentor do bem juridico especular de forma tal, que acabe por ter o bem lesionado contra suas expectativas, ele nJo pode reportar-se a tais expectativas para dizer que nZio queria 0 ocor- tido.» Quanto a isso ressalte-se: Os «custos» j4 so sempre suportados por aguele que se expde a uma heterocolocacao em perigo, pois, caso ocorra uma lesdo a bem juridico, serd ele 0 prejudicado. Caso se pretendesse, entretanto, incluir a punigdo Aquele que colocou em perigo nos «custos» do acontec mento, entio seria melhor afasté-la através de uma exclusio da imputagio do que através da «fieg%io»* de um consentimento. Ao principal argumento, de que 0 consentimento na heterocolocagio em perigo nao se deixa compreender como consentimento no resultado, mencionados na doutrina, dos quais, entretanto, nenhum & convincente, 5 Beuixe, FS Otto, 2007, p. 215. Straenwerr, FS Puppe, p. 1022. Bronte, ZIS 2009, p. 197. A classificago pejorativa «ficgo» encontra-se em toda a literatura critica do consen- timento; ef. jd em ScudNeMans, JA 1975, SIR 196, com referéncias a publicagbes ainda mi antigas, e também recentemente em Srexacnc-Lieses, Die objektiven, 1997, vor § 32 nm, te sc a i coma lanoso, de que depois > nessa stingao alheio ulposa sso na alidade as sim fo em quem caso 9 como >unibi- (sobre perigo stent imbém vecular as, ele » cor 9s por rauma tanto, onteci- go do reagio titado, CLAUS ROXIN 577 soma-se ainda o fato de a solugio do consentimento ser confrontada com a questo mais controversa: Se, ¢ mediante quais exigéncias, as objegdes ao Gonsentimento contidas nos §§ 216,228 do cédigo penal alemdo sao transpo- niveis para a leso corporal e homicfdio culposos. Enquanto tal transposigao é muitas vezes completamente negada pela doutrina, a jurisprudéncia, em decisbes antigas, reputou-a possivel, rechacando qualquer possibilidade de consentimento em relaco ao §§ 222 do eddigo penal alemao, e aplicando o § 228 do cédigo penal & lesio corporal.” Nas decisdes mais recentes sobre Jesdo corporal dolosa, das quais decorra um resultado morte, lé-se que 0 consentimento apenas esté exclufdo se, «a partir de uma perspectiva prog- néstica objetiva», houver um risco concreto de vida. Por tltimo, no caso do teste de aceleragio, 0 BGH estendeu tal raciocinio aos fatos culposos® e negou um consentimento vélido do passageiro, uma vez que ao menos a manobra de ultrapassagem teria implicado em um risco de vida conereto. No entanto, tal extenso é como as proprias hesitagdes no julgado demonstram, mais uma decisio arbitréria do que uma conclustio derivada dos §§ 216, 228 do cédigo penal alemdo. Em quais situacdes se pode consentir de modo a isentar de pena aquele que coloca em perigo € objeto de posicées to distintas, que a solugio do consentimento deve ser negada também por conta da imprecisdo dos seus parametros de deci Mas controverso nio € apenas se, e em que medida, existem riscos no passiveis de consentimento, Também em relagdo aos demais pressupostos de um consentimento valido hi opinides muito divergentes. A maioria dos autores exige, além da decisio livre daquele que consente, apenas 0 seu aconhecimento do alcance do acontecimento em questio».*! Por outro lado, Douivo® quer excluir a punibilidade por homicidio culposo em casos de heterocolocagao em perigo consentida que conduzam & ‘morte «apenas mediante a existéncia de um consentimento qualificado». Este Geveria entio existir «quando 0 valor da autonomia que a vitima manifesta através do consentimento e 0 valor do objetivo buscado com o fato supe- rarem o desvalor existente na colocagao em perigo». Esse critério certamente conduzird na maioria dos casos & punibilidade daquele que coloca em perigo. Prova disso é que, mesmo no caso Memel,® Doutinc quer punir o comandante do barco e s6 decidiria de outra forma caso «se tratasse, por exemplo, da % Referéncias ~ também ao desenvolvimento seguinte em, BGHSt ¥. 