Você está na página 1de 85

Gustavo Razzera

Pornografia e Polı́tica

Porto Alegre, RS
Junho, 2016
Gustavo Razzera

Pornografia e Polı́tica

Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS


Faculdade de Filosofia
Programa de Pós-Graduação em Filosofia

Orientador: Dr. Felipe Gonçalves Silva

Porto Alegre, RS
Junho, 2016
CIP - Catalogação na Publicação

Razzera, Gustavo
Pornografia e Política / Gustavo Razzera. -- 2016.
84 f.

Orientador: Felipe Gonçalves Silva.

Dissertação (Mestrado) -- Universidade Federal do


Rio Grande do Sul, Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Porto
Alegre, BR-RS, 2016.

1. pornografia. 2. igualdade sexual. 3. liberdade


de expressão. 4. filosofia política. I. Silva, Felipe
Gonçalves, orient. II. Título.

Elaborada pelo Sistema de Geração Automática de Ficha Catalográfica da UFRGS com os


dados fornecidos pelo(a) autor(a).
à Marianne
Agradecimentos

Ana, que falou comigo ao telefone no dia 7 de junho de 2013 e que sugeriu o tema deste
trabalho. Pertille, que me recebeu na UFRGS e conversou sobre liberdade no momento
mais crucial. Felipe, que encarou o projeto e foi amigo nos parques e nos bares. Alfredo,
que perguntou se eu voltava para ir adiante, e eu respondi que sim, e acreditou em mim.
Fabricio, Laura e Bruno, que tocaram comigo as disussões no grupo de gênero e filosofia
da PUCRS. Norberto e Alexandre, que viram o meu lado. Guilherme e Aline, que me
emprestaram dinheiro. Meus colegas e novos amigos do seminário de Filosofia do Direito,
que me explicaram as coisas novas. Meu grupo de teatro e a turma da fotografia alternativa
e independente, que no decorrer desta pesquisa possibilitaram que eu não deixasse a arte
faltar à reflexão. Mariana, que segurou a barra.
Reflexão e arte
Resumo
A pornografia foi apresentada como problema polı́tico por uma ramificação anti-porn do
feminismo no final dos anos 1970 nos EUA. Esse grupo rompeu com o feminismo liberal
e com perspectivas liberais de igualdade sexual ao tratar radicalmente a excitação sexual
masculina como uma forma de subordinação da mulher e discriminação sexual, dadas
condições especı́ficas sob as quais a excitação era concebida como danosa. Mas essas
condições, do modo como foram definidas por esse grupo, eram muito amplas. Quando
interpretadas, poderiam ir de situações de tortura e estupro reais até a leitura da Ilı́ada.
Essa definição foi codificada em lei por Catherine MacKinnon nos anos 1980, mas re-
jeitada pela Suprema Corte como tentativa de censura de conteúdo, uma violação da
liberdade de expressão. Da perspectiva anti-porn, a Suprema Corte decidiu que a liber-
dade de expressão era superior à igualdade sexual, e que a pornografia poderia continuar
a subordinar as mulheres aos homens. O problema polı́tico que encontramos aqui é o
problema de como equilibrar liberdade e igualdade, de modo que as pessoas sejam trata-
das com igualdade sem ter sua liberdade violada. Apresentamos uma crı́tica liberal, de
Ronald Dworkin, à posição anti-porn. Ela é uma defesa singular da pornografia, pois não
apela à liberdade de expressão, mas sim ao próprio direito à igualdade. A pornografia
é defendida como um importante modo de vida para muitas pessoas que têm diferentes
perspectivas sobre o valor e o significado da prática pornográfica. Elas têm um direito à
independência moral, que a definição anti-porn de pornografia viola, pois tenta atribuir
tanto o valor como o sentido da prática sem consideração pelos valores e sentidos que
pessoas de fato envolvidas na pornografia dão a ela. A liberdade de expressão é concebida
como necessária a esse processo de dar valor e sentido a uma atividade. Segundo essa
concepção, liberdade não conflita com igualdade, porque, para que sejam tratadas com
igualdade, as pessoas devem ser livres para expressar, através de suas vidas, diferentes
valores e sentidos, que por sua vez devem ser respeitados em decisões polı́ticas que as
afetam. A posição liberal deixa aberta a possibilidade de reformar a pornografia, de as
pessoas reinventarem a pornografia do modo como for adequado às suas vidas em sua
presente situação, enquanto a anti-porn não deixa, pois concebe a pornografia de um
modo único e fixo. A principal critica liberal da posição anti-porn, portanto, não é sobre
seu conteúdo, sobre o que feministas anti-porn dizem que a pornografia seja ou faça, mas
ao modo como elas tratam as pessoas, que é sem respeito pelo sentido de suas atividades
e pelo valor que estão tentando dar às suas vidas através da pornografia.

Palavras-chave: pornografia. igualdade sexual. liberdade de expressão. filosofia polı́tica.


Abstract
Pornography was introduced as a political problem by the anti-porn branch of feminism
in the late 1970’s in the USA. This group broke with liberal feminism and liberal perspec-
tives on sexual equality when they radically treated male sexual excitement as a form of
women subordination and sex discrimination, given specific conditions under which the
excitement was conceived as harmful. But those conditions, the way they were defined
by this group, were very broad. When interpreted, they could go from actual situations
of torture and rape to the reading of the Iliad. This definition was codified into law by
Catherine MacKinnon in the 1980’s but rejected by the Supreme Court as an attempt of
content censorship, a violation of freedom of expression. From the anti-porn perspective,
the Supreme Court decided that freedom of speech was superior to sex equality, and that
pornography could continue to subordinate women to men. The political problem that
we find here is the problem of how to balance liberty and equality, so that people can
be treated with equality while not having their freedom violated. We present a liberal
critique, by Ronald Dworkin, of the anti-porn position. It’s a singular defense of pornog-
raphy, as it does not call for freedom of expression but for the right to equality itself.
Pornography is defended as an important way of life for many people that have different
perspectives on the value and meaning of the pornographic practice. They have a right
to moral independence, which the anti-porn definition of pornography violates as it tries
to give both the value and the meaning of the practice without concern for the value
and meaning people actually involved in pornography give to it. Freedom of expression
is conceived as necessary for this process of giving value and meaning to an activity. In
that sense, liberty does not conflict with equality, because for people to be treated with
equality they should be free to express, through their lives, different values and mean-
ings, which in turn should be respected in political decisions affecting them. The liberal
position leaves open the possibility to reform pornography, for people to reinvent pornog-
raphy as they see fit for their lives in their present situation, which the anti-porn does
not, since it conceives pornography in a single and fixed way. The main liberal critique
of the anti-porn position, thus, is not about it’s content, about what anti-porn feminists
say pornography is or what pornography does, but the way they treat people, which is
without respect for the meaning of their actvity and the value they are trying to give to
their lives through pornography.

Keywords: pornography. sexual equality. freedom of speech. political philosophy.


8

Sumário

Sumário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
1 A pornografia como problema polı́tico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22
1.1 O projeto de uma teoria feminista unificada . . . . . . . . . . . . . . . . . 22
1.2 Elementos da teoria de gênero de MacKinnon . . . . . . . . . . . . . . . . 24
1.2.1 Descrição da situação da mulher – a questão ontológica . . . . . . . 25
1.2.2 Método de formação da perspectiva da mulher – a questão episte-
mológica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
1.3 O rompimento com o feminismo liberal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30
2 A pornografia no debate constitucional . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36
2.1 A epistemologia masculina no judiciário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36
2.2 O projeto de lei anti-porn . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43
2.3 O “argumento da subordinação” fora dos tribunais . . . . . . . . . . . . . 52
2.3.1 A pornografia é um ato (sexual, violento e de dominação) . . . . . . 53
2.3.2 O significado de sexualização e seu papel no “argumento da subor-
dinação” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56
3 A pornografia defendida politicamente . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60
3.1 Como defender a pornografia? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62
3.2 O direito à independência moral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66
3.3 Em nome de quê defender a independência moral? . . . . . . . . . . . . . . 70
3.3.1 O fato de vivermos em um mundo plural . . . . . . . . . . . . . . . 70
3.3.2 Uma moralidade aberta e um projeto de vida que seja autêntico . . 71
3.3.3 O artista como modelo de sujeito que unifica ética e moral . . . . . 73
3.3.4 Uma questão de respeito e de responsabilidade no debate polı́tico . 75
Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 78

Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 82
9

Introdução

Durante a Revolução Francesa, la Marianne foi um codinome usado pelos revolucionários


para se referirem à República. A revolução popular escolheu dar nomes também populares
à República, muitas vezes chamando-a pelo nome composto “Marie-Anne” em suas cor-
respondências e até canções. Ela é um simbolo da liberdade, da democracia e da oposição
a toda forma de opressão. Marianne é uma personificação da ideia de Liberdade e um
sı́mbolo da República Francesa que pode ser encontrado, entre outros lugares, gravado
em moedas ou na forma de bustos exibidos em tribunais e prédios públicos por toda a
França. Na França, as estátuas de “Marianne” sempre foram criadas a partir de modelos
anônimas. O anonimato das modelos deveria reforçar a ideia de que toda Maria, toda
Ana, é a República – uma República popular, conquistada pelo povo que lutou, como
irmãos em armas e ideais, por liberdade e igualdade. Isso até o ano de 1969, quando
a modelo escolhida foi Brigitte Bardot1 que, por coincidência, se chama Brigitte Anne-
Marie. O que não é coincidência em Brigitte Bardot, a BB, ter virado Marianne da França
em 1969 é que há mais de uma década ela já vinha chamando a atenção e intrigando o
público francês devido à ideia de liberdade que se encarnava na personagem vivida por
ela. Uma liberdade, entretanto, também em disputa.
Em 1959, no ensaio Brigitte Bardot e a Sı́ndrome de Lolita 2 , Simone de Beauvoir
analisou o fenômeno BB. Bardot, na virada dos anos 1960, é amada e odiada. Por um
lado, ela leva multidões ao cinema para se deixarem hipnotizar e inspirar pela despretensão
do erotismo que ela propõe e, como Beauvoir conta, “recebe trezentas cartas de fãs por
dia, tanto de garotos como de garotas”3 . Por outro lado, “todos os dias, mães indignadas
escrevem para os editores de jornais e para autoridades civis e religiosas para protestar
contra sua existência”4 , como no caso da Associação de Pais e Mestres que correu para
denunciá-la após três garotos de “famı́lias de respeito” terem assassinado um idoso que
dormia em um trem na cidade de Angers, onde havia sido exibido o recente filme de BB
E Deus criou a mulher, porque, Beauvoir continua, “foi ela, disseram eles, a verdadeira
responsável pelo crime”5 . Os jovens teriam sido pervertidos pelo filme, ou seja, por
Bardot, e assim levados a cometer um assassinato. Pensando assim, Beauvoir diz que
não se surpreende por “moralistas profissionais em diversos paı́ses, inclusive nos Estados
Unidos, terem tentado banir seus filmes. Não é novidade pessoas de espı́rito elevado
identificarem a carne ao pecado e sonharem em fazer uma fogueira com obras de arte,
1
SOHN, A. M. Marianne ou l’histoire de l’idée républicaine aux xixème et xxème siècles à la lumière
de ses représentations. 2004. Disponı́vel em: hhist-geo.ac-rouen.fr/doc/bls/2004/marian.pdfi.
2
BEAUVOIR, S. d. Brigitte Bardot and the Lolita syndrome. New York, NY: Esquire Magazine, 1959.
3
Ibid., p. 6 – As traduções das citações são minhas.
4
Ibid., p. 6.
5
Ibid., p. 6.
Introdução 10

livros e filmes que a representam com complacência ou honestidade”6 .


Certamente não queremos que idosos sejam covardemente assassinados, ou de
forma alguma assassinados, e que seus assassinos fiquem impunes. Mas Bardot estaria
causando essa violência? Como? Existe uma relação causal relevante entre a liberdade
sexual e a violência, é isso? Então precisamos combater a liberdade sexual para acabar
com a violência. Não, não é isso. Ao final do ensaio, Beauvoir conclui que o conflito não
diz respeito à violência, e sim à moral, mas um conflito moral com implicações polı́ticas
e filosóficas. De um lado estão “aqueles que querem costumes fixados de uma vez por
todas”7 e de outro “aqueles que exigem que eles evoluam”8 . Para Beauvoir, a imoralidade
e o perigo encarnados na personagem BB são melhor compreendidos como um desafio a
“certos tabus aceitos pela geração precedente, particularmente aqueles que negam auto-
nomia sexual à mulher”9 .
Portanto, a tentativa de tirar BB de cena para combater a violência não teria
a violência como alvo, mas sim a moral. O atentado contra a vida de um idoso em um
vagão de trem não seria a verdadeira preocupação daqueles que acusam BB. Eles estariam
preocupados com um atentado contra a moral vigente, que Beauvoir não chamaria de
atentado, mas sim de desafio. O que cada lado está defendendo, então? Se não é a
segurança e a vida de idosos indefesos que está em questão, o que esse atentado ou, esse
desafio, estaria colocando em risco? Para Beauvoir, estariam em risco tabus que negam
autonomia sexual à mulher. Tabus são um tipo de preconceito, justamente o tipo de coisa
que nos prejudica o conhecimento da verdade por estarmos proibidos de tocar em certos
assuntos. Então qual o problema de acabar com um tabu? É que os tabus em questão
têm consequências polı́ticas e conferem vantagem a um grupo de interessados. Trata-se
da ideia de que a mulher é dependente do homem.
Beauvoir comenta a diferença de recepção na França e nos Estados Unidos da ideia
de emancipação sexual simbolizada por BB:

Na França, ainda é dada muita ênfase, oficialmente, à dependência da


mulher em relação ao homem. Os americanos, que na verdade estão
longe de terem atingido a igualdade sexual em todas as esferas, mas
que a concedem teoricamente, não viram nada de escandaloso na eman-
cipação simbolizada por BB. Mas é, mais do que qualquer outra coisa,
a sua franqueza que perturba grande parte do público e que encanta os
americanos. (BEAUVOIR, 1959, p. 58)

Haveria, então, um conflito entre grupos que, de um lado, se beneficiam da ideia de


que a mulher não tem total autonomia, especialmente a autonomia para viver sua própria
sexualidade, e de outro lado, grupos que defendem a ideia de que essa situação deve mudar
– por isso seu desafio dirige-se aos tabus que preservam essa situação e que não permitem
6
Ibid., p. 6.
7
Ibid., p. 58
8
Ibid., p. 58
9
Ibid., p. 58
Introdução 11

que ela evolua para um novo estado, de maior autonomia. Na França, onde a ênfase
maior estaria na dependência da mulher, essa maior autonomia representaria também
maior igualdade entre mulheres e homens. Nesse caso, maior igualdade para, livremente,
viver a sua sexualidade. E comparando com a situação da mulher nos Estados Unidos,
Beauvoir aponta uma diferença no modo como os americanos receberam Bardot e que
não estava especialmente relacionada à desigualdade sexual.
A igualdade sexual já estava na pauta polı́tica dos Estados Unidos na época em
que Beauvoir escreve. De fato, alguns anos depois, em 1963, o Congresso norte-americano
aprovaria a emenda que proibiria diferenças de salário por trabalhos iguais com base no
sexo (Equal Pay Act) e, na virada para os anos 1970, quando Bardot foi modelo para
a Marianne, os americanos já desfrutariam das conquistas do Movimento pelos Direitos
Civis, que resultou no Civil Rights Act de 1964, que criminalizou a discriminação racial,
religiosa e sexual. É importante observar essa caracterı́stica do ambiente polı́tico norte-
americano para entender o que parece ser, mais propriamente, a crı́tica de Beauvoir ao
comportamento dos franceses, que ela chamou de “moralistas de plantão”. É que, apesar
de a igualdade sexual ainda não atingir todas as esferas da vida dos americanos, como disse
Beauvoir, ela ao menos estava concedida teoricamente, ou seja, como ideal polı́tico que
já integrava a agenda de partidos e movimentos civis. Como a pauta da igualdade sexual
já havia entrado na agenda polı́tica dos Estados Unidos, a Brigite Bardot emancipada
sexualmente não afrontou, enquanto proposta polı́tica, os americanos.
Ainda assim, o conteúdo de sua proposta não deixou de perturbá-los. A franqueza
da exposição da ideia foi perturbadora, mas ao mesmo tempo, essa mesma franqueza era
o encanto dos americanos. Por isso a diferença de recepção que Beauvoir aponta pode
ser vista no modo como franceses e americanos trataram o conteúdo do desafio proposto
por Bardot. Apesar de os dois paı́ses não viverem uma situação de plena igualdade
sexual, seja oficial ou extraoficialmente, o que os diferenciava era sua reação ao conteúdo.
Talvez essa seja uma tentativa de Beauvoir de forçar um contraste entre um aspecto da
polı́tica dos americanos e dos franceses, possivelmente para explicitar sua reprovação ao
comportamento que prevalecia na França naquela época. Grosso modo, os franceses que
admiravam e valorizavam o conteúdo dos filmes de Bardot corriam para os cinemas e lhe
escreviam cartas admirados, enquanto aqueles que se chocavam com o conteúdo corriam
para a polı́cia. É claro que entre os americanos que se chocavam com o conteúdo havia
também “moralistas de plantão” que protestavam contra Bardot. Vou seguir a trilha dessa
oposição, talvez forçada por Beauvoir, para chegar ao que parece ser a questão polı́tica
central dessa crı́tica, que é a importância da liberdade de expressão que permeava a
cultura polı́tica nos Estados Unidos e que seria deficiente na cultura dos franceses.
O que Beauvoir quer destacar é o comportamento daqueles que ainda encontravam
espaço para se encantarem com o desafio. O conteúdo desse desafio pode ser resumido,
continuando a conclusão de Beauvoir, na declaração de Bardot, que ela cita: “Eu quero
Introdução 12

que não haja hipocrisia, que não haja nonsense sobre o amor”10 . Por ser uma proposta
que desafia um tabu, especialmente relacionado ao amor e ao erotismo, Beauvoir entende
que a ameaça que ela representa tem consequências de proporções maiores do que as que
aparentemente poderiam ser reconhecidas. Entretanto, para Beauvoir, a ameaça maior
vem do próprio ato de questionar. “Um olhar sincero”, ela diz, “por mais limitado que
seja seu escopo, é um fogo que pode se espalhar e reduzir a cinzas todos os disfarces
enxovalhados que camuflam a realidade”11 . Então, se há algum efeito dominó decorrente
de uma desmistificação do sexo, esse efeito não é uma sequência de catástrofes, mas sim,
para Beauvoir, uma sequência de aprendizagens sobre a realidade em que vivemos – nesse
caso, a realidade não camuflada da experiência sexual feminina, da qual se seguiriam
outras descobertas iniciadas por essa, que têm origem no sujeito e que, por isso, faz dessa
sequência de aprendizagens uma experiência pessoal de descoberta.
O público americano, como contou Beauvoir, perturbou-se também, afinal de con-
tas, com o que viu. Diferentemente de alguns franceses, o público norte-americano, mesmo
perturbado – seja com a honestidade ou com a possibilidade de a proposta de vida em
cena se tornar a realidade vivida pelas mulheres –, conseguiu desfrutar da pergunta, do
desafio que apontava para uma possibilidade de verdade em um mundo não totalmente
conhecido. É a diferença entre o “não” e o “por que não?”, que Beauvoir apresenta nos
termos de uma oposição entre crianças curiosas e adultos interessados em preservar o
estado de coisas que, devemos ao menos supor, favorece-lhes de algum modo que lhes
estimula a reagir contrariamente à possibilidade de que sua situação privilegiada seja
alterada. Beauvoir diz:

As crianças estão eternamente perguntando por quê, por que não. Dizem
a elas que fiquem em silêncio. Os olhos de Brigitte, seu sorriso, sua
presença, impele-nos a perguntar por quê, por que não. Vão passar
apressados por cima das questões que ela levanta sem dizer uma só
palavra? (BEAUVOIR, 1959, p. 59)

Apressar-se em uma questão é não discuti-la, o que pode até significar não enxergá-
la. Mas isso não parece ser o que preocupa Beauvoir. O problema é passar apressadamente
por cima de uma questão, é ser simplista no seu tratamento antecipando um “não” como
resposta, silenciando a discussão. Se são os olhos e o sorriso de Brigitte que estão fazendo
a pergunta, se eles são a causa da ameaça à situação que deve ser preservada, então eles
serão sumariamente negados, tirados de cena tão logo subam ao palco ou, ainda mais
apressadamente, antes mesmo de se apresentarem. Essa é a preocupação com a liberdade
de expressão – peça-chave na constituição de qualquer Estado democrático moderno –, e
com os riscos decorrentes da censura, de suas consequências polı́ticas e sociais.
Censurar é pior do que não olhar para um problema, do que não percebê-lo, e é pior
do que se apressar em dizer sim ou não como resposta, porque a censura antecipa o “não”.
10
Ibid., p. 58
11
Ibid., p. 58
Introdução 13

Antecipar a resposta significa não discutir o problema, por isso esse “não” não pode ser
considerado nada além de uma das possı́veis opiniões sobre o problema, um dos lados da
verdade. Antecipando o “não”, estamos em uma situação pior do que a de quem passa
rápido pela questão – ponderando pouco ou deficientemente sobre suas possibilidades –,
porque mesmo quem pouco discute ainda assim viu um outro lado da verdade.
O conhecimento da verdade é a motivação por trás da defesa liberal clássica da
liberdade de expressão. A defesa de Beauvoir tem essa mesma justificativa de fundo. A
atitude que Beauvoir parece fundamentalmente reprovar nos franceses, e que a preocupa
nesse caso particular, é sua falta de disposição para debater um problema ou, visto por
outro lado, sua predisposição a censurar uma proposta como forma de preservar uma
situação que presentemente favorece um grupo de interesses. Essa é uma preocupação
tanto polı́tica como filosófica com a situação de toda uma população. Não é só a situação
polı́tica, de impotência ou dependência da mulher, que está em questão, mas também o
conhecimento que temos dessa situação, na medida em que toda uma cadeia de mitos
sobre a condição da mulher está sendo colocada à prova. Por isso, aqueles que protestam
contra a própria existência de Brigitte Bardot no cenário polı́tico-cultural da França – e,
no limite, do mundo – estão não só lutando contra a alteração de uma condição polı́tica,
mas também de uma condição epistemológica compartilhada, pois é também contra a
ideia de que a mulher não é dependente do homem que os protestos contra Bardot se
dirigem.
No momento em que Beauvoir escreve, o futuro do desafio polı́tico e cultural re-
presentado por Bardot ainda era incerto. Na França, nos Estados Unidos, no mundo,
Bardot vive e sua carreira não terminou. Beauvoir espera que BB não seja silenciada e
que também não se silencie, mas que, conforme necessário, adapte-se, evolua. “Espero
que ela não se recolha à insignificância para ganhar popularidade. Espero que ela ama-
dureça, mas que não mude”12 , Beauvoir encerra o ensaio dizendo. Bardot se recolheria
à insignificância caso passasse a representar uma visão popular da mulher. Disso não se
segue nenhuma contradição por ela ter sido escolhida como modelo para Marianne. Não
há contradição em uma mulher singular, representando uma proposta impopular, servir
de modelo para aquela que deveria ser qualquer um e representar a liberdade de todo o
povo. Sabemos que, àquela altura, Bardot não representava uma visão popular da mulher,
que a mulher emancipada ainda era um ideal, mas não é por ser impopular que uma pro-
posta não pode ser feita para todos. Afinal, durante a revolução, Marianne também era,
ao mesmo tempo, impopular entre a nobreza e a burguesia do ancien régime e popular
entre os revolucionários. O problema estaria em ela ganhar popularidade simplesmente
afirmando sua condição presente, o que por isso deixaria de ter significado, ou seja, seria
como não dizer nada, como silenciar-se, pois o que ela assim afirmaria seria nada além do
que já foi dito. A solução, disse Beauvoir, não é mudar, mas evoluir.
12
Ibid., p. 59
Introdução 14

Estão começando os anos 1970 quando Bardot vira Marianne da França; e, na


virada dos anos 1960, Beauvoir terminou seu ensaio com esperança de que a proposta
de emancipação sexual representada na personagem vivida por Brigitte Bardot não se
degenerasse, cedendo às pressões dos grupos contrários à liberdade sexual e também às
tentações de uma vida facilitada pela conformidade com os costumes vigentes ou do culto
de si. Entretanto, a evolução do pensamento feminista (ou, como veremos, a sua cisão
em diferentes correntes) viria de uma ideia diferente sobre a sexualidade.
A França havia enviado sua Marianne da liberdade sexual para os Estados Unidos
aparentemente com sucesso. Porém, diferentemente da Estátua da Liberdade, que, não
só fora enviada após a vitória contra o Sul escravagista, mas também com atraso, devido
a problemas de produção, Bardot poderia ter chegado cedo demais para ser celebrada
por todos. O espı́rito de liberdade norte-americano facilitou sua entrada no paı́s, mas
não a esperou com um pedestal já erguido para elevá-la à condição de musa ou de valor
universalmente reconhecido. A liberdade sexual chega como proposta, amparada pela
liberdade de expressão e pelas vitórias na luta por igualdade civil, mas não está imune a
crı́ticas.
Nos Estados Unidos, em 1972, o modelo da mulher emancipada será tema de um
marcante debate público. O estopim do debate foi o filme Garganta Profunda, o filme
pornográfico de maior sucesso até então. A protagonista, Linda Lovelace, é a única atriz
que, nos créditos do filme, é apresentada não como uma personagem, mas como repre-
sentando ela mesma. Linda Lovelace era o exemplo, caricato, da mulher que conquistou
sua liberdade através da descoberta do prazer sexual. Ela descobre a verdade sobre sua
sexualidade, com a ajuda de um terapeuta sexual, e essa verdade a liberta. Vivendo
sua verdadeira sexualidade, Lovelace é livre, porque se emancipou de uma sexualidade
imposta e inautêntica. Para ela, após essa descoberta, todos os atos sexuais teriam o
significado de sua liberdade. O diretor do filme, Gerard Damiano, disse, sobre a pro-
posta de Garganta Profunda, que ele “achava que estava na hora de dizer que o sexo é
uma coisa linda, que o corpo humano é uma coisa linda e que você não deveria mesmo
ter vergonha disso”. O filme conseguiu, em grande parte por causa de seu tom cômico,
ganhar popularidade e provocar um debate inédito sobre liberdade sexual, pornografia e
polı́tica, levando aos cinemas até mesmo pessoas que nunca haviam visto um filme pornô.
Inclusive, pela primeira vez “mulheres respeitáveis da classe média foram a um cinema
pornô”, como conta Camille Paglia, que diz que Garganta Profunda foi “um momento
marcante na história da sexualidade moderna”.
Ao mesmo tempo, assim como fizeram com os filmes de Bardot, pessoas correram
para protestar contra a existência de Garganta Profunda e de todos os envolvidos em sua
produção – diretores e também atores. Os protestos foram encarados como um ataque à
liberdade de expressão. Como disse Damiano, de um lado estavam “aqueles a favor de
Introdução 15

absolutamente nenhuma censura” e de outro “aqueles que advogam que o governo deve
ditar o que podemos ver, ler e ouvir”. Mas ainda não havia formalmente um movimento
contra a pornografia, que só veio a aparecer em 1979, com a formação de grupos feministas
anti-porn. E nesse momento, o tom da discussão muda radicalmente. O sexo deixa de
inspirar liberdade e passa a inspirar medo.
Entre os grupos anti-porn, dois foram mais influentes: o WAVPAM (Women
Against Violence in Pornography and Media), que foi o primeiro a ser formado, em
1976, e o WAP (Women Against Pornography). Após a formação do WAP, a porno-
grafia tornou-se uma questão feminista popular e começaram a ser difundidas sessões de
discussão sobre filmes pornográficos, muitas vezes em sessões de exibição comentadas que
eram promovidas em residências, escolas e igrejas. Segundo Judith Butler, uma das ativi-
dade das feministas anti-porn consistia em apontar às mulheres o modo como as mulheres
eram subrdinadas pelos homens por meio do sexo nesses filmes e como, em geral, a he-
terossexualidade era construı́da sobre o modelo da dominação e da violência (BUTLER,
2003).
Esse foi o inı́cio de um novo debate polı́tico. A partir de Garganta Profunda e
do movimento feminista anti-porn, muda o modo como a liberdade sexual passa a ser
tratada enquanto questão polı́tica. As crı́ticas que o filme motivou, e que seguiram sendo
debatidas, já não eram mais tão clara e estritamente contra os costumes. Não havia,
como resumiu Beauvoir, aqueles que de um lado eram contra e de outro eram a favor
da mudança dos costumes, enquanto a desigualdade sexual e as vantagens polı́ticas dessa
situação permaneciam em segundo plano. Pelo contrário, novos argumentos, e que não
pretendiam ser argumentos em defesa da moral vigente, foram formulados para justificar
não somente o controle sobre a pornografia, mas também sua total erradicação.
O que era um efervecente debate sobre a liberdade sexual ser um meio de eman-
cipação da mulher – e assim um meio de promoção da igualdade sexual – passou a ser
um debate sobre a possibilidade de a liberdade de expressão ser um meio de promoção
da desigualdade sexual. Essa mudança na conjuntura polı́tica em torno da liberdade
sexual acompanhou uma mudança mais abrangente pela qual passava a polı́tica norte-
americana, que viu a separação entre polı́ticas liberais e conservadoras perder sua nitidez
caracterı́stica.
Nessa época, Catharine MacKinnon desenvolveu um projeto para combater a por-
nografia, construindo seus argumentos a partir de experiências em grupos de conscien-
tização feministas e em confrontos com os tribunais norte-americanos. Até hoje, eles são
defendidos, aprimorados e questionados não só dentro do movimento feminista, mas em
diversas esferas do debate polı́tico, jurı́dico e filosófico. A relevância e a força desses argu-
mentos devem-se principalmente aos desafios e crı́ticas que eles propõem ao pensamento
liberal.
MacKinnon é mais conhecida por defender a proibição da pornografia usando uma
Introdução 16

