Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
O jogo é uma das linguagens preferidas da criança para dar forma aos seus fantasmas
e modular as angústias a eles ligadas.
Ocupa um espaço e tem um tempo onde a criança se vive como actor, autor e
encenador, que liga o teatro interno e a realidade dos objectos externos que ela
experimenta e explora. É a forma de se poder confrontar com os aspectos da sua vida
psíquica transformando-os e integrando-os.
O papel do observador é, assim, o de testemunhar um intenso trabalho psíquico em
que não pode deixar escapar a seriedade mas também o prazer que proporciona à
criança. Ela cria símbolos que exigem criatividade e são indissociáveis dos processos
da sua vida. Para Winnicott, corresponde à maneira de viver e de se sentir vivo.
Para M. Klein, que foi quem iniciou a utilização do jogo na intervenção com crianças,
este é o equivalente ao processo de associação livre do adulto em psicanálise.
Enquanto M. Klein se interessa em investigar os conteúdos manifestos do jogo para
devolver os conteúdos latentes, Winnicott interessa-se particularmente pelo processo
do jogo: o “jogar”. Quais os processos em curso quando a criança brinca? Jogar é
fazer. O objecto transicional está na origem do jogo e é um aspecto intermediário entre
o dentro e o fora, entre o objecto subjectivo e o objecto percebido objectivamente.
Winnicott relaciona o jogo com a realidade e dá prioridade ao desenvolvimento do jogo
e só depois se interessa pelos conteúdos inconscientes.
«O jogo é uma forma de comunicação em psicoterapia e, em última análise, direi que
a psicanálise se desenvolveu como uma forma muito especializada do jogo, posta ao
serviço da comunicação consigo próprio e com os outros….A psicoterapia processa-se
no cruzamento de dois aspectos do jogo, o do paciente e o do terapeuta. Se o
paciente não consegue brincar quer dizer que é preciso fazer qualquer coisa que lhe
permita ter a capacidade para brincar. Se o terapeuta não consegue brincar, é porque
não foi feito para esta profissão» (1975).
A criança põe à prova a capacidade de rêverie do terapeuta. A criança que não
consegue brincar está em défice na sua capacidade de simbolização e de
pensamento. Como se as situações traumáticas da sua história de vida tivessem
provocado fendas no seu funcionamento psíquico sob a forma de impossibilidade de
representar, como curto-circuitos do pensamento, que são percebidas na sessão pela
prevalência de um registo perceptivo-motor e alucinatório. Esta desorganização
psíquica pode ser definida como a consequência de uma situação de excesso ou de
1
Tradução livre de “Le travail du jeu: transformation et intersubjectivité” de Nicole Minazio in: Journal
de la psychanalyse de l’enfant
falta que não pôde ser investida e transformada pelo objecto primário. Para Botella
1995) é como se qualquer coisa essencialmente evidente para o sujeito, que se
deveria ter produzido, mas não se produziu, sem que no entanto o sujeito se
apercebesse, e posteriormente não pudesse representar o seu negativo. Trata-se
então de uma ausência de conteúdo na percepção e não uma percepção com
conteúdo traumático.
Tustin (1989) fala de uma brecha essencial no psiquismo quando descreve a situação
de crianças autistas (maior trauma), que oscilam entre ser e não-ser. Considera o
funcionamento autista como protecção e ao mesmo tempo defesa, que impede a
eclosão dos processos simbólicos. Defesa e protecção contra a angústia de
desmoronamento ligada à consciência prematura e ilusória da separação do corpo da
mãe numa fase em que o eu ainda não está integrado. A experiência sensorial da
separação fica desprovida de sentido para a criança, que se afasta do objecto para se
fechar num mundo de auto-sensualidade. Assim, os processos perceptivos e
representacionais são gravemente entravados.
Quando vamos à procura destas partes escondidas, do trauma, confrontamo-nos com
muros rígidos defensivos que protegem a criança, porque são elementos não ligados,
não regulados, não transformados, que estão aprisionados.
No processo terapêutico, que é longo, as defesas vão cedendo e vai aparecendo este
sofrimento feito de raiva e terror que não se apresenta como um processo de
rememoração, mas como uma espécie de revelação-repetição com valor traumático
na relação terapêutica e se manifesta através de ataques ao vínculo e ao quadro
continente, através de excitações, movimentos pulsionais desligados, em que o
terapeuta, como continente, possa dar forma através de uma experiência emocional
partilhada.
A clínica “extrema” do traumatismo primário permite-nos compreender melhor as
diferentes modalidades do funcionamento psíquico que se manifestam ao longo da
evolução da relação terapêutica.
A criança pode exigir que o terapeuta brinque com ela ou apenas brincar sozinha na
presença daquele, usando o terapeuta como testemunha/observador de um trabalho
de exploração psíquica figurado numa qualquer encenação.
Exemplo: A criança escolhe uma personagem (boneco) a que lhe dá o nome de João.
Esta personagem vai fazer uma viagem à descoberta de terras desconhecidas.
Num outro momento ela diz que o terapeuta é o João e faz daquele uma parte activa
desta viagem que é, ao mesmo tempo, muito bonita e perigosa. Coloca o terapeuta em
duas posições: de observador e de participante que, no processo de jogo
correspondem a uma oscilação entre identificação introjectiva e projectiva. Por um
lado a possibilidade de introjecção e por outro a identificação projectiva que permite
afastar a angústia.
O trabalho do jogo é simultaneamente experiência e simbolização ou, mais
exactamente, experiência para simbolizar. Coloca em tensão um movimento de
oscilações recíprocas dentro/fora. Duplo movimento de projecção que abre a
possibilidade de figuração e de introjecção ao serviço das capacidades de
simbolização e de representação.
Tudo se passa num dispositivo específico em que o rumo do jogo permite externalizar
o que foi introjectado, pondo na cena exterior os objectos em via de transformação e
de introjecção. Dentro da relação transferencial/contra-transferencial a sucessão de
jogos pode ser considerada como reencontros que dão forma às representações e
enriquecem as capacidades de simbolização. Neste dispositivo específico, o jogo é um
trabalho de transformação através da figuração.
Winnicott insiste no aspecto não fictício do objecto transicional que fica sob o controlo
omnipotente da criança – muito diferente do objecto interno, que o bebé alucina; ele é
manipulado activamente e é vivido pela criança como algo que ela possui. Ao mesmo
tempo tem valor simbólico, uma vez que vem substituir o objecto-seio original na sua
ausência. Mas a pré-condição para o acesso à transicionalidade é a disponibilidade da
mãe para criar um espaço de ilusão que suporte a recuperação entre o que a criança
concebe e o que a mãe lhe apresenta, entre subjectividade e objectividade.
Quando na sessão surge o que não pôde ser representado, sob a forma duma
realidade perceptiva, duma sensação, duma agitação motora, refazemos com o nosso
pequeno paciente e na actualização das sessões, o caminho que, da sensação de
pele a pele e do idêntico, conduz, pela transicionalidade, ao conhecimento das
diferenças e da representação da ausência. Trata-se de um processo dinâmico de
transformação progressiva: ao princípio o substituto do símbolo é ressentido como
sendo o próprio objecto e, à medida que se elabora a separação do objecto, o símbolo
pode então representá-lo.