53, p. 62. © BGHSt, v. 33, p. 63-64 Nesse sentido, por sltimo, novamente, Stecteswers, FS Puppe, p. 1023 © Douuinc, Ga 1984, p. 71 ss, (71):¢ agora novamente, no mesmo sentido, em, FS Geppert, "CE, acima IL ape 578 DIREITO PENAL COMO CRETICA DA PENA visita ao pai, que padecia de uma doenga terminal, em seu leito». Utilizando essas premissas para analisar 0 caso Aids, Hetcertn® chega ao resultado de que, mesmo que 0 parceiro conhe¢a todos os riscos, a heterocolocacdo em perigo consentida somente pode ser considerada um consentimento vélido «no Ambito de uma relago matrimonial». No entanto, isso tudo nao pode ser sob hipétese alguma deduzido da dogmética do consentimento. Trata-se na verdade de aspectos da ponderacao entre bens e interesses encobertos pela construgdo do consentimento. O mesmo verifica-se na solucao de Murmany, que, por um lado, apoia-se no § 228 do cédigo penal alemao, mas, por outro, extrai dele conclusdes que nada tém a ver com a clausula de contrariedade aos bons costumes: Ele quer fazer a validade do consentimento «depender da liberdade da deciséo da vitima».* Esta decisio nfo seria livre quando aqueles que consentem até estivessem «plenamente esclarecidos acerca do risco e dos ganhos esperados da aco consentida, mas, na ponderacdo entre cles, se deixassem pautar apressadamente por certos motivos ou humores», Todavia, estes «déficits» ainda teriam de ser examinados, para determinar se teriam ou no «relevancia juridica». Esta, segundo MURMANN, nao existiria quando, p. ex., alguém «consentisse apressadamente com a demolicZo de uma casa velha». Ainda que se reputem essas consideragdes passiveis de discussio, 0 seu atrelamento 4 construgdo do consentimento nao convence. O proprio Muranw reconhece tratar-sede «uma dilatagao do contetido regulado pelo § 228 do c6digo penal alemio, que vai além do Ambito de aplicagao contido na redaco do pardgrafo».” Também isso conta de forma decisiva para que se discutam as exigéncias mediante as quais a heterocolocagio em perigo consentida pode isentar de pena como uma questiio de imputagio ao lipo, ¢ no como um problema de consentimento. A solugio da imputacio Eu havia proposto jé no ano de 1973 considerar a heterocolocagdo em perigo consentida como um caso de limitacdo ao mbito de protegiio clo tipo © excluir a imputagao ao tipo objetivo quando «a heterocolocagaio em petigo equivaler em todos os aspectos relevantes a uma autocolocagio em petigo» Trata-se, portanto, de uma aplicaco analdgica das regras da autocolocaeao em perigo autorresponsdvel, em relaco a qual a impunidade da contribuigao de terveiros € hoje aceita de forma praticamente unanime (cfm. acima Il). & Doria, GA 1984, p. 93. © Helgerth, NSIZ 1988, p. 263 ss. © Mursaws, FS Puppe, p. 784. © Mursaon, FS Puppe, p. 781 Roxw, JZ 2009, p. 252. izando. ado de Ho em vilido ade ser ase na 9s pela 2MANN, “outro, iedade pender quando tea do. > entre rores» inar se sistiria Ho de 'sd0, 0 6prio © pelo ontido ra que perigo tipo, e Zoem lo tipo perigo srigo», yeacao: auigéo na I). CLAUS ROXIN 579 Uma analogia como essa é evidentemente admissivel, uma vez. que ela gera efeitos favoraveis a0 agente. Ela também € natural, pois os dois casos sio Similares a ponto de no poucos autores tratarem a heterocolocagao em perigo consentida como um caso de autocolocagio em petigo (mais sobre isso em ID). Entretanto, conforme jé exposto, tal tratamento nao é correto, pois ha diferenca entre alguém se autocolocar em perigo ¢ se expor a um perigo criado por outrem: Aquele que consente em uma heterocolocagao em perigo tem um «poder de evitagio» menor (acima I); ele nao consegue avaliar a capacidade daquele que coloca em perigo de dominar 0 risco to bem quanto © proprio e tampouco € capaz de interferir no acontecimento na mesma medida em que aquele. Foi por conta disso que eu, desde o comeco, vinculei a analogia a certas exigéncias de equiparagio. Eu exigi para tanto, além do conhecimento do yisco e da anuéncia