argumentação inovadora. Ela é inovadora por não se basear em critérios de obscenidade


para justificar a proibição da pornografia, mas sim em critérios que permitiriam caracteri-
zar a pornografia como uma forma de discriminação e violência sexual contra a mulher. O
desafio ao pensamento liberal decorrente desses argumentos deve-se a MacKinnon argu-
mentar que liberdade e igualdade – no contexto polı́tico norte-americano – estão em rota
de colisão uma com a outra (MACKINNON, 1996, p. 71), e que o Estado deve intervir
na liberdade de uns (os pornógrafos) para promover a igualdade de outros (as mulheres).
MacKinnon criticará a influência do liberalismo no pensamento jurı́dico predominante
nos Estados Unidos, especialmente sua concepção de igualdade, por considerar que essa
concepção impede a aprovação de leis que promovam adequadamente a igualdade sexual
e a proteção das mulheres.
Para Ronald Dworkin, a igualdade é o “ponto nevrálgico do liberalismo”. No
recorte da discussão sobre liberdade sexual e pornografia que fazemos aqui, a liberdade
parece ser o valor em disputa, e diferentes agendas polı́ticas que se formaram em torno
dessa questão parecem ser o centro do conflito entre, de um lado, “feministas liberais” e,
de outro, “feministas anti-porn” e “conservadores”. Para Dworkin o que divide liberais
e conservadores – e também “antigos” e “neo” liberais – é certa concepção de igualdade
(DWORKIN, 2001a, p. 272). A questão do modo como o Estado deve intervir para
promover a igualdade sexual divide também o movimento feminista, mas não por uma ou
outra corrente do feminismo defender a intervenção e sim porque, se seguirmos Ronald
Dworkin, diferentes correntes do feminismo tem concepções diferentes de igualdade, e
por isso entendem que a igualdade sexual exije que sejam feitas coisas diferentes para as
mulheres.
Para entender o debate entre feministas anti-porn e liberais, não podemos apenas
identificar o partido dos “moralistas de plantão”, ou como escreveu Beauvoir, o partido
dos “espı́ritos elevados” que identificam a carne ao pecado e sonham em fazer uma fogueira
com os livros, filmes e fotos a seu respeito – que são aqueles que querem que a moral seja
fixada de uma vez por todas – e simplesmente fazer a oposição desses com o partido
daqueles que querem que a moral evolua. Questões morais certamente estão implicadas
nesse debate mas, pelo modo como a pornografia veio a ser criticada, elas precisam ser
entendidas mais especificamente como questões de moralidade polı́tica, o que significa,
para Dworkin, pensar o que devemos fazer para os outros em nome da concepção de
igualdade que defendemos.
Ronald Dworkin e Catharine MacKinnon são personagens centrais de uma das
mais influentes discussões sobre pornografia no debate filosófico-polı́tico contemporâneo.
Ela ocorreu principalmente em uma troca de artigos13 publicados ao longo dos anos 1990
na New York Review of Books (NYR), a qual foi parcialmente republicada em obras pos-
13
DWORKIN, R.; MACKINNON, C. A. Pornography: An Exchange. The New York Review of Books,
1994. Disponı́vel em: hhttp://www.nybooks.com/articles/1994/03/03/pornography-an-exchange/i.
Introdução 17

teriores, como “Freedom’s Law” (1996), de Dworkin. Nesses artigos, Dworkin analisa os
principais argumentos de MacKinnon em “Only Words” (1993) e também comenta deta-
lhes de uma decisão da justiça norte-americana em um caso envolvendo um projeto de lei
municipal elaborado por MacKinnon nos anos 1980 o qual visava qualificar a pornografia
como um tipo de discriminação sexual e, com isso, criar meios para combatê-la – através
de punições civis. O que Dworkin e MacKinnon estão discutindo nos artigos da NYR pode
ser divido em duas partes, cada uma relacionada a um questionamento de MacKinnon
que de fato foi respondido por Dworkin. Primeira, se o argumento de MacKinnon de que
existe uma relação causal entre pornografia e atitudes de violência e discriminação sexuais
foi ou não foi aceito pelo juiz Easterbrook, que julgou ser inconstitucional o projeto de
lei que ela redigiu, por violar a liberdade de expressão. Segunda, qual é a base da defesa
de Dworkin da pornografia.
As respostas de Dworkin a essas perguntas não contemplam todas as crı́ticas de
MacKinnon a ele e, em geral, ao liberalismo. Entretanto, podemos nos deter mais em
cada uma delas e reconstruir aspectos da discussão que não estão presentes nos artigos
da NYR. Assim, podemos enriquecer a leitura desses artigos de modo a termos uma
compreensão mais aprofundada do debate, mais amplo, contra a pornografia provocado
pelo movimento feminista, principalmente nos Estados Unidos, entre o final dos anos 1970
e meados dos anos 1980.
Esse debate mais amplo tem uma forma diferente dos debates tradicionais sobre
pornografia. Quando pensamos em pornografia e nos problemas relacionadas a ela, o
trivial é pensar que tratam-se de problemas de ordem moral, no sentido de que a porno-
grafia contraria a moral sexual de muitas pessoas e que essas pessoas são as que criticam
e querem acabar com a pornografia. O que não é trivial é pensar que a moral não está
desconectada da polı́tica e que pornografia e polı́tica possam ser temas afins.
O debate sobre a pornografia costumava ser um debate entre liberais e conserva-
dores: conservadores defendendo uma moralidade sexual própria e denunciando os riscos
que a pornografia traz para aqueles que se envolvem com ela; liberais, por sua vez, defen-
dendo a autonomia moral dos indivı́duos e, mesmo quando não estão particularmente de
acordo com a moralidade sexual subjacente à pornografia, defendendo o direito que essas
pessoas têm de correrem riscos e de formarem por si mesmas sua concepção de bem.
Politicamente, o conservador acha que o Estado deve intervir no direcionamento
da conduta dos indivı́duos que se desviam dos padrões de conduta tradicionais. A moral
do indivı́duo é uma preocupação do Estado porque, para o conservador, é um risco para o
indivı́duo e para toda a sociedade o desvio do padrão que ele reconhece como bom – bom
para o indivı́duo e bom para todos. Por isso, politicamente o conservador apresenta uma
tendência ao chamado “moralismo jurı́dico” – que é a imposição, através de legislação
especı́fica, de normas de conduta que refletem a moralidade de um grupo de indivı́duos
– e apresenta também tendência ao “paternalismo jurı́dico” – que defende a interferência
Introdução 18

do Estado na conduta das pessoas justificando-a em nome do bem da própria pessoa que
sofre a intervenção, ou seja, é a intervenção baseada na ideia de que a própria pessoa não
sabe o que é bom para si mesma (pois assim o demonstra por sua conduta desviante) e
de que também não é capaz de determinar, por si mesma, o que é bom para si, sendo por
isso necessário que o Estado a coloque, por meio de força, no caminho correto.
O liberal, por sua vez, tradicionalmente discorda do pensamento polı́tico do conser-
vador. O liberal pode até concordar com o conservador e afirmar com ele que a pornografia
causa ao indivı́duo os danos que o conservador denuncia. O liberal pode, por exemplo,
concordar que um homem que se envolve com a pornografia seja levado a uma vida de pro-
miscuidade, não atendendo às expectativas que alguém poderia ter a seu respeito quanto
ao papel que ele deveria desempenhar – por exemplo, o papel de marido, fiel à sua esposa
e famı́lia. Entretanto, mesmo que o liberal admita a existência desse efeito sobre o ho-
mem, mesmo assim ele pode ser (e deve ser, enquanto liberal) contra a interferência do
Estado em sua conduta. Isso porque o liberal, politicamente, não compartilha do mora-
lismo jurı́dico do conservador e nem de sua premissa paternalista – a premissa de que um
indivı́duo, de plena posse de suas faculdades mentais, possa não ser capaz de formar por
conta própria uma concepção daquilo que é bom para sua vida. Por isso o liberal defende
a pornografia em nome da autonomia moral do indivı́duo. Por defender a autonomia
moral, o liberal será contra tendências ao moralismo jurı́dico. Por isso, mesmo que um
liberal discorde dos valores morais associados à pornografia, ele não defenderá formas de
reação – de combate, alguns podem dizer – a esses valores que se valham de estratégias
que incluam ações legislativas voltadas a alterar o comportamento das pessoas pelo uso
do poder coercitivo do Estado. Para o liberal, o indivı́duo deve sempre ser considerado
capaz de formar por si mesmo sua concepção de bem, ele nunca deve ser forçado a assumir
essa ou aquela concepção. Por isso, costumam fazer parte das propostas polı́ticas liberais
relacionadas à pornografia ações legislativas voltadas à educação e à promoção do amplo
debate sobre valores e sobre os prós e contras da pornografia.
Essa é uma caracterı́stica fundamental do pensamento polı́tico liberal, conectada
à defesa do princı́pio da autonomia moral do indivı́duo. Para o liberal, questões de
moralidade privada – padrões de comportamento e valores afirmados pelo indivı́duo em
sua vida pessoal – devem ser protegidas da interferência do Estado. Existe, portanto, uma
esfera privada de ação separada de uma esfera pública. Essa esfera privada é concebida
como um espaço de liberdade negativa, um espaço de não interferência. O princı́pio
é o de que a esfera privada deve ser protegida contra a interferência do Estado, cujas
regulações são entendidas pelo liberal sempre como restritivas de liberdade quando voltam-
se à assuntos da esfera privada. A interferência do Estado no direcionamento da conduta
privada dos indivı́duos é restritiva de liberdade porque nega ao indivı́duo a autonomia
moral que o liberal, por princı́pio, considera que ele tem.
A liberdade, assim concebida negativamente, é algo que o indivı́duo desde sem-
Introdução 19

pre tem, segundo o liberal, desde que não haja interferência sobre ele. Essa concepção
deve ser contrastada com a concepção positiva de liberdade, segundo a qual a liberdade
depende de uma condição concreta para ser exercida – como a existência de legislação pro-
tegendo a conduta especı́fica do indivı́duo, ou então as condições econômicas adequadas
à manutenção do modo de vida que ele escolheu para si.
A liberdade que o liberal defende na esfera privada de ação do indivı́duo não é
absoluta. Por isso também não é absoluta a separação que ele faz entre esfera privada e
esfera pública. A defesa clássica do direito do indivı́duo a não sofrer interferência em sua
esfera privada concede que existam situações em que a interferência do Estado é legı́tima.
Essas situações são capturadas por um outro princı́pio do pensamento polı́tico liberal,
chamado de “princı́pio do dano”.

That principle is, that the sole end for which mankind are warranted,
individually or collectively, in interfering with the liberty of action of
any of their number, is self-protection. That the only purpose for which
power can be rightfully exercised over any member of a civilized com-
munity, against his will, is to prevent harm to others. His own good,
either physical or moral, is not a sufficient warrant. (MILL, 2003, p. 80)

.
O liberal concede que o Estado interfira na esfera privada quando a conduta pri-
vada do indivı́duo causa dano aos outros. Para evitar o dano aos outros, o Estado pode
proibir condutas individuais, mesmo tratando-se de indivı́duos saudáveis, que estejam
em plena posse de suas faculdades mentais e, por princı́pio, sejam capazes de guiar suas
próprias vidas (excluindo-se, de forma geral, deficientes mentais e crianças). Entretanto,
essa interferência não é suficientemente justificada por razões que afirmem que a inter-
venção visa o próprio bem do indivı́duo, ou sua integridade fı́sica ou moral. Essas razões
justificam tentativas de persuasão, de discussão com o indivı́duo sobre sua conduta, mas
não justificam o uso do poder do Estado com a finalidade de alterá-la ou de punir o
indivı́duo caso ele não a altere por si mesmo.
O princı́pio do dano é um ponto sobre o qual tanto a argumentação liberal como
a conservadora podem se sustentar, servindo como meio de expressão dos interesses de
ambos. Tanto liberais como conservadores trabalham com a categoria de dano em seus
argumentos. Foi sobre o princı́pio do dano que MacKinnon articulou sua crı́tica à porno-
grafia. Denunciando os danos causados pela pornografia, ela instiga tanto o conservador
a apoia-la quanto o liberal a ouvi-la e a considerar a possibilidade de interferência do
Estado, já que, se for mostrado que o dano ocorre no sentido apropriado de dano, a in-
terferência não estaria sendo justificada por uma questão de moralidade privada, o que
não ofende os princı́pios liberais, mas, ao mesmo tempo, não deixa de defender princı́pios
e valores conservadores.
Liberais e conservadores, entretanto, discordam sobre o que conta como dano e
sobre a capacidade de a pornografia causar dano, no sentido relevante de dano. Algumas
Introdução 20

caracterizações do dano da pornografia, entretanto, o liberal prontamente se recusa a


aceitar. O liberal dá de ombros quando o conservador acusa a pornografia de corromper
corações e mentes dos homens e mulheres que se envolvem com ela, desviando essas
pessoas do padrão de vida que o conservador considera bom para elas. O dano, nesse
caso, seria causado ao indivı́duo por causa da conduta dele próprio. Nos casos em que
o dano associado à conduta recai sobre o indivı́duo, o liberal defende o direito desse
indivı́duo de causar dano a si mesmo. Causar dano a si mesmo, envolver-se em atividades
que colocam sua vida em risco, escolher um modo de vida não tradicional, tudo isso é
visto pelo liberal como pertencendo ao espaço individual de autodeterminação.
O caso da pornografia fica mais delicado, e o liberal não rejeita por princı́pio a
acusação conservadora, quando o indivı́duo é acusado de causar dano a outros por causa
de seu envolvimento com a pornografia. O envolvimento pode ser em qualquer nı́vel, seja
através do consumo, da distribuição ou da participação em produções pornográficas. Caso
seja mostrada a existência dessa relação entre a conduta privada de uma pessoa e o dano
causado a outras, o liberal considera justificada a interferência na conduta do indivı́duo.
O projeto de lei anti-porn de MacKinnon é justamente uma tentativa de caracterizar a
pornografia como dano no sentido relevante, com a finalidade de combate-la através do
uso do poder do Estado.
Apesar de os conceitos de dano e ofensa poderem ser usados para articular um
diálogo entre conservadores e liberais sobre a pornografia, apesar de esses conceitos servi-
rem como meio-termo da expressão dos interesses de ambos, tanto em acusar quanto em
defender a pornografia, Dworkin lamenta que a liberdade de expressão precise hoje ser
invocada para defender o direito de “homens olhando fotos de mulheres nuas de pernas
abertas”. O que acontece é que Dworkin parece considerar a pornografia uma questão me-
nor, e diz mesmo que é difı́cil de defendê-la politicamente. Sua motivação para defender
a pornografia deriva da motivação em defender valores polı́ticos que estariam ameaçados
caso um ataque polı́tico à pornografia, como o projeto de lei anti-porn de MacKinnon,
fosse bem-sucedido. E o principal valor ameaçado é justamente o da igualdade, mas
Dworkin ainda conecta o valor da igualdade ao da liberdade de expressão e argumenta
que é em nome de ambos que se defende a pornografia.
Diferentemente do debate moralista tradicional, o debate polı́tico-filosófico contem-
porâneo sobre a pornografia sobre o qual vamos nos concentrar coloca valores polı́ticos
como liberdade e igualdade no centro das discussões. Além disso, existe um problema
polı́tico que afeta um processo de formação de identidades, relacionado com nossa auto-
nomia, e que é subjacente a esse debate. Para mostrar o problema da pornografia desse
modo, é preciso prestar atenção no quanto e de que modo cada lado se preocupa com as
condições de formação de nossos objetivos de vida e de nossas preferências. A questão é
entender a pornografia como um meio através do qual podemos explorar novas identidades
sexuais – por isso demanda liberdade de expressão – e que contribui para a consolidação
Introdução 21

de uma pluralidade de identidades sexuais, na medida em que é uma atividade que esta-
belece os próprios significados e valores associados a ela, sendo um meio através do qual
podemos dar sentido e valor às nossas identidades sexuais – por isso demanda igualdade
de tratamento, compreendida como igualdade de consideração e respeito.
22

1 A pornografia como problema polı́tico

Neste capitulo, veremos como MacKinnon forma, no contexto polı́tico-cultural norte-


americano, seu projeto de combate à pornografia, e em quais termos foram estabelecidos
seus objetivos e o método para alcançá-los. É importante começar por esse processo
de formação porque as maiores controvérsias no debate que veremos dizem respeito ao
método adotado por MacKinnon para combater a pornografia e, antes disso, ao fato de
ela ter elegido a pornografia como alvo de sua crı́tica. Historicamente, isso provocou uma
cisão no movimento feminista que dura até hoje. Não há consenso entre as feministas
de que a pornografia seja o problema, ou a causa do problema, que o feminismo funda-
mentalmente quer combater: que é a opressão, em suas diversas formas, que a mulher
sofre em sociedade. Além disso, existe um aspecto ético do procedimento que MacKinnon
adota para caracterizar a pornografia como problema central da vida das mulheres e que
é criticado por Ronald Dworkin. O problema é o modo dogmático como a pornografia é
tratada, não dando espaço às pessoas, inclusive às mulheres, para que elas mesmas façam
seus juı́zos de valor sobre a pornografia, ou que busquem reformar sua prática. Na teoria
de MacKinnon sobre a pornografia, tanto o significado como o valor da prática já estão
definidos.
A crı́tica de MacKinnon tem duas bases, uma feminista e outra constitucional.
A base feminista é formada a partir da experiência de mulheres que sofreram e sofrem
violência sexual. MacKinnon desenvolve uma teoria que interpreta a pornografia como
violência sexual contra a mulher e mecanismo de exercı́cio de poder dos homens sobre as
mulheres. Esse poder seria capaz de definir o que é a mulher através 1) do ato sexual
e 2) através da percepção do homem em estado de excitação sexual, que perceberia a
mulher como objeto para satisfação forçada de seus desejos sexuais (ou satisfação violenta,
porque “violência” muitas vezes é usado por ela como sinônimo de “forçado”, borrando as
possı́veis diferenças entre, por exemplo, “coação” e “violênca fı́sica” ou, “agressão fı́sica”).
Com base na constituição norte-americana, MacKinnon desenvolve um argumento que
oferece uma justificativa para punir os envolvidos com pornografia – ou seja, os envolvidos
com a dominação através da violência sexual do homem sobre a mulher – em nome do
direito das mulheres à igualdade de proteção.

1.1 O projeto de uma teoria feminista unificada


O projeto de Catharine MacKinnon é desenvolvido a partir de experiências de mulhe-
res compiladas por ela e Andrea Dworkin nos Grupos de Conscientização (consciousness
raising groups – CR-groups) feministas que se multiplicavam nos Estados Unidos, princi-
palmente nos anos 1970. Havia um caldo de concepções da ideia de opressão e tentativas
Capı́tulo 1. A pornografia como problema polı́tico 23

de descrever a experiência da mulher. Esse caldo foi sendo formado através da literatura
(a poesia e o ensaio estavam entre as formas mais utilizadas) e da troca de experiências
entre mulheres, muitas vezes mediada pelas experiências descritas nas obras de escritoras
de diversos paı́ses e épocas com as quais aquelas mulheres se identificavam em alguma
medida, como Virginia Wolf, Simone de Beauvoir e Adrienne Rich.
MacKinnon desenvolve, em seu trabalho acadêmico ao longo principalmente dos
anos 1980, uma teoria que pretende capturar tanto a experiência da opressão como as
demandas por liberdade que ecoavam dos CR-groups. O pensamento polı́tico de grande
parte das pensadoras feministas daquela época partia de um modelo marxista de análise
(RUBIN, 1993, p. 63), assim como o de MacKinnon, que pretende desenvolver uma teoria
polı́tica onde a opressão da mulher tenha lugar central na tentativa de explicar a liberdade
humana e que seja capaz tanto de criticar como de mudar as condições sociais de injustiça
em que vivem as mulheres (MACKINNON, 1989, p. ix).
O projeto de MacKinnon passa por duas fases. Na primeira fase, ela dedicava-se
a buscar uma forma de adaptar a explicação marxista da dominação econômica a uma
explicação feminista da subordinação da mulher. O conceito central da explicação femi-
nista, que MacKinnon extrai dos CR-groups, é o de subordinação sexual. É importante
ter em mente que, sempre que MacKinnon falar em “feminismo”, ela estará se referindo
a essas experiências dos CR-groups e à sua própria teoria.
No prefácio de Toward a Feminist Theory of the State, MacKinnon diz que seu pro-
jeto inicialmente era o de “comparar a explicação do feminismo sobre a subordinação da
mulher [...] com a explicação marxista da exploração da classe trabalhadora.” (MACKIN-
NON, 1989, p. x). Ela desenvolve esse projeto de teoria como uma forma de “metáfora
extendida” do marxismo, como diz Kate Sutherland, baseando sua teoria em paralelis-
mos como: capitalismo/patriarcado; trabalho/sexo; mercadoria/mulher-sexo (SUTHER-
LAND, 2005). MacKinnon via a possibilidade de estabelecer um paralelo entre a ex-
plicação das causas e das formas de exploração da classe trabalhadora e a forma como
as mulheres nos grupos de conscientização entendiam que estavam sendo sexualmente
exploradas pelo homem em sociedade.
Não nos concentraremos nessa fase. Vamos nos concentrar na fase seguinte, porque
ela abandona seu projeto inicial por falta de um elemento de articulação adequado entre
a explicação marxista da dominação econômica e a explicação feminista da subordinação
sexual. O que faltava era, segundo MacKinnon, uma teoria sobre o gênero que pudesse
ocupar o lugar da teoria de classes. Com isso, MacKinnon diferencia-se das feministas
socialistas e deixa de procurar a causa da opressão da mulher na economia, no controle
dos meios de produção, ainda que a perspectiva seja a do controle sobre os corpos das
mulheres através do trabalho, por exemplo. Ela não nega a existência desse tipo de
opressão estrutural, mas passa a buscar a causa da opressão em estruturas pré-politicas
de associação: as relações sexuais entre os gêneros.
Capı́tulo 1. A pornografia como problema polı́tico 24

Na segunda fase de seu projeto, MacKinnon passa a formular sua própria teoria,
em que o gênero é pensado através de um paralelismo com o conceito marxista de classe.
Segundo a explicação marxista, a dominação econômica é exercida pelo controle dos meios
de produção; as classes são definidas em função daquilo que cada membro da classe pode
fazer; e a hierarquia de classes é mantida através da exploração econômica e do poder da
classe dominante. Na teoria de MacKinnon, o gênero é definido em função daquilo que
é permitido que cada membro do gênero faça e a hierarquia de gênero é mantida através
da exploração sexual e do poder do gênero dominante. Apesar de ter raı́zes marxistas,
agora ela pretende que sua teoria seja independente das análises e das categorias marxistas
originais.

I assumed, in short, that feminism had a theory of gender as marxism


had a theory of class. As it became clear that this was not the case in the
way I had thought, the project shifted from locating and explicating such
a theory to creating one by distilling feminist practice, from attempting
to connect feminism and marxism on equal terms to attempting to create
a feminist theory that could stand on its own. (MACKINNON, 1989, p.
x)

A teoria de gênero que MacKinnon passa a desenvolver é uma teoria sobre as


relações heterossexuais segundo a qual a “objetificação sexual” é o que define os gêneros.
O “homem” é o objetificador e a “mulher” é a objetificada. A teoria diz que a subordinação
da mulher pode ser explicada pela objetificação sexual e que a pornografia é a responsável
por isso – tanto porque a pornografia define o que é a mulher como porque define o que
a mulher pode fazer e o que pode ser feito com ela, em um paralelo com o modo como as
classes sociais são definidas na teoria marxista; além de a pornografia ser também o modus
operandi da subordinação, pois a industria pornográfica e o próprio processo de produção
da pornografia exigem que mulheres sejam exploradas sexualmente, em um paralelo com
o modo como as classes dominantes mantém a hierarquia de classes através do controle
dos meios de produção e da exploração econômica da classe trabalhadora.

1.2 Elementos da teoria de gênero de MacKinnon


Podemos entender melhor o que é a “questão da pornografia” para MacKinnon dividindo
ela em dois problemas: o problema da subordinação da mulher (uma questão que ela
classificará como “ontológica”, pois é constitutiva da própria definição do gênero feminino
e da situação em que vivem as mulheres); e o problema da “perspectiva da mulher”, para a
qual a pornografia é prejudicial, pois prejudicaria a capacidade de as mulheres perceberem
a própria situação em que vivem (uma questão que ela classificará como “epistemológica”).
Capı́tulo 1. A pornografia como problema polı́tico 25

1.2.1 Descrição da situação da mulher – a questão ontológica


O principal elemento da teoria de MacKinnon é uma descrição da situação problemática
que a teoria pretende corrigir. A descrição da situação problemática consiste naquilo que
MacKinnon disse que foi “destilado da prática feminista”. Essa situação problemática
vai receber vários nomes ao longo do desenvolvimento da teoria: objetificação sexual;
subordinação da mulher; discriminação sexual; ou, simplesmente, “sexo”. Porém, em um
certo momento, MacKinnon sintetiza em uma única ideia tanto a descrição da situação
problemática como sua causa e seu modo de operação. Ela chamará isso de “pornografia”.
Após constatar que as relações sexuais na pornografia continham todos os elementos
das relações desiguais entre homens e mulheres que ela havia identificado no mundo, a
pornografia passou a ser o veı́culo da ideia de subordinação que MacKinnon queria que
as mulheres conhecessem e também seu modelo de desigualdade. A pornografia é esse
veı́culo no sentido de ser uma imagem que codifica a situação problemática.

Now why are these basic realities of the subordination of women to men
[...] not effectively believed, not perceived as real in the face of all this
evidence? Why don’t women believe our own experiences? In the face
of all this evidence, especially of systematic sexual abuse [...] the view
that basically the sexes are equal in this society remains unchallenged
and unchanged. The day I got this was the day I understood its real
message, its real coherence: This is equality for us.
I could describe this, but I couldn’t explain it until I started studying a
lot of pornography. In pornography, there it is, in one place, all of the
abuses that women had to struggle so long even to begin to articulate,
all the unspeakable abuse: the rape, the battery, the sexual harassment,
the prostitution, and the sexual abuse of children. Only in pornography
it is called something else: sex, sex, sex, sex, and sex, respectively. Por-
nography sexualizes rape, battery, sexual harassment, prostitution, and
child sexual abuse; it thereby celebrates, promotes, authorizes and legiti-
mizes them. More generally, it eroticizes the dominance and submission
that is the dynamic common to them all. (MACKINNON, 1988a, p.
171)

Na pornografia, como disse MacKinnon, era possı́vel encontrar todos os problemas


que ela conseguia descrever mas, apesar disso, faltava algo para que fosse “perceived as
real” pelas mulheres. A desigualdade entre homens e mulheres pode ser vista na porno-
grafia, que quanto mais explı́cita, quanto menos censurada, mais claramente demonstra
que a sexualidade masculina é a causa da subordinação da mulher ao homem, pois o
homem excita-se com a mulher, que na pornografia é apresentada a ele como objeto de
seu desejo e disponı́vel para sua satisfação sexual.

