Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
I - Introdução
A tradução dessa versão judaica difere muito da leitura habitual das traduções
cristãs, com a qual a maioria dos leitores estão habituados.
Para compreender porque, é preciso fazer uma análise linguística detalhada dos
termos tohu e vohu, que descrevem o estado da terra.
Uma investigação mais aprofundada de tais termos, assim como daquilo que os
comentaristas judeus da antiguidade tinham a dizer sobre eles, revela o que talvez seja
um dos aspectos mais fascinantes da criação. E esse é justamente o objeto deste artigo.
Para começar, portanto, é fundamental observar o uso dos termos tohu e vohu ao
longo do Tanakh, para compor a análise linguística. Observe:
"Em solitude desértica o encontrou, entre bramidos de região desolada [uvtohu - ]ּובְתֹהּו, e
o cercou de cuidados, e o acalentou, e o guardou como a menina dos olhos!.”
(Devarim/Deuteronômio 32:10)
“E não vos desvieis; pois seguiríeis as vaidades [hatohu - ]הַּתֹהּו, que nada aproveitam, e
tampouco vos livrarão, porque vaidades [tohu - ]תֹהּוsão.” (Shemuel Alef/1 Samuel 12:21)
"A cidade desordenada [tohu - ]ּתֹהּוestá em ruínas, todas as casas fechadas, para que
ninguém possa entrar nelas." (Yeshayahu/Isaías 24:10)
"Os que fazem culpado ao homem por uma palavra, e armam laços ao que repreende na
porta, e os que sem motivo [batohu - ]בַּתֹהּוpõem de parte o justo."
(Yeshayahu/Isaías 29:21)
"Todas as nações são como nada perante ele; ele as considera menos do que nada e
como uma coisa vã [watohu - …]וָתֹהּוE Ele o que reduz a nada os príncipes, e torna em
coisa vã [katohu - ]ּכַּתֹהּוos juízes da terra." (Yeshayahu/Isaías 40:17,23)
"Eis que todos são vaidade; as suas obras não são coisa alguma; as suas imagens de
fundição são vento e confusão [watohu - ]וָתֹהּו.” (Yeshayahu/Isaías 41:29)
Aqui, tohu é a expressão do caos, da confusão. Daquilo que, como vento, carece
de fundamento.
"Eis o que diz YHWH que criou os céus, Ele, o único Elohim que formou a terra e a
estabilizou, que não a criou para que seja uma desolação [tohu - ]תֹהּו, mas a organizou
para que nela se viva: Eu sou YHWH, e não tenho rival. Não tenho falado às escondidas,
nem numa terra tenebrosa. Não disse à raça de Ya'aqov: Procurai-me na desolação [tohu
- ]תֹהּו, Eu, YHWH, digo, a verdade, e Me manifesto com toda a franqueza."
(Yeshayahu/Isaías 45:18-19)
"Mas eu disse: Debalde tenho trabalhado, inútil [letohu - ]לְתֹהּוe vãmente gastei as
minhas forças; todavia o meu direito está perante YHWH, e o meu galardão perante o
meu Elohim.” (Yeshayahu/Isaías 49:4)
"Não há quem acuse com justiça, não há quem mova uma causa com lealdade. Todos
põem a sua confiança em coisas vãs [tohu - ]ּתֹהּוe pronunciam falsidade, concebem
trabalheira e dão à luz iniqüidade." (Yeshayahu/Isaías 59:4)
“Ele lança o desprezo sobre os príncipes, e os faz desgarrados pelo deserto [betohu -
]ּבְתֹהּו, onde não há caminho." (Tehilim/Salmos 107:40)
"Tira o entendimento aos chefes do povo da terra, e os faz vaguear pelo deserto [betohu -
]ּבְתֹהּו, sem caminho." (Iyov/Jó 12:24)
Nas passagens acima, tohu é uma região deserta e desolada, sem caminho.
"O norte estende sobre o vazio [tohu - ;]ּתֹהּוe suspende a terra sobre o nada.”
(Iyov/Jó 26:7)
A primeira coisa que salta aos olhos é a observação de que em todas as instâncias
em que o termo tohu aparece, o contexto indica uma linguagem poética. A única possível
exceção sendo 1 Sm. 12. Não é impossível que esse último também tenha elementos
poéticos.
