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COLECAO - gis asin Familia e Doenga Mental Repensando a relagao entre profissionais de satide e familiares Jonas MELMAN © 2001 by Jonas Melman 2 edigio 2006 ‘Todos os direitos desta edigio reservados Escrituras Editora ¢ Distribuidora de Livros Ltda. Rua Maestro Callia, 123 Vila Mariana 04012-100 Sao Paulo, SP — Telefax: (11) 5082-4190 e-mail: escrituras@escrituras.com.br site: www.escrituras.com.br Capa Ricardo Siqueira a partir de Porta branca de K. Wakabayashi Editor Raimundo Gadelha Coordenagio editorial Nilson J. Machado Produgao grifica Sidnei Simonelli Editoragio eletrénica Bianca Saliba Di Thomazo Bruno dos Santos Monjon Reviséo Joana Canédo Imptessio Bartira Grafica Dados Internacionais de Catalogasao na Publicagao (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Melman, Jonas, 1959 Familia e doenga mental: repensando a relacdo entre profissionais de saide € familiares / Jonas Melman. ~ So Paulo: Escrituras Editora, 2006, ~ (Cole¢io Ensaios Transversais) ISBN 85-86303-93-3 Bibliografia 1, Docngas mentais - Causas ¢ teoria da causa 2, Docntes mentais 3. Psi- canilise 4. Relagées psicoterapeuta ¢ paciente I, Titulo, Il. Série. CDD-616.89 1-117 wz a : NLM-WM 460 Indices para catdlogo sistematic 1, Doentes mentais: Relagies familiares: Psiquiatria: Medicina 616.89 2, Doentes mentais: RelagSes médico-paciente: Psiquiatria: Medicina 616,89 Impresso no Brasil Printed in Brazil Sumario Apresentagao. Introdugio .... 1. Quem sio esses familiares? .......sssssescseeeee istorii uel A histéria de Joao e Maria... Ahistéria de Cristévao e Fabio Processo de culpabilizagao dos familiares 2. As origens da familia moderna ...... Os padres ¢ os médicos higienistas.. A psiquiatria moral. Os psicanalistas .. 3. O cuidado em relacdo aos familiares......1ssseceeeeeee 35 experiéncias da desinstitucionalizagao ......ssseeeeeee 55: As modalidades de cuidado em relagao aos familiares. O psicodrama.... Terapias Ginilfares de. abordagem psicanalitica. A antipsiquiatria... Terapias familiares sisceniieas As intervengdes psicoeducativas Estudos sobre sobrecarga familiar Estudos antropoldgicos e transversai Repensando o modelo de cronicidade. Intervencées na rede social 5 2 79 81 4. Repensando 0 cuidado em relagio aos familiares....._ 89 Delimitagao de um campo de intervengdes Primeiro momento: os familiares pedem ajuda ....... 91 O Grupo como espago de acolhimento.. A historia de Sueli e Tadeu (parte II) .. Cuidado como processo de subjetivagao Acclinica que se desdobra em projetos Segundo momento: o familiar como agente de transformagao cultural... A histéria de Isabel O familiar como um recurso... Ahistéria de Cristévao, Fabio... e Darci (parte II). 112 Uma viagem de final de semana 121 Clube do Basaglia.... A vida com mais festa Oficinas culturais ... Cursos para familiares. Rede de ONGs de savide mental... 5. Para além da culpa ou da vitimizagao Inventando um lugar para os familiares e para os profissionais de satide mental ............-.. 141 Referéncias bibliograficas .......:sssssessesssseeeseesnsteeeeers 151 Material cor Apresentacao Dificil e prazerosa a tarefa de apresentar o trabalho desse psiquiatra inquieto e inconformado com as relagdes muitas vezes acomodadas e cronificadoras que se estabele- cem entre instituig6es, profissionais, familias ¢ pessoas que sofrem com transtornos mentais severos e, com freqiiéncia, persistentes. Ga) Numa trajet6ria de experiéncias sedimentadas, 0 autor nos deposita — por meio de histérias de pacientes e suas familias que gravitam em torno de instituigées publicas, ora bem ora malcuidados — todo um actimulo de vivéncias e alternativas que foi encontrando para acompanhar essas pessoas e seus sofrimentos. Num ensaio que foi, inicialmente, um exercicio académico que o habilitou como mestre em Medicina Pre- ventiva pela USP, e por intermédio da sua prépria_narrati- va vivida, de texto claro e transparente, Melman vai nos revelando como tem organizado o seu pensamento ¢ a aproximagao de um universo complexo de existéncias e patologias de pessoas que se dispuseram a escancarar suas vidas em busca de ajuda, construindo uma teia de significa- dos ¢ intervengées capazes de estimular novas experiéncias de gestao soliddria de sofrimentos que nao sao pequenos. Narrativas do cotidiano de familiares de pessoas que sofrem com transtornos mentais severos — carregadas de toda a perplexidade, a culpa, a inconformidade e¢ 0 isola- mento afetivo e social — produzem uma construgio coletiva na qual maes, pais, irmas, irmaos, maridos, mulheres ten- tam estabelecer um nexo de trocas e reciprocidade onde sé existe medo e inquietagao. Para isso buscam ajuda em profissionais e instituigdes; e é a tensdo desses encontros ou desencontros que constitui a esséncia da contribui¢ao de 13 um texto desafiador e nutritivo a quantos se dedicam ao cuidado de familias. A véo de passaro, o autor percorre a histéria necessdria para entendermos as origens da famtlia moderna e os dife- rentes tipos de tratamento dispensados an cuidado em relagdo aos familiares, numa s{ntese generosa e critica do que existe no mundo. Esse é 0 pano de fundo impres- cindivel para chegar 4 defesa de um novo protagonismo desses atores, ao repensar 0 cuidado em relagdo aos fami- liares... para além da culpa ou da vitimizagdo, numa con- tribuigao original da experiéncia que vem desenvolvendo no acompanhamento de mulheres e homens simples que encontraram, em diferentes cendrios, novas chances de expressao ¢ a possibilidade de desempenhar novos papéis, tendo o estigma como substrato de suas atuagées, mas agindo apesar dele. A retomada de novas histérias dos mesmos perso- nagens, em diferentes possibilidades de inclusao social, como sujeitos amorosos e concretos, capazes de produzir acontecimentos positivos nas suas vidas e na de seus fami- liares adoecidos; a pluralidade de iniciativas descritas no texto como verdadeiras oficinas de subjetivagao, posstveis em qualquer organizac3o publica, fazem desse livro um co- movente testemunho de que é possivel cuidar sim, excluir ndo, sempre que se tenha como horizonte uma ¢tica de so- lidariedade como marco fundante da relagao entre os que trabalham em satide e os que precisam dos seus cuidados. Ana Pitta Outono, 2001 Introducao Nossa sociedade nao est4 preparada para o desafio de acolher e cuidar das pessoas que adoecem mentalmente com gravidade. Ainda predomina uma visio preconceituo- sa em relacéo ao fendmeno da doenga mental, o que acaba resultando na marginalizagao afetiva e social de um grande nuimero de pessoas que necessitam de ateng’o psiquidtrica. Como nao poderia deixar de ser, 0 universo desses familiares de pacientes com transtorno mental severo refle- te uma realidade de preconceito e exclusio. Aproximar-se dessas familias implica tomar contato com sentimentos de muita dor ¢ sofrimento. Eles se sentem paralisados, fecha- dos em um universo tenso, reduzido, espesso. Carentes de informagio qualificada, perdidos e isolados, muitos se veem obrigados a direcionar grande parte do seu tempo para o cuidado do parente doente. O investimento macigo nas tentativas de resolver os problemas fazem com que esses individuos passem a organizar suas vidas em torno das vivéncias da doenga. Com freqiiéncia, os familiares associam os sintomas da erifermidade a imagens de tragédias e catdstrofes. Delirios, alucinagdes, comportamentos estranhos desestruturam as formas habituais