The aesthetic of pornography itself, the way it provides what those who
consume it want, is itself the evidence. When uncensored explicit –
that is, the most pornographic – pornography tells all, all means what a
distanced detached observer would report about who did what to whom.
This is the turn-on. (MACKINNON, 1988a, p. 150)
Capı́tulo 1. A pornografia como problema polı́tico 26

MacKinnon viu na pornografia a encarnação da subordinação da mulher. Sua


expectativa, agora, é de que a pornografia possa servir como explicação da situação pro-
blemática que ela está descrevendo e as mulheres não estão vendo. Através da pornografia,
MacKinnon quer explicar às mulheres sua condição de subordinação ao homem.
Na pornografia, o conceito que captura a subordinação da mulher é o conceito
de “objetificação sexual”. Aquilo que passa a caracterizar, no mundo, a situação da
mulher agora é a objetificação sexual. Isso muda também o significado de “mulher” e de
“homem”. Na pornografia, a mulher é objeto subordinado ao prazer sexual do homem,
que é o sujeito objetificador. A subordinação da mulher pode se dar de diversas formas,
mas na pornografia, que contém todas elas, há um traço em comum. Todas as formas
de subordinação da mulher são erotizadas na pornografia, de um modo que apresenta a
subordinação como boa (na verdade, a erotização tem um papel muito mais central na
teoria e trataremos dele na seção 2.3.2).
A tese da erotização da subordinação, na verdade, não é original de MacKinnon.
Ela já está presente em Stuart Mill 1 (MILL, 2008) e pode ser resumida assim: a mulher
é naturalmente atraente para o homem e vice-versa; a mulher é levada a continuar sendo
atraente porque é através de sua atração que o homem é mantido junto dela para lhe dar
aquilo que ela não pode, sozinha, conseguir; o homem é levado a apreciar que a mulher
queira ser atraente para ele (segundo a perspectiva de MacKinnon: subordine-se ao prazer
dele) porque assim ele a mantém subordinada também ao seu poder de conseguir aquilo
que a mulher precisa; nessa atitude, o homem implica na subordinação da mulher tanto
o seu prazer sexual como o seu prazer com o poder, tornando a subordinação da mulher
ao seu poder parte essencial daquilo que é sexualmente atraente para ele na mulher.
Assim o sexo pode ser usado para definir o que é o homem: o homem é aquele que
tem prazer sexual em dominar uma mulher. Por sua vez, essa definição inclui a própria
definição de sexo, caso seja vista da perspectiva do homem: sexo é o uso da mulher para
dar prazer ao homem. Essas são definições que compõem a situação da mulher no mundo,
e a objetificação sexual é o conceito-chave na descrição dessa situação. No mundo, a
mulher é aquela que é explorada sexualmente pelo homem e o homem é o explorador
do sexo da mulher. Mas não pensemos que MacKinnon trata a pornografia apenas como
“ilustração” de uma situação problemática a ser combatida. “Pornography makes the
world a pornographic place” (MACKINNON, 1996, p. 25). Nesse mundo pornográfico
não há diferença entre a pornografia – que poderia ser considerada ficcional, fantasia, arte,
1
When we put together three things — first, the natural attraction between opposite sexes; secondly,
the wife’s entire dependence on the husband, every privilege or pleasure she has being either his gift,
or depending entirely on his will; and lastly, that the principal object of human pursuit, consideration,
and all objects of social ambition, can in general be sought or obtained by her only through him, it
would be a miracle if the object of being attractive to men had not become the polar star of feminine
education and formation of character. And, this great means of influence over the minds of women
having been acquired, an instinct of selfishness made men avail themselves of it to the utmost as
a means of holding women in subjection, by representing to them meekness, submissiveness, and
resignation of all individual will into the hands of a man, as an essential part of sexual attractiveness.
Capı́tulo 1. A pornografia como problema polı́tico 27

uma ideia ou “só palavras” – e a realidade. A relação entre a pornografia e a situação da


mulher no mundo é feita do seguinte modo por MacKinnon:

The object world is constructed according to how it looks with respect to


its possible uses. Pornography defines women by how we look according
to how we can be sexually used. Pornography codes how to look at
women, so you know what you can do with one when you see one.
Gender is an assignment made visually, both originally and in everyday
life. A sex object is defined on the basis of its looks, in terms of its
usability for sexual pleasure, such that both the lookin – the quality of
gaze, including its point of view – and the definition according to use
become eroticized as part of the sex itself. This is what the feminist
concept “sex object” means. In this sense, sex in life is no less mediated
than it is in art. Men have sex with their image of woman. It is not that
life and art imitate each other; in this sexuality, they are each other.
(MACKINNON, 1988a, p. 173)

Através da erotização da subordinação, a pornografia define a mulher como objeto


sexual. Essa definição ultrapassa a ficção pornográfica e é transposta para a vida. Isso
porque a excitação sexual do homem com a subordinação não se limita ao objeto sexual
que a pornografia apresenta para ele. O homem encontra seu objeto sexual também fora
da pornografia, no mundo onde outras mulheres, não só as atrizes pornô, também vivem.
Desse modo, através da excitação sexual com a subordinação, o mundo pornográfico e
o mundo real tornam-se um só. Para MacKinnon, as mulheres no mundo pelas quais
os homens sentem-se sexualmente atraı́dos são objetos sexuais do mesmo modo como
são as mulheres na pornografia. Isso porque o homem, segundo a tese da erotização da
subordinação, excita-se sexualmente não com a mulher, mas com a mulher subordinada.
Como a pornografia reproduz essa situação em que a excitação com a subordinação é
essencial para o ato sexual, a pornografia é, então, vista como a responsável tanto por
definir como por criar a situação problemática que a teoria de gênero de MacKinnon
descreve e quer superar. A “questão ontológica” da pornografia é, então, que a pornografia
define o que é a mulher e o que é o homem e, ainda, que ela cria no mundo a situação em que
a mulher é subordinada ao homem. A pornografia consegue isso por causa do modo como
ela excita sexualmente o homem, apresentando a ele uma mulher submissa ao seu prazer
e disponı́vel para seu uso. A excitação sexual é o componente essencial dessa situação.
Segundo MacKinnon, da perspectiva do homem essa situação é chamada de “sexo”e, da
perspectiva da mulher, é chamada de “subordinação sexual”. Agora precisamos ver o que
é essa “perpectiva da mulher” e como ela é formada.

1.2.2 Método de formação da perspectiva da mulher – a questão epis-


temológica
MacKinnon tem um grande projeto de unificar todas as correntes do feminismo através de
uma teoria única, que é a sua teoria de gênero. Para ela, todos os argumentos feministas
Capı́tulo 1. A pornografia como problema polı́tico 28

convergem para um só argumento, que é tanto uma descrição da situação problemática
que o feminismo quer superar como uma explicação dessa situação.

Feminism has not been perceived as having a method, or even a central


argument. It has been perceived not as a systematic analysis but as a
loose collection of complaints and issues that, taken together, describe
rather than explain the misfortunes of the female sex. The challenge
is to demonstrate that feminism systematically converges upon a cen-
tral explanation of sex inequality through an approach distinctive to its
subject yet applicable to the whole of social life, including class. (MAC-
KINNON, 1989, p. 108)

Estamos vendo que, através da pornografia, MacKinnon encontra uma maneira


de descrever a situação problemática – desigualdade entre os sexos – que pode ser apli-
cada “to the whole of social life, including class”. A questão agora é de que maneira a
sexualidade torna-se central para a teoria. Por que localizar na sexualidade a situação
problemática? Este é um ponto crucial para entender MacKinnon e seu tipo muito parti-
cular de feminismo. É precisamente neste ponto que ela diferencia-se de todas as correntes
do feminismo que ela, contraditoriamente, pretende unificar. O ponto é que a sexualidade
é apresentada como uma explicação do problema de modo dogmático, impermeável a
crı́ticas ou reformulações. A centralidade da sexualidade não é o resultado, por exemplo,
de uma investigação das particularidades biológicas de cada sexo e de seu reflexo no papel
social da mulher; também não é problematizada como sendo uma ramificação do outro
problema que é a sociedade patriarcal e seus métodos de manutenção do poder do pai
através de instituições, como a famı́lia, que são concebidas como estruturas hierárquicas
nas quais a mulher, incluindo sua sexualidade, está subordinada à autoridade do homem.
MacKinnon, entretanto, não pretende descartar essas explicações, mas sim unificá-las
através de uma única teoria. O método que ela utiliza, chamado de “concientização” é a
chave para entender essa tentativa.
Outras formas de feminismo investigam e reconhecem a existência de práticas so-
ciais e conceitos em uso corrente, e discutem as situações em que elas ocorrem ou em que
os conceitos se aplicam, propondo esclarecer, expandir ou limitar sua aplicação. Mac-
Kinnon, diferentemente, aposta em uma prática revolucionária, chamada de “conscien-
tização”, como seu método de investigação e forma de produzir conhecimento. O objetivo
desse método é descrever e explicar uma situação problemática que já é, previamente,
considerada errada, posteriormente definindo-a e conceitualizando-a. Por exemplo, a ob-
jetificação sexual, que pode-se entender como o fato problemático central na pornografia,
não é considerada uma prática corrente que pode ou não ocorrer em uma ou outra si-
tuação. No método de conscientização adotado por MacKinnon, “objetificação sexual” é
o nome dado à situação problemática e o meio de explicar o problema.
O trabalho de MacKinnon diferencia-se do trabalho de outras feministas que ten-
tam explicar o que é “objetificação sexual” porque essas buscam esclarecer o conceito de
objetificação tal como ele é usado ordinariamente, enquanto MacKinnon está preocupada
Capı́tulo 1. A pornografia como problema polı́tico 29

em definir o que é objetificação. Todas fazem isso tendo em vista alguma forma de crı́tica
moral. Entretanto, enquanto algumas estão interessadas em debater em quais situações
a objetificação sexual é moralmente problemática, MacKinnon está interessada em des-
crever uma determinada situação que ela já considera problemática, e que ela chama de
objetificação sexual.
Segundo Katleen Stock, o projeto de MacKinnon, e de outras autoras que adotam
o mesmo método (como Sally Haslanger), pode ser resumido assim:

The authors think they have noticed some morally problematic activity
in the world: the forced treatment of a certain group of people for the
sexual ends and interests of another group of people, in a way which
harms that group. Having noticed it, they want to name it, and to
explain its origin in a particular social context, its relationship to gender
and sexuality and consequences. The name they have for this activity is
“sexual objectification”; they introduce this term quasi-stipulatively to
refer to the phenomenon they have noticed. (STOCK, 2015)

O que Stock está nos dizendo e que, como veremos, é também o que pensam ou-
tras autoras, é que a sexualidade passa a ocupar o papel central na teoria feminista de
MacKinnon de modo quase arbitrário, e que isso é feito não através de uma investigação e
reflexão sobre diversas práticas e culturas eróticas, como poderı́amos esperar. A sexuali-
dade é apontada como problema. Isso é feito através do método de “conscientização”, que
tem por objetivo mostrar que, através das relações sexuais, pode-se entender a situação
problemática – que é possı́vel ver no sexo a subordinação da mulher – e que a sexualidade
também pode explicar como forma-se a situação problemática – o modus operandi da
subordinação.

The centrality of sexuality emerges not from Freudian conceptions, nor


from Lacanian roots, but from consciousness raising and other feminist
practice on diverse issues, including rape, incest, battery, sexual haras-
sment, abortion, prostitution, and pornography. (MACKINNON, 1989,
p.109)

Mas nem tudo é tão arbitrário como pode parecer. Não basta apontar para uma
situação problemática, defini-la, por exemplo, como objetificação sexual para que a si-
tuação passe a ser problemática (na verdade, MacKinnon dirá que basta, desde que se
tenha a autoridade para fazê-lo – como no caso da discricionaridade do Juiz Stewart (“I
know it when I see it”) que comentaremos na seção 2.1. Stock diz que a teoria que Mac-
Kinnon propõe terá sucesso se ela conseguir nos explicar como fazer para usar o termo
“objetificação sexual” para distinguir corretamente as atividades que devem cair sob esse
conceito. Stock continua:

Of course, their usage of “sexual objectification” as a term is apt, inas-


much as what they refer to can be recognized as a way of treating people
as objects. But they apparently have no pretensions towards uncovering
or even “cleaning up” existing usage, nor in being exhaustive. (STOCK,
2015)
Capı́tulo 1. A pornografia como problema polı́tico 30

E aqui chegamos a um ponto de divergência prática entre a corrente feminista de


MacKinnon e as demais correntes. Ainda que diversos feminismos possam problematizar
a objetificação sexual, serem contra a pornografia ou concordarem em identificar outras
práticas à modos opressão da mulher, apenas a corrente de MacKinnon não está, aparen-
temente, interessada em discutir quais casos são ou não são casos de objetificação sexual,
o que é ou não é pornografia. Tudo isso já está definido na teoria, e a tarefa já não é
discutir o problema, mas sim mostrar às pessoas como elas deveriam enxergar e combater
a situação-problema. A tarefa consiste em “conscientizar” as pessoas.

1.3 O rompimento com o feminismo liberal


Não podemos fazer uma análise do feminismo em geral, nem mesmo restringindo-nos
às correntes que adotaram os grupos de conscientização como método de teorização e
organização polı́tica. Por isso é preciso diferenciar o que MacKinnon chama de “cons-
cientização” e o que na prática ocorre. É que nem todos os grupos tratavam sobre a
pornografia. MacKinnon dá a entender que é a partir dos debates nos grupos de conscien-
tização feministas, em geral, que ela extrai subsı́dios para sua teoria. Trata-se, na verdade,
dos grupos de conscientização que tinham a pornografia como tema. O que aconteceu nos
grupos que se opunham à pornografia foi singular no feminismo, e teve grande influência
no pensamento de MacKinnon e, como ela disse, na formação de sua teoria.
De modo geral, nos grupos de conscientização buscava-se formar uma visão de
mundo a partir de uma perspectiva da mulher. Esse é um modo de buscar conhecimento
e está conectado à “questão epistemológica” da pornografia, mas não pode ser tratado
do mesmo modo como tratarı́amos a busca por conhecimento nos demais grupos feminis-
tas. MacKinnon diz que seu método reflete o processo de formação de conhecimento dos
grupos de conscientização, mas ela trata os grupos como se todos procedessem de modo
caracterı́stico, em particular, fundados sobre uma mesma ética. Isso não é verdade. Ela
diz, sobre os grupos de coscientização em geral:

The characteristic structure, ethics, process, and approach to social


change which mark such groups as a development in political theory
and practice are integral to many of the substantive contributions of fe-
minist theory. The key to feminist theory consists in its way of knowing.
Consciousness raising is that way. (MACKINNON, 1989, p. 84)

Na verdade, nos grupos anti-porn vigia uma ética diferente dos demais grupos.
Principalmente, os valores associados à prática que estava sendo discutida já estavam
previamente definidos ou eram muito pouco discutidos, não havendo espaço para discussão
ou propostas de reformas da prática.
Havia o problema, já referido, de que as mulheres não eram conscientes de sua
subordinação. Elas não viam, dizia MacKinnon, que eram subordinadas através do sexo.
Capı́tulo 1. A pornografia como problema polı́tico 31

Era preciso conscientizá-las disso. O valor de sua teoria está em ela ser uma descrição
formulada de modo a ser útil às mulheres que querem entender sua situação de subor-
dinação. Essa descrição pode revelar às mulheres um novo modo de ver a pornografia,
não necessariamente conectado à realidade, mas que pode ser conectado às suas próprias
experiências de vida, especialmente às experiências de violência sexual, e conectado de
modo positivo, no sentido de colaborar com a compreensão de sua situação.

Consciousness raising socializes women’s knowing. It produces an analy-


sis of woman’s world which is not objective in the positivistic sense of
being a perfect reflection of reality conceived as abstract object [...Cons-
ciousness raising] transforms [knowledge], creating a shared reality that
“clears a space in the world” within which women can begin to move
(MACKINNON, 1989, 101)

Os grupos, então, permitem que se crie um espaço onde as mulheres podem ter
total poder de expor suas experiências e de assim criar uma realidade compartilhada
através da identificação com essas experiências. Os grupos são um espaço de vivência,
portanto, mas também de criação. O método de conscientização praticado nos grupos
busca extrair das experiências pessoais subsı́dios para uma análise que tem por objetivo
reconstruir o sentido da vida social da mulher (MACKINNON, 1989, p. 101). O sentido
da experiência do indivı́duo deve, assim, ser identificado ao sentido do grupo, da mulher
enquanto grupo.
Juliet Mitchell explica o método de conscientização de modo um pouco mais con-
creto:

The process of transforming the hidden, individual fears of women into a


shared awareness of the meaning of them as social problems, the release
of anger, anxiety, the struggle of proclaiming the painful and transfor-
ming it into the political – this process is consciousness-raising.[...]
Detractors deride consciousness-raising sessions as “group therapy”. [...]
In fact, the concept of “consciousness-raising” is the reinterpretation of
a Chinese revolutionary practice of “speaking bitterness” – a reinterpre-
tation made by middle-class women in place of Chinese peasants and in
a country riddled by psychotherapeutic practices. These peasants, sub-
dued by violent coercion and abject poverty, took a step out of thinking
their fate was natural by articulating it. The first symptom of oppres-
sion is the repression of words; the state of suffering is so total and so
assumed that it is not known to be there. “Speaking bitterness” is the
bringing to consciousness of the virtually unconscious oppression; one
person’s realization of an injustice brings to mind other injustices for
the whole group. (MITCHELL, 1971, p. 60)

Portanto, existe o objetivo de que, através da visão de mundo que é formada


nos grupos, através das trocas de relatos entre as mulheres, ocorra o despertar em cada
uma de um sentido de pertencer a uma realidade comum. A expectativa nos grupos é
que a experiência de uma possa revelar-se a experiência de outra, que esteja na mesma
situação. Notamos aqui, também, o quanto a livre expressão é considerada importante
Capı́tulo 1. A pornografia como problema polı́tico 32

para os grupos, que identificam a repressão da palavra com a opressão e a libertação da


palavra a um dos primeiros passos rumo à liberação da mulher.
Através da livre expressão de experiências de opressão vividas – as amarguras
(bitterness) e também a raiva e a ansiedade associadas aos medos individuais que são
externadas publicamente – os grupos buscavam promover a identificação das mulheres
com uma situação comum e o despertar da consciência de classe. Trata-se não de uma
consciência individual, da mulher enquanto indivı́duo, mas da mulher enquanto sujeito
polı́tico, um ser social e coletivo. Essa classe, com a qual as mulheres devem se identificar,
é a própria classe das mulheres, uma classe que não pode ser caracterizada por sua função
social sem que seja feita referência ao sexo.
O que ocorreu nos grupos anti-porn, entretanto, foi singular. Enquanto a ex-
periência em outros grupos de conscientização poderia ser de livre reflexão sobre a si-
tuação da mulher e de investigação de soluções para a superação de sua condição de
subordinação, os grupos anti-porn promoveram um tipo diferente de discussão. A tarefa,
como dissemos, era a de mostrar como a pornografia é a subordinação da mulher e a
causa da subordinação.
Entre os grupos anti-porn que se formaram em meados dos anos 1970 nos Esta-
dos Unidos, dois foram mais influentes: o primeiro a ser formado, o WAVPAM (Women
Against Violence in Pornography and Media) em 1976, e o WAP (Women Against Por-
nography). Após a formação do WAP, a pornografia tornou-se uma questão feminista
popular e começaram a ser difundidas sessões de discussão sobre filmes pornográficos,
muitas vezes em sessões de exibição comentadas que eram promovidas em residências,
escolas e igrejas. Segundo Judith Butler, as feministas anti-porn apontavam às mulheres
o modo como as mulheres eram subordinadas pelos homens através do sexo nesses filmes
e como, em geral, a heterossexualidade era construı́da sobre o modelo da dominação e da
violência (BUTLER, 2003). Tratava-se, portanto, de canalizar medos, angústias e amar-
guras individuais causados pela situação de subordinação das mulheres e direcioná-las
contra a heterossexualidade, utilizando-se da pornografia como imagem que descreveria a
origem de todos os problemas das mulheres.
Outras correntes feministas, como dissemos, buscaram identificar e criticar ideo-
logias que justificassem a superioridade do sexo masculino em áreas como a biologia, a
mı́dia, instituições sociais e polı́ticas. Segundo Gayle Rubin:

Em todas essas áreas as feministas buscaram reformas nas práticas


existentes e mobilizações em direção a atitudes não sexistas. Em ne-
nhum caso as feministas demandaram a abolição da área ou domı́nio
em questão. Nunca houve grupos chamados Mulheres Contra o Cinema,
Mulheres Contra a Televisão ou Mulheres Contra o Romance, mesmo
podendo ser demonstrado que muitos filmes, programas de televisão e
obras de ficção são de fato sexistas. Quando a pornografia tornou-se
uma questão, ela foi tratada de um modo completamente único. [...] Di-
ferentemente de qualquer outra categoria midiática ou de representação,
Capı́tulo 1. A pornografia como problema polı́tico 33

a pornografia foi tratada como estando fora do alcance da salvação fe-


minista. (RUBIN, 1993, p. 19)

Essa postura radical causou um cisma no feminismo. Feministas que não concorda-
vam com a explicação da subordinação da mulher apresentada pelas feministas anti-porn
não tinham como discordar dos conceitos e valores embutidos na teoria. Não tinham nem
mesmo como pedir maiores explicações sobre como, segundo essa perspectiva, a porno-
grafia poderia ocupar esse lugar central na explicação da subordinação da mulher.

Advogadas da posição anti-porn normalmente declaravam que a posição


era autoevidente e não debatı́vel. Elas insistiam que a oposição à porno-
grafia era essencial ao feminismo e que por definição uma feminista não
poderia disputar a posição anti-porn. Aquelas entre nós que discordavam
eram descaracterizadas como feministas ou difamadas com acusações de
estarmos promovendo a violência contra a mulher. (RUBIN, 1993, p.
19)

Para Judith Butler (BUTLER, 2003), MacKinnon é a responsável pela cisão do fe-
minismo em duas correntes bem distintas. Em seu primeiro livro, The Sexual Harassment
of Working Women 2 , de 1979, MacKinnon conseguiu, diz Butler, chamar atenção para
os problemas causados às mulheres em seu ambiente de trabalho decorrentes do assédio
sexual – uma expressão cunhada por MacKinnon e um conceito cuja popularização é em
grande parte mérito dela. Não se tratava, nessa época, de ver no ato sexual um problema
em si, mas sim os problemas que poderiam ocorrer em decorrência de determinadas con-
dutas sexuais no ambiente de trabalho. Se um empregado tem relações sexuais com seu
chefe, como isso reflete na percepção de seus colegas quanto à sua qualificação para o
cargo que ocupa? O que aconteceria se a relação se rompesse? O empregado poderia ter
alguma garantia de que ainda teria seu emprego? Ele sofreria algum tipo de chantagem?
A questão era, portanto, relativa ao problema de misturar vida sexual e vida profissio-
nal. Além disso, as propostas de ação de MacKinnon visavam compreender a situação da
mulher trabalhadora, contextualizando a sexualidade para poder questionar seus efeitos
e identificar se, em determinado caso, houve ou não houve assédio.
A emergência do debate sobre a pornografia nos Estados Unidos tirou a atenção
que vinha sendo dada ao assédio sexual, mas fez isso recuperando teses formuladas a seu
respeito (BUTLER, 2003). No final dos aos 1970, MacKinnon conheceu o trabalho de
Andrea Dworkin, militante feminista radical anti-sex e autora de Pornography: men pos-
sessing women 3 , que tornou-se a principal referência do movimento anti-porn. Segundo
Butler, nesse ponto MacKinnon muda de rumo em suas análises ao acrescentar aos seus
argumentos a seguinte ideia: “os homens têm o poder, as mulheres não têm; e o assédio
2
MACKINNON, C. A. Sexual Harassment of Working Women: A Case of Sex Discrimination. [S.l.]:
Yale University Press, 1979. ISBN 9780300022995.
3
DWORKIN, A. Pornography: Men Possessing Women. First perigee printing edition. [S.l.]: The
Women’s Press Ltd, 1981. ISBN 9780704338760.
Capı́tulo 1. A pornografia como problema polı́tico 34

sexual é um modelo, um paradigma, que permite pensar as relações heterossexuais en-


quanto tais” (BUTLER, 2003). A própria relação heterossexual é, assim, identificada ao
assédio sexual, ou seja, a heterossexualidade é, em si, uma relação abusiva. Por isso,
todo homem sexualmente atraı́do por uma mulher é um abusador (e está abusando dessa
mulher, como veremos no capı́tulo 2) e toda mulher que esteja sexualmente atraı́da por
um homem coloca-se na situação de uma abusada. O que aconteceu nesse momento foi
que MacKinnon extrapolou o modelo do assédio sexual. O assédio sexual passou a ser
compreendido não mais como contingente e restrito ao ambiente de trabalho ou outro
contexto institucional limitado, mas sim, diz Butler:

o assédio sexual se generalizou ao ponto de manifestar uma estrutura


social onde os homens dominam e onde as mulheres são dominadas. As
mulheres eram então sempre vitimas de chantagem, estavam sempre em
um ambiente hostil: mais ainda, o mundo mesmo era um ambiente hostil
e a chantagem não era senão o modus operandi da heterosexualidade.
(BUTLER, 2003)

Na pornografia, MacKinnon encontrou tanto uma descrição apurada, uma imagem


da situação de subordinação sexual vivida pelas mulheres, como um meio de conscienti-
zar as mulheres dessa situação. Entretanto, diferentemente do método de conscientização
praticado nos grupos feministas desde os anos 1960, MacKinnon adota uma forma radi-
cal de conscientização, que dá pouco, ou nenhum, espaço para o debate, tratando sua
perspectiva sobre a pornografia como dogma.
Partindo de situações que já são consideradas, em si, um problema para as mulhe-
res, a teoria de MacKinnon pretende então tratá-las todas em conjunto e localizar no sexo
(sempre pensado enquanto relação heterossexual) tanto a origem como a explicação desse
problemas. O conceito, ao qual ela dá o nome de “pornografia”, é o conceito que deve
ser capaz de capturar e explicar todas essas situações, apresentando-se como alvo ao qual
todos os esforços – teóricos e revolucionários – devem ser dirigidos. Assim, ela procede de
modo análogo aos camponeses chineses do final dos anos 1940 diante dos recém depostos
grandes proprietários de terra, seus já declarados e condenados exploradores, que agora
deveriam cumprir a função de bodes expiatórios de todas as amarguras e da raiva que
deixaram para trás, com o objetivo de, através do compartilhamento das experiências
de opressão, despertar a consciência de que todos pertencem a uma mesma classe de
oprimidos.
Através de sua definição de pornografia, ela tenta fazer as pessoas verem, no
mundo, a situação-problema que ela chama de “pornografia”. Do mesmo modo como era
feito nas sessões de exibição de filmes pornográficos promovidos pelos grupos anti-porn,
MacKinnon argumenta usando imagens, geralmente de extrema violência, mostrando a
nós, seu público (principalmente o público feminino e os juı́zes da suprema corte), onde,
naquelas imagens, devemos ver a violência e a dominação sexual. Ela resume assim aquilo
que devemos ver na pornografia:
Capı́tulo 1. A pornografia como problema polı́tico 35

What in the pornographic view is love and romance looks a great deal
like hatred and torture to the feminist. Pleasure and eroticism become
violation. Desire appears as lust for dominance and submission. The
vulnerability of women’s projected sexual availability, that acting we are
allowed (that is, asking to be acted upon), is victimization. [...] Admira-
tion of natural physical beauty becomes objectification (MACKINNON,
1988a, p. 174)

E Gayle Rubin responde a questão de como a pornografia, ou, aquilo que outras
pessoas chamam de “sexo”, acabou tomando o lugar central na teoria de MacKinnon e em
um problema polı́tico que, controversamente, deveria ser o principal alvo do feminismo:

What distinguishes pornography from other media is the level of sexual


explicitness, not the quantity of violence in its imagery or the quality
of its political consciousness. Why, then, has pornograpy alone been
considered beyond feminst redemption, and its eradication posited as a
condition for female freedom? This breathtaking leap of logic has been
accomplished simply by redefining pornography so that it is sexists and
violent by definition. (RUBIN, 1993, p. 28)

Por isso o feminismo anti-porn de MacKinnon e Andrea Dworkin é chamado


também de feminismo anti-sex, pela identificação arbitrária do sexo, em suas mani-
festações heterossexuais, com a causa da situação de desigualdade e paradigma da opressão
vivida por todas as mulheres. Esse foi o moviento que fez da pornografia um problema
polı́tico.
36

2 A pornografia no debate constitucio-


nal
No inı́cio dos anos 1980, veio a público o caso de violência cometida contra Linda Mar-
chiano (Linda Lovelace) durante a produção de Garganta Profunda, o filme pornográfico
de maior sucesso até então. Andrea Dworkin vinha acompanhando o caso e, através dela,
MacKinnon torna-se advogada de Linda, que pretendia processar os produtores do filme,
entre eles seu ex-marido, por violência sexual. Linda disse que foi forçada pelo marido
a atuar em Garganta Profunda, assim como em outras produções pornográficas. Além
disso, disse que no filme ela não estava realmente fazendo sexo, mas sendo estuprada,
assim como seu marido a estuprava em casa. Duas questões tornavam difı́cil a defesa de
Linda. Primeiro, quem visse Garganta Profunda não diria que ela parecia estar fazendo
algo forçada. Segundo, a ideia de que sexo com o próprio marido, mesmo que envolvesse
força ou até violência, pudesse ser considerado um estupro era uma ideia estranha aos
tribunais norte-americanos. Além disso, havia também a acusação de espancamentos,
mas eles deveriam ser tratados como parte do relacionamento sexual ou em separado?
O espancamento era algo que os juı́zes podiam entender, mas quando a violência estava
associada ao sexo com alguém conhecido, a tendência era considerá-lo como ato sexual e
não como violência sexual. Para MacKinnon, essas interpretações deviam-se ao fato de o
tribunal ser composto por homens, que julgavam uma experiência vivida por uma mulher
de acordo com a perspectiva masculina.
Linda Lovelace passou a ser um caso paradigmático para MacKinnon, e a pergunta
“Como defender Linda?” passou a significar “Como defender a mulher?”. A situação
de violência e abuso sexual vivida por Linda Lovelace era agora, segundo a concepção
de pornografia de MacKinnon e Andrea Dworkin, a mesma situação em que todas as
mulheres viviam. Por isso, combater a pornografia e defender Linda Lovelace nos tribunais
significava combater a subordinação sexual e defender todas as mulheres.