Tal fato é de grande importância pois textos da poesia semita não devem ser
tomados como descrições literais, mas sim como ilustrações pitorescas, que procuram
comunicar uma mensagem.
Todavia, não é o vazio tal qual pensamos na cultura ocidental do século XXI, que
indica uma total ausência de coisas.
Pelo contrário, tohu é dito de regiões áridas, de coisas vãs, e até mesmo de
cidades!
Um deserto pode conter várias coisas: areia, pedras, plantas rasteiras, dunas,
montanhas, e até mesmo pequenos répteis ou insetos. Mas, nada disso tem qualquer
utilidade ou serventia para o ser humano. E, por essa razão, o deserto não tem valor
algum. É tohu.
Da mesma maneira, uma cidade que é descrita como tohu é uma cidade
totalmente desordenada. E, assim sendo, sem nenhum propósito ou serventia para o
Criador.
Tohu, portanto, não indica ausência de coisas, mas sim um estado caótico de
ausência de propósito, valor ou serventia.
Todavia, há duas passagens onde tohu e vohu aparecem juntas. Em uma delas,
inclusive, observa-se exatamente a mesma expressão que ocorre em Bereshit (Gênesis)
Observe:
“Nem de noite nem de dia se apagará; para sempre a sua fumaça subirá; de geração em
geração será assolada; pelos séculos dos séculos ninguém passará por ela. Mas o
pelicano e a coruja a possuirão, e o bufo e o corvo habitarão nela; e ele estenderá sobre
ela o cordel de confusão [tohu - ]תֹהּוe nível de vaidade [vohu - ]בֹהּו. Eles chamarão ao
reino os seus nobres, mas nenhum haverá; e todos os seus príncipes não serão coisa
alguma.” (Yeshayahu/Isaías 34:10-12)
Mais uma vez, vazio aqui se refere a algo esvaziado de valor ou serventia, e não
literalmente o nada.
Isso indica que, diferentemente do pensamento ocidental que costuma definir tohu
e vohu como o nada absoluto, para um semita da antiguidade, a expressão era indicativo
de que aquilo que lá havia estava totalmente arruinado, destruído e desolado.
Em outras palavras, a Torah indica que a vida que estava prestes a surgir viria a
partir da ruína daquilo que anteriormente havia habitado o planeta.
O uso de vohu somente em conjunto com tohu parece indicar que os dois termos
são sinônimos aliterativos. Isto é, o texto bíblico compõe um paralelismo poético que usa
de sons parecidos, como forma de ênfase.
Ou seja, o uso de tohu wavohu ao invés de apenas tohu tem por objetivo enfatizar,
em linguagem poética, o estado absoluto de destruição e desolação.
VI - Confirmação Científica
…O novo estudo compara os fósseis dos últimos 150 milhões de anos com o de
mamíferos vivos. Suas descobertas apoiam a visão de que as linhagens placentárias
modernas apareceram pela primeira vez 65 milhões de anos atrás no hemisfério norte.
“Isso está relacionado ao fim dos dinossauros”, disse John Wible, o curador dos
mamíferos do Carnegie Museum of Natural History, em Pittsburgh, na Penlsivânia.
“Os dinossauros se extinguem, e esses vários tipos de nichos que eram ocupados pelos
dinossauros de repente se tornam vagos, e foi nesses nichos que os placentários
oportunistas evoluíram.”
Wible é o principal autor do novo estudo, publicado hoje no jornal Nature.” (Dinosaur
Extinction Spurred Rise of Modern Mammals, Study Says)
O verbo hayetah, todavia, pode ser traduzido de duas formas, e ambas são
bastante abundantes no Tanakh.
Observe:
"Leah tinha os olhos enfermos, enquanto que Rahel era [hayetah - ]הָיְתָהformosa de
porte e de semblante.” (Bereshit/Gênesis 29:17)
"Porque o material que tinham era [hayetah - ]הָיְתָהbastante para toda a obra, e ainda
sobejava.” (Shemot/Êxodo 36:7)
"E havia saraiva, e fogo misturado entre a saraiva, tão grave, qual nunca houve em toda a
terra do Egito desde que se tornara [hayetah - ]הָיְתָהuma nação.” (Shemot/Êxodo 9:24)
Em suma, hayetah pode tanto indicar algo que era, ou algo que se tornou.