de lidar com as situagées do cotidiano. Revolta, tristeza, caos, desordem, frustragao, medo. Como entender essa dor? Como curar essa ferida? Como elaborar sentimentos tao intensos e paralisantes? Os familiares precisam de ajuda, e muita. Infeliz- mente, os parentes que cuidam de uma pessoa adoecida 15 ainda sao desrespeitados, nao sao devidamente escutados, sao vitimas de preconceitos, responsabilizados ¢ julgados por eventuais danos sem provas ou justificativas. Estimulados ou nio pelas teorias psicolégicas existen- tes, a culpa se revela uma das marcas mais visiveis na vida dessas pessoas. De modo mais ou menos consciente, 0 familiar culpado costuma mergulhar de cabeca na pesqui- sa de eventuais erros do passado, buscando incessante- mente explicagées e sentidos que possam amenizar seu sofrimento. E muito dificil escapar dos efeitos aterradores dessa per- cepgao negativa ¢ estigmatizante relacionada & doenga men- tal. Esse quadro corréi a auto-estima ¢ a autoconfianga das pessoas envolvidas, roubando uma parcela importante de suas potencialidades e das oportunidades de suas vidas. Por outro lado, é vital ampliar a capacidade de resistir € crescer nessa situagio tio adversa. E importante enfrentar o desafio de tornar mais leve 0 peso das grandes frustragées ¢ transformar a dor em matéria-prima de aprendizado, combustivel para os processos de desenvolvimento. “Levantar, sacudir a poeira, dar a volta por cima” (Ataulfo Alves). E possivel relativizar as vivéncias traumati- cas e ameacadoras, favorecendo 0 crescimento das pessoas, desviando-se das armadilhas. Para tanto, faz-se necess4rio criar uma certa distancia para podermos enxergar de maneira mais profunda e amplia- da os fatos, as informagées, os sentimentos, as forcas que compéem o campo em torno dos transtornos mentais € as relagées com a familia. A partir desse movimento talvez possamos compreender a realidade de maneira distinta. Um olhar mais sensivel e apurado em busca dos nexos, das rela- ges que fagam sentido, certamente ajudard a superar os dilemas, os pontos de estrangulamento. Meu interesse e envolvimento com os familiares de pessoas que apresentam transtornos psiquicos severos é 16 antigo. Ainda quando cursava a graduacao da Faculdade de Medicina, um membro de minha familia adoeceu grave- mente. Assim como a maioria das pessoas tocadas por tal realidade, mergulhei numa crise familiar, sem preparo anierior, sem conhecimentos suficientes que pudessem ajudar a lidar com a complexidade de problemas que a situagao exigia. Senti-me perdido e ameacado. Experimen- tei a vergonha, a solidao, a dificuldade de compartilhar o problema com os amigos, a frustragéo de encontrar profis- sionais de satide tao despreparados para nos ajudar. Essa experiéncia contribuiu para definir minha escolha pela psi- quiatria. Depois de um longo e penoso processo de elabora- g40, resolvi me dedicar com mais carinho & tarefa de ajudar os familiares. Este livro é fruto desse investimento. Ele nasceu a partir da necessidade de repensar o cuidado em relagao aos familiares sob a perspectiva de uma psiquiatria que se afasta dos modelos tradicionais, para buscar estratégias de apreensao integral e holistica dos fendmenos da satide e da doenga mental. Trabalhar para compreender 0 pacien- te e sua familia em relagao as diversas dimens6es existen- ciais envolvidas sugere uma psiquiatria que nao pode ser definida em si mesma, fora de suas implicagdes com outros saberes, com outros territérios do conhecimento humano. O publico a que se dirige € composto pelos profissio- nais de satide mental, mas a obra pretende atingir principal- mente os familiares e demais interessados no tema. Este estudo busca muito mais levantar questées, desenhar construgées preliminares, espalhar duividas do que ofere- cer respostas definitivas ou formular mais um modelo pronto e acabado de atengao a familia ou aos familiares. Para realizar esta tarefa, utilizei como matéria-prima para a reflexao o conjunto de experiéncias que se desenvolveram em torno de um grupo terapéutico de troca de experiéncias 17 entre familiares de pacientes com transtornos mentais severos que venho acompanhando hd alguns anos. Esse grupo, ainda em andamento, iniciou suas ativida- des em marco de 1993, sob minha coordenagao. O Grupo de Familiares, como ele passard a ser denominado, surgiu da parceria entre o Centro de Atengao Psicossocial Prof. Lufs da Rocha Cerqueira (CAPS), servico publico dirigido ao tratamento, ao ensino e 4 pesquisa na drea da satide mental, ¢ a Associagéo Franco Basaglia, organizagao nao- governamental, sem fins lucrativos, que retine usuarios, familiares e profissionais. Quem sio esses familiares? Na sociedade moderna ocidental amar e cuidar dos filhos tornou-se uma tarefa extremamente complexa e difi- cil. Sao muitas as exigéncias e os deveres a que os pais estéo submetidos no que diz respeito a educagao e a formagao das criangas até a idade adulta. Pais e mes precisam estar constantemente informados e atentos aos minimos detalhes, aos menores desvios que envolvam o desenvolvimento emocional, escolar, sexual, esportivo e das habilidades sociais de seus filhos. Em nossos dias, a familia tem assumido a responsabilidade por qual- quer anormalidade que possa romper com a expectativa de criar filhos fortes, saudaveis, preparados para o mercado de trabalho e para viver em comunidade. Concentradas em si mesmas, as pessoas tém se mostra- do inseguras e impotentes para resolver dificuldades domés- ticas, e freqiientemente apelam para especialistas em sua tentativa de buscar sentidos e respostas para 0 seu sofrimen- to. Os pais jamais esto seguros de seus sentimentos e de como agir em relacao a seus filhos. Nunca sabem se estao agindo corretamente. Se essa situagdo de inseguranga e desconforto incide so- bre a maioria dos pais, podemos vislumbrar, entao, 0 que po- de suceder quando um filho ou um parente psicotiza. O sur- gimento de uma doenga mental em um membro da familia agrava drasticamente o quadro de inseguranga e desconforto. O adoecimento de um membro na familia representa, em geral, um forte abalo. Para a maioria das pessoas a 19 enfermidade significa uma grande ruptura na trajetéria existencial. A vivéncia de catdstrofe desestrutura as formas habituais de lidar com as situagées do cotidiano. Muitos familiares nao estao preparados para enfrentar os proble- mas, nao sabem como agir. Encarando as dificuldades, ten- tando explicar 0 aparecimento da doenga, essas pessoas mergulham na turbuléncia de suas dtividas e conflitos. A radicalidade da experiéncia mobiliza sentimentos de lealdade e compromisso, os elos de sangue que uneme protegem uma determinada familia. Como seres tribais, fomos projetados para vivermos ¢ aprendermos juntos, e para nos ajudarmos nas situac6es dificeis. O poder grupal tem a fungao de proteger seus integrantes das forgas ameagadoras. Uma enfermidade mental desafia esse poder, gera muita tensdo, estimula sentimentos de impoténcia e viti- mizag4o, alimenta amarguras. Naqueles casos em que a gravidade do quadro ¢ maior ¢ a duragao dos sintomas se prolonga por muito tempo, os repetidos fracassos sociais dos pacientes, as dificuldades de comunicacao e intera- Gao, os freqiientes insucessos nos tratamentos produzem mais frustragio ¢ desespero ¢ s’o um convite para um progressivo isolamento da vida comunitdria. Suas pr6- prias vidas ficam esvaziadas, muito aquém de suas possi- bilidades existenciais. Quem sao esses familiares? Como cles vivem? Quais sao as suas dificuldades, suas questoes, seus dilemas? Como lidam com os problemas? Como € possivel ajuda-los? Evidentemente, ao nos aproximarmos do seu mundo, encontraremos singularidades, Nao existe um padrao unico e universal de familiar. Cada familiar é um familiar, cada familia € uma familia. Por outro lado, talvez seja possivel reconhecer algumas caracter{sticas comuns a esse conjunto de pessoas ¢ grupos. 