2.1 A epistemologia masculina no judiciário


Catharine MacKinnon contesta o tratamento dado à pornografia pela atual interpretação
da Primeira Emenda1 da constituição dos EUA, que é a peça central do sistema de
liberdade de expressão norte-americano. A Primeira Emenda garante o direito à liberdade
de expressão no sentido negativo de liberdade – liberdade como não interferência. O texto
da emenda diz que o Congresso não deverá, através de nenhuma lei, restringir a liberdade
1
AMENDMENT 1st. 1st Amendment. 1789. Disponı́vel em: hwww.law.cornell.edu/constitution/
first amendmenti.
Capı́tulo 2. A pornografia no debate constitucional 37

de expressão ou de imprensa. Legalmente, nos EUA, entende-se que a pornografia não


causa dano, mas pode estar associada a casos de difamação, que envolvem ofensa. Dano e
ofensa são duas categorias jurı́dicas importantes em disputas que envolvem a liberdade de
expressão. A Primeira Emenda protege o discurso que causa ofensa, mas não o discurso
que causa dano, chamado de “discurso de ódio”. Para MacKinnon, a pornografia deveria
ser tratada como um caso de discriminação sexual – que envolve dano –, em vez de um
caso de difamação – que envolve ofensa. Entendida como forma de discriminação sexual,
a pornografia deveria ser combatida em nome da igualdade de gênero, de forma análoga
à proibição da discriminação religiosa ou racial, que nos EUA está baseada na Décima
Quarta Emenda da constituição.
A crı́tica de MacKinnon ao predomı́nio do pensamento liberal no judiciário norte-
americano dirige-se ao modo como o direito, segundo ela, vê a mulher. Mais precisamente,
ao modo como as questões de gênero são opacas à concepção de sujeito do pensamento
liberal.
MacKinnon extrai essa conclusão da prática jurı́dica. O argumento de MacKinnon
é que: como o direito à liberdade de expressão, nos EUA, não resulta de uma interpretação
direta do texto da Primeira Emenda, mas sim de um conjunto de outras interpretações de
casos envolvendo a liberdade de expressão, que têm a Primeira Emenda como texto prin-
cipal; e como essa interpretação foi feita por homens – segundo a perspectiva masculina –,
o resultado é que as sucessivas mudanças no entendimento da liberdade de expressão não
incluı́ram a perspectiva da mulher e não foram capazes de proteger adequadamente os in-
teresses das mulheres. Foi assim com os casos de obscenidade, o que motivou MacKinnon
a não tentar caracterizar a pornografia como um caso de obscenidade, pois os tribunais,
historicamente, como veremos a seguir, não viram a pornografia como obscenidade.
Inicialmente, entendia-se que a Primeira Emenda proibia a censura prévia, mas não
a censura após a publicação do material. Essa interpretação valia-se de uma separação
entre esfera pública e esfera privada, recomendando a não interferência do governo na
esfera privada de expressão do pensamento, exceto quando a expressão tornava-se pública,
e tinha como inspiração a Common Law, como vemos no comentário de Blackstone sobre
o que é protegido pela liberdade de expressão:

Thus the will of individuals is still left free; the abuse only of that free
will is the object of legal punishment. Neither is any restraint hereby laid
upon freedom of thought or enquiry: liberty of private sentiment is still
left; the disseminating, or making public, of bad sentiments, destructive
of the ends of society, is the crime which society corrects (BLACKS-
TONE, 1872).

Blackstone, continuando, dá um exemplo: “A man (says a fine writer on this


subject) may be allowed to keep poisons in his closet, but not publicly to vend them as
cordials.” (BLACKSTONE, 1872). O “veneno” era a difamação pública:
Capı́tulo 2. A pornografia no debate constitucional 38

malicious defamations of any person, and especially a magistrate, made


public by either printing, writing, signs, or pictures, in order to provoke
him to wrath, or expose him to public hatred, contempt, and ridicule.
(BLACKSTONE, 1872)

Entretanto, a interpretação do direito à liberdade de expressão tomou outro rumo


nos Estados Unidos, passando a ser fundada em uma teoria mais liberal da liberdade de
imprensa e de expressão. Essa mudança começou com uma reação contra o Sedition Act
de 1798, que dava ao governo o poder de processar seus opositores por calúnia e difamação;
definiu-se melhor após a I Guerra Mundial (Schenck v. United States), um caso em que
crı́ticas ao governo foram consideradas um ato de conspiração contra o Governo, punı́vel
pelo Espionage Act de 1917, mas que a Suprema Corte considerou ato de livre expressão,
protegido pela Primeira Emenda; chegando finalmente a virar consenso na Suprema Corte
no anos 1960, no caso NY Times v. Sullivan:

we consider this case against the background of a profound national


commitment to the principle that debate on public issues should be uni-
nhibited, robust, and wide-open, and that it may well include vehement,
caustic and sometimes unpleasantly sharp attacks on government and
public officials. (NY Times v. Sullivan, 1960)

Portanto, era por motivos claramente polı́ticos que defendia-se o direito à liberdade
de expressão. A motivação não era a liberdade sexual, mas sim a vontade de que o debate
sobre questões de interesse público fosse desinibido e robusto, especialmente tratando-se
de crı́ticas a membros do governo. Costumava-se pensar que o sexo não era um tema
de interesse público, mas sim restrito à esfera privada. Essa é outra caracterı́stica do
pensamento liberal, a de que questões de moralidade privada devem ser separadas das
questões públicas. Isso quer dizer que o Estado, para o liberal, não deve interferir na
conduta privada dos indivı́duos.
Caso a pornografia fosse considerada obscena, poderia legalmente ser proibida. Os
casos que motivaram novas interpretações da Primeira Emenda são casos que envolvem
basicamente problemas de interpretação de duas questões: o valor da expressão e a neu-
tralidade da regulação (SILVA, 2009, p. 102). A pornografia não é crime nos Estados
Unidos porque recebe a proteção da Primeira Emenda, porém como expressão de baixo
valor, o que não lhe garante plena liberdade de circulação, mas também não a proı́be,
permitindo que sofra regulação, mas não censura. Entretanto, expressões consideradas
obscenas não têm essa proteção, não sendo consideradas nem ao menos expressão de baixo
valor.
Para MacKinnon, as leis contra a obscenidade adotam a perspectiva do homem
sobre a pornografia, e essa perspectiva não é capaz de enxergar os danos às mulheres
que a perspectiva feminista revela. Por causa disso, essas leis têm o efeito de proteger a
pornografia, quando deveriam censurá-la. Além disso, historicamente, a tarefa legal de
decidir sobre o que era ou não era obsceno esteve nas mãos de homens – não só de juı́zes
Capı́tulo 2. A pornografia no debate constitucional 39

como também de funcionários públicos – e, com base em seus critérios, também a tarefa
de suprimir as expressões consideradas obscenas.
Ainda no século XIX, um dos critérios adotados ficou conhecido na teoria jurı́dica
como “bad tendency test”, e consistia em simplesmente avaliar se a expressão tinha alguma
“inclinação para o mal” para justificar sua repressão (SILVA, 2009, p. 61). O exemplo
de aplicação mais abrangente do teste da “inclinação para o mal” é resultado de uma
lei de 1873, chamada Lei Comstock, que proibia a postagem pelos correios de material
obsceno. Ela deu aos funcionários dos correios e juı́zes o poder de decidir sobre o que era
obsceno, já que não havia definição de obscenidade na lei (SILVA, 2009, p. 57), valendo-se
simplesmente da aplicação do critério da inclinação para o mal. Essa lei exigiu a criação
de um cargo de supervisor dos correios exclusivamente para a tarefa de aplicar a lei. O
próprio Anthony Comstock, autor da lei, foi designado para esse cargo dos correios em
Nova York, onde passou a aplicar um amplo critério de determinação do que é obsceno e
que, ao longo dos 41 anos que exerceu essa função, chegou a incluir literatura médica sobre
o controle de natalidade, artigos opondo-se à regulamentação do casamento, blasfêmia,
“infiéis”, pornógrafos, defensores do “amor livre” (considerados mais ofensivos que os
pornógrafos), defensores da emancipação dos negros, do voto feminino e da transformação
das relações amorosas (SILVA, 2009, pp. 57-8).
Posteriormente, no caso Gitlow v. New York, de 19252 , a Suprema Corte manteve
a condenação do ativista socialista Benjamin Gitlow, que fora inicialmente condenado no
estado de Nova York pelo crime de anarquia – que constava no código penal estadual –
por distribuir panfletos que promoviam greves e outras ações com o objetivo de implantar
um Estado Socialista. O Juiz Edward Sanford aplicou a “inclinação para o mal” em
sua decisão, dizendo que “uma única fagulha revolucionária pode acender um fogo que,
latejando por um tempo, pode irromper em uma conflagração avassaladora e destrutiva.”
(Gitlow v. New York, 1925).
Apesar de ter condenado Gitlow, a decisão foi importante porque, pela primeira
vez, a Suprema Corte entendeu que a Décima Quarta Emenda3 – que trata do direito a
igual proteção da lei, entre outros direitos civis fundamentais – incorporava a liberdade
de expressão contra os estados (SILVA, 2009). A relação entre a igualdade de proteção e
a liberdade de expressão será fundamental no debate entre Dworkin e MacKinnon, mas
será tratada mais adiante.
A Primeira Emenda, conforme a interpretação vigente à época da Lei Comstock,
não era capaz de proteger a liberdade de expressão dessas pessoas quando o ambiente
moral estava em jogo. Entendia-se que não havia danos à liberdade causados pela su-
pressão de materiais que fossem danosos à moral pública (SILVA, 2009, 59). Com base no
2
Gitlow v. New York. Gitlow v. New York, 268 U.S. 652 (1925). 1925. Disponı́vel em: hcaselaw.lp.
findlaw.com/scripts/getcase.pl?court=US&vol=268&invol=652i.
3
AMENDMENT 14th. 14th Amendment. 1868. Disponı́vel em: hwww.law.cornell.edu/constitution/
amendmentxivi.
Capı́tulo 2. A pornografia no debate constitucional 40

teste da “inclinação para o mal” e com o suporte da Lei Comstock, criou-se um ambiente
generalizado de repressão polı́tica, em que todo tipo de ideia considerada heterodoxa foi
perseguida.
O próximo passo na evolução da lei de obscenidade resultou em maiores garantias
de liberdade de expressão àqueles que defendiam o aborto, a contracepção, o amor livre
e a igualdade racial, por exemplo. O teste Hicklin, outro critério usado para identifi-
car material censurável, começou a perder credibilidade quando Ulisses, de James Joyce,
foi censurado com base no teste. Até então, esse teste visava proteger as “mentes vul-
neráveis”, ou seja, crianças e deficientes mentais, da exposição a qualquer parte, por
menor que fosse, de material considerado obsceno, mas depois do julgamento do caso
envolvendo Ulisses, o teste passou a ser aplicado com base no tema dominante da obra e
em seu efeito sobre o “leitor médio”, salvaguardando o ambiente cultural público e adulto
de ser reduzido a um mundo feito para crianças (SILVA, 2013, p. 144).
No caso Jacobellis v. Ohio, de 1964, já entendia-se que a obscenidade era muito
mais restrita do que nos tempos da Lei Comstock. Em 1959, Nico Jacobellis exibiu em
seu cinema o filme “Les Amants”4 , de Louis Malle, que tratava de uma mulher que
cometia adultério com um homem mais jovem, e continha uma cena de sexo. De fato, o
filme chegou a ser conhecido na época como “o filme com a cena de nudez”(NY Times,
2010). A cena em questão era nada mais do que a mão de Jeanne Moreau caindo sobre
os lençóis, uma elı́pse, representando um orgasmo sem mostrar o corpo inteiro dos atores.
Jacobellis foi acusado e condenado por violar o estatuto de obscenidade do estado de
Ohio ao exibir um filme de natureza obscena e prejudicial às crianças (Jacobellis v. Ohio,
1964b), mas recorreu da decisão na Suprema Corte e venceu. O juiz Potter Stewart,
que escreveu uma das opiniões concorrentes da decisão, resumiu que a interpretação do
critério de obscenidade para aplicação em processos criminais, devido à dificuldade de
definir o que era obscenidade, terminava por restringir-se aos casos mais evidentes de
pornografia hard-core (Jacobellis v. Ohio, 1964a). O problema ainda persistia quanto ao
que se entendia por hard-core, para não falar em pornográfico.
O critério aplicado pelo Juiz Stewart para identificar o que é obsceno foi “eu sei que
é quando vejo que é” e, para Stewart, Les Amants não era obsceno. Esse critério tornou-se
alvo de criticas liberais por reintroduzir a discricionaridade no julgamento da obscenidade,
ao mesmo tempo que tentava restringir sua interpretação. De fato restringiu, e ficou muito
mais difı́cil conseguir uma condenação por obscenidade após Jacobellis v. Ohio. O filme
de Louis Malle passou a não ser considerado obsceno, assim como muitı́ssimas outras
obras, e o caso tornou-se um marco na definição de obscenidade e no entendimento da
abrangência da proteção dada pela Primeira Emenda à liberdade de expressão. Essa nova
interpretação de obscenidade permitiu uma explosão da cultura erótica e pornográfica
após a metade dos anos 1960 nos Estados Unidos, precisamente o momento em que a
4
MALLE, L. Les amants. 1959.
Capı́tulo 2. A pornografia no debate constitucional 41

pornografia entrou na agenda polı́tica norte-americana, devido ao repentino aumento de


exposição que passou a ter (SILVA, 2013, p. 148).
Para MacKinnon, entretanto, a perspectiva do homem sobre o que é obsceno não
acompanhou essa evolução, continuando a ser motivo de repressão das mulheres em casos
envolvendo o valor de expressões consideradas obscenas e favorecendo regulações tenden-
ciosas da pornografia, que não davam atenção suficiente à perspectiva das mulheres. O
critério do Juiz Stewart foi entendido como, na verdade, revelador da predominância da
perspectiva do homem sobre a pornografia e a obscenidade e do desprezo com a perspec-
tiva feminina. Para MacKinnon, a questão é como um homem pode “saber o que uma
mulher sabe quando vemos o que nós vemos?” (MACKINNON, 1989, p. 197).
Ela entende que o problema que os liberais veem no critério Stewart é diferente do
problema da perspectiva da mulher, e o apresenta da seguinte forma. O problema dos libe-
rais é com a parcialidade e insuficiência do critério de Stewart – uma preocupação teórica
com um critério demasiadamente abstrato e, por isso, capaz de ser aplicado para suprimir,
em tese, qualquer tipo de material –, enquanto que, para o feminismo, o problema é que a
lei de obscenidade “reproduz o ponto de vista pornográfico sobre as mulheres ao nı́vel da
jurisprudência constitucional”(MACKINNON, 1989, p. 197). E MacKinnon ainda critica
a própria suspeita liberal, acusando-a de não ser autêntica. O problema dos liberais com
o critério Stewart não seria teórico, mas o modo como ele foi exposto. O significado do
critério Stewart, diz MacKinnon, “não tem nada de caprichoso. Ele é totalmente sis-
temático e determinado. Sua exposição é precisamente descritiva e acurada; seu candor
é que atraiu para ele tantas crı́ticas”5 (MACKINNON, 1989, p. 197). MacKinnon diz,
com ironia, que o Juiz Stewart teria recebido crı́ticas da parte dos liberais porque “ele
revelou que o padrão de obscenidade – e ele não é único – é construı́do sobre o que o
ponto de vista masculino vê” (MACKINNON, 1989, p. 197), assim como acontece com
a pornografia. Os liberais estariam, portanto, revoltados com a franqueza em si do modo
como o Juiz Stewart expôs a vergonha da discricionaridade que vigia nos tribunais e a
predominância da visão do homem nos julgamentos de obscenidade.
A interpretação de obscenidade de Jacobellis v. Ohio foi superada em 1973 no
caso Miller v. California6 , quando passou a ser entendida do modo como é entendida
nos Estados Unidos até hoje. Desde Miller v. California, para ser considerada obscena,
uma fotografia, filme, livro ou qualquer outra publicação deve conter representações ou
descrições de determinados atos ou condutas sexuais patentemente ofensivos, tal como
definido em lei estadual e segundo padrões comunitários contemporâneos, e que apelem
para interesses estritamente sexuais, como o objetivo de provocar o desejo ou excitação
sexual (SILVA, 2009, p. 103). Entretanto, isso quando a publicação é considerada como
um todo e, como um todo, não tenha nenhum valor artı́stico ou polı́tico ou cientı́fico. Essa
5
Grifo meu.
6
Miller v. California. Miller v. California, 413 U.S. 15 (1973). 1973. Disponı́vel em: hwww.law.
cornell.edu/supremecourt/text/413/15i.
Capı́tulo 2. A pornografia no debate constitucional 42

definição protege a representação artı́stica de atos sexuais, não só da nudez e do sexo na
arte, mas também em descrições de atos sexuais em livros como O Amante de Lady
Chatterley, e em outras formas que não são artı́sticas mas que têm o objetivo de informar,
como jornais e revistas, e o objetivo de ensinar, como livros de medicina e biologia, por
exemplo. Apesar de ser possı́vel argumentar que determinada fotografia, filme, livro,
ilustração de revista ou livro de medicina possa ser excitante, despertar desejo sexual
ou servir a alguma finalidade associada à conduta sexual do indivı́duo, para considerar
alguma dessas expressões obscenas é preciso mostrar que, consideradas como um todo,
seu tema predominante é a representação ou descrição de conduta sexual patentemente
ofensiva.
Miller v. California fez com que os critérios usados para determinar o que é
ofensivo, nos Estados Unidos, fossem estabelecidos por leis estaduais, e passassem a aderir
aos padrões de cada comunidade. Para isso, os estados precisaram construir suas prórias
definições de obscenidade (SILVA, 2013, p. 146).
Mais adiante veremos que, para MacKinnon, é a excitação sexual que de fato
determina o que é pornográfico. Ela tentará definir a pornografia, portanto, não como
um tipo de conteúdo, mas como um ato: o ato sexual, do qual a excitação sexual é parte
essencial. Nesse movimento, as concepções anti-porn de MacKinnon passam a equivaler,
ou, a confundirem-se, com os esforços e concepções anti-sex de Andrea Dworkin, e a
tentativa de censurar a pornografia anda junto com a tentativa de eliminar o coportamento
que elas de fato consideram ofensivo, que é qualquer forma de excitação sexual do homem
pela mulher em condições consideradas de desigualdade, segundo os próprios critérios do
feminismo anti-porn.
Os padrões comunitários para determinar o que é obsceno, que Miller v. California
estabeleceu, entretanto, também não são satisfatórios para MacKinnon. O feminismo,
segundo MacKinon, não pode tratar a pornografia como um caso de obscenidade, porque
essa é uma questão moral que não corresponde à moralidade feminista, pois está baseada
na perspectiva do homem. Na próxima sessão veremos como MacKinnon tentou codificar
em lei a moralidade feminista anti-porn para combater, nos tribunais, a “perspectiva do
homem”. Como vimos, o que MacKinnon quer dizer com “perspectiva do homem” é que,
casos relacionados à pornografia, enquanto obscenidade, que fossem levados aos tribunais
por mulheres, segundo suas próprias perspectivas sobre a obscenidade, seriam julgados
por homens e, por isso, dificilmente teriam chance de vencer, por não terem a perspectiva
das mulheres representada nas leis de obscenidade.
Entretanto, MacKinnon diz que não está tratando a pornografia como uma questão
de moral, mas como uma questão de violência e discriminação sexual. “From the feminist
perspective, obscenity is a moral idea; pornography is a political practice”(MACKINNON,
1989, p. 196). Com isso ela quer distanciar-se dos moralistas religiosos, por exemplo, no
sentido de que não pretende prescrever a conduta sexual que homens e mulheres devem
Capı́tulo 2. A pornografia no debate constitucional 43

adotar tendo como base para isso um texto, uma lei, ditada pela autoridade inquestionável
de alguma deidade. Entretanto, sua proposta é moralizante sim. Ela critica a pornografia,
proscreve uma série de condutas associadas a ela, com a diferença de que ela está ques-
tionando a autoridade de uma determinada moralidade sexual ditada, segudo ela, por
homens, em vez de deuses. Mais especificamente, ditada pela conduta sexual masculina
e heterossexual.

2.2 O projeto de lei anti-porn


A perspectiva que MacKinnon tenta introduzir na lei – a da pornografia enquanto dis-
criminação sexual – pretende fazer da pornografia um problema polı́tico relacionado à
igualdade em vez de um problema moral – envolvendo ofensa e difamação – associado à
liberdade de expressão. Ao decidir tratar a pornografia como problema polı́tico, não será
propriamente pelos danos ao ambiente moral que MacKinnon justificará a proibição da
pornografia. De fato, ela diz que “a obscenidade enquanto tal provavelmente causa pouco
dano”, enquanto a pornografia “contribui causalmente com atitudes e comportamentos de
violência e discriminação que definem o tratamento e o status de metade da população.”
(MACKINNON, 1989, p. 197). Comentei que, para MacKinnon, a pornografia é um
comportamento, um conjunto de práticas associadas à produção e ao consumo de mate-
rial pornográfico, cujo centro é a excitação sexual, e que precisam ser combatidas. Para
isso é que ela tenta provar nos tribunais a relação entre pornografia e a subordinação das
mulheres pelos homens.
A oportunidade aparece em 1983, enquanto MacKinnon e Andrea Dworkin davam
um curso sobre pornografia na Faculdade de Direito da Universidade de Minessota. A
prefeitura de Minneapolis havia formado uma comissão de zoneamento que tinha a tarefa
de definir restrições aos locais onde poderia ser exposto material sexualmente explı́cito.
MacKinnon foi convidada para testemunhar para a comissão, que esperava receber seu
apoio à restrição de atividades comerciais relacionadas à pornografia – como livrarias e
cinemas, mas também bares e saunas. Em vez disso, MacKinnon propôs a proibição total.
Ciente da proteção que a liberdade de expressão dava a essas atividades, pois
recomendava apenas sua regulação, mas não censura, MacKinnon sugeriu à comissão de
zoneamento que entendesse a pornografia não como expressão a ser regulada, mas como
uma forma de discriminação sexual. Ela propôs que a comissão apresentasse uma lei anti-
porn, na forma de uma emenda à lei municipal de proteção contra discriminação sexual.
Ela e Andrea Dworkin foram contratadas pela prefeitura para redigir essa proposta – que
nos Estados Unidos é chamada de “ordenação” (ordination) e conhecida na literatura
como “Ordenação de Minneapolis” (Minneapolis Ordination).
Já era do entendimento da lei vigente que a discriminação racial, religiosa e se-
xual deveria ser combatida, por afetar as oportunidades de emprego, educação, acesso aos
Capı́tulo 2. A pornografia no debate constitucional 44

serviços públicos, saúde, segurança e bem-estar dos cidadãos. Para MacKinnon, entre-
tanto, era preciso acrescentar a pornografia à lista de práticas consideradas discriminação
sexual e como causadora dos mesmos prejuı́zos de acesso a bens sociais que as formas de
discriminação já reconhecidas. O objetivo da ordenação era o de “prevenir e proibir todas
as práticas de subordinação sexual ou desigualdade [que ocorrem] através da pornografia”
(MACKINNON, 1983) e dar às pessoas, especialmente às mulheres, uma ferramenta que
serviria, nos termos de MacKinnon, para “revidar (fight back ) o dano causado a qualquer
uma pela pornografia, através da abertura de um processo civil contra os pornógrafos”
(MACKINNON, 1988).
Precisamente, segundo a ordenação, três práticas associadas à pornografia deve-
riam ser proibidas: a subordinação; o tráfico; e a coerção através da pornografia. Como os
tribunais estavam dominados pela perspectiva do homem sobre o que é a pornografia, na
Ordenação de Minneapolis MacKinnon tratou de definir um alvo preciso, positivando uma
interpretação da pornografia que codificasse os sentidos e os valores que ela e as mulheres
nos grupos de conscientização (anti-porn) encontraram na pornografia, e a pornografia
foi definida da seguinte forma:

Pornografia é uma forma de discriminação sexual baseada em sexo.


(1) Pornografia é a subordinação sexualmente explı́cita de mulheres, re-
presentada graficamente, seja em imagens ou em palavras, que também
incluam uma ou mais das seguintes:
(i) mulheres aparecem desumanizadas como objetos sexuais, coisas ou
commodities; ou
(ii) mulheres aparecem como objetos sexuais que apreciam dor ou hu-
milhação; ou
(iii) mulheres aparecem como objetos sexuais que sentem prazer sexual
quando estupradas; ou
(iv) mulheres aparecem como objetos sexuais amarradas ou cortadas ou
mutiladas ou esfoladas ou fisicamente feridas; ou
(v) mulheres aparecem em posturas de submissão sexual; ou
(vi) partes do corpo da mulher – incluindo mas não limitando-se a vagi-
nas, seios e ânus – são exibidos, de modo que as mulheres sejam reduzidas
a essas partes; ou
(vii) mulheres aparecem como prostitutas por natureza; ou
(viii) mulheres aparecem sendo penetradas por objetos ou animais; ou
(ix) mulheres aparecem em cenários de degradação, injúria, abjeção,
tortura, mostradas como vulgares ou inferiores, sangrando, esfoladas ou
machucadas em um contexto que torna essas condições sexuais.
(MACKINNON, 1983)

A discriminação por tráfico consistiria na “produção, venda, exibição ou distri-


buição de pornografia” (MACKINNON, 1983). MacKinnon, neste ponto, faz uma con-
cessão às “bibliotecas municipais, estaduais e federais que recebam recursos públicos ou
bibliotecas de universidades e faculdades públicas ou privadas onde a pornografia esteja
disponı́vel para estudo” (MACKINNON, 1983), que estas não estariam sujeitas a ações
civis por tráfico. Entretanto, exibir pornografia com destaque especial em qualquer desses
lugares ainda seria considerado discriminação sexual.
Capı́tulo 2. A pornografia no debate constitucional 45

No tratamento dado à coerção, MacKinnon incluiu outra longa lista, dessa vez de
provas que não poderiam ser usadas como argumento que negasse a prática de coerção.
Deverim ser desconsiderados os seguintes argumentos:

(i) que a pessoa é um mulher; ou


(ii) que a pessoa é ou foi uma prostituta; ou
(iii) que a pessoa atingiu a maioridade; ou
(iv) que a pessoa está conectada por sangue ou casamento a qualquer
um dos envolvidos ou associados à produção da pornografia; ou
(v) que a pessoa já havia tido, ou pensou-se que tivesse, relações sexuais
com qualquer outra pessoa, inclusive qualquer um dos envolvidos na ou
associados à produção da pornografia; ou
(vi) que a pessoa já havia posado para fotos sexualmente explı́citas para
ou com qualquer um, inclusive qualquer um dos envolvidos na ou asso-
ciados à produção da pornografia em questão; ou
(vii) que qualquer outro, inclusive um marido ou outro parente, tenha
dado permissão em nome da pessoa; ou
(viii) que a pessoa de fato consentiu no uso da performance que foi trans-
formada em pornografia; ou
(ix) que a pessoa sabia que o propósito dos atos ou eventos em questão
era o de produzir pornografia; ou
(x) que a pessoa não demonstrou resistência ou aparentou cooperar ati-
vamente nas sessões fotográficas ou nos eventos sexuais que produziram
a pornografia; ou
(xi) que a pessoa assinou um contrato, ou deu declarações afirmando a
intenção de cooperar com a produção de pornografia; ou
(xii) que não foram usadas força fı́sica, ameaças ou armas na produção
da pornografia; ou
(xiii) que a pessoa foi paga ou compensada de alguma outra forma.
(MACKINNON, 1983)

Em Minneapolis, a ordenação foi vetada pelo prefeito, mas outra ordenação de


igual teor, baseada na redação de MacKinnon e Andrea Dworkin, foi aprovada no estado
de Indiana, na cidade de Indianapolis, em 1984 – e ficou conhecida como a “Ordenação de
Indianapolis” (Indianapolis Ordination). A decisão foi contestada por um grupo liderado
pela American Booksellers Association. O julgamento foi realizado pelo Tribunal de
Apelações de Indiana (Seventh Circuit Court of Appeals) no caso American Booksellers
Association v. Hudnut7 ) e foi presidido pelo Juiz Easterbrook. Foi julgado que a proposta
de MacKinnon violava a Primeira Emenda, pois tentava legislar sobre o conteúdo do
material pornográfico, efetivamente favorecendo um ponto de vista sobre o assunto em
detrimento de outras possı́veis opiniões.
No voto que declarou a inconstitucionalidade da Ordenação de Indianapolis, o
Juiz Easterbrook teve que primeiro determinar se tratava-se de uma variante da lei de
obscenidade. Caso fosse, haveria suporte jurı́dico para aprová-la, com base em Miller
v. California. Easterbrook reconhece o objetivo de MacKinnon de distinguir pornografia
de obscenidade e de tratá-la do mesmo modo como outras formas reconhecidas de dis-
criminação. Observa também que a definição de pornografia apresentada não pretende
7
ABA v. Hudnut. American booksellers association v. hudnut (7th cir. 1985). 1985. Disponı́vel em:
hwww.bc.edu/bc org/avp/cas/comm/free speech/hudnut.htmli.
Capı́tulo 2. A pornografia no debate constitucional 46

apelar a padrões comunitários de ofensa ou decência, mas sim chamar atenção para de-
terminadas representações, sendo irrelevantes, para a definição, o caráter da obra como
um todo e também seu valor literário, artı́stico, polı́tico ou cientı́fico. Como não apelava
para os critérios estabelecidos em Miller v. California, não trava-se de uma variante da
lei de obscenidade (STONE, 2010, p. 1221).
Não são os argumentos sobre o valor das obras ou das condutas que foram julgados,
mas sim o modo como a ordenação discrimina ideias com base no conteúdo do discurso.
A redação da ordenação aprovada em Indianapolis trazia também a longa e detalhada
definição de pornografia citada acima. Segundo esses critérios, seria possı́vel detectar
representações ou descrições particulares que seriam, por si mesmas, causas suficientes
dos danos às mulheres apontados pela lei. Foi por tratar de representações particulares
– aquelas capturadas por sua definição de pornografia – que a ordenação foi entendida
como tentativa de censura com base no ponto de vista – ou censura de conteúdo.
Ele distingue os grupos que se formaram em torno da questão, com pontos de
vista diferentes. De um lado estão os que acham que a proibição da pornografia terá um
papel importante na redução da tendência dos homens de verem as mulheres como objetos
sexuais; de outro estão grupos como o FACT (Feminists Against Censorship Taskforce),
que uniu-se à American Bookseller Association como amicus curiae, e que acham que
a proibição atingirá muito mais do que seu alvo declarado, potencialmente suprimindo
inclusive muitas obras feministas – que apresentam mulheres em uma ou mais das formas
proibidas pela ordenação – além de obras de reconhecido valor literário, desde o Ulisses,
de Joyce até a Ilı́ada, de Homero.

