Você está na página 1de 12

O ensino de história como fator de coesão.

nacional:
os programas de 1931

Katia Maria Abud*

As relaç~es entre a política educacional e a sociedade que a


produziu é uma realidade a ser considerada pelos estudiosos da Educação.
Como pro~uto social, a Educação somente pode ser analisada a partir do
contexto sócio-político e cultural que a normatiza, considerando o período
pesquisado. A historicidade da Educação enquanto objeto de pesquisa
exige a utilização de _métodos que levem em conta tal historicidade. Assim,
as reformas de ensino não permitem uma análise mais aprofundada se
forem abordadas simplesment~ como atos legais desvinculados de seu
momento histórico.
Este artigo pretende evidenciar as relações · entre o contexto
político, social e cultural e a Reforma de Ensino de 1931, analisando como
documento fundamental os programas de História elaborados pelo
Ministério da Educação e Saúde Pública, sob a direção de Francisco
Campos.
Mesmo depois da criação da primeira escola pública de nivel médio,
no Brasil, (o Colégio D. Pedro Il, em 1838), o ensino permaneceu des-
centralizado, organizado por cadeiras e os exames realizados por
disciplinas, cujas bancas eram autorizadas pelo Pedro li. As escolas tinham
o papel de cursos preparatórios para os exames e por isso segui~m os
seus programas. Algumas tentativas de reformas de ensino (1911, 1925)
não conseguiram alterar esse quadro. Somente depois de 30, com a tomada
de poder por Getúlio Vargas e as transformações impostas pelQ governo
provisório, tomaram-se possíveis reformulações mais profundas no sistema
de ensino, que ensejaram o aparecimento de programas e currículos de
caráter nacional.
A Revolução de 30 colocou fim ao regime federativo criado pela
Constituição de 1891 e o poder político passou a ser centralizado pelo
governo federal. Alegando a necessidade de substituir as antiquadas
instituições políticas brasileiras, Getúlio Vargas prometia a modernização
do país mediante a reformulação do seu modelo econômico e jurídico-
político.

* Professora de Prática de Ensino de História da FHDSS-UNESP (campus de


Franca).

Rev. Bras. de Hist. S. Paulo v.13, nº 25//26 pp. 163-174 set. 92/ago. 93

163
Nos anos 20 a modernização era tida como um desafio para o país.
As disputas entre as oligarquias regionais eram vistas como uma ameaça
à unidade nacional, e conflitos armados, como os dos tenentes, pareciam
demonstrar o perigo de rompimento entre os vários "brasis" e a
necessidade de preservar suas "forças sociais, seus valores culturais,
tradições, heróis, santos, monumentos, ruinasu (IANNI, 1990).
Tais preocupações fizeram da década de 20 um período fértil de
manifestações e debates de caráter social e cultural, nas quais a Educação
era um tema freqüente. Surgiam propostas inovadoras para o sistema
educacional que vinha se constituindo num pólo de interesse de
intelectuais e políticos e ocupando espaços significativos nos órgãos de
opinião pública. . A instrução era entendida como um instrumento
importante para a manutenção do Estado Nacional e da identidade coletiva
do povo brasileiro.
Depois de 1925 intensificaram-se as discussões sobre o ensino
secundário. Em 1926, o jornal O Estado de S. Paulo realizou um inquérito
sobre a educação que alcançou grande repercussão. Em 1929, a
Associação Brasileira de Educação (ABE) promoveu outro inquérito e a II
e III Conferências Nacionais de Educação deram importância, em seu
temário, ao ensino secundário.
Ele se tomou assunto· freqüente na imprensa, objeto de palestras e
conferências, e um número crescente de revistas especializadas publicavam
projetos e propostas para a organização da escola média. Mais que isso,
um grupo de intelectuais de prestígio, entre os quais se encontravam
Fernando de Azevedo, Carneiro Leão, Licínio Cardoso, procuravam
repensar o papel da educação e levar o debate à população. Pretendiam a
expansão da escola secundária, para que ela pudesse atender setores da
sociedade que se expandiam, como as classes médias urbanas. A escola
deveria ser instrumento de preparação dos novos segmentos da sociedade
e para cumprir tal papel ela precisava. se transformar. Eles deixavam muito
claras suas pretensões em relação ao sistema escolar: a finalidade da escola
era a de formar cidadãos e para alcançar esse objetivo era preciso que ela
divulgasse para sua clientela "as idéias civilizadas" produzidas "pelas
verdadeiras elites" (LEAO, 1927). Na realidade pensava-se na transmissão
de um saber ucivilizatório", que formasse "aquela categoria social que
·fica "entre o povo e os dirigentes do país", tanto na política como na
ciência. As idéias, por meio deles, filtram-se, descendo continuamente das
camadas superiores até os mais humildes: são eles que mantêm coeso o
corpo da nação" (NADAI, 1988, p.235).
A reforma do ensino era também parte do projeto político da elite
paulista. Nos primeiros anos da República desenvolveu•se com força a ·
idéia de uma "nação paulista". Políticos de São Paulo ocupavam altos