na conduta perigosa que ocasionou o resultado, que caquele que se expée a perigo tenha a mesma responsabilidade pela ago conjunta que tem aquele que coloca em perigo». Enquanto os dois primeiros critérios so incontroversos e também estio presentes na solucio do consentimento, o critério da responsabilidade equi- walente (Kriterium der gleichrangigen Verantwortlichkeit) precisa ser expli- cado. Eu me refiro a ele no seguinte sentido: Quem se expe a um perigo criado por outrem tem a mesma responsabilidade que este quando assume 0 risco por decisio propria e livre, ou seja, sem ter sido pressionado por aquele que coloca em perigo ou ter se submetido & vontade do mesmo. Mediante essas exigéncias, 0 mencionado menor poder de evitacdo do colocado em perigo € compensado pela incondicionada vontade de realizar a acd. sso fundamenta, portanto, diferentes avaliagdes se alguém pressiona um motorista incapaz de dirigir por ter consumido bebidas alcodlicas a deixé-lo entrar no carro, apesar da censura do motorista (»nio se preocupe, eu sou responsdvel por mim mesmo>) ou se pelo contririo é o motorista quem convence o preocupado passageiro (»ndo seja assim to medroso, eu 0 deixo em casa»), Eu equipararia 0 primeiro caso, se ocorresse um acidente ocasionado pelo consumo de élcool, a uma autocolocacdo em perigo autor- responsavel e consciente. Portanto, aqui resultado nio deveria ser impu- tado ao motorista. Por outro lado, no segundo caso uma lesiio corporal ou homicidio culposos deveriam ser afirmados. O critério da responsabilidade equivalente (gleichrangige Verantwor- tung) pelo acontecimento, amplamente preterido na doutrina,® detém um © Levrotn, Die Tathandlung, 2005, p. 123, exige inclusive ~ de forma excessiva ~ uma tesponsabilidade superior da vitima». que ele quer afirmar apenas quando aquele que coloca = 580 DIREITO PENAL COMO CRITICA DA PENA, papel de destaque na jurisprudéncia, ainda que a sua importancia dogmiti nunca tenha sido tematizada. Prova disso € o Tribunal do Império ter realcado Jno caso Meme” que o comandante do barco teria «alertado insistentemenie 0s viajantes acerca dos riscos da travessia, tentado dissuadi-los da ideia e se deixado apenas convencer contra a sua vontade apés imensa pressio dos viajantes, que questionaram a sua coragem. Entao, por bondade ~ para fazer um favor a eles —, colocou a sua propria vida em jogo». Uma situacio fética como essa deve ser equiparada a uma autocolocagio em perigo. Tivesse comandante do barco, entretanto, ignorado as ponderagdes dos viajantes para ganhar dinheiro (»quem arrisca ganha!>), teria sido certamente — e com razio! — condenado por homicfdio culposo pelo Tribunal do Império. Também no caso Aids, 0 BayObLG” ressaltou que a mulher que manteve relacio sexual desprotegida com um portador do virus da Aids teria sido «alertada diversas vezes pelo acusado acerca da sua infeceo, dos perigos de uma relacio sexual desprotegida, das possiveis consequéncias fatais de uma infecgao e da inexisténcia de uma possibilidade de cura». Ainda assim, a mulher teria «imposto ao acusado a sua vontade de manter relacao sexual desprotegida, ¢ este afastou tal exigéncia definitivamente a seguir», O tribunal decidiu entdo pela absolvigdo, fundamentando que se tratou «de uma decisio livre e autorresponsavel de autocolocacdo em perigo». Em virtude dos motivos acima expostos (Ill), deve-se afirmar, ao invés disso, a existéncia de uma heterocolocacao em perigo consentida. Esta deve ser, entretanto, equiparada em todos os aspectos relevantes a uma autocolocacaa em perigo. Assim, o tribunal esta inteiramente correto em sua decisio e em ter baseado a sua fundamentagdo na decidida intencao da mulher. relagdo sexual desprotegida tivesse partido do homem, e este tivesse se aproveitado do amor da sua namorada para satisfazer as suas vontades, quando diz: «O caso seria problemitico, Assim também o enxerga Puree,” se ele (isto é, 0 