Many feminst activists, including Adrienne Rich and Betty Friedan, sig-
ned the FACT brief. It outlined the reasons these feminists opposed
restrictions on sexual imagery and how such laws could be used to res-
trict information on sexuality, abortion and birth control, as happened
in the late nineteenth and early twentieth centuries. Allied with the
American Civil Liberties Union, FACT is not convinced that acts are
affected by images and expresses concern that allegations by women to
the contrary characteristically support victimology. (SLAVIN, 1995, p.
194)

Easterbrook entende que o objetivo da emenda apresentada pela ordenação é o


de alterar o comportamento de homens e mulheres. Mas objetivo gera um conflito de
valores. A erradicação desses comportamentos é considerada, para os propositores da
ordenação, prioritária em relação a outros valores que a liberdade de expressão protege
– e Easterbrook cita MacKinnon “se uma mulher é subjugada, por que deveria importar
que a obra tenha outro valor?” (MACKINNON, 1985).
Segundo o voto do Juiz Easterbrook, a tentativa de tornar legal o discurso que
trata as mulheres da maneira aprovada pelos apoiadores da ordenação e ilegal o dis-
curso segundo os critérios também fornecidos por eles, não importando as qualidades
artı́sticas ou polı́ticas da obra como um todo, é uma tentativa proibida pela constituição
Capı́tulo 2. A pornografia no debate constitucional 47

norte-americana por favorecer uma perspectiva e silenciar perspectivas oponentes (ABA v.


Hudnut, 1985). O tribunal concluiu que a emenda tratava da regulação da expressão e não
da conduta associada à produção e consumo de material pornográfico, sendo necessária
uma justificativa mais forte que as apresentadas, uma que demonstrasse o interesse em
reduzir a discriminação sexual e não em censurar uma opinião concorrente. Para Easter-
brook, o significado principal da Primeira Emenda é de que o Estado não pode restringir
nenhuma forma de expressão por causa das ideias que ela transmite e que “de acordo com
a Primeira Emenda, o governo deve deixar para o povo a avaliação das ideias” (ABA v.
Hudnut, 1985).
Nesse julgamento, Easterbrook dá uma resposta constitucional ao “argumento da
subordinação” de MacKinnon. Ele aceita a premissa da perspectiva feminista de que
a pornografia é capaz de influenciar as pessoas a tratarem as mulheres como objetos
sexuais, de estabelecer o que é esperado que uma mulher faça e também como o homem
deve tratar as mulheres, e de que isso pode levar à perpetuação do status de subordinação
das mulheres que, por sua vez, conduz às práticas de discriminação e prejuı́zos de acesso
aos bens sociais apontados por MacKinnon. Entretanto, para Easterbrook

Ainda sim, isso simplesmente demonstra o poder da pornografia en-


quanto discurso. Todos esses infelizes efeitos dependem de intermediação
mental. A pornografia afeta como as pessoas veem o mundo, seus pares
e relações sociais. Se a pornografia é o que a pornografia faz, do mesmo
modo outros discursos o são. Os dicursos de Hitler afetaram como al-
guns alemães viam os judeus. O comunismo é uma visão de mundo, não
apenas um manifesto de Marx e Engels ou um conjunto de discursos.
As tentativas de suprimir o discurso comunista nos Estados Unidos es-
tavam baseadas na crença de que a aceitação de tais ideias pelo público
aumentariam as chances de um governo totalitário. As religiões afetam
a socialização de maneiras as mais pervasivas. A opinião em Wisconsin
v. Yoder [...] mostra como uma religião pode dominar todo um modo
de vida, governando muito mais que a relação entre os sexos. O Alien e
o Sedition Act aprovados durante o governo de John Adams baseavam-
se na crença sincera de que o desrespeito ao governo leva ao colapso
social e à revolução – uma crença com suporte na história de muitas
nações. A maioria dos governos no mundo age com base nessa regu-
laridade empı́rica, suprimindo o discurso crı́tico. Nos Estados Unidos,
entretanto, a força do suporte a essa crença é irrelevante. A difamação8
é discurso protegido a menos que o perigo seja não apenas grave mas
também iminente.
A intolerância racial, o antissemitismo, a violência na televisão, in-
clinações de jornalistas – essas e muitas outras influenciam a cultura
e modelam nossa socialização. Nenhuma pode receber uma resposta di-
reta através de mais discurso, a não ser que esse discurso também tenha
seu lugar na cultura popular. Mesmo assim, todas são discurso prote-
gido, não importa o quanto sejam insidiosas. Qualquer outra resposta
coloca o governo no controle de todas as instituições da cultura, faz dele
o grande censor e diretor de quais pensamentos são bons para nós. (ABA
v. Hudnut, 1985).
8
Seditious libel : Libelo sedicioso.
Capı́tulo 2. A pornografia no debate constitucional 48

Diferentemente da obscenidade, que até mesmo MacKinnon considera que não tem
poder de causar nenhum dano relevante, a pornografia, sim, tem poder, mas de afetar
o comportamento e a visão das pessoas. Esses comportamentos, entretanto, não são
o resultado de um condicionamento. Eles dependem de intermediação mental, ou seja,
as pessoas são consideradas, por Easterbrook, capazes de distanciarem-se daquilo que
consomem e refletirem sobre suas ações, são consideradas capazes de autodeterminação.
Moralmente, a decisão de Easterbrook acompanha a opinião das feministas do
FACT.

In reply to the argument of the city of Indianapolis that pornography


conditions the male orgasm to female subordination, making such su-
bordination a stimulus to a “natural physiological response” and thus
leaving “no more room for further dabate than does shouting ’kill’ at an
attack dog,” the FACT brief declared: “Men are not attack dogs, but
morally responsible human beings.” (MERCK, 2000, pp. 93-4)

Constitucionalmente, se fosse aceito que um discurso pode ser censurado porque


afeta o comportamento das pessoas, então outros discursos, que também têm esse poder,
também poderiam ser censurados, e isso seria verdade em relação a todo tipo de discurso
que a constituição considera discurso de valor (valuable speech). Ainda, o efeito disso seria
colocar nas mãos do estado o poder de decidir sobre quais pensamentos as pessoas podem
ou não podem ter, sobre o que é bom ou não para a cultura. Esse poder deve ficar nas
mãos do povo. Essa é uma expressão da tese liberal de que o Estado deve ser concebido
como árbitro neutro nessas questões. O povo é que deve ficar com o poder de, através
do livre debate de ideias, com a proteção da liberdade de expressão, combater os “efeitos
indesejados” do discurso difamatório, isto é, combatê-los través de mais discurso, não de
menos.
Então, o “argumento da subordinação”, ao tentar mostrar a eficácia da pornogra-
fia em subordinar as mulheres, acabaria revelando-se uma justificativa para a proteção
constitucional da pornografia. Isso, bem entendido, considerando que o tribunal não
encontrou nenhuma justificativa aceitável da caracterização do dano provocado pela por-
nografia (não reconheceu a existênia de uma relação causal entre pornografia e dano, como
veremos na seção seguinte). Na falta de tal demonstração, o que resta é um argumento
que demonstra justamente o valor da pornografia enquanto discurso.
Para MacKinnon, Easterbrook teria aceitado seu argumento de que existe uma
relação causal entre pornografia e discriminação sexual. Por isso ela protesta contra
a decisão dele de declarar inconstitucional a ordenação de Indianapolis, pois aceitar a
existência dessa relação causal seria, para MacKinnon, aceitar a justificativa necessária
para a aprovação de seu projeto de lei – pois a censura é inconstitucional, a não ser que
seja comprovado que determinada forma de expressão causa dano, no sentido relevante
de dano, que já comentamos anteriormente.
Capı́tulo 2. A pornografia no debate constitucional 49

Ronald Dworkin diz que Easterbrook aceitou as premissas do argumento de Mac-


Kinnon apenas pelo bem do argumento constitucional que ele estava apresentando. Se-
gundo Dworkin, o que Easterbrook está argumentando é que “a Primeira Emenda [...]
proı́be o banimento de material por que ele possa produzir efeitos perigosos de tal ma-
neira” (DWORKIN, 2005a, p. 241). Isto é, é inconstitucional censurar os pensamentos,
ainda que perigosos, que as pessoas possam vir a ter em função do consumo de determi-
nado material. MacKinnon discorda de ambos e diz que esse não era seu argumento, nem
nos anos 1980, na ordenação de Indianapolis, nem nos anos 1990, em Only Words. Ela
explica da seguinte maneira a natureza dessa relação que ela chama de causal:

the court misses Indianapolis’s argument in the same way Professor


Dworkin misses ours. Both Indianapolis and my book argue that what
matters for law is how pornography affects behavior, not “thoughts”; the
ordinance made some of that behavior, and no thoughts, actionable. Our
argument is not that ideas and actions are causally connected, although
they no doubt are. It is that pornography is factually connected in
many ways to a whole array of tangible human injuries. (DWORKIN;
MACKINNON, 1994)

Nessa observação, MacKinnon diz que a pornografia está factualmente (o grifo na


citação é meu) conectada a toda uma gama de danos humanos palpáveis. Ela quer separar
um comportamento – que é o consumo de pornografia – dos pensamentos que o consumo
possa estimular (ou causar) nas pessoas. Estar factualmente conectada significa algo di-
ferente de “ser a causa”. Aqui, MacKinnon está acusando a pornografia de envolvimento
em atos de violência e discriminação, mas não de ser a causa. São casos, por exem-
plo, de estupradores condenados e que, em seus depoimentos, declararam ter consumido
pornografia antes de cometerem o crime. MacKinnon não quer negar que a pornografia
influencie o comportamento desses estupradores, mas agora ela diz algo diferente. Ela diz
que o fato de o consumo de pornografia ser um dos eventos pertencentes a uma cadeia de
eventos que conduz à violência sexual já é suficiente para associar causalmente a porno-
grafia à execução do crime. Não é preciso provar que o consumo de pornografia levou ao
comportamento violento. Para MacKinnon, o que interessa ao direito é o modo como a
pornografia afeta comportamentos, não pensamentos. Ela está certa, pois, segundo Eas-
terbrook, seria inconstitucional censurar a pornografia por ela afetar pensamentos. Mas
se ela separa o comportamento de consumir pornografia do comportamento de cometer
um ato de violência sexual, e a relação entre esses dois eventos é apenas uma sequência
histórica de acontecimentos, e não uma relação de influência de um evento sobre o ou-
tro, o que ela está argumentando é que o próprio consumo de pornografia, em si, é um
dano humano palpável – pertencente a uma vasta gama de danos relacionados, ainda que
apenas factualmente relacionados. Essa é uma expressão do argumento de MacKinnon
de que a pornografia não é discurso, mas sim um ato – que “a pornografia é o que a
pornografia faz”. Aqui, o que ela critica é que nem o tribunal que a julgou nem Ronald
Dworkin entenderam que esse era seu argumento.
Capı́tulo 2. A pornografia no debate constitucional 50

Easterbrook trata a pornografia essencialmente como forma de expressão, como


discurso. É um discurso como muitos outros, ou seja, não há nada particularmente especial
na pornografia. Como outros discursos, a pornografia é também capaz de influenciar
comportamentos. Conduta e expressão estão aqui separadas uma da outra, assim como
MacKinnon pretende fazer. Mas Easterbrook interpreta a fórmula de MacKinnon, que diz
que “a pornografia é o que a pornografia faz”, de um modo diferente do que MacKinnon
espera. Para Easterbrook, o que a pornografia faz é influenciar comportamentos que
alteram relações de fato entre pessoas no mundo, ela mesma não é um ato de discriminação.
Além disso, o envolvimento factual da pornografia em casos de violência sexual não é
suficiente para traçar uma relação causal entre pornografia e violência. Considerando-se
os fatos, coletados de estudos empı́ricos que pretendem estabelecer a relação causal entre
pornografia e violência, e que foram apresentados por MacKinnon ao tribunal, Easterbrook
diz que:

The social science studies are very difficult to interpret, however, and
they conflict. Because much of the effect of speech comes through a pro-
cess of socialization, it is difficult to measure incremental benefits and
injuries caused by particular speech. Several psychologists have found,
for example, that those who see violent, sexually explicit films tend to
have more violent thoughts. But how often does this lead to actual vio-
lence? National commissions on obscenity here, in the United Kingdom,
and in Canada have found that it is not possible to demonstrate a direct
link between obscenity and rape or exhibitionism. [...] In saying that
we accept the finding that pornography as the ordinance defines it leads
to unhappy consequences, we mean only that there is evidence to this
effect, that this evidence is consistent with much human experience, and
that as judges we must accept the legislative resolution of such disputed
empirical questions. (ABA v. Hudnut, 1985).

MacKinnon acredita que censurando a pornografia, ela estaria combatendo atos


de discriminação sexual, enquanto Easterbrook acredita que trata-se apenas de censura a
ideias que podem influenciar como essas pessoas decidem tratar as mulheres. A pornogra-
fia pode estar envolvida em uma cadeia de eventos que resulta em atos de discriminação
contra a mulher, mas essa cadeia passa por intermediação mental, ou seja, pela reflexão
das pessoas sobre aquilo que fazem. Não existem evidências conclusivas de que a porno-
grafia cause os comportamentos que a ordenação proposta por MacKinnon visa eliminar.
Não está suficientemente provado que a pornografia de alguma forma dá ordens a alguém,
comande ou coaja. Mesmo assim, Easterbrook não nega que existam evidências de que
esse tipo de influência ocorra. Entretanto, apesar de condizente com comportamentos
humanos observáveis, os consumidores de pornografia são considerados sempre capazes
de distanciarem-se daquilo que consomem e refletir sobre seus atos. Quando MacKinnon
diz que a pornografia não é discurso, mas sim um ato, ela está pensando justamente o
contrário. MacKinnon pensa que a pornografia é um tipo especial de discurso, capaz de
comandar as pessoas, na maioria homens e heterossexuais, a fazer aquilo que a pornografia
diz. Veremos em mais detalhes esse argumento mais adiante.
Capı́tulo 2. A pornografia no debate constitucional 51

Ronald Dworkin entende que Easterbrook não aceitou o argumento de MacKinnon


de que existe uma relação causal entre pornografia e violência, mesmo que ele tenha
aceitado que, sim, o consumo de pornografia tenha influenciado o comportamento de
criminosos. Easterbrook estaria dando o benefı́cio da dúvida a MacKinnon. Ao mesmo
tempo, ele está afirmando valores e princı́pios caros ao pensamento liberal. Easterbrook
está atribuindo às pessoas a responsabilidade por seus atos e o poder de tomarem decisões
com base em suas próprias ideias. É o que ele afirma ao dizer que “de acordo com a
Primeira Emenda, o Governo deve deixar para o povo a avaliação das ideias”. O Estado
não pode interferir no processo mental dos indivı́duos, que devem ser considerados capazes
de, por si mesmos, refletirem sobre as diversas ideias que possam influenciá-los em sua
tomada de decisão e a comportarem-se de acordo com essas escolhas – comportamento,
esse sim, pelo qual serão julgados, e não pelas diversas ideias que eles possam, no processo
de tomada de decisão, ter considerado ou ideias das quais sofreram influência em seu
processo mental. Esse é um aspecto da liberdade de expressão que a conecta também à
liberdade de consciência.
Se existisse uma conexão causal entre a produção, a distribuição ou o consumo
de pornografia e a violência, então seria constitucional censurá-la, como é o caso dos
discursos de ódio, quando existe um “perigo claro e iminente” associado à expressão.
Não é protegido pela liberdade de expressão o discurso que coloca em risco a vida de
pessoas como, por exemplo, gritar “fogo!” dentro de um teatro lotado. O pânico, o
caos e possivelmente lesões fı́sicas ou danos ainda maiores decorrentes de uma tal atitude
irresponsável não são redimidos por apelo à liberdade de expressão. A pessoa que grita
“fogo!” em um teatro lotado será responsabilizada por esse ato.
Mas por que MacKinnon pensa que Easterbrook aceitou seu argumento, quando
ele tão claramente diz que não aceita o argumento, que ele é insuficiente? Um dos motivos
é que ela está considerando que mesmo que a pornografia não cause violência, a própria
fantasia sexual e a circulação dessas imagens é também um comportamento que pode
ser caracterizado como dano no sentido relevante para uma ação com base na primeira
emenda. Trata-se do caso em que MacKinnon argumenta que a circulação da porno-
grafia deveria ser considerada um tipo de conspiração contra as mulheres. O discurso
conspiratório também não é protegido pela primeira emenda. Um grupo que se reúne
para acordar os termos da formação de um cartel não pode defender-se da acusação de
formação de cartel por apelo a sua liberdade de expressão. MacKinnon compara esse caso
com o do consumo privado de pornografia. Mesmo que os homens não cometam os atos
de violência contra as mulheres que Easterbrook reconheceu que ocorrem, ainda assim os
homens estariam cometendo o crime de conspiração para execução de um crime, segundo
MacKinnon, ao consumirem ou distribuı́rem pornografia.
O argumento da conspiração não é muito discutido na literatura e nem foi tratado
por Ronald Dworkin, por isso não vamos tratar dele em extensão aqui. Diremos apenas
Capı́tulo 2. A pornografia no debate constitucional 52

que o argumento da conspiração é baseado na definição de tráfico que consta na ordenação


de Minneapolis. A formação de clubes privados para a prática de tráfico – nos termos em
que foi definida tal prática – deveria ser considerada “conspiração para violar os direitos
civis das mulheres” (MACKINNON, 1983).
É importante notar que, por causa de sua definição abrangente de pornografia,
MacKinnon é capaz de derivar caracterizações de dano que extrapolam em muito nossa
experiência ordinária da pornografia. Quem pensaria que dois ou mais homens, reunidos
em volta de uma revista pornográfica, olhando fotos de mulheres nuas, merecem ser
punidos, não por cometerem um estupro, mas por lerem uma revista pornográfica? Talvez,
quem pense que eles estão tramando um plano com o objetivo de estuprá-la. Mas e se eles
não chegam a cometer o estupro? Ainda assim, alguém poderia pensar que ler a revista
já é o estupro. E esse é o outro motivo que leva MacKinnon a pensar que Easterbrook
aceitou seu argumento de que existe uma relação causal entre pornografia e violência
sexual, que veremos agora.

2.3 O “argumento da subordinação” fora dos tribunais


Após a derrota nos tribunais, MacKinnon coloca-se contra a interpretação da Primeira
Emenda segundo a qual a pornografia é protegida como forma de expressão. Ela diz que
essa interpretação não leva suficientemente a sério os prejuı́zos à igualdade sexual que
a pornografia causa. Na Ordenação de Minneapolis MacKinnon defendeu que o Estado
reconhecesse no direito que mulheres e minorias raciais possuem à igualdade de proteção, o
direito de limitar através do poder do Estado o discurso considerado discriminatório. Para
MacKinnon, se a igualdade fosse levada a sério, se ela fosse tomada como prioridade frente
a liberdade de expressão, então concluirı́amos que todo tipo de expressão que contribui
para a promoção e perpetuação da desigualdade não deve receber a proteção da Primeira
Emenda.
A maneira como, segundo MacKinnon, a pornografia contribui para a promoção
e perpetuação da desigualdade social não foi considerada, pelo juiz Easterbrook, sufici-
entemente diferente da maneira como outros discursos influenciam a vida das pessoas, e
por isso reconhece que a primeira emenda protege o discurso pornográfico. Em reação ao
poder protetor da Primeira Emenda, MacKinnon agora quer desqualificar a pornografia
como discurso, como forma de expressão, e caracterizá-la como ato. A pornografia não
seria um discurso que expressa ideias sobre discriminação sexual, mas sim o próprio ato
de discriminação. Esse é, segundo MacKinnon, o argumento central em Only Words, e
ela diz que Dworkin não entendeu esse argumento (DWORKIN; MACKINNON, 1994).
Dworkin é sumário ao responder à MacKinnon. Ele diz:

MacKinnon thinks I ignored the real point of her book, which, she says, is
that pornography is not “speech” because “pornography is what it does,
Capı́tulo 2. A pornografia no debate constitucional 53

not what it says.” I did not ignore that claim. I did say that I could
find no genuine argument in it—I still can’t—but I tried. I reported her
suggestion that a pornographic description of a rape is itself a kind of
rape, which I said is silly, and her claim that pornography is “reality”
rather than speech because it produces erections and aids masturbation,
which, as I said, seems an unsatisfactory basis on which to deny First
Amendment protection. (DWORKIN; MACKINNON, 1994)

MacKinnon, então, diz que uma descrição pornográfica de um estupro é um tipo


de estupro; que a pornografia é realidade sexual, e não uma fantasia sexual, por causa
da excitação sexual real que ela provoca e porque ela é usada em atos sexuais como a
masturbação, que também são sexo real. O argumento de que a pornografia é um ato, no
sentido de que é um ato de violência sexual, é praticamente desconsiderado por Ronald
Dworkin, que o descarta rapidamente como um argumento “tolo”. Vamos tentar extrair
algo mais disso. Para isso, precisaremos recuperar a perspectiva sobre a pornografia de
que estavámos tratando na seção sobre a teoria de gênero de MacKinnon.
É preciso ver a definição de pornografia e o projeto de lei anti-porn de MacKinnon
como Gayle Rubin vê, sob a perspectiva de que trata-se, na verdade, de uma tentativa
de transformar em lei uma interpretação singular da desigualdade sexual, a interpretação
anti-porn, uma interpretação que localiza na sexualidade a causa de todas as formas de
subordinação, violência e opressão vividas pelas mulheres.

The anti-porn ordinance authored by Catharine MacKinnon and Andrea


Dworkin [...] was an attempt, among other things, to create a new legal
category of “pornography” distinct from “obscenity” This new category
of “pornography” would have codified a feminist anti-porn description
into law. (RUBIN, 1993, p. 28)

Em sua definição de pornografia, MacKinnon faz duas coisas. Primeiro, ela res-
tringe a pornografia às imagens e palavras sexualmente explı́citas que mostram a mulher
ou falam da mulher de uma determinada maneira. Segundo, vamos observar que, nessa
definição, MacKinnon não diz que a pornografia são as imagens que “representam” a mu-
lher em posição de subordinação ou que “representam” a mulher em uma das condições
que ela enumera. MacKinnon diz que a pornografia subordina as mulheres através dessas
imagens e palavras. Isso quer dizer que, para ela, a pornografia não é o que a pornografia
diz, mas sim o que ela faz ; a pornografia não é um discurso, mas sim um ato. Esse ato,
aquilo que a pornografia faz, é o ato de subordinar a mulher ao homem. Essa tese da
pornografia enquanto ato é, de longe, a mais controversa de MacKinnon.

2.3.1 A pornografia é um ato (sexual, violento e de dominação)


O que possibilita essa passagem da palavra ao ato é a experiência que os homens têm de
excitarem-se sexualmente com essas imagens. Essa, segundo ela, é a chave para o sucesso
de sua definição (MACKINNON, 1988b, p.36).
Capı́tulo 2. A pornografia no debate constitucional 54

Para saber o que é pornografia, MacKinnon pede que observemos um comporta-


mento comum associado à produção, distribuição e consumo de pornografia. Esse compor-
tamento é o que permite que, na prática, qualquer pornógrafo, distribuidor ou consumidor
saibam o que é pornografia. Esse comportamento é a excitação sexual. Ou seja, MacKin-
non está dizendo que é através da excitação sexual que os homens, na prática, distinguem
o que é pornografia daquilo que não é.
Há um problema, entretanto, em tentar definir como pornografia tudo aquilo que é
sexualmente excitante. É que muitos comerciais, novelas, séries de TV e tantas outras pa-
lavras e imagens que podem ser, ou não ser, sexualmente explı́citas, são de fato excitantes
sexualmente e, por essa definição, deveriam ser consideradas pornográficas. MacKinnon
pretende evitar esse problema reduzindo o escopo de sua definição. É por isso que ela
inclui aquela longa lista de situações, que capturariam apenas o que faz com que a por-
nografia seja um ato de subordinação das mulheres. E são as situações daquela lista que,
quando associadas à excitação sexual, são pornografia.
Deve haver, portanto, uma relação entre excitação sexual, situação de subor-
dinação e representação. MacKinnon sintetiza assim essa relação:

Basically, for pornography to work sexually with its major market, which
is heterosexual men, it must excite the penis. From the evidence of the
material itself, its common denominator is the use or abuse of a woman
in an expressly sexual way. To accomplish its end, it must show sex and
subordinate a woman at the same time. (MACKINNON, 1988b, p.38)

A situação de subordinação, aqui, parece ser caracterizada como a situação em que


a pornografia é produzida. MacKinnon diz que “a evidência do próprio material” mostra
que mulheres são usadas e abusadas sexualmente para produzir pornografia. Entretanto,
não é só isso o que MacKinnon tem em vista quando fala em “situação de subordinação”.
Ela fala também na condição de sucesso da pornografia entre os consumidores, no seu
mercado. E, ela diz também que, para cumprir seu fim, a pornografia deve mostrar e
subordinar simultaneamente uma mulher.
Podemos tentar interpretar o que MacKinnon está dizendo pensando da seguinte
maneira. Quando o homem está assistindo pornografia, está sendo mostrado sexo com
uma mulher em situação de subordinação; se houver excitação sexual, então a pornografia
funcionou sexualmente. Entretanto, parece haver uma contradição nesse modo de pensar.
É que a mulher, segundo estamos supondo, foi subordinada anteriormente, durante a
produção, e não durante o consumo. Por isso, seria errado dizer que o que está sendo
consumido é pornografia. O consumo da pornografia não seria pornografia, pois uma
mulher não estaria sendo simultaneamente subordinada durante o consumo. Não é isso
o que MacKinnon pensa. Em sua definição, a subordinação ocorre através das imagens
e palavras sexualmente explı́citas da pornografia. As palavras e imagens é que precisam
estar simultaneamente associadas à excitação sexual. Por isso, ao consumir pornografia,
MacKinnon diz que o homem também está subordinando sexualmente a mulher.
Capı́tulo 2. A pornografia no debate constitucional 55

Parece, à primeira vista, que MacKinnon está fantasiando que o homem consu-
mindo pornografia, excitado sexualmente com a situação de subordinação à sua frente,
está tendo uma experiência sexual real com a mulher que está na pornografia e que ele
a está subordinando realmente. Ela concordaria que isso é uma fantasia. Entretanto, do
seu modo caracterı́stico de argumentar, ela diria que “é uma fantasia do homem, mas
uma realidade da mulher”. E o que ela quer dizer com isso é que a fantasia do homem
faz parte de uma realidade de subordinação sexual que só as mulheres conhecem. Os
homens se excitam com a subordinação da mulher e conhecem isso como pornografia. As
mulheres não se excitam com a subordinação das mulheres e conhecem isso pelo que ela
é: subordinação. E a pornografia faz parte da realidade das mulheres não só no momento
em que a pornografia foi produzida. A pornografia faz parte da realidade das mulheres
também no momento em que ela é consumida, porque, diz MacKinnon, a pornografia é
uma fantasia que torna-se realidade na sociedade em que homens e mulheres, simulta-
neamente, vivem. E é só a pornografia, segundo MacKinnon, que é capaz de saltar da
fantasia para a realidade.