20 A histéria de Sueli e Tadeu Sueli tem 43 anos, trabalha numa empresa ha mais ou menos quinze anos como produtora de eventos e€ coordenadora de projetos. Sua formacio universitdria esta ligada a a area da comunicagio. Em novembro de 1994, encaminhada pelo seu tera- peuta, Sueli procurou-me para conversar sobre a possibili- dade de tratamento para seu irmao mais velho, Tadeu. Na época, ele estava 4s voltas com muitos conflitos com um vizinho, 0 que provocava grande apreensao em toda a fami- lia, principalmente em Sueli. Trés anos mais tarde, entrevisto Sueli com a inten¢’o de recolher material para este estudo. Sem grandes rodeios, ela comega a falar sobre sua vida: Meu irmio adoeceu quando eu nasci, ¢ a familia ja estava toda transtornada. Conviver com isso durante a minha infancia foi normal. Eu me dava muito bem com ele e nao percebia nenhuma diferenga. Sabia que alguma coisa estranha estava acontecendo porque via claramente 0 sofrimento dos meus pais. Havia um clima pesado e eu nao entendia o que era. Minha mae chorava muito e durante muitos anos nio soube o motivo. Eu nao conseguia penetrar nesse mundo em torno da doenga do meu irmao. Ninguém conversava sobre o assunto. A medida que o tempo passava, fui entendendo que ele era doente. Acho que ninguém sabia lidar com a situagio — muito menos cu — ¢ aquilo me revoltava. Ele vivia isola- do, o tempo todo dentro do quarto, e eu era o seu tinico elo de comunicago com o mundo. Como nosso relacio- namento era bom, minha mie quase sempre me obriga- vaa falar para cle trocar de roupa, tomar banho, comer... Fiquei muito tempo com essa amizade estreita, até que, na adolescéncia, distanciei-me. Muitas vezes cheguei até a negar para meus amigos que tivesse um irmao. Mesmo 21 22 na minha terapia pessoal eu negava sua existéncia. Demo- rei 15 anos na terapia para poder trazer esse assunto. Minha mie sé foi me contar a histéria do adoeci- mento do Tadeu quando eu tinha trinta anos. Mesmo assim, com muita dor ¢ sofrimento. Era um assunto muito delicado. Todos negavam que ele fosse membro da familia. Acho que a doenga do meu irm4o causou muita vergonha em todos nés durante muitos anos. Mcus amigos nao podiam entrar em casa. Era muita vergonha ter uma pessoa doente e nao saber lidar com isso. Durante muito tempo, senti-me muito culpada. Existia, na famflia, uma cultura da vergonha. Cul- tura que nao sei nem se nao é a cultura da omissao, da distancia, de nao querer lidar com o problema, que se transformava em mais um fantasma. Isso tudo ficou fechado, trancafiado dentro de mim, ¢ me causava um medo muito grande. Nés mordévamos numa pequena cidade no interior do Estado de Sao Paulo, e meus pais resolveram mudar para a capital. Minha mae me contou que as pessoas davam muitos palpites. Nao sé as pessoas da familia, mas também os amigos, os vizinhos, os médicos. Todo o mundo palpitava mas ninguém sabia lidar com o caso... A mudanga de cidade representou um sacrificio muito grande para a familia inteira. Nossa casa no inte- rior era muito grande, com um terreno imenso, muitas arvores, ¢ viemos para a capital para morar numa caixi- nha de fésforo. Os problemas se intensificaram porque fomos obrigados a conviver com ele, num pequeno aparta- mento, o dia inteirinho trancado. Meu irmao sempre teve uma relagdo muito ruim com a minha mie, ele no a suportava., Logo que mudamos para Sao Paulo, ele foi inter- nado a forga num hospital psiquidtrico por um perfodo de trés ou quatro meses. Chegou a tomar eletrocho- que, e ficou muito traumatizado. Toda vez que faldva- mos a palavra “médico” em casa, meu irmao se tranca- va no quarto e a convivéncia com ele ficava ainda pior. Tadeu nunca mais quis saber de médico na vida e nunca mais tomou qualquer tipo de medicagao. Depois da internagao, ficou muito arredio. Sé safa do quarto para ir ao banheiro, e passou a se alimentar iso- lado do resto da familia, como se fosse um bicho. A gente precisava comer rapidinho para ele comer em seguida; ou ele se alimentava primeiro e depois os outros faziam sua refeicao. Acho que essa situagéo durou quase vinte anos. O inicio da narrativa é emblemdatico: “Meu irmao adoeceu quando eu nasci”. A histéria de vida de Sueli, desde o seu nascimento, foi radicalmente influenciada pela doenga de Tadeu. Os acontecimentos que envolveram a sua familia constituem um exemplo vivo das vivéncias familia- res em torno das doengas mentais. O surto psicético de um filho, de um irmao ou de um companheiro rompe e desor- ganiza a vida de muitas familias. O evento representa, de certa forma, o colapso dos esfor¢os, 0 atestado da incapaci- dade de cuidar adequadamente do outro, o fracasso de um projeto de vida, o desperdicio de muitos anos de investi- mento e dedicagao. A doenga mental continua sendo, com freqiiéncia, motivo de muita vergonha para os familiares. No imagindrio social, predomina uma visio de medo e rechago frente a qualquer experiéncia humana que se afaste dos padrées de racionalidade e normalidade hegeménicos. A loucura, ou a doenga mental, como esta passou a ser defi- nida a partir do século XVIII, foi praticamente sempre asso- ciada a uma dimensiao negativa, estranha, estrangeira, que nos ameaga, desestabiliza. Infelizmente, nos dias atuais, a loucura deixou de ser considerada uma experiéncia trdgica, parte integrante da condigéo humana, para ser vista 23 somente como negatividade: ilusao, alteragao de comporta- mento, desvio moral, disfungdo no funcionamento cerebral. Sueli descreve com clareza e detalhes 0 processo de desorganizacao familiar ante a emergéncia de um quadro psicético. Desorientados e fragilizados, seus pais pedem ajuda sem encontrar respostas satisfatorias para o tratamen- to de Tadeu. Progressivamente, a familia vai se fechando em torno das vivéncias de vergonha e de culpa. Quando crianga, antes de incorporar os valores e pre- conceitos em relago 4 loucura, jd presentes em suas irmas e pais, Sueli se dava bem com 0 irm4o. Tinham uma amizade estreita. Como filha mais nova ¢ menos afetada pelo peso da situagao, sobrou para ela grande parte dos encargos coti- dianos na convivéncia dificil e conflituosa com Tadeu. Gra- dativamente foi se tornando o tinico elo de ligagao do irmao doente com o mundo. No entanto, na adolescéncia, entendeu os motivos do comportamento do restante da familia e passou a se distan- ciar do irmao. Identificando-se com os demais membros do grupo, incorporou os valores e as representagOes presentes em seu discurso. Comecou a sentir muita vergonha. Passou a negar a propria existéncia dele. Até mesmo em sua psico- terapia, omitiu, por varios anos, os conflitos em relagao & doenga de Tadeu. Vencer as resisténcias e tocar no assunto demandou-lhe um esforgo enorme, colocando toda a sua subjetividade em alerta. Seu pedido de ajuda era dramatico. Sueli sentia muita angustia quando pensava em qualquer nova estratégia para enfrentar o problema. A possibilidade da morte de sua mae em fungao da idade avangada era motivo para desespero. Sabia que todos os