homem) tivesse feito algum tipo de pressio, algo como ter exigido dela a relagao desprotegida como prova de amor. Quem constrange um terceiro a se autocolocar em perigo viola em relagio a ele um dever de cuidado, mesmo que o constrangimento no atinja os niveis de um estado de necessidade, justificante ou exculpante». Eu expressaria isso de forma um pouco distinta, pois uma violagio ao dever de cuidado continua a existit quando a iniciativa parte da mulher e porque o requerimento de uma «prova de amor» no € um constrangimento em sentido juridico-penal. Mas estou em perizo for inimputivel ou tiver a imputabilidade reduzida, © RGSt, v.57. p. 174, 7 JR 1990, p. 473 5, (474), ” Puppe, ATT, 2002, § 6 nm. 7 i imitica ealgado emente ciae se 80 dos ra fazer 0 Fatica vesse 9 iajantes -ecom ler que la Aids fio, dos uéncias -Ainda relagdo eguir ‘ou ade >». Em 3 disso, ‘ve set, ocagéio oeem manter Bsse se ntades. nitico, omo ter strange ever de estado forma existir «prova 3 estou CLAUS ROXIN 581 de acordo com PUPP no que diz respeito & conclusto: Afinal, se o homem tivesse se aproveitado da afeicfo da sua namorada para pressioné-la a manter relagdo sexual desprotegida, a responsabilidade dele pelo acontecimento feria sido muito maior e ele teria sido corretamente condenado. Também no caso do pequeno vefculo transportador/pequena picapel yan em que um trabalhador que estava sendo transportado na cagamba do yefculo faleceu apds um acidente pelo qual o motorista nao teve culpa -, o OLG de Zweibriicken ressalta explicitamente que 0 motorista teria inicial- mente recusado-se a transportar a vitima, devido a auséncia de lugares.” ‘dndependentemente disso, X (ref. ao trabalhador) subiu na parte traseira do pequeno transportador e sentou-se... no chéo.» © OLG reconheceu, corretamente, a existéncia de uma heterocolocagio em perigo consentida, ¢ decidiu pela absolvicio do motorista, uma vez que, ao insistir em ser levado, 0 proprio acidentado assumiu o risco e foi responsavel pelo acontecimento. Em sua decisio mais recente, 0 caso do teste de aceleragaio, o BGH identificou acertadamente a existéncia de uma heterocolocacio em perigo consentida, mas a resolveu, conforme j4 exposto (IIe IV, 1), segundo as regras do consentimento; cuja validade foi negada por ter havido, ao menos em relagdo & manobra de ulirapassagem, um risco concreto de vida: «Com certeza havia um perigo desse género na realizacio da corrida, ainda mais, no momento em que dela fazia parte ultrapassar simultaneamente um carro nfo participante, A ultrapassagem gerou riscos nao mais controliveis para todos 0s integrantes do tréfego atingidos. Em um risco de vida tio massivo como esse, J. P. Sim. (ref. ao passageiro) néo podia consentir com efeito justificanten.* A decisio condiz com a posicao aqui detendida em relagdo ao resul- tado, mas néio a fundamentacZo. Afinal, deve-se partir do pressuposto de que todos 0s participantes estavam sim de acordo com o teste de aceleragaio em sie de que eram igualmente responsaveis por ele (0 passageiro ao lado do motorista deu o sinal de largada ¢ filmou todo o acontecimento), mas de que a anuéncia nfo se estendia & manobra de tripla ultrapassagem com alto graut de risco de vida.” Ainda que se quisesse estender a anuéncia a todos os perigos que acon- tecessem durante a corrida, 0 motorista seguiria tendo uma responsabilidade muito maior pela manobra de ultrapassagem que ocasionou o resultado. ® JR 1994, p. 518 ss. (518). % BGHSt, v.53, p. 64 % Rox, JZ 2009, p. 399 ss. (402); PuPvE, GA 2009, p. 486 ss, (496); cem, AT, 2 ed. 2011, § 6nm.9: Jacer, Examensrepetitorium AT, 4*ed. 2009, nm. 145b, p. 122. Sobre o julgado da instaucia precedente, no mesmo sentido, ReNaiee, Jurratio 2008. p. 8 ss. 582 DIREITO PENAL COMO CRITICA DA PENA ‘Também o BGH ressalta que os passageiros teriam sido meramente expostos ais consequéncias da conduta do motorista e que nio teriam tido a possibili. dade de afastar a colocago em perigo, a que foram submetidos, através de uma aco prépria.”