Of all pictures and words, only sexually explicit pictures and words
enter into sexual experience to become part of sexual reality on the deep
and formative level where rapes are subliminally fantasized, planned,
and executed; where violence is made into a form of sex; where women
are reduced to subhuman dimension to the point where they cannot be
perceived as fully human. (MACKINNON, 1988b, p. 38)

Aqui encontramos um pressuposto fundamental da tese de que a pornografia é um


ato. Para começar, é importante observar a importância que a experiência sexual, que
envolve uma fantasia, tem para a definição de pornografia. Conforme a citação a seguir:

Not even all sexually explicit material that shows women being subordi-
nated is itself a vehicle for the subordination of women; some of it, like
the transcript of the Minneapolis hearings on pornography, expressly
counters that subordination. (MACKINNON, 1988b, p. 39)

A distinção relevante aqui é a que MacKinnon faz entre imagens e palavras que ela
considera veı́culos para a subordinação e imagens e palavras que são veı́culos de combate à
subordinação. O que diferencia essas imagens e palavras não é o conteúdo. Elas podem ser
idênticas em tudo, inclusive serem sexualmente explı́citas. A condição que determina que
elas sejam pornografia é apenas a ocorrência simultânea de excitação sexual, pois assim é
como as palavras e imagens “become part of sexual reality on the deep and formative level
where rapes are subliminally fantasized, planned, and executed” (MACKINNON, 1988b,
p. 39). MacKinnon supõe que a excitação sexual tem o poder de “subliminarmente”
implantar nas pessoas as imagens da subordinação.
Por isso é que, na condição de não haver excitação sexual, não deverı́amos con-
siderar pornografia, por exemplo, a própria definição de pornografia de MacKinnon, ou
depoimentos de mulheres que relatam nos tribunais o modo como foram subordinadas em
Capı́tulo 2. A pornografia no debate constitucional 56

produções pornográficas. A própria definição de pornografia e os testemunhos das mulhe-


res vı́timas de violência sexual são exemplos de materiais que não devem ser considerados
pornografia, porque não nos excitamos sexualmente com eles. Assim, esse material pode
ser usado como veı́culo de combate à pornografia, pois sua capacidade de entrar em uma
experiência de fantasia sexual foi mitigada pela ausência de excitação com as imagens e
palavras sexualmente explı́citas.
Vemos que MacKinnon restringe a categoria de pornografia vinculando-a a um
comportamento sexual. O que ela pretende é definir pornografia não como palavras e
imagens, mas sim como um comportamento sexual que envolve palavras e imagens.

2.3.2 O significado de sexualização e seu papel no “argumento da su-


bordinação”
Encontramos em Only Words elementos para entender melhor o argumento da subor-
dinação, agora que ele envolve também a tese de que a pornografia é um ato. Em suas
obras anteriores, MacKinnon usava o conceito de sexualização, intercambiavelmente com
o conceito de erotização, para explicar a subordinação da mulher ao homem. Sexualizar,
em grande medida, parecia significar “objetificar”. A sexualização tinha um papel im-
portante no processo de subordinação da mulher pelas palavras e imagens pornográficas.
MacKinnon sempre insistiu muito nisso. Não era claro, entretanto, como a sexualização,
ou a erotização, contribuı́a com o processo de subordinação. Mas talvez sexualizar não
significasse exatamente “objetificar”, porque muitas vezes o que parecia era que “eroti-
zar” cumpria a função que conceitos como “assentimento”, “legitimação”, “promoção”,
entre outros, poderiam cumprir: a função de expressar um juı́zo de valor positivo sobre
as imagens e palavras em questão. Revendo o trecho já citado, agora com grifos meus:

Pornography sexualizes rape, battery, sexual harassment, prostitution,


and child sexual abuse; it thereby celebrates, promotes, authorizes and
legitimizes them. More generally, it eroticizes the dominance and sub-
mission that is the dynamic common to them all. (MACKINNON,
1988a, p. 171)

“Erotizar” (a erotização da subordinação) parecia não significar nada mais do que


estar de acordo com a subordinação ou, tomá-la como boa. Em Only Words isso muda. Se
antes a erotização ainda podia ser concebida como cumprindo alguma função expressiva,
como de alguma forma afirmando alguma preferência ou concepção de bem, agora, em
Only Words, a erotização é substituı́da (ou esclarecida) por um mecanismo behaviorista
de condicionamento do comportamento (STARK, 1997).
O argumento da subordinação é o que difere MacKinnon dos conservadores stan-
dard e, ao mesmo tempo, é o que a aproxima dos liberais standard. Ela se afasta dos
conservadores porque não apela para valores de uma moralidade sexual para condenar
a pornografia. O mal que a pornografia causa, que é o mal da subordinação, não é um
Capı́tulo 2. A pornografia no debate constitucional 57

mal moral, uma questão moral, circunscrita a uma doutrina abrangente. O mal da su-
bordinação afeta todas as mulheres independentemente de crença, raça ou classe social.
É um mal que afeta as mulheres enquanto gênero, que afeta diferencialmente as mulheres
baseado no gênero. Também não é uma ofensa, como o liberal conceberia esse mal, e como
o conservador muitas vezes o caracterizou para censurá-lo. Mas MacKinnon se aproxima
dos liberais ao tentar caracterizar o problema da pornografia não como uma questão mo-
ral, mas sim como uma questão de dano. É porque o liberal standard mostra-se receptivo
à ideia de restringir a liberdade de expressão para proteger os outros do dano.
Com a adoção mais explı́cita da psicologia behaviorista em Only Words, fica não
apenas mais fácil entender a relação (mecânica/causal) que MacKinnon quer provar entre
pornografia e subordinação da mulher como fica também mais fácil apontar as contradições
em seus argumentos. MacKinnon inspira-se na teoria dos atos de fala, de Austin, para a
sua nova exposição (ou explicação) do argumento da subordinação em Only Words. Aqui,
é preciso ressaltar que trata-se mesmo de “inspiração” na teoria de Austin, não de um
desenvolvimento teórico fundamentado na teoria dos atos de fala. Austin dá a sugestão a
MacKinnon de que palavras podem ser atos, apenas isso. MacKinnon explica assim sua
relação com Austin:

Austin is less an authority for my particular development of “doing


things with words” and more a foundational exploration of the view in
language theory that some speech can be action. (MACKINNON, 1996,
p. 121)

A sugestão, tomada de Austin, é de que a pornografia pode ser caracterizada não


como discurso, não apenas como imagens e palavras (por isso não são “only words”)
mas como atos de fala do tipo ilocucionário, atos que realizam ações no mundo, quando
proferidos em um contexto apropriado. Às vezes MacKinnon explora a teoria dos atos de
fala para justificar a existência de uma relação causal entre pornografia e subordinação.
A subordinação seria o efeito performativo que a pornografia tem enquanto “discurso que
age”. Mas com isso ela quer provar (e esse é o ponto da Ordenação de Minneapolis)
que a pornografia é em si um ato (de discriminação sexual) que subordina a mulher.
Isso é confuso, porque agora MacKinnon quer dizer que a pornografia não é a causa da
subordinação, mas sim que a própria pornografia é subordinação. Em outras palavras, a
pornografia não é mais a causa do dano, mas sim o próprio dano.
A concepção de pornografia enquanto discurso que causa dano não é estranha
aos tribunais liberais norte-americanos, porque é a forma como são tratados os discursos
de ódio. Certamente, MacKinnon pretende caracterizar a pornografia como um tipo de
discurso de ódio. Isso é o que a compromete com a tarefa de provar a existência de uma
relação causal entre pornografia e subordinação. A tese da pornografia enquanto ato de
subordinação e discriminação sexual é que é estranha. Não é, entretanto, para os antigos
acusadores da pornografia, conservadores religiosos e moralistas de plantão, que “viam”
Capı́tulo 2. A pornografia no debate constitucional 58

na pornografia o próprio dano sendo causado. Esses não inferiam que o dano iria ocorrer
em consequência daquilo que estavam vendo. O dano já estava ocorrendo ali, na frente
deles; o próprio ato é condenável e seu valor, se bom ou mau, não está em discussão.
A tese behaviorista (a erotização) esclarece a relação que MacKinnon supõe haver
entre essas duas concepções de pornografia. MacKinnon não apenas defende a visão de
que a pornografia é em si um ato/dano. Ela insiste que esse é um ato peculiar. A pecu-
liaridade é que esse ato é erotizado. Se não fosse erotizado, ele não serviria ao propósito
de MacKinnon de caracteriza-lo como discurso de ódio. Como? Poderı́amos pensar que
MacKinnon estaria tentando dizer que as imagens e palavras da pornografia são, em si,
o dano. Esse não é o caso. É preciso, como vimos na seção anterior, que essas palavras e
imagens sejam erotizadas para que sejam dano. A imagem de uma mulher sendo subor-
dinada por um homem não é, em si, subordinação. Ela não é um ato de subordinação.
Para ser um ato é preciso que a imagem seja erotizada. O que a erotização faz, segundo
MacKinnon, é excitar sexualmente. Nesse momento, para MacKinnon, as palavras e ima-
gens deixam de ser “só palavras”, “só imagens”, e passam a ser sexo – um ato. E não um
ato sexual “ordinário”, mas um ato forçado sobre uma mulher, imposto. Essa imposição é
interpretada como violência contra a mulher, e assim MacKinnon identificará a excitação
sexual que apenas o homem sente em sua relação sexual (desigual) com a mulher com o
ato do estupro – sexo forçado.

Put another way, an erection is neither a thought nor a feeling, but


a behavior. It is only pornography that rapists use to select whom
they rape and to get up for their rapes. This is not because they are
persuaded by its ideas or even inflamed by its emotins or because it is so
conceptually or emotionally compelling, but because they are sexually
habituated to its kick, a process that is largely unconscious and works
as primitive conditioning, with pictures and words as sexual stimuli.
(MACKINNON, 1996, p. 16)

Agora entra em ação a hipótese behaviorista. A excitação sexual faz duas coisas:
1) ela associa as palavras e imagens à sensação de prazer; 2) a sensação de prazer não
é exaurida, ela não se consuma, no ato. O sujeito excitado pela pornografia terá seu
comportamento alterado, segundo a tese behaviorista. Ele, quando não tiver mais diante
de si o objeto que ele associa ao prazer, irá determinar-se a buscá-lo e, encontrando-o,
repetirá o mesmo ato que lhe deu prazer, reforçando (feedback positivo) a associação
do objeto ao prazer e, consequentemente, reforçando o comportamento de ir buscá-lo.
Esse objeto, diz MacKinnon, não são apenas as imagens, excitantes e bidimensionais, de
mulheres sendo subordinadas na pornografia.
O sujeito condicionado pela pornografia pode encontrar – e, diz MacKinnon, mais
cedo ou mais tarde ele encontra – o seu objeto no mundo, nas mulheres tridimensionais.
Esse sujeito, assim, mais cedo ou mais tarde repetirá às mulheres as palavras que leu
ou ouviu. Ele repetirá as imagens que o excitaram, agora configurando suas relações
sexuais de modo que a mulher ocupe a posição de objeto – que o sujeito agora erotiza –,
Capı́tulo 2. A pornografia no debate constitucional 59

e configurará a relação dessa forma com o objetivo de que ele tenha prazer. Assim, ele
estará subordinando, através do sexo, as mulheres com quem ele se relaciona tanto em
sua vida privada como em sua vida pública. O ato violento de dominação através do sexo
cometido pelo estuprador (consumidor de pornografia) é o paradigma do sexo segundo a
pornografia. É um tipo particular de sexo (só a pornografia é assim, disse MacKinnon)
que age através de “unconscious mental intrusion and physical manipulation, even by
pictures and words, particularly when the results are further acted out through aggression
and other discrimination.” (MACKINNON, 1996, p. 16). É assim, mais precisamente,
que MacKinnon concebe a erotização da subordinação como mecanismo que leva do ato
privado de consumir pornografia ao ato público e polı́tico de discriminação sexual da
mulher, contudo, sem deixar de ser um ato privado de discriminação sexual.
A pornografia, assim, é deslocada da posição de causa da subordinação para a
posição de meio. A causa, bem entendida, é a excitação sexual. Isso não é evidente
na argumentação de MacKinnon. Ela oscila entre duas linguagens enquanto argumenta,
voltando-se para dois públicos diferentes. Ora ela volta-se para os juı́zes da Suprema-
Corte e usa a linguagem do liberal; ora ela volta-se para o público conservador, apelando
para que vejam o que a pornografia é e para que deem testemunho do que viram.
E agora também podemos entender com mais clareza qual deve ser o objetivo de
MacKinnon. Para acabar com a subordinação da mulher, ela não tem que acabar com as
imagens e as palavras da subordinação (esses materiais podem estar disponı́veis em biblio-
tecas, por exemplo, para estudo); o que ela tem que fazer é acabar com a excitação sexual
dirigida a essas imagens e palavras (estudar, sim; excitar-se sexualmente com elas, não).
Por isso, combater a pornografia é combater a erotização da subordinação, que é combater
a excitação sexual com a subordinação. É disso que as mulheres precisam ser conscien-
tizadas. Elas não podem excitar-se sexualmente e nem deixar que o homens excitem-se
sexualmente com elas em condições que possam ser interpretadas como condições de de-
sigualdade ou subordinação. Acabando com a excitação sexual, porém, rompe-se o elo
entre discurso e ação; rompem-se as correntes que aprisionam as mulheres.
60

3 A pornografia defendida politica-


mente
Ronald Dworkin lamenta que a liberdade de expressão precise hoje ser invocada para de-
fender o direito de “homens olhando fotos de mulheres nuas de pernas abertas”, enquanto
costumava ser invocada para defender interesses mais diretamente polı́ticos, como o de
protestar contra o governo. A história mostra que isso não é bem verdade, mas o lamento
de Dworkin é compreensı́vel por causa das dificuldades que o pensamento liberal enfrenta
diante dos novos problemas que as questões de gênero introduziram no cenário polı́tico a
partir dos anos 1970.
Como vimos, o combate à pornografia causou uma cisão no movimento feminista
que, até esse momento, era mais ou menos coerente e coeso ao defender a igualdade
de direitos para as mulheres, particularmente a igualdade de tratamento. Combater
a pornografia, até então, era uma questão caracterı́stica de movimentos e instituições
conservadoras, mais preocupadas com a preservação de uma moralidade sexual – especı́fica
de uma religião ou cultura – do que com questões polı́ticas. Essa mudança na conjuntura
polı́tica em torno da liberdade sexual acompanhou uma mudança mais abrangente pela
qual passava a polı́tica norte-americana, que viu a separação entre polı́ticas liberais e
conservadoras perder sua nitidez caracterı́stica.
Nesse perı́odo, entre os anos 1960 e 1970, os Estados Unidos ainda viviam sob a
influência polı́tica do New Deal, o consenso formado nos anos 1930 em torno de causas
reconhecidas como Liberais e que teve como grande motivação a necessidade de superar
a Grande Depressão. O New Deal deu força ao Partido Democrata, que protagonizou
a polı́tica norte-americana nesse perı́odo, até final dos anos 1960. Na agenda liberal es-
tavam as causas que promoveriam o ambiente polı́tico favorável à liberdade sexual e à
emancipação da mulher. Entre as causas liberais estavam, justamente, a liberdade de
expressão, a igualdade racial e também a descriminalização de delitos considerados “mo-
rais”, entre eles os relacionados à conduta sexual (desde que envolvessem apenas adultos e
fossem consensuais), ainda que essas fossem condutas controvertidas (DWORKIN, 2001a,
pp. 269, 279-280).
Para Ronald Dworkin, as posições em torno dos temas da agenda polı́tica liberal
“original” podem ser usadas como referencial para perceber o quanto a linha que separava
liberais e conservadores foi borrada nessa época (DWORKIN, 2001a, p. 280). Nessa
agenda, temos a liberdade, a igualdade e o papel do Estado diretamente associados às
principais causas defendidas. O conservador era facilmente identificado como aquele que se
opunha a alguma dessas causas. Entretanto, alguns liberais passaram a defender algumas
causas conservadoras e vice-versa, produzindo uma agenda polı́tica combinada. Quanto
Capı́tulo 3. A pornografia defendida politicamente 61

à conduta sexual, por exemplo, um liberal poderia ser favorável à descriminalização de


relações sexuais consensuais entre pessoas do mesmo sexo1 , mas ser contrário à pornografia
e a favor da intervenção do Estado em sua produção, distribuição e consumo, fosse o
conteúdo homosexual ou não, e isso independentemente dos reflexos que essa intervenção
poderia ter, justamente, na vida erótica dos grupos cujas condutas sexuais esses mesmos
liberais defendiam.
Quanto ao movimento feminista, também já não era possı́vel dizer que havia um
único feminismo, assim como já não havia também um grupo único de liberais – ou
um único liberalismo. MacKinnon, quase vinte anos mais tarde, em 1989, ainda dirá
que o feminismo assume uma postura “esquizoide” em questões, entre outras, como a
“pornografia e a discriminação sexual” pois, em certos momentos, vê o Estado pelo prisma
do liberalismo, como árbitro neutro em questões de conflito de interesses, mas em outros
momentos vê o Estado por um prisma esquerdista, segundo ela, fazendo com que “o
Estado torne-se uma ferramenta de dominação e repressão” (MACKINNON, 1989, pp.
159-160).
Dessa nova perspectiva sobre a sexualidade foi que partiu a evolução do debate
sobre a liberdade sexual dentro do movimento feminista, e a via pela qual MacKinnon
seguiu. Essa evolução pode ser caracterizada, segundo Ann Snitow, como uma mudança
de ênfase sobre o poder emancipador da autoafirmação para uma ênfase na violência
como fato central na vida sexual das mulheres e indispensável para a compreensão de
sua situação (SNITOW, 1985, p. 110). A perspectiva da autoafirmação aparece, por
exemplo, em Simone de Beauvoir, na possibilidade de conscientização e emancipação da
mulher através da atividade criativa de dar sentido à sua própria vida, segundo sua sub-
jetividade autêntica. Essa perspectiva abria caminhos para, no limite, infinitas resoluções
dos conflitos vividos pelas mulheres, com múltiplos “exemplos de mulher” resultantes. As
mulheres, “mediante o empenho persistente de conferir sentido às próprias vidas [...] pode-
riam tornar-se o que quisessem ser.” (MACKENZIE, 2011, p. 154). Agora, o fato central
na vida das mulheres passa a ser visto não mais como uma subjetividade dominada, mas
como um corpo explorado sexualmente (a questão da “objetificação sexual”).
O movimento feminista anti-porn conseguiu transformar a questão da pornografia
em uma questão polı́tica. Entretanto, isso foi feito à custa da introdução na agenda
polı́tica feminista – que até então era caracteristicamente liberal – de um ı́tem da agenda
conservadora. Mesmo sendo motivada por um ideal de igualdade compartilhado pelo
feminismo liberal, a inclusão do combate à pornografia na agenda polı́tica feminista foi
suficiete para borrar a linha que separava o feminismo de outros movimentos sociais
e polı́ticos conservadores. Além disso, até o surgimento da questão da pornografia, a
liberdade de expressão foi um valor que o feminismo conectou positivamente aos demais
1
As leis contra sodomia só foram completamente abolidas, em todos os estados norte-americanos, em
2003.
Capı́tulo 3. A pornografia defendida politicamente 62

valores que afirma, entre eles o da igualdade. Em outras palavras, entendia-se que a
liberdade de expressão colaborava para a realizaçao dos ideais feministas. Quando o
feminismo posicionou-se contra a pornografia, no contexto jurı́dico particular dos Estados
Unidos, topou com a liberdade de expressão como uma barreira a ser superada. Essa
foi a principal causa do conflito polı́tico gerado pela pornografia, porque a liberdade foi
colocada contra a igualdade.
O conflito entre liberdade e igualdade é um problema clássico da filosofia polı́tica.
O debate sobre a pornografia de que estamos falando, entretanto, foi muito influenciado
pelas especificidades do direito constitucional norte-americano, e não pode ser entendido
apenas no nı́vel do debate filosófico. É importante saber que existe essa pressão por parte
do direito constitucional sobre a formulação dos argumentos de MacKinnon porque esses
argumentos operam em diversos nı́veis, e o nı́vel constitucional não é apenas um deles, é
também aquele que orienta a argumentação. É aos juı́zes dos tribunais da suprema corte
que MacKinnon se dirige. São eles que precisam ser convencidos para que os argumentos,
e MacKinnon, tenham êxito, visto que é através de ações legislativas e do poder do Estado
que ela concebe ser possı́vel mudar a situação das mulheres.
Ainda que ela não tenha obtido sucesso nos tribunais norte-americanos, MacKin-
non consegue provocar uma discussão na teoria polı́tica e filosófica liberal. Depois das
crı́ticas de MacKinnon e Andrea Dworkin, o liberalismo precisou repensar o lugar do sexo
em sua teoria. Em particular, o liberalismo precisou pensar o sexo como não mais res-
trito à esfera privada de liberdade do indivı́duo, mas como uma questão polı́tica da esfera
pública. Como o liberalismo continuaria a defender a liberdade em vista das desigualdades
sociais denunciadas pelo feminismo?

3.1 Como defender a pornografia?


Ronald Dworkin defende um tipo de liberalismo chamado de “liberalismo igualitário”. É
um liberalismo que pretende pensar a igualdade conectada à liberdade, sem o conflito
que teorias como a de MacKinnon apontam. Sem abrir mão da liberdade de expressão,
Dworkin defende a pornografia em nome da igualdade de tratamento de uma pluralidade
de comportamentos sexuais, inclusive os comportamentos capturados pela definição de
MacKinnon. Entretanto, para MacKinnon parece que Dworkin, assim como o juiz Eas-
terbrook, também considera a pornografia essencialmente como ideia a ser protegida. Dito
de outro modo, MacKinnon concebe equivocadamente Dworkin como um liberal clássico.
Há uma diferença entre a defesa do argumento constitucional, que é o argumento de Eas-
terbrook, e a defesa que é própria de Dworkin, que não é um argumento constitucional,
mas de filosofia polı́tica. E a defesa de Dworkin articula não apenas os valores da liber-
dade e igualdade, mas recupera valores como autoafirmação e autenticidade, que eram
centrais em teorias feministas liberais antes da cisão entre feministas liberais e radicais.
Capı́tulo 3. A pornografia defendida politicamente 63

À primeira vista, parece que Dworkin entende o problema da pornografia como


uma instância do problema da liberdade de expressão, na medida em que, de modo geral,
o problema da liberdade de expressão pode ser compreendido como o problema da “liber-
dade de expressar pensamentos impopulares ou depravados” (DWORKIN, 2001b, p.498).
Crı́ticas ao governo, por exemplo, não são sempre expressão daquilo que a maioria pensa
a respeito do governo. Elas podem representar uma minoria da população, ou mesmo
a ideia de um único indivı́duo. Segundo a interpretação de Easterbrook da Primeira
Emenda, e com a qual Dworkin concorda, o direito à liberdade de expressão deve garantir
a expressão mesmo das ideias menos compartilhadas, das menos conhecidas ou menos
populares. Isso situaria ele próximo ao liberal clássico. Além disso, desse modo Dworkin
está situando a pornografia entre as ideias menos populares, o que de certa maneira revela
o quanto a pornografia não é particularmente importante para ele, e isso o aproximaria
de um liberal com tendências a uma visão conservadora sobre a pornografia. E ele ainda
duvida do valor polı́tico da pornografia. Falar ou deixar de falar em pornografia não
alteraria substancialmente a vida polı́tica de ninguém. Para Dworkin, mesmo a proibição
da pornografia não prejudicaria a participação das pessoas no processo polı́tico. Uma
pessoa que é impedida de assistir um filme pornográfico, diz ele, não tem seus direitos
polı́ticos afetados (DWORKIN, 2001b, p. 498). Entretanto, no artigo da NYR que desen-
cadeou o debate entre Dworkin e MacKinnon, Dworkin é bastante explicito ao declarar
que não defende a pornografia enquanto discurso que precisa ser protegido pela liberdade
de expressão. Ele diz:

The conventional explanation of why freedom of speech is important is


Mill’s theory that truth is most likely to emerge from a “marketplace”
of ideas freely exchanged and debated. But most pornography makes no
contribution at all to political or intellectual debate: it is preposterous
to think that we are more likely to reach truth about anything at all
because pornographic videos are available. (DWORKIN, 2005b)

E reforça sua posição na carta-resposta à MacKinnon:

She also demands that I defend my view that pornography is about


“ideas.” In fact, I took care explicitly to reject that view: I said that
much pornography offers no ideas at all, and that it would be wrong to
base a First Amendment claim on the view that it does. (DWORKIN,
2005a)

Isso sugere que Dworkin não defende a pornografia baseado em um modelo liberal
clássico de defesa da liberdade de expressão, a favor da livre circulação de ideias por ter
em vista o objetivo de, assim, a sociedade chegar mais facilmente ao conhecimento da
verdade. A pornografia pode não contribuir para o conhecimento da verdade mas, por
princı́pio, um liberal não proibiria a circulação dessas ideias porque elas poderiam, por
hipótese, assim como outras ideias impopulares, vir a contribuir de alguma maneira, ainda
desconhecida.
Capı́tulo 3. A pornografia defendida politicamente 64

Ele não precisa, entretanto, ver ele mesmo algum valor na pornografia para defende-
la politicamente. Sua defesa é baseada em direitos. O que está em jogo é a liberdade de
outras pessoas poderem dar valor à pornografia. É o “ambiente moral”, e não o “livre
mercado de ideias”, que está em questão.