encargos ficariam sob sua responsabilidade, e isso era insuportavel. Segundo seu relato, demorou trinta anos para que sua mae pudesse lhe contar detalhes sobre os primeiros momen- tos da doenga. Falar desse assunto tao delicado, marcado 24 pela dor e pela negagao prolongada, mobilizava muitas defe- sas. Para Sueli, a histéria da doenga do irmio precisou ficar trancada por um longo perfodo em seu mundo interior. A culpabilizagao da familia de Sueli reflete com nitidez 0 processo vivido por muitas outras familias que, de manei- ra mais ou menos intensa, mais ou menos consciente, pas- sam a se sentir responsabilizadas pelo adoecimento de um de seus membros. A responsabilizagao dos pais surge como uma espécie de marca registrada de um fendmeno em que Os sujeitos envolvidos praticamente nao podem escapar. Na presenga de um surto psicético, parece inevitdvel que os parentes mais préximos, responsdveis mais diretos pela for- magio da pessoa doente, sintam-se, de alguma forma, cul- pados pelo aparecimento do transtorno mental. Os familiares ainda relatam, com uma certa freqiién- cia, a presenga de comentdrios culpabilizantes, por parte de alguns técnicos, que responsabilizam, direta ou indireta- mente, a familia pelo adoecimento do paciente. Tais obser- vag6es acabam reforgando a resisténcia das pessoas em par- ticipar mais ativamente do tratamento. A relutancia da familia de Tadeu em procurar ajuda profissional também chama a atengao. A primeira tentativa de tratamento médico psiquidtrico foi vivenciada de manei- ra negativa e violenta por parte de todos os membros, des- motivando e dificultando futuras possibilidades de trata- mento. A experiéncia frustrada com a psiquiatria acabou reforgando, de certo modo, a impoténcia e a exclusdo a que todos estavam submetidos. Apés algumas entrevistas individuais, Sueli foi encami- nhada para um trabalho de grupo. Meses depois, partici- pando das reunides de um grupo de familiares, finalmente conseguiu trazer 0 irmao para uma consulta comigo. Naquela altura, Tadeu estava com 57 anos. Vivia com a mae jd velhinha, dependendo economicamente de suas irmas. Alto e magro, pele bem clara, aparentava muita 25 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. compreendido entre 1955 e 1985 (Bachrach, 1986). O fendmeno estd diretamente relacionado com uma politica econdmico-administrativa de redugao de despesas. A desins- titucionalizagao norte-americana significou um processo de racionalizagéo de recursos. Apesar da transferéncia de alguns pacientes — principalmente daqueles que tiveram 0 quadro piorado pela longa permanéncia nas instituigdes — para asilos nao psiquidtricos e comunidades terapéuticas pri- vadas, um grande contingente de doentes foi abandonado a propria sorte nas ruas das cidades. Na Inglaterra, logo apés a I] Grande Guerra, foi ins- titufdo o Sistema Sanitério Nacional, que assumiu res- ponsabilidades sociais até entao existentes. A assisténcia extra-hospitalar foi institufda para dar suporte ao programa de desospitalizagao. Existiam, em 1960, cerca de 152 mil leitos psiquidtricos que foram lentamente sendo desativa- dos até atingir a cifra de 90 mil leitos em 1975. A experiéncia da comunidade terapéutica desenvolvida por Maxwell Jones, baseada na democratizagao das relagdes institucionais, na liberdade de comunicagao e na revitaliza- go da relagao entre médico e paciente, conseguiu modificar a visio da doenga mental como um processo irrecuperdvel. O sucesso e as repercuss6es das comunidades terapéuticas influenciaram muitas experiéncias em todo 0 mundo e fize- ram com que a Organizagao Mundial da Saude sugerisse, em 1953, sua aplicagao em todos os hospitais psiquiatricos. Na Franga, no inicio da década de 60, criou-se a cha- mada psiquiatria de setor, na qual as equipes psiquidtricas passaram a tratar as pessoas segundo uma responsabilizacao regionalizada. O modelo de setorizagéo francés expressou uma politi- ca sanitdria implementada pelo sistema de seguro social para garantir aos cidadaos um m{nimo de protegao e cuida- do diante dos riscos de adoecimento. A psiquiatria de setor se propés a construir estruturas psiquidtricas externas em 57 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. As modalidades de cuidado em relac4o aos familiares A desospitalizacio e o movimento de critica e reforma na psiquiatria que se difundiram por muitos pafses configu- raram uma nova realidade na qual um nimero cada vez maior de pessoas passaram a ser assistidas em servicos extra- hospitalares. Esses fendmenos introduziram novos elemen- tos no campo de negociagio entre familias ¢ o campo da savide mental, obrigando as partes implicadas a rediscuti- rem as bases de uma nova relacao. As familias se viram estimuladas e pressionadas a voltar a assumir a responsabilidade pelo cuidado de seus membros doentes. A presenga do usudrio na comunidade demandava a criagio de dispositivos terapéuticos mais complexos e efi- cazes para enfrentar necessidades mais complexas c abran- gentes de existéncia cotidiana dos pacientes psiquidtricos no espaco social. Esse fendmeno de diminuigao de leitos e fechamento de alguns hospitais colocou, freqiientemente, os operadores de satide mental frente a frente com a necessidade de rein- serir na comunidade pacientes que estiveram internados por perfodos prolongados. Os técnicos foram impelidos a uma reflexdo e a uma revisio de suas teorias e praticas. A nova situacao impunha desenvolver estudos que passassem a investigar novos cend- rios, organizados em torno da intera¢ao dos atores envolvi- dos: usudrios, familiares, técnicos e o restante da sociedade. O psicodrama Apesar de pouco reconhecido, o psicodrama de More- no, como modalidade de terapia grupal utilizando técnicas adaptadas do teatro, representa uma das contribuigées pio- neiras para a formagao do campo da terapia familiar. 61 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Wiener concentrou seus trabalhos no estudo dos pro- cessos de controle da informagao que permitem a regulagao interna dos processos dos organismos vivos, das m4quinas e das estruturas sociais. A nocao central desenvolvida por ele foi a de retroalimentagao negativa (feedback negativo), que rompe com o modelo de causalidade linear, e permite des- crever e explicar os processos de neutralizacéo ou corregao de desvios para o estabelecimento de um equilfbrio interno nos sistemas em questo. O impacto deste paradigma foi enorme e reverberou em todas as esferas cientificas, como a fisica atémica, a sociologia, a economia, a ecologia, a medici- na etc., atingindo também o campo das terapias familiares. Cerca de dez anos depois, Maruyama (1963) enriquece a teoria Cibernética formulando o conceito de retroalimen- tagfo positiva (feedback positivo), ou seja, sugerindo que existem desvios em um sistema que provocam desestabiliza- Ges, necessdrias, por sua vez, para estimular adaptagées a novas circunstAncias e ao crescimento. Estes desvios favore- cem mudangas qualitativas para o estabelecimento de novos niveis de equilfbrio. Em outras palavras, transformag6es na organizacao de um sistema qualquer (individuo, organiza- ¢40, grupo familiar etc.) envolvem necessariamente algum grau de desorganizagio da ordem inicialmente estabelecida. As nogées de equilfbrio flutuante (homeostase) e de retroalimentagao positiva e negativa foram fundamentais para a compreensio dos processos de auto-organizagio e auto-regulacao dos sistemas. A perspectiva da familia