* Isso reforca, portanto, a conclusio de que a condenagio de ambos os motoristas por homic{dio culposo era a decisao correta, Se, todavia, 0 passageiro que acabou por falecer tivesse tido a mesma responsabilidade pela manobra de ultrapassagem de que o motorista do carro em que estava — portanto caso ele, p. ex., 0 tivesse incitado a fazer a manobra € 0 tivesse apoiado durante a mesma -, a heterocolocacdo em perigo consen- tida deveria conduzir & exclusio da imputagao, ao contrario do que supse © BGHL E assim 0 é, pois ela ento se equivaleria a uma autocolocagao em perigo autorresponsdvel e a contribuicao a esta é também impuntvel, quando © perigo resulta em mort. A concepgdio que aqui se expds e ilustrou por meio de exemplos perma- neceu inobservada pela maioria dos partidérios da teoria do consentimento € dos defensores da equiparagio radical, mas, por outro lado, encontrou um niimero considervel de adeptos. E 0 caso de Fiepier” que, em um trabalho monogréfico, procura «estender argumentativamente... as ideias fundamen- tais de Roxin» e «acrescentar tijolos... ao edificio de ideias, cuja fundagao foi dada por Roxt». Ele extrai tais complementagdes (com alguma razio) das doutrinas da vitimodogmatica, e também inclui as por mim mencionadas «exigéncias de equiparagio» em sua solucao.”* Da mesma maneira procede Escuweier,” que une os meus critérios de equiparacdo a uma solugdo de consentimento. NieperMatr,® por sua vez, diz: «A solugdo acertada conduz, por intermédio da heterocolocacdo em perigo consentida, & exclusiio da imputagdo objetiva...». para a qual ele introduz todas as exigéncias por mim mencionadas. Na jurisprudéncia, o OLG de Zweibriicken adotou, no diversas vezes mencionado caso da pequena van," explicitamente a solugio por mim proposta: «A responsabilidade pelas consequéncias de uma heterocolocacio em perigo consentida esté entio encerrada, quando esta equivale em todos 68 aspectos relevantes a uma autocolocacio em perigo... isso ocorre quando: Aquele colocado em perigo esté ciente do a medida em que aquele que coloca em perigo, o dano é consequéncia do risco assumido e nao de outros erros do autor, € 0 colocado em perigo detém a mesma responsa- * BGHSt v.53, p.61. Freover, Zar Strafbarkeit, 1989, p. 97. * Fiepue, Zur Strafbarkeit, 1989, . 97. Escinveiler, Beteitigung an fremder Selbstgefhrdung % Nirperatt, K6rperverlerzung, 1999, p. 121 8 JR 1994, p. 5195. 1990, p. 52. Stos bili Sde sma obra sen Doe ido res aim dos doz que nao asa CLAUS ROXIN; 583 pilidade pela aco conjunta do que aquele que coloca em perigo». Nao est renamente claro s¢ © OLG tenta, como acredita Dousa," «acrescentar as Ponsideragées de Roxtw & doutrina do consentimento>,® mas este poderia fealmente ser 0 objetivo. Também LaRsson* apoia-se na minha formula de quiparagao, citada pelo OLG de Zweibriicken,§ para comentar a decisio do BGH sobre o teste de aceleracao. Nos comentarios ao cédigo penal alemdo, a solugio da imputagdo goza de crescente prestigio, STensero/LicoeN® conclui que «se deveria continuar a pensar a respeito da solugao da exclusto da imputacao objetiva». Ele quer excluir a imputaciio, com base nas minhas consideragées, «quando a hetero- colocagdo em perigo consentida puder ser equiparada juridicamente a uma autocolocagao em perigo», ponto no qual também faz referéncia ao critério da responsabilidade equivalente pelo acontecimento. Da mesma forma manifesta-se RONNAU, no comentirio ao cédigo penal alemao que expde 0 problema de forma mais completa.” Ele ressalta que «uma solugdo diversa do consentimento precisa ser encontrada»,* refere-se as diferentes propostas de solugio, mas define 0 critério aqui desenvolvido para a exclusio da imputagio como «ponto de partida».” E impossivel discordar do resumo do seu posicionamento, quando ele diz: «E & solugio da imputacio — cujos detalhes