(E)veryone has an equal right to contribute to what I called the “moral


environment” – even people whose tastes reflect no “ideas” but only very
offensive “prejudices, life styles, and cultures.” (DWORKIN, 2005a)

O que será defendido é o direito à autonomia moral. Para isso, não é preciso estar
de acordo com conteúdos ou práticas particulares. As exigências são outras. Para uma
defesa da pornografia baseada em princı́pios polı́ticos liberais é preciso estar de acordo com
os princı́pios morais que regulam a polı́tica liberal, e esses princı́pios são independentes
de conteúdo; o que eles exigem é um determinado modo de tratar as pessoas – segundo
Dworkin, tratar com igual consideração e respeito. Essa é a estratégia de defesa baseada
em direitos, que ele diferencia da estratégia baseada em objetivos.
Segundo o modelo clássico de liberdade de expressão, formulado por John-Stuart
Mill, a expressão é protegida por causa de seu poder de contribuir para a descoberta da
verdade. Proibir a entrada de alguma opinião, de alguma concepção de mundo, ou seja,
de alguma visão sobre a verdade, no ambiente público de debate que Mill chamou de
“livre mercado de ideias”, representa uma ameaça ao objetivo dessa instituição da esfera
pública.
Caso fosse aprovada, a lei proposta por MacKinnon tiraria do público o poder de
debater – e de combater no mercado de ideias, se fosse o caso – a pornografia. É isso
que Easterbrook defendeu em sua decisão quando disse que “de acordo com a Primeira
Emenda o governo deve deixar para o povo a avaliação das ideias” (ABA v. Hudnut,
1985). A proposta de MacKinnon teria o efeito polı́tico indesejado de deslocar o debate
público sobre a pornografia para os tribunais, onde juı́zes teriam a tarefa de decidir
sobre o valor das obras e não o público. Esse deslocamento também traria prejuı́zos ao
ambiente cultural, pois geraria insegurança jurı́dica e desestimularia a produção cultural
como um todo, não só as produções alvo de MacKinnon. Isso porque qualquer obra que,
em tese, pudesse ser considerada pornográfica, poderia ser levada aos tribunais para ter
seu caráter – artı́stico, criminoso ou mesmo ambos – decidido pelos juı́zes, que passariam a
ser também, por absurdo, uma espécie de crı́ticos de arte. Isso poderia levar aos tribunais
não apenas obras como Garganta Profunda mas também como a Ilı́ada e, praticamente,
toda obra que contivesse alguma descrição ou representação de ato ou situação que, em
tese, pudesse ser entendida como discriminação sexual. Isso seria possı́vel porque, para
MacKinnon, o valor artı́stico, polı́tico ou mesmo cientı́fico de uma obra não é relevante
quando a desigualdade está em questão. Devido à insegurança jurı́dica que sua proposta
provocaria, segundo Dworkin e também Easterbrook, artistas evitariam representações
ou descrições de caráter duvidoso, ou seja, se censurariam, com o objetivo de evitar as
Capı́tulo 3. A pornografia defendida politicamente 65

penas de um processo jurı́dico. Aqueles que não se censurassem, arriscando enfrentar um


processo jurı́dico, poderiam ser ou não ser condenados, mas ainda teriam que lidar com
a estigmatização e outras penas decorrentes de um processo criminal. O resultado para
o ambiente cultural seria a efetiva opressão, exercida através do poder do Estado, sobre
uma opinião cujo valor (indeterminado, desconhecido, duvidoso, talvez perigoso) teria
muito mais dificuldade de entrar no mercado de ideias, por não ser igualmente favorecida
pelo Estado que, assim, teria abandonado uma postura neutra em relação ao mercado de
ideias e passaria a ser, ele mesmo, uma das vozes no debate.
Mas, diante do argumento de que a pornografia não contribui para o mercado de
ideias, o pensamento liberal vê-se ameaçado por essas consequências apontadas por Dwor-
kin, caso entenda-se que a liberdade de expressão é defendida com base na justificativa de
fundo de que o objetivo de atingirmos o conhecimento da verdade é desejável para toda a
sociedade e, por isso, o “livre mercado de ideias” deve ser protegido e todos devem ter o
direito de participar dele. Se a pornografia não contribui para o conhecimento da verdade,
então como defendê-la? Como disse Dworkin, pareceria que ninguém estaria impedido de
ter acesso ao livre mercado de ideias caso a pornografia fosse proibida. Nenhum direito
polı́tico estaria sendo violado.
A defesa liberal clássica da liberdade de expressão, baseada no modelo de Mill do
livre mercado de ideias e no objetivo de atingir a verdade, então, é inadequada para uma
defesa da pornografia. A defesa liberal de Dworkin é baseada em um outro modelo de
liberdade de expressão, que inclui o valor da igualdade em sua formulação. O modelo
que Dworkin apresenta, em consequência dessa dificuldade, é diferente do modo como
tradicionalmente o pensamento liberal concebeu a liberdade de expressão. Não é em
nome da liberdade de expressão que Dworkin defende a pornografia, mas em nome da
igualdade sexual.
Ao longo do desenvolvimento da liberdade de expressão, podemos ver que ela foi
invocada, por um longo perı́odo, para censurar as mais variadas formas de expressão
relacionadas ao sexo, seja sua representação explı́cita, seja o discurso cientı́fico sobre a
sexualidade, seja o discurso polı́tico em apoio aos direitos das mulheres. Isso mostra que a
liberdade sexual sempre esteve relacionada à liberdade de expressão durante o perı́odo de
desenvolvimento do atual sistema de liberdade de expressão norte-americano. A liberdade
de expressão evoluiu. Em parte, evoluiu por causa das demandas por liberdade sexual, não
apenas liberdade polı́tica. As pessoas podem ter invocado a liberdade de expressão contra
ideias sobre a sexualidade, mas é verdade que os acusados também tentaram invocá-la
para defender essas mesmas ideias. Apesar disso, não são exatamente as ideias sobre a
sexualidade que foram defendidas, mas formas de exercı́cio da sexualidade que dependiam,
e dependem, dessas ideias para que tivessem sentido e valor para a vida das pessoas.
Capı́tulo 3. A pornografia defendida politicamente 66

3.2 O direito à independência moral


Dworkin critica a proposta de MacKinnon não só pelos seus efeitos nocivos ao ambiente
polı́tico e cultural – o policiamento do pensamento e a promoção da autocensura – mas
também pelos seu efeitos nocivos ao ambiente moral. Na estratégia de defesa de Dworkin,
há uma tese sobre um direito mais abstrato, o direito à independência moral, e também
uma tese sobre a relação entre liberdade e igualdade. Sua hipótese é a de que “os direitos
que foram tradicionalmente descritos como consequências de um direito geral à liberdade
são, na verdade, as consequências da igualdade” (DWORKIN, 2001b, p.). É um argu-
mento baseado em direitos, não em objetivos, em defesa da livre expressão. Esses direitos
são o direito à igualdade de tratamento e o direito à independência moral que, segundo
Dworkin, é um direito decorrente do direito à igualdade de tratamento. Esse não é, porém,
um argumento constitucional. Dworkin trata desses direitos em abstrato, sem avaliar o
impacto que outros direitos, constitucionalmente reconhecidos, teriam sobre esse direito
e qual sua influência nas interpretações constitucionais vigentes sobre esses direitos. Por
isso, não vamos encontrar em Dworkin uma resposta ou discussão referente ao argumento
de MacKinnon – esse, sim, constitucional – de que a igualdade deve ter prioridade sobre
a liberdade. Ele explicitamente diz que não discute a questão pelo viés constitucional.

The argument I said I had not discussed is a much more specific cons-
titutional thesis: that even if anti-pornography laws do offend the First
Amendment’s guarantee of free speech taken on its own, such laws should
nevertheless be sustained because they protect rights that the Constitu-
tion also guarantees, through the equal protection clause of its Fourte-
enth Amendment. (DWORKIN, 2005a)

Sua resposta está em um nı́vel diferente de abstração, na medida em que dirige-


se às bases filosóficas do argumento de MacKinnon. O direito à independência moral
é concebido como um direito que pode ser invocado por indivı́duos contra argumentos
que sustentem decisões politicas que os colocam em desvantagem social em relação a
outros indivı́duos, mas apenas quando esses argumentos incluem hipóteses sobre o valor
da conduta pessoal do indivı́duo, considerando erradas ou baixas as formas de o indivı́duo
conduzir sua vida. Em uma formulação mais concreta desse direito, aplicada ao caso da
pornografia, o direito à independência moral seria violado quando a justificativa para
regular a pornografia inclui:

A – a hipótese de que as posturas a respeito do sexo exibidas ou promovidas pela


pornografia são aviltantes, bestiais ou inadequadas aos melhores seres humanos,
mesmo que isso possa ser verdadeiro (DWORKIN, 2001b, p.526)

B – a proposição de que a maioria das pessoas concorda com essa hipótese.

Tratam-se de duas hipóteses de ofensa, ou seja, o dano capturado na justificativa


é uma ofensa a um indivı́duo ou grupo. No caso de A, a pessoa é acusada de uma ofensa
Capı́tulo 3. A pornografia defendida politicamente 67

direta, enquanto em B, a acusação é indireta – não são, propriamente, suas autoridades


que o estão acusando, pois eles estariam afirmando apenas que muitas pessoas (não iden-
tificadas) consideram verdadeira a hipótese A, e sentem-se ofendidas com a pornografia e
discordam das posturas sobre sexo que a pornografia exibe ou promove. Ao ser invocado
contra uma justificativa que inclua A, o direito à independência moral está garantindo
que uma pessoa não sofra “desvantagem na distribuição de bens e oportunidades sociais
apenas porque suas autoridades [...] acham que suas opiniões a respeito da maneira certa
de levarem suas próprias vidas são ignóbeis ou erradas” (DWORKIN, 2001b, p.525). Con-
tra uma justificativa que inclua B, o direito protege o indivı́duo da tirania da maioria. É
uma proteção a uma minoria sexual da tirania da maioria moral.
Assim, a pornografia não é a única protegida pelo direito à independência moral.
Ele engloba muitas outras formas de expressão que igualmente poderiam causar tais ofen-
sas. Ele pode ser invocado, por exemplo, nos casos trazidos pela American Booksellers
Association em ABA vs. Hudnut (ABA v. Hudnut, 1985), que são casos que Easterbrook
concordou que estariam ameaçados pela emenda proposta por MacKinnon, mas em de-
fesa dos quais ele invocou a liberdade de expressão. Nesses casos, Dworkin concorda com
Easterbrook que a emenda anti-porn os ameaçaria com a censura, mas ele acha que a
independência moral dos escritores e leitores também é um direito a ser protegido em
casos como esse. “Até mesmo a Bı́blia ou Shakespeare poderiam gerar essas infelizes con-
sequências”, repete Dworkin (DWORKIN, 2001b, p. 527). Caso não tivessem o direito à
independência moral, “o governo teria uma razão para banir esses livros” (DWORKIN,
2001b, p. 527) sem nenhuma razão mais forte para isso.
E qual seria uma razão mais forte? Voltamos à questão de se existe ou não uma
relação causal entre o consumo privado de pornografia e a violência sexual. Caso essa
relação fosse provada, nem mesmo o direito à independência moral poderia ser invocado
para defender a pornografia. Nesse caso, terı́amos saı́do da esfera da ofensa e entrado na
esfera dos comportamentos que causam dano, no sentido constitucionalmente relevante.
Segundo a posição liberal defendida por Dworkin, tais comportamentos podem, em razão
do dano que causam a outras pessoas (mas não ao próprio indivı́duo) ser combatidos
através de ações de intervenção sobre o indivı́duo, ainda que isso represente uma restrição
de sua liberdade, mesmo em seu espaço privado de ação.
Já vimos que a justiça norte-americana não aceitou a existência da relação cau-
sal entre pornografia e crime e que Dworkin praticamente descartou os argumentos de
MacKinnon sem discuti-los. E se MacKinnon estiver certa? E se a pornografia está
dando ordens aos homens de atacar, como cães treinados (MACKINNON, 1996, p. 12),
(MERCK, 2000), as mulheres na rua, em casa, começando pela mulher em sua fantasia
(real, como ela disse) de dominação sexual? Então voltamos à questão do valor da por-
nografia. Precisamos levar em conta o valor que a pornografia pode ter em nossas vidas
para pesar os benefı́cios que a pornografia pode nos trazer contra os danos que ela causa.
Capı́tulo 3. A pornografia defendida politicamente 68

Voltamos, assim, a uma estratégia de defesa baseada em objetivos, já que a independência
moral a que o indivı́duo teria direito não basta para justificar seus atos a outras pessoas
que, compreensivelmente, veriam a si mesmas como injustiçadas por terem que suportar
um dano que não lhes traz benefı́cio algum, colocando-as efetivamente em desvantagem
na distribuição de bens sociais em relação aos consumidores de pornografia.
Outras formas de expressão também causam excitação e estimulam comportamen-
tos nas pessoas. É o caso das propagandas e novelas de TV, por exemplo. Essas são formas
de difusão muito mais generalizada de ideias a respeito do sexo, por isso possivelmente
muito mais danosas ao status social e à formação da autoimagem da mulher do que a
pornografia enquanto tal. Entretanto, essas não são formas de expressão censuradas ou
que o direito norte-americano censure. Caso chegássemos à conclusão de que propagandas
e novelas de TV também contribuem significativamente para o crime – como muito já se
discutiu e se tentou provar com respeito aos video games ou ao rock2 – terı́amos, então,
motivos para bani-las? E se, “todas as formas de literatura emocionalmente poderosa
(inclusive Shakespeare, a Bı́blia e muitas formas de pornografia) contribuem significati-
vamente para o crime” (DWORKIN, 2001b, p.527)? Dworkin suspeita que a pornografia
revelaria seu status especial precisamente nessa situação. Sendo iguais todas as condições
para adotar ou não um regime permissivo com relação a todas as formas “emocionalmente
poderosas” de expressão, a pornografia estaria em desvantagem por seu valor ser inferior
relativamente a outras formas de expressão. A pornografia seria considerada relativa-
mente menos informativa ou imaginativa, ou sua contribuição para as “diversas maneiras
em que as pessoas poderiam expressar-se ou encontrar valor em suas vidas” (DWORKIN,
2001b, p.528) não seria suficientemente relevante ao ponto de a sociedade tolerar os danos
associado a ela, e esse não seria o caso de Shakespeare, da Bı́blia, das novelas de TV ou
da música.
A pornografia seria também um caso especial por um motivo mais sutil. É que
aqueles que se ofendem com a pornografia – e que acham que as pessoas que gostam de
pornografia são piores do que as outras – podem usar o argumento de que a pornografia
não tem papel significativamente positivo no processo de expressão e valorização da se-
xualidade das pessoas como uma forma de mascarar seus verdadeiros juı́zos em relação
a elas sem, com isso, violar o direito delas à independência moral (DWORKIN, 2001b,
p.528). E não violariam esse direito pois, supostamente, a contribuição da pornografia
seria suplantada por outras formas de expressão que, ainda que potencialmente perigosas,
seriam toleradas por seu valor. O valor, nesse caso, não é o valor artı́stico ou polı́tico que,
de acordo com o sistema de liberdade de expressão norte-americano, distingue as formas
2
MacKinnon cita o caso Vance v. Judas Priest, 1990, em defesa de sua afirmação de que a pornografia
age implantando subliminarmente imagens da subordinação das mulheres na mente dos homens. Judas
Priest é uma banda de Heavy Metal que foi acusada de ter causado duas tentativas de suicı́dio, uma
delas bem sucedida. Dois garotos ouviram um disco da banda que continha mensagens subliminares.
O tribunal não encontrou relação entre as letras e as tentativas de suicı́dio. (MACKINNON, 1996, p.
118)
Capı́tulo 3. A pornografia defendida politicamente 69

de expressão que são protegidas das que não são protegidas pela primeira emenda. O
valor é o da contribuição com o processo de valorização da vida das pessoas. A expressão
contribui ou não para esse processo? Essa é a questão. E Dworkin muitas vezes se ex-
pressa como quem não vê grande valor na pornografia nesse sentido, mas ainda assim dá
a ela o benefı́cio da dúvida, ou deixa essa possibilidade em aberto para que outras pessoas
possam encontrar nela esse valor.
Bem entendido, se for demonstrado que a pornografia contribui ou, em tese, é capaz
de contribuir com o processo de valorização de nossa sexualidade ou de outro aspecto que
possa ser conectado positivamente ao valor de nossas vidas, então é justificado invocarmos
o direito à independência moral para defendermos formas de expressão pornográficas da
interferência do Estado ou da maioria moral. Para Dworkin, entretanto, quando se trata
do consumo privado de pornografia, tal demonstração não chega a ser necessária, pois não
existe sequer a relação significativa entre a pornografia e o crime (em geral sexual). Por
isso, não chegamos ao ponto de precisar decidir se devemos ou não tolerar a pornografia,
pois ela não é significativamente perigosa, nem ela nem Shakespeare ou a Bı́blia.
Aqui vemos o quanto Dworkin deixa MacKinnon sem resposta em sua discussão
sobre a pornografia, pois aqueles que seriam os argumentos mais fortes dela a favor da
regulação da pornografia – inclusive se consideradas as condições de Dworkin – são os
argumentos que ele considera os mais frágeis. Mas além disso há uma diferença ainda
mais fundamental operando na base das argumentações de Dworkin e MacKinnon, e que
dificulta ainda mais o debate entre os dois: Dworkin não tem uma teoria de gênero.
Uma resposta mais efetiva a MacKinnon não pode deixar de dirigir-se a sua in-
terpretação de o que é a pornografia, peça central em sua teoria de gênero. Essa inter-
pretação, codificada em sua definição legal de pornografia, não dá espaço para que as
pessoas conectem positivamente a pornografia ao processo de valorização de suas vidas,
em particular de sua sexualidade. É preciso responder a MacKinnon revertendo a negati-
vidade sexual inerente à sua definição de pornografia e argumentando em favor de espaços
para a expressão de valores sexuais positivos que a pornografia possa oferecer. Ainda que
Dworkin não ofereça uma definição concorrente de pornografia nem dê exemplos de como
a pornografia, mais concretamente, poderia colaborar com a vida das pessoas, sua defesa
do direito à independência moral abre caminho para uma tal resposta. É que para poder
dar essa resposta é preciso que seja possı́vel haver interpretações diferentes sobre o valor
da pornografia, possibilitando que ela seja conectada a outros valores que afirmamos sobre
sexo e sobre nós mesmos. Se não temos direito à independência moral, ficamos presos a
um único conjunto de valores, sejam eles defendidos pelo Estado ou pela maioria moral.
Assim, mesmo sem uma teoria de gênero ou uma definição concorrente de pornografia, po-
demos encontrar em Dworkin ao menos uma resposta moral à MacKinnon. Para entender
essa resposta – que apresentaremos a titulo de conclusão – veremos, a seguir, elementos
da teoria moral de Dworkin dando destaque ao modo como ele pensa sobre valores e como
Capı́tulo 3. A pornografia defendida politicamente 70

ele conecta liberdade e igualdade em defesa da independência moral.

3.3 Em nome de quê defender a independência moral?


Suponhamos, então, que existe uma forma de conectar positivamente a pornografia aos
valores sexuais e ao processo de valorização de nossa sexualidade. Em nome de quê
defender o direito à independência moral, necessária para que o indivı́duo afirme sua
própria concepção de pornografia? Diferentemente da justificativa liberal tradicional, que
recorre à liberdade de expressão, Dworkin diz que é em nome da igualdade que deve-se
defender o direito à independência moral. Não é propriamente porque temos o direito a
expressar livremente nossas opiniões sobre o que é bom ou mau em relação ao sexo. É
porque deve-se respeitar igualmente os diversos valores sexuais que afirmamos, enquanto
sociedade, em um mundo plural.

3.3.1 O fato de vivermos em um mundo plural


O pluralismo de valores é um fato. Uma prova disso é o fato de que as pessoas afirmam
diversos valores e divergem quanto a qual deles é o mais importante. Isso leva a formação
de diversos sistemas de valores, muitas vezes conflitantes. Dworkin defende a pluralidade
de valores. Entretanto, ele rejeita o que se chama de pluralismo moral. Segundo o
pluralismo moral, existem diversas concepções de valor (o fato do pluralismo, que Dworkin
reconhece) mas não há certo e errado em questões de valor. Para o pluralismo moral,
não existem padrões independentes aos quais recorrer para determinar se uma ação é
boa ou má. As divergências que inegavelmente surgem são consideradas divergências
irreconciliáveis pelo pluralista.
Afirmar o pluralismo de valores constitui um problema, na verdade, para aqueles
que pretendem que haja censura. O problema começa com o fato, empiricamente cons-
tatado, do pluralismo. Ele parece inegável. De fato as pessoas afirmam diversos valores.
O problema polı́tico que decorre desse fato é a questão de como, então, é possı́vel criti-
car uma ação nesse ambiente. Além disso, como justificar que meus próprios padrões de
comportamento são bons se não tenho como justificadamente dizer que outros não são?
Quando Dworkin rejeita o pluralismo moral, não significa que ele esteja defendendo
um único conjunto de valores. Isso é importante esclarecer. O que Dworkin defende é a
tese da unidade do valor. Essa é a ideia de que diversos valores podem ser integrados em
uma rede de valores onde não há conflito entre eles. É uma postura incomum, mas o que
ele faz ao rejeitar o pluralismo moral é rejeitá-lo de modo a defender a possibilidade de uma
pluralidade de concepções sobre valor. Cada pessoa pode formar a sua rede de valores,
e buscar (ainda que dificilmente isso seja conseguido) harmonizar os diversos valores que
ela afirma de modo que eles não conflitem. Assim, cada pessoa forma sua concepção sobre
valor. Esse é um pressuposto fundamental da defesa da autonomia moral.
Capı́tulo 3. A pornografia defendida politicamente 71

Então, é preciso entender que existem muitos tipos de pluralismo. O pluralismo


que Dworkin rejeita é o pluralismo que, justamente, diz que valores conflitam e que
temos que escolher entre valores. Quando, diante de uma situação de conflito, nos vemos
obrigados a escolher entre um ou outro conjunto de valores, não estamos na posição em
que podemos integrar esses valores à nossa rede de valores, e esse é o “mau pluralismo”
que Dworkin rejeita. O que caracteriza o mau pluralismo é que ele considera a moral
um sistema fechado de valores, que não pode ser reformado. Nesse tipo de pluralismo,
existem diversos conjuntos de valores, mas eles são irreconciliáveis. Dworkin rejeita esse
pluralismo em favor de um projeto de uma moralidade aberta.

3.3.2 Uma moralidade aberta e um projeto de vida que seja autêntico


Isso nos remete à questão, trabalhada por Dworkin em Justice for Hedgehogs, de se a
moralidade é fechada (DWORKIN, 2011, p. 191). Uma moralidade fechada consiste em
um conjunto fixo de padrões de comportamento. Em um projeto de vida que adote uma
moralidade fechada, é possı́vel ou aderir por completo a esse conjunto de padrões ou re-
jeitá-lo por completo, porque ele não é reformulável a não ser através de sua desintegração
e reconstrução, na forma de um novo conjunto, fixo, de padrões. Padrões desviantes de
comportamento não são integráveis a uma moralidade fechada, e por isso ameaçam a in-
tegridade do sistema. Mas, se a moralidade não precisa ser fechada, se ela for um sistema
aberto, então novos padrões podem colaborar com o sistema, conectando-se a padrões
existentes, expandindo o conjunto, ou teia, de valores sem corromper sua integridade.
Mas como isso é possı́vel?
Essa questão tem dois aspectos. Um diz respeito ao sujeito moral, às suas capaci-
dades e intenções. O sujeito moral quer uma vida boa para si, ele se importa com uma
vida boa (autorrespeito). A questão é: ele deve, por isso, ter a capacidade de formular
uma concepção de vida boa, de dar a si mesmo seus próprios fins? ou ele pode simples-
mente adotar os fins formulados por outros? O outro é o aspecto polı́tico do projeto de
uma moralidade aberta, que diz respeito à moralidade polı́tica necessária para que esse
projeto possa ser cumprido. A questão é: quem busca realizar na vida seus próprios fins
deve fazê-lo com respeito aos fins que outras pessoas dão a si mesmas? E é importante a
questão do papel do Estado na promoção desse projeto. De que forma o Estado colabora,
ou interfere, na realização desse projeto ético e polı́tico de emancipação? A censura ins-
titucionalizada a certos padrões de comportamento e formas de expressão, por exemplo,
é uma forma de interferência do Estado na formulação individual de concepções de vida
boa e em padrões de comportamento moral.
Para colocar essa questão nos termos de Dworkin, vamos trabalhar com uma dis-
tinção entre moral e ética metodologicamente utilizada por ele: o que pertence à moral
são padrões que descrevem como devemos tratar os outros; à ética correspondem padrões
que prescrevem como devemos viver nossas vidas. E por que essa distinção? É para poder
Capı́tulo 3. A pornografia defendida politicamente 72

formular a seguinte questão: “meu desejo de levar uma boa vida inclui alguma razão que
justifique eu me preocupar com o que eu devo aos outros?”. E por que essa pergunta?
Porque se a resposta a ela for “sim”, então é porque existe uma interpretação de princı́pios
morais que colabora com o sentido dos princı́pios éticos que guiam minha vida, ou seja, se
a resposta for “sim”, é porque ética e moral não precisam estar em conflito, elas podem
suportar uma a outra. Isso quer dizer que aquilo que eu faço para os outros colabora com
o fim que eu dou à minha própria vida, e que esse fim, que é aquilo que eu faço para mim,
não está em conflito com o que eu devo fazer aos outros.
Mas qual é o problema de moral e ética estarem em conflito? Por que preocupar-se
em resolver esse conflito? É porque se temos convicções morais que não fecham com os
padrões éticos que prescrevem como queremos levar nossas vidas, então, segundo Dwor-
kin, não seguimos uma moralidade autêntica – não conseguimos integrar a moralidade
à concepção que temos de como é nossa personalidade e como queremos que seja nossa
vida. De outro modo, isso quer dizer que o problema de uma moral em conflito com a
ética é que somos obrigados a seguir padrões de comportamento em relação aos outros
que não colaboram para a realização dos objetivos que damos às nossas vidas nem com
nossa personalidade.
O problema de por que esse conflito deve ser resolvido pode ser formulado como
a questão: “por que ser moral?”, ou seja, “por que me preocupar com o que eu devo aos
outros?” Uma moralidade desintegrada do sentido que queremos dar às nossas vidas –
desintegrada da ética – pode responder apenas que devemos ser morais porque a morali-
dade exige, sem que essa resposta contribua para o sentido que queremos dar às nossas
vidas. Isso é bom? Isso é ruim? Dworkin responde que isso é mais limitado, que assim
não vemos o valor que a moral tem em nossas vidas. A moral seria um sistema de valores
fechado – que poderia ser internamente coerente – mas que não se integraria a outros
sistemas de valores da maneira que Dworkin argumenta ser a melhor, que é a maneira
segundo a qual os valores morais podem ser autenticamente afirmados por nós.
Uma moralidade fechada não faz essa exigência de autenticidade, ela exige apenas a
adesão ao sistema moral. Quando em confronto com outro sistema de valores, a integração
que uma moralidade fechada poderia sofrer ocorreria em termos de adesão ou rejeição de
um ou mais desses valores segundo o quanto eles podem ser consistentemente interpretados
em conjunto com os valores do sistema atual. Não é uma questão relevante se esses
valores podem ser autenticamente afirmados por aqueles que aderiram a esse sistema. Se
a integração for bem sucedida, aqueles que aderiram ao sistema têm novamente apenas a
opção de afirmar ou negar o sistema completamente – porque trata-se de uma exigência
da moral, de um dever moral, afirmar suas consequências.
Ou seja: um projeto de moralidade que esteja em conflito com a ética é mais limi-
tado que um projeto que integra moral e ética. É mais limitado porque essas convicções
morais não podem ser justificadas ou testadas (para determinarmos se são autênticas)
Capı́tulo 3. A pornografia defendida politicamente 73

através da pergunta: essas convicções ajustam-se bem a outros propósitos (concepções


de ética) que outras pessoas possam ter? De outro modo: um projeto de moralidade em
conflito com a ética é mais limitado porque seu potencial de integração a uma rede mais
vasta de valores é mais limitado que o potencial de um sistema que integre moral e ética.

3.3.3 O artista como modelo de sujeito que unifica ética e moral


Dworkin defende que ética e moral devem ser unificadas. Como dissemos, a ética refere-se
ao que pensamos que seja a boa vida e a moral, por sua vez, ao que pensamos que devemos
fazer para os outros. Integrar ética e moral significa encontrar uma concepção de boa vida
que possamos adotar e que ao mesmo tempo nos ajude a pensar o que devemos fazer para
os outros.

Queremos pensar que a moralidade conecta-se com as ambições e propósitos


humanos de modo menos negativo, que ela não seja apenas um conjunto
de restrições sem que tenha algum valor [...] Buscamos uma concepção
de viver bem que possa guiar nossa interpretação de conceitos morais
[...] mas queremos, como parte desse mesmo projeto, uma concepção de
moralidade que possa guiar nossa interpretação de viver bem. (DWOR-
KIN, 2011, p. 153)

Duas coisas precisam ser destacadas sobre esse projeto para entender como é o
sujeito moral para Dworkin.
1) Somos nós que pensamos o que é a boa vida e somos nós que pensamos o que
devemos ou não devemos fazer para os outros. Cabe a nós a tarefa de elaborar nossa
concepção de ética e de moral. Aquilo que buscamos na vida e o que fazemos para os
outros não pode ser justificado por um dever. Por que ser bom? Por que viver uma
boa vida? A resposta, para Dworkin, não está escrita em nenhum tipo de código que,
poderı́amos então argumentar, deveria ser adotado por todos. Esse código não está escrito
na própria realidade, não é uma coisa dada, objetiva. Não existem “partı́culas” de certo e
errado na estrutura do universo – que ele chama ironicamente de “morons” (DWORKIN,
2011, p. 26) – e que poderiam ser consultadas para escrever o código ou usadas em uma
explicação do valor de nossas ações e do fim último da vida – o sentido da vida. Para
Dworkin, boa vida não é satisfazer desejos ou conformar-se a valores dados. A boa vida
é um projeto crı́tico de interpretação de nossa responsabilidade de viver uma boa vida,
cuja própria interpretação dá valor às coisas que fazemos (DWORKIN, 2011, p. 195).
Esse esforço interpretativo é o esforço para ter uma vida que possa ser chamada de boa.
Tudo decorre, entretanto, do reconhecimento de que temos essa responsabilidade
de viver uma boa vida. É preciso, antes, reconhecer o valor fundamental de ter uma vida
boa nesse sentido crı́tico (reflexivo). Para isso é preciso perguntar “o que é vida?”, mas
vida em sentido crı́tico – racional ou interpretativo (criativo). Para responder a pergunta
sobre o valor da vida e por que ser bom, precisamos apenas partir do fato da nossa
existência como seres conscientes ou, dito pelo viés subjetivo, da consciência que cada um
Capı́tulo 3. A pornografia defendida politicamente 74

de nós tem de sua existência. O fato de que existimos é importante e tem valor. O ponto
de partida é a consciência de que nossa vida importa (DWORKIN, 2011, p. 196).
2) Essa integração entre ética e moral pretende ter um valor positivo para quem
a adota. Como cabe a nós pensar sobre os valores que adotamos, essa concepção de boa
vida que Dworkin busca deve ser capaz de nos ajudar nessa tarefa. Esse valor não é
uma garantia de que quem vive moralmente vive bem. Viver bem não é o mesmo que
viver uma boa vida. Viver bem tem a ver com os prazeres que podemos ter na vida e
com realizações (DWORKIN, 2011, p. 195). Dworkin não procura um valor nas coisas
concretas que poderı́amos fazer. O valor da boa vida, ele diz, é adverbial (DWORKIN,
2011, p. 197), diz respeito ao modo de vida – “uma boa performance em resposta a um
desafio importante” (DWORKIN, 2011, p. 88). Assim, a concepção de boa vida que ele
busca deve nos ajudar na tarefa de dar valor àquilo que fazemos na vida, mas através do
modo como vivemos, e não porque as coisas que fazemos tenham em si um valor. Se as
coisas tivessem em si um valor, nesse caso esse seria um valor que deverı́amos nos esforçar
para encontrar nas coisas, em vez de ser um valor que damos às coisas. Uma consequência
desse modo de pensar sobre valores é que, para viver uma vida boa, não precisamos nos
apegar a um objetivo supremo ou a uma hierarquia de valores. Em vez disso, o que
precisamos é desenvolver um bom caráter, “um modo de ser que você considera adequado
à sua situação” (DWORKIN, 2011, p. 209-210), um modo de viver que seja bom, que
inclui não só o que fazemos para realizar nossos objetivos, mas também o que fazemos
para os outros.
Para esclarecer essa concepção de vida que integra ética e moral, Dworkin recorre
à analogia entre a vida e a arte (DWORKIN, 2011, p. 196). A analogia com a arte ajuda
a mostrar como funciona o modo de Dworkin entender valores – valores não como fatos,
mas como conceitos que se integram em uma teoria afirmada autenticamente pelo próprio
indivı́duo – e qual sua relação com o caráter e a responsabilidade que se pode exigir de
cada um.
A analogia diz que devemos viver a vida como obra de arte, sermos como artistas
que fazem de sua vida a sua obra. Não se trata de transpor para a vida valores estéticos.
A analogia pretende estabelecer uma relação entre o valor da obra e o valor das ações que
criam a obra (DWORKIN, 2011, p. 197). O paralelo é com a relação entre valores éticos
– os fins que damos às nossas vidas – e valores morais – as coisas que fazemos para os
outros enquanto perseguimos esses fins. Por trás dessa analogia está a tese de que o valor
daquilo que consideramos ser bom para nossa vida – o que determina os valores éticos que
afirmamos – dá suporte e também recebe suporte dos valores daquilo que consideramos ser
bom em nossa relação com os outros – o que determina os valores morais que afirmamos.
Não se trata de fazer da vida um objeto que teria em si um valor independente do modo
como foi feito. Um tal objeto, um observador externo poderia identificar nele seu valor.
Trata-se de fazer da vida, de entender a vida, como performance. O valor que a vida pode
Capı́tulo 3. A pornografia defendida politicamente 75

ter está na performance e não no produto final.