como um sistema, cuja manutengao da unidade e de sua identida- de se dé mediante processos dinamicos e complexos, enri- queceu a capacidade de apreender a natureza de suas rela- ¢6es e movimentos. A aplicagao da teoria Cibernética & terapia familiar psicanalitica envolveu, evidentemente, uma adaptago ao seu corpo tedrico. No entanto, além da opera¢ao adaptati- va, acrescentou-se um movimento de generalizacao. Em 65 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. configurou um novo campo de teorias ¢ intervengées fami- liares. Suas investigac6es procuraram identificar os padrées de interagao e de comunicagéo nos vinculos interpessoais estaveis. E, novamente, o alvo das pesquisas recaiu sobre as familias de pacientes esquizofrénicos Como podemos verificar com facilidade, o interesse pelo estudo das relagoes familiares dos pacientes esquizofré- nicos é evidente. A esquizofrenia, além de ser a patologia emblematica na histéria da psiquiatria, constitui um pro- blema social ¢ sanitdrio de grande relevancia. Nao tanto por sua Bigeencls na populagao, em torno de aproximada- mente 1%, mas seguramente pela gravidade do quadro e pelos elevados custos econdmicos e sociais. Tal fato justifi- cou a aplicagao de verbas publicas na sua investigag4o, o que ocorreu sobretudo nos Estados Unidos e na Inglaterra. O grupo de Palo Alto, como ficou mundialmente co- nhecido, inovou ao abordar e estudar padrées comunicacio- nais predominantes nas relagdes dos pacientes esquizofrénicos com seus familiares. As investigacdes levadas a cabo resulta- ram, por exemplo, na formulagao da teoria da Dupla Vincu- lagao‘, ¢ influenciaram um grande contingente de terapeutas a trabalhar com familia utilizando 0 enfoque sistémico. As referidas investigagées com familias de esquizofré- nicos encontraram uma grande incidéncia de padrdes 4 Em linhas gerais, podemos apontar que a teoria da Dupla Vinculagio se constréi a partir dos seguintes elementos: 1) Para que possa surgir uma relagao de duplo vinculo, é necessério que duas ou mais pessoas estejam envolvidas numa relagao intensa que possui um clevado grau de valor de sobrevivéncia fisica e/ou psicolégica para uma, varias outras ou todas elas. Tais relagdes podem ser encontradas nas familias (principalmente na relagio entre mae ¢ filho), nas relagdes amorosas, nas relages de fidelidade religiosa, ideolégica ou a uma causa, na relacdo psicoterapéutica etc.; 2) Nesse contexto, observam-se com grande freqiiéncia mensagens estruturadas de tal modo que: a) afir- ma-se algo; b) afirma-se algo sobre a propria afirmacao inicial; c) essas duas afirmagées excluem-se mutuamente. Assim, se a mensagem é 69 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. comportamento, no sentido de detectar como se operam mudangas na percepgao dos terapeutas ¢ dos familiares. Outra influéncia significativa nesse campo se deve aos teéricos do construcionismo social® (Gergen, 1985). Da mesma forma que © construtivismo’, 0 construcionismo social entende que a realidade nao pode ser conhecida de modo independente do observador, nao existindo, portan- to, um “mundo real” que se pode conhecer com certeza objetiva. A nogao de realidade ¢ concebida como fruto de um consenso entre as pessoas, num processo que envolve necessariamente a utilizagao da linguagem. Sendo assim, a realidade é construfda. Os construcio- nistas sociais sustentam que todo o conhecimento, tanto do mundo como de si mesmo, evolui nos espacos interpessoais. As idéias, os conceitos, as lembrangas teriam sua origem nos intercambios sociais ¢ se expressariam na linguagem ¢ no didlogo. O desenvolvimento da singularidade de cada pessoa se daria, nesta perspectiva, a partir de jogos sociais, trocas simbélicas e materiais no mercado social da vida. Todas essas idéias afetaram o modo de ver o trabalho com as familias. As familias deixaram de existir indepen- dentemente do observador e comegaram a ser abordadas como um desenho social flexivel, composto por pessoas que compartilham significados. Nessa perspectiva, 0 processo terapéutico passou a ser entendido como a construgao de um espago criativo, capaz 6 O construcionismo social deve muito a critica textual, filoséfica ¢ politica do desconstrucionismo (Derrida, 1978), dos escritos de Witt- genstein, particularmente seus ultimos trabalhos que enfatizam os jogos da linguagem, e de alguns pragmatistas americanos, sobretudo ‘William James, John Dewey e George Hebert Mead (Pearce, 1996). 7 O construtivismo compartilha com o construcionismo social a visio da realidade como um processo de construcio. Entretanto, para os construtivistas, interessados no problema do conhecimento com base na biologia do conhecimento e da aprendizagem (Maturana & Varela, 73 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. A teoria do estresse-vulnerabilidade considera 0 pacien- te um sujeito ativo no processo de lidar com 0 fendmeno do adoecimento e tudo 0 que dele transpira. Os estudos das EE contribuiram, principalmente no meio académico psiquidtrico, para despertar o interesse pelos fatores sociais no campo dos transtornos mentais, conduzindo ao desenvolvimento de estratégias terapéuticas de manipulagao e monitoramento ambiental (Barrow- clough & Tarrier, 1984). Muitos trabalhos demonstraram que as intervengoes familiares sao eficazes em promover uma estabilidade sinto- matolégica, contribuindo para um funcionamento social efetivo (Fallon et al., 1987). Em 1994, Mari e Streiner revisaram mais de trezentos artigos sobre a influéncia da intervengio familiar no curso da esquizofrenia. Utilizando-se da metanilise!® dos resulta- dos dos trabalhos selecionados, conclufram que as interven- gSes familiares sao efetivas no que diz respeito & diminuigao de recafdas e da taxa de internag6es psiquidtricas. Estes autores sugerem a incluséo de outras varidveis, além das recaidas, para avaliagGes futuras de intervengées familiares. Atualmente ja existem evidéncias substanciais que sus- tentam a eficdcia dos programas de manejo familiar na redu- go das recafdas dos pacientes esquizofrénicos quando utili- zados em combinaca4o com medicagao neuroléptica. Estas intervengées aumentam o funcionamento social do pacien- te, diminuem a vivéncia subjetiva de sobrecarga e resultam em economia de recursos financeiros para os servigos. Apesar de sua importancia, as pesquisas sobre EE podem favorecer alguns mal-entendidos que devem ser evitados. Hé uma certa tendéncia em rotular, de forma 10 Metanilise é uma técnica para resumir os resultados de muitos estu- dos. Permite ao revisor de um determinado campo de investigacio chegar a uma sintese sobre a magnitude de um tratamento de modo mais objetivo (Streiner, 1991). 