164
escalões do governo federal e o Estado pretendia, a todo o custo, manter
a hegemonia na Federação, valorizando, entre outros aspectos, suas
próprias tradições. Entre os instrumentos para a manutenção do poder,
concebeu a formação dos novos quadros políticos nos recém-criados
Ginásios do Estado.
A implantação pelo movimento de 30 de um novo regime político
minimizou a influência que os Estados mais ricos, como Minas e São Paulo,
exerciam e obstaculizou a crescente hegemonia de tais Estados na
Federação. Assim, quando em 1931 foi realizada a Reforma do Ensino que
tomou o nome do Ministro da Educação, Francisco Campos, o que
f armava seu núcleo era a manutenção e fortalecimento da unidade da
Nação Brasileira.
Com a Reforma Francisco Campos (Decreto 19.890/31), o ensino
secundário passou a ter dois cursos seriados: o fundamental e o
complementar. O curso fundamental tinha por objetivo dar a fonnação geral
ao estudante, com duração de cinco anos. O curso suplementar era
obrigatório para os candidatos aos cursos superiores de Ciências
Jurídicas, Medicina, Farmácia e Odontologia, Engenharia e Arquitetura,
como também para a Faculdade de Ciências e Letras. que ainda não existia.
Era um curso nitidamente pré-universitário.
O decreto 19.890/31 impunha a seriação obrigatória para todas as
escolas do país, em todos os estabelecimentos de ensino secundário, e
incumbia comissões organizadas pelo Ministério da Educação de elaborar
os programas de ensino das disciplinas, que também seriam unificados para
o Brasil inteiro. O decreto foi publicado em l º de abril de 1931 e previa
sua imediata implantação. Apesar disso, os programas somente ficaram
prontos em junho daquele ano. Vinham acompanhados de "Instruções
Metodológicas", que indicavam os objetivos das disciplinas e as técnicas
de trabalho que o professor deveria utilizar. Sugeriam também qu~ o
conteúdo (que não era muito diferente dos programas anteriores, do
Colégio Pedro D e dos ginásios estaduais) fosse tratado de uma forma
que indicasse a tendência "modemizadora,, dos intelectuais brasileiros,
que sonhavam com uma democracia à americana.
A História era tida como a disciplina que, por excelência, formava
os estudantes para o exercício da cidadania e seus programas incorporaram
essa concepção. Concepção que já estava presente nos programas do
Pedro II, quer nos de História Universal, copiados dos franceses, quer nos
de História do Brasil, derivados do programa de João Ribeiro, vencedor
do concurso do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
As "Instruções Metodológicas" que acompanhavam o programa
de 1931 explicitavam os objetivos do ensino de História, indicavam