O que entende-se da analogia é que viver bem é viver eticamente – segundo padrões
que determinamos às nossas vidas para que elas tenham valor, para que valham a pena
serem vividas –, mas o significado de “viver eticamente” é dado por padrões independentes
de moralidade – o modo como tratamos os outros tem um valor (de performance) que
é independente dos fins e dos padrões que damos a nós mesmos quando determinamos
o que é bom para nossas vidas, ou seja, dos valores éticos que afirmamos. O que isso
quer dizer é que não importam quais sejam os fins e os padrões que vamos usar para
determinar o que é o melhor para nossas vidas – aquilo que cada um quer para sua vida
para que ela seja uma boa vida é uma questão pessoal –, a performance individual é que
conta (DWORKIN, 2011, p. 198) na avaliação do valor desses fins (o produto da vida) e
padrões éticos.
Aqui, Dworkin fala em “beleza”, compreendida como “bem fazer”. Fazer da
própria vida uma bela performance significa adotar como fim para sua vida a realização
de uma bela performance, ou seja, independentemente do que se deseje fazer na vida,
desejar fazê-lo segundo os padrões independentes que dão valor à performance – desejar
fazer “bem feito”. Isso, segundo a analogia, significa adotar padrões morais como padrões
éticos – portanto, unificar valores morais e éticos.
Como estamos em busca de uma bela performance, e a performance é o que dá
valor ao que fazemos, e o significado de “viver eticamente” é dado pela performance, então
viver bem é dar significado ético à nossa vida (DWORKIN, 2011, pg. 198), ou seja, é dar
valor à vida. Não é o valor que é dado à vida que dá sentido a ela, mas sim o dar valor
à vida.
O “artista”, portanto, é um ideal de sujeito que dá valor à sua vida através da
expressão autêntica de sua subjetividade, e que o faz com respeito ao valor que os outros
dão às suas vidas – sem negá-los, portanto, mas sim integrando-os a uma teia mais vasta
de valores.

3.3.4 Uma questão de respeito e de responsabilidade no debate polı́tico


Os valores expressos nas produções pornográficas não devem, segundo essa leitura, ser
entendidos como uma tentativa de negar o valor de um padrão de comportamento sexual
existente em favor de outro, mas sim como o desafio de integrar o valor de um compor-
tamento considerado desviante a uma teia mais vasta de valores. O desafio não é tanto o
desafio de o pornógrafo dar valor, através de sua atividade, à sua vida, mas sim o desafio
de os outros darem valor às suas através da atividade proposta por ele, expandindo em
vez de negando seus sistemas de valor. O desafio é: como integrar o comportamento
pornográfico ao sentido da vida daqueles que são contra a pornografia? Esse é o desafio
proposto por aqueles que querem que a moral evolua, que buscam reforma, não o desafio
Capı́tulo 3. A pornografia defendida politicamente 76

daqueles que querem colocar abaixo um determinado sistema e fixar um novo sistema de
valores.
Para Dworkin, o projeto de vida de uma pessoa independente deve visar a eman-
cipação, o que significa lutar contra a subordinação a um conjunto de padrões de compor-
tamento que não possam ser autenticamente afirmados pelo indivı́duo; pela mulher ou,
pelo homem, porque não vemos em Dworkin motivos para achar que o valor fundamental
da vida seja diferente para homens e mulheres. A diferença está na situação de cada um,
mas o que ambos devem fazer é o mesmo: viver em resposta à sua situação buscando dar
valor à sua vida com autorrespeito e respeito pelos outros.
Dworkin não acha que valores conflitam. O que conflita são as interpretações que
damos aos valores. Mas isso quer dizer que devemos fazer das definições de liberdade e
igualdade aquilo que melhor nos serve? Se uma definição não nos serve por que causa
conflito com outros valores que afirmamos então devemos mudar o modo de pensar sobre
esse valor que nos causa problemas? Isso não leva a um tipo de vale-tudo em ética e em
polı́tica? O que Dworkin quer dizer? Seria que, em cada caso de conflito, devemos parar
para rever nossos conceitos ou, quando ele afirma a unidade do valor, ele quer dizer que
existe uma única resposta certa sobre qual interpretação devemos dar, por exemplo, à
liberdade?
Ele diz que existe uma resposta certa. Para Dworkin, existe uma concepção correta
de liberdade e de igualdade. Entretanto, a concepção correta não é uma definição de
dicionário, uma fórmula. A concepção correta de liberdade, para Dworkin, tem a forma
de uma teoria sobre a liberdade, assim como a concepção correta de igualdade tem a
forma de uma teoria sobre a igualdade e assim com todos os valores que uma pessoa
venha a afirmar em sua vida. Para criar essa teoria é preciso ver como as pessoas usam
esses conceitos no dia a dia, na vida.
De que modo usamos o conceito de igualdade para criticar o comportamento, por
exemplo, da atriz pornô? Precisamos procurar nessas concepções uma justificativa para
aquilo que estamos fazendo para as pessoas. Se estamos censurando a atividade da atriz
pornô ou do produtor de seus filmes argumentando que estão promovendo a desigualdade
entre homens e mulheres, temos que procurar essa justificativa nessa concepção de igual-
dade que estamos usando. Isso é tratar a concepção de igualdade como uma teoria que
inclui, entre outras coisas, uma justificativa para fazer algo em seu nome para as pessoas.
É verdade que, assim, podemos encontrar diversas teorias sobre o que é igualdade e
sobre o que devemos fazer para os outros para promover a igualdade. Essas diversas teorias
podem conflitar e, se tomarmos isso como justificativa para dizer que não existe resposta
certa em questões de valor, não estaremos em uma situação diferente do pluralismo que
Dworkin critica. Entretanto, Dworkin não chama atenção para o fato de que muitos
discordam sobre esses assuntos, mas sim para o fato de que todos estão de acordo que,
cada um, individualmente, está com a razão e que a sua própria teoria é a correta. Além
Capı́tulo 3. A pornografia defendida politicamente 77

disso, mesmo quando um lado discorda do outro dizendo que não há resposta certa,
Dworkin observa que essa não é senão uma outra teoria sendo afirmada a respeito de tal
questão pela parte que discorda. A conclusão é que todos que discutem um assunto estão
de acordo que estão em busca da verdade sobre o assunto, mesmo o cético. Aliás, o único
espaço para ceticismo nesse cenário é retirar-se do debate, calar totalmente. A máxima
contradição em um debate sobre valores é dizer que em questão de valores não há resposta
certa, pois essa é justamente uma resposta que se pretende certa com relação ao assunto.
No final das contas, sempre haverá desacordo nos debates, e não devemos, diz
Dworkin, esperar chegar a um consenso em todas as questões. Nem todas as pessoas vão
concordar com o que pensamos, por isso haverá debate, e nem todas vão concordar com
as consequências daquilo que pensamos, apesar de compreenderem nossas razões, ou seja,
vão discordar de nossas posições por causa do resultado do argumento e não por causa
do argumento em si.
O que se pode esperar e exigir, sim, em um debate sobre valores, é que haja
integridade e autenticidade nos valores afirmados por cada um. A integridade diz respeito
à coerência da teoria por traz das concepções que sustentamos, e a autenticidade diz
respeito ao modo como pessoalmente nos engajamos não só no debate, mas na vida, em
função dessas concepções que afirmamos. É possı́vel, diz Dworkin, exigir responsabilidade
das pessoas que discutem valores, exigir que elas sejam responsáveis pelas posições éticas e
morais que afirmam. A resposta certa sobre valores (e sobre o que é a boa vida e ser bom)
é a resposta responsável. E esse é, novamente, um modo fundamentalmente diferente do
modo de MacKinnon pensar sobre valores. Assim, para Dworkin, a questão não seria
encontrar a melhor resposta – ou interpretação – para o problema da igualdade levantado
por MacKinnon, mas sim, mais precisamente, a mais responsável.
O modo de Dworkin pensar sobre valores permite que, ao criticarmos uma resposta,
não estejamos simplesmente confrontando uma preferência – um valor mais importante
para nós – contra outra preferência, mas estejamos, ao mesmo tempo, criticando a respon-
sabilidade de quem afirma tal valor. Por isso, acho que a verdadeira resposta de Dworkin
para MacKinnon não é nem estritamente aquela baseada em uma interpretação constitu-
cional de direitos nem apenas o direito à independência moral. Sua resposta dirige-se aos
fundamentos filosóficos da argumentação de MacKinnon e revela que a teoria dela sobre a
igualdade não é moralmente responsável. Apresento essa resposta a titulo de conclusão.
78

Conclusão

Da leitura constitucional da questão da pornografia, pode ser extraı́da a conclusão de que


a proposta de promover a igualdade sexual através da proibição da pornografia é inconsti-
tucional nos Estados Unidos porque conflita com a liberdade de expressão. No centro da
lei anti-porn de Catharine MacKinnon está uma longa lista de práticas e representações
que caracterizariam a discriminação sexual que deveria ser combatida. Isso foi entendido
como tentativa de legislar sobre o conteúdo da uma expressão, e por isso a lei foi declarada
inconstitucional. Entretanto, há um problema moral na abordagem de MacKinnon que
aparece quando nos concentramos no que significa, em termos do modo como os valores
são pensados, tentar fixar, em uma lei, o significado de uma prática ou do conteúdo de
uma expressão.
MacKinnon acusa os pornógrafos de serem responsáveis pela opressão sofrida pe-
las mulheres no “mundo pornográfico” de desigualdades que a própria pornografia cria.
Diante da força protetora da Primeira Emenda, MacKinnon protesta dizendo que os in-
teresses do pornógrafo – dos homens – estão sendo protegidos como se fossem o interesse
de divulgar uma ideia sobre opressão e subordinação em vez de, segundo ela argumenta
em Only Words, serem vistos como sendo eles mesmos a própria opressão e subordinação.
A pornografia não é, para MacKinnon, uma ideia, ela é a própria subordinação, um ato.
Assim é que a pornografia seria responsável por criar o “mundo pornográfico”, ou seja,
através do que a pornografia faz e não do que ela diz. Essa ideia está no centro da tese
que MacKinnon quer provar, que diz que existe uma significativa relação causal entre
pornografia e violência contra a mulher.
Vimos que essa é uma tese que pretende se justificar pela existência de fatos brutos
sobre a desigualdade, apontáveis no mundo. Há também uma pretensão de neutralidade
nessa afirmação, pois ela pretende não ser um julgamento moral, mas sim um julgamento
sobre um fato bruto, algo objetivo e que deve ser tratado também objetivamente. En-
tretanto, para Ronald Dworkin, está descartada a possibilidade de fazer uma teoria da
igualdade baseada em fatos brutos, ou seja, baseada em valores objetivos independentes
de razões. Também não será recorrendo a fatos brutos – apenas apontando para os fatos –
que será possı́vel julgar uma teoria da igualdade. O que é possı́vel fazer é questionar (para
avaliar) a responsabilidade, a integridade e a autenticidade dessa teoria. Isso envolve não
só as razões de quem afirma a teoria como também a relação do sujeito com ela – seu
caráter.
Sem dúvida MacKinnon apresenta argumentos para sustentar a tese da desigual-
dade inerente à pornografia, e uma das exigências que Dworkin diz que devem ser feitas a
um indivı́duo moralmente responsável é que os valores afirmados por ele sejam sustentados
por argumentos que possam dar uma justificativa para fazer algo em nome desses valores.
Conclusao 79

Na resenha de Only Words, Dworkin analisa os principais argumentos de MacKinnon,


mas, quando ele critica o conflito entre liberdade e igualdade que decorre desses argumen-
tos, encontramos uma violação do requisito de integridade – a coerência da teoria por trás
das concepções que sustentamos –, que não é, por isso, satisfeito. Há uma instabilidade
na teoria de MacKinnon que ela propõe resolver colocando o valor da igualdade acima
do valor da liberdade. Além disso, o projeto anti-porn de MacKinnon violaria o direito,
putativo, à independência moral que Dworkin defende, na medida em que desconsideraria
o valor que outras pessoas podem dar à pornografia.
Quando MacKinnon aponta para essa ou aquela prática sexual dizendo que ela é,
em si, a própria desigualdade, a própria opressão, ela está procurando dar um valor à
prática em si. Como vimos ao discutirmos o método de MacKinnon, ao formar o conceito
de “objetificação sexual”, ela parte de uma situação no mundo que já é considerada
moralmente problemática e, posteriormente, dá a ela o nome de “objetificação sexual”.
Assim, ela implica no conceito o próprio problema que ela identificou. Isso significa que
o conceito é formado já carregado de significado moral. Assim, não é possı́vel debater em
quais casos ocorre ou não ocorre objetificação sexual e em quais circunstâncias ela é ou
não é problemática, porque esses casos e essas circunstâncias já estão dados por definição.
Sem dúvida é possı́vel dar o valor que quisermos a essa ou àquela prática ou tipo
de imagem. O problema moral é achar que o valor está na imagem em si, na prática em
si, pois assim não está sendo respeitada a capacidade do indivı́duo de dar valor àquilo que
faz, de acordo com o valor que ele mesmo dá à sua vida – que consiste em sua dignidade
–, e também não está sendo respeitada sua responsabilidade – na medida em que, por
ser uma capacidade do indivı́duo e a vida ser também dele, a responsabilidade de dar
valor à sua vida é também dele. Ao não respeitar a capacidade do indivı́duo de dar valor
ao que faz, fica excluı́da a possibilidade de considerar, em um juı́zo moral sobre suas
ações, o significado daquilo que ele faz e o significado de sua vida – um desrespeito à sua
responsabilidade pelo sentido ético que ele busca dar à sua vida. É possı́vel criticar o
pornógrafo e o que ele faz, mas desde que a crı́tica respeite sua autonomia ética e moral
e considere aquilo que ele é e o que ele faz de acordo com o significado que ele dá à sua
vida e atividades – como diz Dworkin, criticar tratando com igual consideração e respeito,
interpretando a prática à sua “melhor luz”.
Por isso, dizer que a pornografia é em si mesma discriminação sexual não é só uma
tese que necessita de comprovação da relação causal entre uma prática e o dano que a
tese afirma existir; é também uma tese que, por princı́pio, nega a responsabilidade que
cada uma das pessoas que produzem, dirigem, atuam, consomem e distribuem material
pornográfico têm de dar significado ao que fazem de suas próprias vidas. Isso, mais
precisamente, nos leva a dizer que a tese de MacKinnon não é moralmente responsável.
Primeiro, porque parte de querer tratar a pornografia objetivamente, como se o valor
da prática fosse fixo. Segundo, porque termina por não tratar essas pessoas com igual
Conclusao 80

consideração e respeito, negando a elas sua autonomia e responsabilidade por suas próprias
vidas.
Em resumo, as principais bases da crı́tica de Dworkin a MacKinnon são duas:

1) A ameaça à liberdade de expressão que o argumento de MacKinnon representa. Essa


é uma crı́tica com base na interpretação da constituição norte-americana e acompanha a
interpretação vigente nos tribunais. Caso fosse aceito, o argumento de MacKinnon justi-
ficaria a punição de uma ampla gama de expressões da sexualidade humana, não só em
suas formas midiáticas, mas também as condutas sexuais em si, efetivamente implantando
um regime de censura operado através de instrumentos de punição civil contra aqueles
que fossem considerados pornógrafos ou envolvidos com pornografia. Nessa crı́tica Dowr-
kin acompanha também feministas como as que formaram o FACT (grupo de feministas
contra a censura), entre elas, Adrienne Rich e Betty Friedan. Acompanha e também fun-
damenta o trabalho de outras feministas, como Drucilla Cornell, também preocupada com
as implicações negativas dos argumentos de MacKinnon nos objetivos de emancipação das
mulheres, particularmente quando a realização desses objetivos passa formas de expressão
artı́stica3 .

2) O direito, putativo, à autonomia moral. Essa crı́tica Dworkin dirige ao procedimento


de combate às desigualdades entre homens e mulheres que MacKinnon adota. Por um
lado, o procedimento de MacKinnon envolve o recurso à censura. Por outro, e mais fun-
damentalmente, ele envolve uma conduta polı́tica moralmente reprovável. Para Dworkin,
MacKinnon desrespeita a dignidade e a autonomia de todas as pessoas envolvidas na
produção de material pornográfico, inclusive a dignidade e a autonomia das mulheres, ao
tentar impor, através de lei, sua interpretação de pornografia. MacKinnon não vê a pos-
sibilidade de a pornografia ser uma atividade através da qual a mulher possa valorizar-se.
Isso decorre de sua interpretação de o que é a pornografia, que, praticamente por de-
finição, não pode ser nada além de violência contra a mulher, por isso impossı́vel que uma
mulher queira violentar-se e submeter-se ao abuso sexual como forma de valorizar-se e
de dar sentido à sua vida. Como a interpretação fechada de pornografia que MacKinnon
defende – que é uma interpretação que não permite que outras pessoas, inclusive mulhe-
res, conectem a pornografia a outros sentidos e a outros valores importantes para suas
vidas – está na base de seu argumento constitucional a favor da censura da pornografia,
3
Ver, por exemplo, a sessão “Pornography redefined” do capı́tulo 3 de “The Imaginary Domain”
(CORNELL, 2016). Cornell discute as dificuldades de determinar se uma peça de teatro que continha
cenas de strip tease, e que foi escrita pela autora feminista Robin Moran-Miller, caı́a ou não sob a
definição de pornografia de MacKinnon. A autora da peça tinha a intenção de mostrar o strip tease
como uma forma de objetificação da mulher, aparentemente um objetivo coerente com o objetivo
de MacKinnon. Entretanto, a definição de pornografia de MacKinnon é ambı́gua e permitiria que a
“apresentação da subordinação” fosse interpretada como “apresentação enquanto subordinação”. A
questão é, portanto, se a peça subordina a mulher ao apresentá-la como objeto sexual (por isso seria
pornográfica) ou se a peça, como a autora pretende, mostra criticamente a objetificação sexual.
Conclusao 81

esse argumento, para Dworkin, é moralmente reprovável, porque conflita com o direito,
defendido por ele, de que todos, homens e igualmente mulheres, tenham a chance de influ-
enciar o ambiente moral em que vivem e de, através da atividade que escolheram exercer,
buscar dar valor e sentido às suas vidas. Na visão de Dworkin, MacKinnon estaria fe-
rindo também a igualdade, não só a liberdade de expressão, como foi reconhecido pela
suprema corte norte-americana. Para que a igualdade, na concepção de Dworkin, seja
atingida, é preciso defender, em vez de combater, a liberdade de expressão, igualmente
para homens e mulheres. Isso porque é através do exercı́cio livre e responsável de suas
atividades (e isso envolve a livre expressão), que as pessoas podem dar sentido não só às
suas vidas, mas também à atividade que exercem, que neste caso é a pornografia. Esse
sentido, porém, não está fixado em lugar nenhum, e também não pode ser fixado em uma
lei, como MacKinnon pretende. Para Dworkin, a liberdade que MacKinnon ataca, como
sendo a liberdade para subordinar e promover a desigualdade entre homens e mulheres, é a
mesma liberdade que mulheres e homens têm de, através da própria pornografia, reverter
a situação de desigualdade da mulher em relação ao homem, causada por uma maneira
inautêntica de representá-la.
82

Referências

ABA v. Hudnut. American booksellers association v. hudnut (7th cir. 1985). 1985.
Disponı́vel em: hwww.bc.edu/bc org/avp/cas/comm/free speech/hudnut.htmli.

AMENDMENT 14th. 14th Amendment. 1868. Disponı́vel em: hwww.law.cornell.edu/


constitution/amendmentxivi.

AMENDMENT 1st. 1st Amendment. 1789. Disponı́vel em: hwww.law.cornell.edu/


constitution/first amendmenti.

BEAUVOIR, S. d. Brigitte Bardot and the Lolita syndrome. New York, NY: Esquire
Magazine, 1959.

BLACKSTONE, W. Commentaries on the Laws of England: A Facsimile of the


First Edition of 1765–1769. University of Chicago Press, 1872. Disponı́vel em:
hhttp://press-pubs.uchicago.edu/founders/documents/amendI speechs4.htmli.

BUTLER, J. Une éthique de la sexualité: entretien avec judith butler. Vacarme, 2003.
Disponı́vel em: hwww.vacarme.org/article392.htmli.

CORNELL, D. The Imaginary Domain: Abortion, Pornography and Sexual Harrassment.


[S.l.]: Routledge, 2016. ISBN 978-1-134-71281-6.

DWORKIN, A. Pornography: Men Possessing Women. First perigee printing edition.


[S.l.]: The Women’s Press Ltd, 1981. ISBN 9780704338760.

DWORKIN, R. O liberalismo. In: Uma Questão de Princı́pio. São Paulo: Martins


Fontes, 2001.

DWORKIN, R. Uma Questão de Princı́pio. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

DWORKIN, R. MacKinnon’s words. In: Freedom’s Law: The Moral Reading of The
American Constitution. New York: Oxford University Press, 2005. p. 227–243. ISBN
0198265573.

DWORKIN, R. Pornography and hate. In: Freedom’s Law: The Moral Reading of The
American Constitution. New York: Oxford University Press, 2005. p. 214–226. ISBN
0198265573.

DWORKIN, R. Justice for Hedgehogs. [S.l.]: Harvard University Press, 2011. ISBN
9780674046719.

DWORKIN, R.; MACKINNON, C. A. Pornography: An Exchange. The New York


Review of Books, 1994. Disponı́vel em: hhttp://www.nybooks.com/articles/1994/03/03/
pornography-an-exchange/i.

Gitlow v. New York. Gitlow v. New York, 268 U.S. 652 (1925). 1925. Disponı́vel em:
hcaselaw.lp.findlaw.com/scripts/getcase.pl?court=US&vol=268&invol=652i.

Jacobellis v. Ohio. Jacobellis v. Ohio. 1964. Disponı́vel em: hwww.law.cornell.edu/


supremecourt/text/378/184i.
Referências 83

Jacobellis v. Ohio. Jacobellis v. Ohio 378 U.S. 184 (1964). 1964. Disponı́vel em:
hwww.acluohio.org/cases/jacobellis-v-ohioi.
MACKENZIE, I. Polı́tica. Porto Alegre: Artmed, 2011. ISBN 9788536325187.
MACKINNON, C. Pornography and Civil Rights: a new day for women’s equality. [s.n.],
1988. Disponı́vel em: hhttp://www.nostatusquo.com/ACLU/dworkin/other/ordinance/
newday/TOC.htmi.
MACKINNON, C. A. Sexual Harassment of Working Women: A Case of Sex
Discrimination. [S.l.]: Yale University Press, 1979. ISBN 9780300022995.
MACKINNON, C. A. Minneapolis ordinance. 1983. Disponı́vel em: hwww.nostatusquo.
com/ACLU/dworkin/other/ordinance/newday/AppA.htmi.
MACKINNON, C. A. Pornography, Civil Rights, and Speech. Harvard Civil
Rights-Civil Liberties Law Review, v. 20, p. 1, 1985. Disponı́vel em: hhttp:
//heinonline.org/HOL/Page?handle=hein.journals/hcrcl20&id=9&div=&collection=i.
MACKINNON, C. A. Feminism Unmodified: Discourses on Life and Law. [S.l.]: Harvard
University Press, 1988. ISBN 9780674298743.
MACKINNON, C. A. Pornography and Civil Rights: a new day for women’s equality.
Minneapolis, Minnesota: Organizing Against Pornography, 1988. ISBN 0-9621849-0-X.
MACKINNON, C. A. Toward a Feminist Theory of the State. Cambridge, Massachusetts:
Harvard University Press, 1989.
MACKINNON, C. A. Only Words. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1996.
ISBN 9780674639348.
MALLE, L. Les amants. 1959.
MERCK, M. Mackinnon’s Dog. In: In Your Face: 9 Sexual Studies. [S.l.]: NYU Press,
2000. ISBN 978-0-8147-5638-6.
MILL, J. S. On Liberty. MBinghamton, New York: Yale University Press, 2003. ISBN
0-300-09610-0.
MILL, J. S. The Subjection of Women. MBinghamton, New York: Project Gutenberg,
2008.
Miller v. California. Miller v. California, 413 U.S. 15 (1973). 1973. Disponı́vel em:
hwww.law.cornell.edu/supremecourt/text/413/15i.
MITCHELL, J. Women’s Estate. [S.l.]: Penguin, UK, 1971.
NY Times. The-lovers. 2010. Disponı́vel em: hwww.nytimes.com/movies/movie/30379/
The-Lovers/overviewi.
NY Times v. Sullivan. New York Times Co. v. Sullivan 376 U.S. 254 (1960). 1960.
Disponı́vel em: hwww.law.cornell.edu/supremecourt/text/376/254i.
RUBIN, G. Misguided, dangerous and wrong: an analysis of anti-pornography politics.
In: ASSISTER, A. (Ed.). Bad Girls and Dirty Pictures: the challenge to reclaim
feminism. Boulder, Colorado: Pluto Press, 1993.
Referências 84

SILVA, J. C. C. B. Democracia e Liberdade de Expressão: Contribuições para uma


interpretação polı́tica da liberdade da palavra. Tese (Doutorado) — USP, São Paulo,
2009.

SILVA, J. C. C. B. Liberdade de expressão, pornografia e igualdade de gênero. Revista


Estudos Feministas, v. 21, n. 1, p. 143–165, abr. 2013. ISSN 0104-026X. Disponı́vel em:
hwww.scielo.br/scielo.php?script=sci abstract&pid=S0104-026X2013000100008&lng=
pt&nrm=iso&tlng=eni.

SLAVIN, S. U.S. Women’s Interest Groups: Institutional Profiles. [S.l.]: Greenwood


Publishing Group, 1995. ISBN 978-0-313-25073-6.

SNITOW, A. Retrenchment versus transformation: The politics of the anti-pornography


movement. In: Women Against Censorship. Vancouver, Canada: Douglas and McIntyre,
1985.

SOHN, A. M. Marianne ou l’histoire de l’idée républicaine aux xixème et xxème siècles


à la lumière de ses représentations. 2004. Disponı́vel em: hhist-geo.ac-rouen.fr/doc/bls/
2004/marian.pdfi.

STARK, C. A. Is pornography an action?: The causal vs. the conceptual view of


pornography’s harm. p. 277–306, 1997. Disponı́vel em: hhttp://www.jstor.org/stable/
23559185i.

STOCK, K. Sexual objectification. Analysis, v. 75, n. 2, p. 191–195, 2015.

STONE, G. R. American booksellers association v hudnut: “the government must leave


to the people the evaluation of ideias”. 2010.

SUTHERLAND, K. Marx and mackinnon: The promise and perils of marxism for
feminist legal theory. n. ID 1586857, 2005. Disponı́vel em: hhttp://papers.ssrn.com/
abstract=1586857i.

Você também pode gostar