77 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Estudos antropolégicos e transversais Nas diltimas décadas, tanto a psiquiatria transcultural como a antropologia tém estimulado o debate sobre as pos- siveis relagdes entre a cultura e os transtornos mentais, prin- cipalmente com a esquizofrenia. Uma investigacao cuidadosa, conduzida por Murphy e Raman em 1971, acompanhou por 12 anos pacientes com diagnéstico de esquizofrenia, chegando a conclusio que os individuos que viviam nas ilhas Mauricio apresen- tavam uma evolucao clinica mais satisfatéria no que se refere a recafdas e a intensidade de sintomas do que um grupo de pacientes semelhantes seguidos na Inglaterra. As diferengas encontradas nao estavam associadas a qual- quer diferenga nas taxas de incidéncia de ambos os pafses, na qualidade do tratamento, nem nas condigées de vida mais ou menos favordveis. Até o momento, os estudos mais consistentes a detectar uma variagao transcultural no curso da esquizofrenia sio duas pesquisas epidemioldgicas multicéntricas conduzidas pela Organizagéo Mundial da Satide: 0 “Estudo piloto internacional sobre esquizofrenia” (Leff et al., 1992), e os estudos sobre “Determinantes da evolugao de doengas men- tais graves” (Sartorius et al.,1986; Jablenski et al., 1992). Em linhas gerais, ambos os estudos chegaram As mes- mas conclusdes. A esquizofrenia apresenta uma incidéncia semelhante nos diferentes paises, e suas caracteristicas clini- cas sio mais notdveis pelas semelhangas do que pelas dife- rengas. Mas no que se refere 2 evolugio clinica, ao tempo de duragao do episédio psicético e & performance social, os pacientes esquizofrénicos dos paises em desenvolvimento tiveram um curso significativamente melhor do que os dos paises industrializados. Os autores responsdveis pela pesquisa atribuem esses re- sultados a uma maior toler4ncia aos sintomas esquizofrénicos 81 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Intervengées na rede social Os modelos de intervengao familiar geram, freqiiente- mente, uma fronteira artificial entre as relagdes familiares e o restante do mundo social significativo para um individuo. Os limites da rede de relag6es sociais que sustentam uma pessoa na sociedade nao se restringem 4 familia nuclear ou extensa, mas incluem todo 0 conjunto de vincu- los interpessoais significativos do sujcito: familia, amigos, relagdes de trabalho, de estudo, vinculos na comunidade, vinculos coletivos, sociais e politicos. Assim, pode-se definir a Rede Social de Sustentagéo (Social Network) como a soma de todas as relagdes que um individuo percebe como importantes ou diferenciadas da massa anénima da sociedade. Essa rede corresponde a um nicho interpessoal, uma microecologia na qual a pessoa desenvolve um modo particular de expressao da sua singu- laridade (Sluski, 1997, p. 42). O uso operacional do conceito de rede social inscreve o individuo e sua famflia em um determinado territério social e favorece que os operadores de satide mental ampliem seu territério de intervengao. Além dessa ampliagio territorial do espago terapéuti- co, as intervencées na rede social podem mobilizar impor- tantes recursos internos e externos 4 familia; muitas vezes recursos esquecidos, deixados a margem, que podem ser acionados e ser de grande utilidade no tratamento. Atualmente, existem fortes evidéncias de que uma rede social estavel, forte e soliddria protege a pessoa contra doen- gas, aumenta a sobrevida e acelera os processos de cura. A presenga de doengas de curso prolongado, como cancer, esquizofrenia, doengas neuroldgicas etc., compro- mete a qualidade da interagao social, reduzindo o tamanho da rede social. Geralmente, 0 efeito é maior na rede que ultrapassa a familia nuclear. A retragao dos vinculos, por 86 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Encontro repleto de possibilidades ¢ de obstdculos. Espago atravessado pelos valores, saberes ¢ crencas de ambos os lados. A relacao terapéutica com os familiares é um campo tenso, permeado pelo medo, pela culpa. Trata-se de uma relagao assimétrica, na qual o poder maior do técni- co pode ser utilizado de diferentes maneiras. Na maioria das vezes, esse familiar nao est4 procurando ajuda pela primeira vez. Freqiientemente carrega consigo uma bagagem de experiéncias anteriores, nem sempre muito felizes e animadoras. E comum que as pessoas cheguem resistentes, armadas de respostas prontas e de mecanismos defensivos bem estruturados. Desconfiadas, ficam com o radar ligado & espera de qualquer comentdrio culpabilizante. A aproximacio do universo desses familiares pede paciéncia e sensibilidade na procura dos sentidos que bro- tam de suas histérias de vida. Estar a servigo da subjetivida- de dos familiares sugere a estratégia de procurar conhecé-los de uma maneira mais global e abrangente, em suas miilti- plas dimensées existenciais, tentando, desta maneira, desenvolver modalidades de cuidado mais apropriadas as suas necessidades. No entanto, essas necessidades nao podem ser genera- lizadas. Nao existe um modelo universal de familiar. Cada pessoa tem um estilo singular de viver e de lidar com as situagdes de vida. Cada um tem sua maneira particular de olhar ¢ reagir em relagao 4s doengas mentais. Nas tiltimas décadas, a antropologia psiquiatrica voltou- se para estudar as crengas culturais e os comportamentos dos individuos ante aos diferentes transtornos psfquicos. Sua intengao é elucidar as eventuais influéncias da cultura de uma determinada sociedade na maneira como os individuos olham, sentem e experimentam o fendmeno do adoecer psi- quico, incluindo as atitudes ¢ respostas aos tratamentos. Esses estudos tém estimulado os psiquiatras a incorpo- rar nogées bdsicas sobre como os processos psicoldgicos e 92 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. As necessidades e 0 potencial de cada pessoa, e do grupo como um todo, precisam ser colocadas no centro das atengGes para a elaboragao das estratégias de cuidado. Nesse movimento, é recomendavel uma aproximagao do familiar como pessoa, sem reduzi-lo a um conjunto de sinais e sin- tomas remetidos & sua relago com o paciente ou outros aspectos de sua vida. E preferfvel conhecer em profundida- de os mecanismos envolvidos na relacao dos familiares com os parentes adoecidos. A experiéncia grupal volta-se, entao, mais para a “fisiologia” das relag6es parentais, afastando-se de sua psicopatologia. A histéria de Sueli e Tadeu (parte II) Sueli participou ativamente das reuniées do Grupo de Familiares durante dois anos. Ela descreve assim sua experiéncia: No comego foi muito dificil falar da situagao do meu irmao e da minha familia, porque vinha muita dor, muita vergonha. Falar em grupo possibilitou que cu conseguisse me expressar ¢ refletir sobre meus senti- mentos. Eu tinha uma identificagao muito grande com as pessoas, ¢ isso foi crescendo. Compartilhar a dor foi fundamental nesse processo... Compartilhar a vergo- nha, a culpa, o medo € outros sentimentos que a gente deixa sempre embaixo do tapete. Foi muito rica e importante a participagéo no Grupo. Poder ouvir as pessoas, pessoas que também tinham problemas, pro- blemas até mais graves que os meus. Foi bom falar, foi bom ouvir e saber mais sobre a doenga, isso modifi- cou completamente a minha relagdo com meu irmao, com minha familia. Nessa época, minha mae ainda cra viva. Faz um ano ¢ meio mais ou menos que ela faleceu. Depois de sua morte, eu pude conversar mais com o Tadeu sobre 0 assunto, dentro de certos limites. 