165
técnicas para o professor desenvolver o programa e aconselhavam quais
aspectos da disciplina deveriam ser enfatizados.
Os objetivos esclareciam com nitidez o que se pretend_ia da História
cpmo componente curricular:

"a) a formação humana do. aluno, dando-lhe a conhecer a


obra coletiva dos homens no decurso do tempo e dos dife-
rentes lugares;
b) a sua (do aluno) educação política, contribuindo para que
o adolescente se familiarize com os problemas particulares
impostos ao Brasil pelo· seu desenvolvimento e adquira
ainda, perfeita consciência dos deveres que lhe incumbem
para a comunidade" (HOLLANDA, 19.57, p.17-18)._

Os objetivos transcritos acima se completam com a explicação que


lhes é acrescentada:

"Conquanto pertença a todas as disciplinas do curso a


formação da consciência social do aluno, é nos estudos de
História que mais eficazmente se realiza a educação política,
baseada na clara compreensão das necessidades da ordem
coletiva e da estrutura das atuais instituições políticas e
administrativas" (HOLLANDA, 1957. p.18).

Mais ainda, a História tinha a responsabilidade de permitir que o


adolescente adquirisse "atitude crítica, como adotar uma norma de ação
no que diz respeito quer aos problemas peculiares ao Brasil. quer às
questões internacionais" (HOLLANDA, 1957, p.18).

O fato que primeiramente salta à vista é a concepção de História,


como conhecimento produzido e como disciplina escolar. A História é
concebida como um produto acabado, positivo, que tem na escola uma
função pragmática e utilitária, na medida que ela serve à educação política
e · à familiarização com os problemas que o desenvolvimento impõe ao
Brasil. Ao atribuir esse caráter utilitário ao ensino de História, o legislador
deu à disciplina o ponto de ligação com o corpo ideológico do movimento
getu1ista, cujo discurso ia na direção da implantação de reformas para
superar os arcaísmos da sociedade brasileira e para imple.mentar a
modernização do país, introduzindo-o, finalmente, no século XX, ao
promover seu desenvolvimento. Ao mesmo tempo, porém, reconhecia que
havia problemas a serem solucionados para se alcançar tal

166
desenvolvimento. O conhecimento de uma determinada História poderia
ser um precioso auxiliar para a solução de tais problemas.
Fica evidente também, na redação dos objetivos, a compreensão da
História como um produto intelectual voltado para a formação política do
alunado. Isto significa que a formação do cidadão era a preocupação
fundamental dos legisladores.
Cabe aqui a retomada de alguns aspectos, entre os quais a
historicidade do conceito de cidadania. Naquele momento, cidadão era o
participante, como membro de grupos dirigentes, da vida política. Muito
embora a legislação consagrasse a igualdade de todos perante a lei, isto
não passava de um sonho. A clientela da escola secundária era originária
das camadas da população que tinham acesso à ·participação na vida
política. ·Era muito remota a possibilidade de crianças e adolescentes das
classes proletárias alcançarem os bancos da escola média. A eles se
destinavam as carteiras dos Grupos Escolares, onde recebiam a
alfabetização necessária para manejar as máquinas das fábricas que se
expandiam e das quais constituiriam a mão-de-obra.
A cidadania era ainda entendida e,cclusivamente no seu sentido
político e era com essa cidadania que as escolas e, sobretudo, o ensino
de História deveriam se preocupar. Aceitava-se o conceito de cidadania
do liberalismo, que se expandiu ano século XIX e que compreendia a
democracia como a· manifestação da vontade na escolha dos governantes.
Os direitos sociais, que começavam a ser encampados pela legislação, eram
tidos como concessão dos governantes e não como conquistas das
classes trabàlhadoras. Pode-se afirmar que os objetivos dos programas de
1931 estavam estreitamente ligados ao desenvolvimento da cidadania,
para um grupo de privilegiados, representantes da classe dominante.
Mas, as "Instruções Metodológicas" traziam suas próprias
contradições. Ao mesmo tempo que enfatizavam os direitos políticos das
camadas privilegiadas, lembravam aos professores que dessem pouca
importância ao "estudo das questões referentes às divergências
diplomáticas e à história militar' (HOLLANDA, 1957, p.18). Sugeriam ainda,
que a causalidade econômica deveria ser contemplada, pois se considerava
que através do estudo da História o aluno pérceberia que às organizações
econômicas se contraporiam determinadas ordens jurídicas e que das
diferenciações econômicas pas sociedades decorriam o complexo das
organizações jurídicas (Família, Classes, Corporações·Profissionais, Estado,
Igreja). Mais ainda, seriam as transformações econômicas que tornariam
necessárias as transformaçoes políticas. (HOLLANDA, 1957, p.18).
É possível perceber nas "Instruções Metodológicas", especial-
mente nos trechos lembrados acima, uma certa tendência, ou melhor, uma