ainda tém de ser precisados — que tem futuro na dogmitica juridico- penal. Bla elenca através da autorresponsabilidade 0 prinefpio de imputacio aplicivel, evita os problemas metodolégicos da solucdo do consentimento & com isso ainda néo é forgada a modificar as regras do mesmo». Do Ambito dos grandes manuais, mencione-se JaKons,” que declara seguir «Roxin em relago ao principab». A despeito disso, as manifestagdes mais recentes sobre 0 tema ~ 0s jé diversas vezes mencionados artigos de Steatenwert, MurMaNN ¢ DOLLING — retomam a solugao do consentimento, negam os meus critérios de equipa- ragiio e chegam a conclusées e a fundamentacdes completamente divergentes entre si. A controvérsia, portanto, ainda nfo esté decidida. Em decorréncia © Douve, em sua manifestacio, JR 1994, p. 520 s. (521). © OOLG—na jé ctada fonte, p. 519 ~ quer incluir «as consideregdes desenvolvidas... para ‘oconsentimento justificante», quer dar a elas, entretanto, «outra relevancia © Lassox, ZIS 2009, p. 366. % Contudo, efe quer afirmar, no caso concreto, uma equiparagdo & autocolacago em perigo, ZS 2009, p. 367. * ” Srensuene-Liesen, Die objektiven, 1997, vor §§ 32 FE. nm. 106. Roxnats, LK, 2006, vor § 32 nm. 167 ss Rownav, LK, 2006, vor § 32 nm. 168 ao final ‘Aqui e sia seguinte: Ronnay, LK, 2006, v Jaxons, AT, 2* ed. 1991, 7/129, n, 199. 32am, 169. = 584 DIREITO PENAL COMO CRITICA DA PENA disso e das multiplas imprecisées na jurisprudéncia, a discussai levada adiante. precisa sep STRATENWERTH” inclina-se no caso do teste de aceleragio (BGHSt 53, 55) a absolver o motorista das acusagées de homicfdio culposo; e de resto tampouco quer reconhecer diferengas na responsabilidade, como as que ey demonstrei através dos varios exemplos de casos: «Em lugar algum... existe uma fundamentagao de por que essas citcunstancias devam ser levadas em conta, Afinal, trata-se da relacao entre dois adultos capazes de decidir, que podem simplesmente optar de forma livre por empreender algo perigosg juntos». No entanto, assim como € incontroversa a existéncia de diferencas a serem levadas em conta em relacio ao conhecimento do risco, existem diferencas em relagao a liberdade de aco e & responsabilidade pelo aconte- cimento que tampouco podem ser ignoradas no mbito de uma equiparagio analégica. Nao foi por coincidéncia que, nos casos Memel, Aids e do pequena van, os tribunais trouxeram, com sensibilidade digna de nota, a responsabili- dade preponderante pelo acontecimento daquele que foi colocado em perigo para o centro de suas argumentagdes ~ independentemente das construgties dogmaticas pelas quais optaram. Ao dizer, por fim, que a diferenciacao entre graus de responsabilidade seria uma questio «a ser resolvida pelos tribunais que analisam matéria de fato», ¢ que seria praticamente inconcilidvel com a proibicao de indetermi- nagiio, STRATENWERTH ignora que, nos casos Memel, Aids e da pequena van, aresponsabilidade equivalente do colocado em perigo estava completamente clara. Também a responsabilidade equivalenie de todos os participantes pelo teste de velocidade em si pode ser io pouco questionada quanto a respon- sabilidade exclusiva, ou a0 menos muito maior, dos motoristas pela ultra- Passagem que resultou em morte. A distribuigo de responsabilidades nio oferece, portanto, dificuldades maiores do que as oferecidas por qualquer outro esclarecimento fitico. Miran bascia-se do mesmo modo na solugio do consentimento, mas vineula, conforme jé exposto (no final de IV, 1), a validade do consentimento a «liberdade de decisio da vitima» (Freiheitlichkeit der Opferentscheidung), Isso 0 leva a enxergar, em oposicdo a0 BGH e & posicio aqui defendida, um consentimento vélido no caso do teste de aceleragao.” Ele fundamenta tal posigao no fato de que o passageiro «nao apenas estava ciente dos tiscos», como também «tomou uma decisio valorativa consciente em favor de se % Stearenwerrti, 'S Puppe, p. 1021 McrMaxx, FS