96 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Vale também lembrar que, se existe a inteng3o de des- montar os mecanismos de culpabilizagao dos familiares, as praticas terapéuticas precisam se distanciar das formulas prescritivas, moralizantes, mais ou menos encobertas. Caso contrario, corremos 0 risco de esquecermos que na histéria da humanidade a moral ea culpa sempre andaram de maos dadas, uma se apoiando na outra. Atentos a esse problema, os grupos de familiares podem facilitar os processos de subjetivagio dos participan- tes para conferir mais liberdade e autenticidade ao existir individualmente e no coletivo. Como estimular a explora- 40 das potencialidades visiveis e daquelas adormecidas, esquecidas num canto qualquer? Como os integrantes da experiéncia podem pesquisar novas formas de olhar para os problemas e para o mundo? Jé afirmamos anteriormente que, ao iniciar sua partici- pagdo em grupos terapéuticos, a maioria dos familiares estd imersa em suas préprias vivéncias de dor, dificuldades e culpa. Fruto de um cotidiano sobrecarregado, da falta de informagées qualificadas, de experiéncias sucessivas de fra- casso, muitos individuos organizam suas vidas de forma empobrecida e estereotipada, diminuido suas reais possibi- lidades de vida. O campo conceitual da formagao dos processos de subjetivagao permite entender os movimentos individuais e coletivos como tentativas de escapar dos saberes constituf- dos e dos poderes dominantes que impedem a emergéncia de um estilo de vida mais genufno. Existe sempre a possibilidade de uma subjetividade resistir aos cédigos e aos poderes. A subjetivacao nunca deixa de se fazer, nZo para de renascer e de se metamorfosear. Na atualidade, o poder de controlar e submeter os sujeitos investe cada vez mais em nossa vida cotidiana, em nossa interioridade e individualidade, para ditar normas e com- portamentos. A luta por uma subjetividade moderna passa 101 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. A clinica que se desdobra em projetos Segundo momento: o familiar como agente de transformacao cultural Viver é nos separarmos do que fomos para nos adentrarmos no que vamos ser, futuro sempre estranho. (Octavio Paz, 1984) No instante em que o familiar percebe que, além de estar disponivel para acolher a singularidade de suas ques- t6es subjetivas, agora pode construir, no 4mbito de uma ONG de satide mental, um espaco de elaboragao de agées e atividades, seu olhar se desloca “para fora”. E 0 grupo se transforma em espago para experimentacao e invengao de projetos. Projetos individuais ou coletivos voltados para modificar as microrrelagdes sociais, as instituigdes e€ o ambiente a sua volta. Em sua trajetéria “para fora”, é possivel afirmar que o primeiro espaco exterior para o qual se abre é 0 fora de casa, do grupo familiar ou da relagéo com o parente doente. E uma nova fase, na qual se observa uma tentativa de articu- lar desejo de mudanga pessoal com a ambiacao de transfor- magio social. Em certa medida, 0 grupo comega a servir de interme- diario para convidar os familiares a experimentar 0 alcance de seus projetos numa associagao, que passa a ser utilizada como ponto de referéncia, observacao ¢ intervengao. Embora 0 universo subjetivo dos individuos seja povoado por uma multiplicidade de facetas que compdem a subjetividade humana, existem sempre aquelas mais uti- lizadas no cotidiano, em geral as mais adaptadas e valoriza- das pela nossa sociedade. A efetiva presenga de familiares nas praticas sociais implica na mobilizagio de recursos humanos que estao, em geral, atrofiados. Nesse sentido, é 106 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 114 grande na figura do diretor. A duras penas, e principal- mente por solicitagao nossa, conseguimos que outras pessoas da equipe se pronunciassem com relagéo ao trabalho ali executado... Eu particularmente senti a equipe bastante desmoti- vada, no limite da apatia. Nao pude identificar nenhum desejo presente de transformagao. Foi-nos dito ainda que as visitas aos pacientes sao autorizadas diariamente ¢ que a correspondéncia é entregue fechada aos pacientes. Encerrada esta reunido, fomos convidados para o almo- go. Aceitamos, e, para minha surpresa, fomos levados a sina chiitraseatie fora do hospital. Achel una pena, pols perdemos a oportunidade de comer o mesmo tipo de refeigao que ¢ servida aos pacientes no hospital. Poste- riormente observei que a alimentagao dessa clinica dei- xava muito a desejar, até no aspecto da comida. Infeliz- mente nao provei os alimentos, porém seu aspecto absolutamente nao me impressionou bem. A refeicao observada constava de: arroz, feijao, salada de macarrao ¢ ovos fritos engordurados e queimados. Nao havia sobremesa. Como sempre acontece, a velha histéria se repetiu na visita que fizemos apds 0 almogo: muitas por- tas trancadas a chave, corredores, quartos de ambos os lados, variando o ntimero de camas, que variava de duas a oito por quarto... Havia diversos sanitdrios ¢ banheiros coletivos. Pou- cos foram reformados, muitos estando ainda em condi- gOes precdrias. As camas sao, na realidade, estrados de madeira, os mais simples possiveis. Os colchées sao de palha e os travesseiros de espuma ou simplesmente de retalhos de tecidos. Os cobertores, bastante finos, me fizeram pensar que no inverno os pacientes sentiriam frio, Os quartos das enfermarias nao tém armdrios. Nao vi bebedouros, nao soube se existe luz de emergéncia ou sistema de som. Nas diversas enfermarias existem saldes aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. sua rede de apoio social. Nao porque esses vinculos carecam de efetividade. Talvez as pessoas nao se sintam no direito de fazé-lo. Além da experiéncia de Cristévao, Fabio e Darci, a equipe do CAPS tem acompanhado muitas outras situa- g6es nas quais relagSes nao parentais tém se mostrado muito mais leais, responsaveis e soliddrias do que os vincu- los familiares consangiiineos. Tal constatac3o nao deve se constituir num argumento a mais para responsabilizar e culpar os familiares. Nao ha duivida quanto a necessidade de as pessoas possuirem vincu- los estaveis ¢ confidveis, que possam servir de apoio € sus- tentagao. No entanto, em muitas oportunidades, esses vin- culos se encontram e se constréem de maneiras inusitadas, surpreendentes. No mundo pés-moderno, impregnado pela fragmen- taco, efemeridade, descontinuidade e heterogeneidade, a concepcao de familia passou a abarcar padrées mais flexi- veis e plurais, em movimentos permanentes de construcio e reconstrugio de suas relagSes, multiplicando diferentes modos de conjugalidade, inventando formas de convivén- cia e organizacao da vida cotidiana. Aquela familia moder- na, cujo aparecimento foi descrito no capitulo 2, centrada na afeigdo entre pais e filhos e na divisdo sexual do trabalho, passou a conviver com uma pluralidade de outros padrées de casamento e de relacionamentos (Vaistsman, 1994). A familia consangiiinea nao precisa e nao pode ser tudo. Além de supervaloriz4-la, as pessoas também apresen- tam uma forte tendéncia a idealiz4-la, esperando encontrar em seu seio tudo aquilo de que necessitam, todo 0 apoio, 0 afeto inesgotavel, a resposta para todos os males. Esse pro- cesso de idealizagio conduz a ilus’o de pensar que a tinica solug&o para sustentar um paciente e inseri-lo na comuni- dade passa necessariamente pela familia. A realidade tem se mostrado diversa. Nem sempre 0 meio familiar é 0 mais indicado para uma pessoa com trans- tornos ps{quicos. Produzir e multiplicar projetos de moradia, 120 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Em julho de 1996, realizou-se uma grande festa que contou com a participagao de aproximadamente quatro- centas pessoas, inaugurando oficialmente o Clube do Basa- glia em sua fase experimental. A organizacio da festa envolveu muitas pessoas: profis- sionais, parentes, familiares ¢ colaboradores. Exigiu muito esforgo e dedicagao de todos. Mudou completamente o cotidiano do CAPS, que praticamente voltou-se apenas para discutir, planejar, enfeitar, divulgar e respirar a festa. A vida com mais festa As festas chamam outras festas e, gracas it densidade de coisas e pessoas, a