Isso porque, no hebraico bíblico, o verbo hayah ( )היהpode indicar: ser, estar,
tornar-se ou vir.
Por essa razão há várias possíveis leituras para essa passagem. Pode-se dizer:
Analisando o sentido de tohu wavohu, assicado ao que foi visto acerca do primeiro
versículo da Criação, a ideia que prevalece é a de que houve uma mudança de estado.
Em outras palavras, a terra nem sempre esteve tohu wavohu, até porque a própria
expressão em si sugere fortemente um estado anterior.
“R. Tanhuma disse: Isso pode ser comparado a um infante real dormindo em seu
berço enquanto a sua ama se assenta ansiosa e atribulada. Por que? Porque ela sabia
que receberia punição por sua mão. Assim, a terra previu que estava destinada a ver sua
destruição pela mão do homem, conforme é dito: ‘Maldito o solo por tua causa.’ [Gn. 3:17]
Portanto, a terra estava tohu wavohu. (Bereshit Raba 2:2)
E, para R. Tanhuma, a próxima etapa do ciclo seria a terra ser destruída pela mão
do próprio ser humano.
Rashi parece fazer referência ao reforço da ideia de tohu, indicada pela presença
da palavra vohu.
O neto de Rashi, Rashbam, foi um dos maiores exegetas da Torah na Idade Média.
Ele afirma:
“No momento em que os céus superiores e a terra já tinham sido criados, muito
antes dos atos relatados em Bereshit, a terra tal como a conhecemos era completamente
vazia, pois água a cobria até os céus superiores. A escuridão que não era noite estava
sobre os abismos, e não havia luz nos céus.” (Rashbam)
“A criação do firmamento e da terra seca não estavam numa área para ser habitada, uma
vez que estava coberta de água, e assim o Eterno colocou seu poder gerador abaixo da
água… Agora é explicado que o ter havido sete terras é [na realidade] que a terra é
dividida em sete, e o Templo estava no centro da região habitada, pois estava distante do
centro da terra.” (Ibn ‘Ezra)
Ibn ‘Ezra faz alusão a um antigo e bem curioso conceito judaico: Ao de que já
tenha havido sete terras.
Em outras palavras, a ideia exclusivista do ser humano de que não apenas a terra,
mas o universo inteiro foram criados por sua causa - uma ideia típica no fundamentalismo
religioso - não encontra respaldo no pensamento judaico, nem na Torah.
Pelo contrário, é espantoso que, muito antes dos físicos e astrônomos concluírem
que o ser humano é apenas um grão de areia na existência do universo, os pensadores
judeus já diziam que nem mesmo a história da terra conheceu somente o ser humano,
mas que teve outras épocas, e fases.
Ou, será que isso implicaria até mesmo num ciclo de realidades de criações e
destruições sucessivas?
“O que foi, isso é o que há de ser; e o que se fez, isso se fará; de modo que nada há de
novo debaixo do sol. Há alguma coisa de que se possa dizer: Vê, isto é novo? Já foi nos
séculos passados, que foram antes de nós. Já não há lembrança das coisas que
precederam, e das coisas que hão de ser também delas não haverá lembrança, entre os
que hão de vir depois.” (Qohelet/Eclesiastes 1:9-11)
Mas, há quem a veja como um indício de que a terra realmente seja cíclica.
Ibn ‘Ezra, contudo, parece interpretar o conceito das sete terras como diferentes
etapas da terra, até que a criação atual fosse atingida. Não tanto como diferentes fases
de construção, mas como uma preparação para a criação atual.
XI - Conclusão
A terra jazia desforme, sem propósito, nem serventia. Na visão do autor deste
material, muito provavelmente indicando que teria passado por uma destruição antes de
ser refundada em Bereshit (Gênesis).
O autor deste material não considera que seja coincidência que a ciência tenha
confirmado que, de fato, a terra passou por um processo de destruição antes da
ascenção tanto do ser humano quanto da fauna atual.
O autor também entende que isso confirma a suspeita de pelo menos alguns dos
sábios da antiguidade, de que a terra tenha passado por vários estágios de existência.
Porém, no que diz respeito a uma possível existência anterior semelhante a essa,
o autor entende que há pouca informação na Escrituras para se fazer qualquer afirmação
contrária ou a favor da tese, e entende que ela é complexa demais, e prefere não se
arriscar a tecer conjecturas.