Puppe, p. 788; sobre Einwilligung in die Lebendorganspende, so de forma completa, Farei-Mocnapam, Die 8. p. 126 ss ta ch ecisa ser JHSt 93, de resto S que eu existe adas em idl, que perigoso ferengas existem » aconte- iparagio pequena onsabili- n perigo wstrugd \bilidade atéria de determi- ena van, stamente ates pelo «respon sla ultra- ades nao qualquer nto, mas atimento veidung). dida, um nenta tal scos>, or de se apa, Die CLAUS ROXIN 585 expor aos miesmos». Entretanto, nesta argumentagdo passa despercebido que Gesas consideragdes somente aplicam-se ao teste de aceleragio em si, mas fio A manobra de ultrapassagem, que criou um risco de vida adicional e, portanto, nZo abarcado pela anuéncia iniciaimente manifestada, Independentemente disso, © critério da «liberdade de decistio da vitima>, que MURMANN acrescenta aos requisitos de um consentimento valido {sobre isso IV, 1), acaba por se aproximar da por mim preferida exigéncia de responsabilidade equivalente pelo fato. Tal é assim, pois a responsabilidade equivalente decorre justamente de que a anuéncia do colocado em perigo tenha partido de uma decisao livre e prépria, sem a pressdo ou 0 convenci- mento por parte daquele que colocou em perigo. MurMann rechaga a minha proposta,” pois a equivaléncia de respon- sabilidade encontra-se «em um estdgio anterior ao acontecimento relevante para o tipo». Masesta responsabilidade €, conforme demonstram os exemplos extrafdos da jurisprudéncia, decisiva para que 0 acontecimento que conduz ao dano sequer ocorra, além de ser um elemento essencial para a realizaco do acontecimento como um todo. Por conta disso, ela ndo pode ser irrele- vante para a equiparacao a uma autocolocagdo em perigo. Como as minhas consideragdes aos argumentos de SrratenwertH j4 evidenciam, tampouco & correto dizer que, mediante a aplicagio dos meus critérios, «a condenagao ficaria dependente de consideragdes simplérias, excessivamente imprecisas e, além disso, distantes do tipo». Pelo contrario, a decisio nos exemplos extraidos da jurisprudéncia aqui expostos € clara e inequivoca. ‘Nao obstante, as criticas feitas por MurMann parecem-me muito mais aplicdveis aos proprios pardmetros por ele desenvolvidos para determinar 0 «déficit» que exclui um consentimento vélido. Segundo ele:* «Trata-se. daqueles déficits especialmente presentes em decisdes tomadas no dmbito de tum humor momentineo. Decisdes que, ap6s uma ponderacdo mais detida, nao seriam mantidas pela propria pessoa que as tomou. Porém, tais dec sbes - eventualmente apressadas ~ encontram-se da mesma forma em um esidigio anterior ao do acontecimento que coloca em perigo. Ademais, niio hd resposta para a pergunta hipotética de como alguém teria decidido caso tivesse «ponderado mais detidamente»; sem contar que, perante a manifes~ taco de uma decisio defendida de forma séria e aut6noma, tal pergunta 6 também irrelevante. Quando um empreendimento arriscado nao acabar bem, chegar-se-A facilmente & conclusfio de que uma «ponderagao mais detida» Mussans, FS Puppe, p. 786 n. 89. Do.unc, FS Geppert, p. 57, concorda com Murstaxn nesse ponto, mas, apoiado na sua construgio do consentimento acima mencionada, afirma um. homicidio culposo. ™ MurMasn, FS Puppe. p. 784. a 586 DIREITO PENAL COMO CRITICA DA PENA teria levado os patticipantes a evitar 0 risco. Mas posteriormente sempre se € mais prudente, Decisivo pode apenas ser se, antes e durante a realizagio dg agio perigosa, 0 colocado em petigo assumiu a responsabilidade por esta na mesma medida em que aquele que a realizou. Quando MuRMANN quer ainda avaliar a «relevancia juridica» das decisdes por ele chamadas de «deficits. rias», o critério se torna de todo imprevisivel. Deve-se, portanto, permanecer com a solu objetiva e fazer com que esta dependa dos critérios de equipara neados, facilmente aplicaveis. da exclusio da imputagao 10 ora deli-

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