vida se multiplica. (Canetti, 1995) Desde a sua fundagao, o CAPS sempre manteve a tra- dig&o de organizar festas. Festa de natal, de final de ano, fes- tas juninas, festas para os aniversariantes do més, festas para langar livros. Tudo era motivo para reunir-se, interromper a marcha do tempo e celebrar acontecimentos e pessoas. Entretanto, algo novo e especial surgiu nessa Festa Junina de inauguragao oficial do Clube do Basaglia. Os usudrios logo perceberam a diferenga. Na reunido geral do CAPS, que seguiu ao grande evento, todos os comentirios convergiram na diregao de afirmar a qualidade especial da novidade. Havia um consenso de que a festa tivera um cara- ter genufno e auténtico. Féra para valer e lembrar. Festa de verdade. Teriam sido as anteriores menos verda- deiras? Quais os elementos, as caracter{sticas que conferiram a essa celebragao uma autenticidade até entao desconhecida? A preparagao da festa exigiu muito esforgo das pessoas. Pela primeira vez, grandes reunides organizativas colocaram lado a lado pacientes, profissionais e também os familiares. A 127 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. criar condigSes para a emergéncia do espontaneo, do origi- nal, do gesto inusitado que pode conferir valor 4 produgao. Os participantes, em muitas oportunidades, entram em sin- tonia com a proposta e experimentam nao se colocar no papel de pacientes, alterando sua atitude ante a tarefa. A mudanga das expectativas e dos contextos consegue produ- zir mudangas na forma de estar na atividade e de vivencié-la. O trabalho clinico, por outro lado, talvez incentive a expressio dos aspectos mais problemiticos e conflitivos por parte dos sujeitos. Por definicao, ¢ 0 lugar de cuidar daqui- lo que nao esté bem, daquilo que faz sofrer. E. 0 espago para © aparecimento do sintoma. O terapeuta, por sua vez, estd investido do papel de cuidador, daquele que é responsavel pelo tratamento. As oficinas culturais e os grupos terapéuticos sao igual- mente importantes para o cuidado em satide mental. Um precisa do outro para desempenhar suas atribuigées de maneira satisfatéria, € para se sustentar mutuamente. Contudo, caberia uma reflexdo sobre a necessidade de as tecnologias clinico-terapéuticas introduzirem um olhar mais atento aos talentos ¢ as potencialidades de sua clientela, reforcando os aspectos mais saudaveis e criativos da subje- tividade dos sujeitos envolvidos. Cursos para familiares Nos tltimos anos, aumentou o interesse por parte dos profissionais de satide mental em prover os familiares de pacientes com transtornos mentais com informagées sobre os tratamentos em satide mental e sobre como lidar com os pacientes em casa. Sem divida, os estudos envolvendo os campos das Emogoes Expressas e da Sobrecarga Familiar contribuiram de forma decisiva para convencer os médicos da necessidade de investir na comunicaga0, como um instrumento de 132 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. foi ganhando maturidade e consisténcia, sendo batizado de Projeto Devir. No editorial da capa do primeiro ntimero do Jornal Devir esta escrito: O Jornal Devir é resultado do trabalho coletivo de pacientes, familiares e profissionais de satide mental, organizados em associagées de varias cidades do Pats, reunidos em uma Rede de ONGs. O ponto de partida da publicagao foi a I Oficina Intensiva de Jornalismo, realizada no dia 30 de agosto de 1997, em Sao Paulo, na qual representantes de mais de quinze organizagdes tiveram a oportunidade de conhecer teorias ¢ praticas de comunicagao social. Durante 0 evento, foram defi- nidos a linha editorial e os principais temas abordados. A Rede de ONGs de Satide Mental e¢ 0 Jornal Devir surgem como uma proposta de ser experiéncia viva, mutante, de invengio e incerteza, do vir a ser que busca expressao. Vocé est4 convidado a participar. Em novembro de 1997 é langado publicamente 0 Jor- nal Devir numa festa que contou com a presenga de aproxi- madamente duzentas pessoas, incluindo intimeras autori- dades e polfticos. A Rede de ONGs de Satide Mental conta atualmente com a participagao de mais de vinte entidades dos Estados de Sao Paulo, Minas Gerais, Parana, Rio Gran- de do Sul e Rio de Janeiro. A trajetéria de constituigao desta Rede de ONGs abriu as portas para uma realidade social multidimensional repleta de organizagGes palpdveis e barulhentas. Nas cidades existe um grande ntimero de instituigdes, das mais simples as mais complexas, permeadas por jogos de poder, contradi- Ges e conflitos. E um universo multifacetado, diversifica- do, composto por intimeras teias organizacionais, mais ou menos densas. O Estado é uma das pegas desse jogo de poder ¢ interagao, cabendo-lhe liderar 0 processo em mui- tos momentos, mas, também, partilhar, delegar e interagir. 138 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. individuagao que possibilitam aos sujeitos aberturas para as multiplicidades que os atravessam em todos os sentidos ¢ diregSes. Em outras palavras, as intervengdes familiares podem estimular experiéncias e praticas para buscar outras maneiras de ver e viver a vida. A subjetivacao nao deve ser concebida como um percur- so do desenvolvimento do ego; ela nao diz respeito 4 “pes- soa”. A subjetivagao nao se confunde com a afirmacao de um sujeito em particular. Trata-se, em realidade, de movimentos de singularizagao intensivos que acabam por colocar em questao saberes constituidos e poderes dominantes. Onde existem toda uma energia reprimida e uma sub- jetividade a ser inventada ¢ mais provavel que se encontrem os focos mais ativos de subjetivagao na sociedade. Freqiien- temente, estes focos sao encontrados em parcelas da popu- lagdo ou nas pequenas tribos urbanas marginalizadas e exclufdas pelo discurso hegeménico. Essa parte da socie- dade comporta uma diversidade grande de discursos, movimentos ¢ projetos, voltados para levantar questées e produzir mudangas na drea da satide, da crianga, do meio ambiente, das minorias sexuais, dos excluidos sociais e eco- nomicos etc. De certo modo, a necessidade de subjetivagio se con- funde com a demanda de produzir transformagées, para escapar das situag6es de vida que nos oprimem, que impe- dem um contato mais direto com tudo aquilo que é funda- mental para a existéncia de cada sujeito. Envolver os familiares nessa empreitada implica abrir a familia aos fluxos criativos que atravessam suas relagdes internas e externas. Abrir a familia é abrir também a psi- quiatria, com reflexo imediato na elaboragao de novas pra- ticas. Parece que familia e psiquiatria séo instituigdes orga- nicamente articuladas; uma se alimenta da outra. Sendo assim, mexer com uma é mexer com a companheira. Ambas foram atravessadas por estratégias ¢ dispositivos de 144 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Peer A COLECAO ENSAIOS TRANSVERSAIS trata de temas que articulam reflexdes tedricas e acdes cotidianas, em busca do que se poderia caracterizar como uma Scientia Activa. Os textos representam vozes em busca de um debate aberto, que transcenda a mera reiteragao de ecos e contribua efetivamente para a negociacao e a partilha de significagdes. Tal fusao de horizontes é condi¢ao de possibilidade para um acordo no discurso, fundamental para a construgao da cidadania. Temas deste volume Origem da familia Terapias familiares Psicandlise Reforma psiquiatrica Subjetividade ISBN 85-86303-93-3 eorte) ; ag aay 9° 788586 303937

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