167
certa vontade de incorporar algumas concepções ligadas a correntes mais
modernas do pensamento histórico.
As três primeiras décadas deste século tinham assistido, no Brasil,
ao aparecimento de uma produção histórica que procurava se desYencilhar
do positivismo e incorporar uma postura mais analítica e interpretativa da
realidade brasileira. O historiador mais destacado desse período foi
Capistrano de Abreu, cuja obra representou um divisor de águas na
historiografia brasileira. Outros pensadores que tiveram papel importante
na vida cultural do país, como Sílvio Romero, José Veríssimo, Tobias
Barreto, podem ser lembrados entre os intelectuais que pretenderam
repensar o Brasil. Alguns deles eram professores do Colégio Pedro II, a
maioria professores de História. O pensamento emergente dessa
intelectualidade haveria naturalmente de influenciar a elaboração dos
programas do Ministério da Educação e Saúde Pública.
As décadas iniciais do século XX foram também um período de
efervescência social, com o aparecimento de organizações sindicais, de
uma imprensa libertária e assistiram à eclosão das primeiras greves de
porte em São Paulo e no Rio de Janeiro. Tudo isso haveria de contribuir
para mudanças no modo de pensar a realidade e no modo de conceber os
estudos de História, o que refletiria na organização de programas e na
exposição dos objetivos do ensino de História.
No entanto, apesar da influência que tais fatos puderam exercer,
continuaram predominando concepções de História que a viam como um
. '
"espaço idealizado" no qual a sqlução de alguns problemas próprios do
Brasil levariam ao desenvolvimento. O conceito dominante era o conceito
de comunidade - classicamente considerada como "agrupamento de
indivíduos que possuem um objetivo comum". Portanto, presumia-se que
conflitos classistas não regiam a "comunidade brasileira", isto é, o
conjunto de indivíduos que tinham em comum o objetivo de desenvolver
o Brasil.
A comissão elaboradora dos programas manifestou também
preocupação com as técnicas -de ensino de História a serem utilizadas na
escola secundária.
Ela se inspirava na nascente "Escola Nova" e no pensamento de
Dewey para enfatizar os procedimentos técnicos que o profesor de
História deveria utilizar para motivar os alunos para o ensino da disciplina.
Recomendava atenção especial para a iconografia, pois acreditava que os
adolescentes têm uma curiosidade natural pela imagem. Os programas
indicavam que os recursos tecnológicos deveriam ser utilizados no ensino
secundário.
Professores de História envolvidos no trabalho educacional, como
Jônatas Serrano e Delgado de Carvalho, consideraram as "Instruções

168
Metodológicas" um significativo avanço para o ensino secundário.
Serrano entusiasmou-se com a sugestão de se utilizarem os audiovisuais,
adepto que era do uso do cinema como recurso didático para as aulas de
História (SERRANO e VENANCIO, 1931). Elogios mais caloroso~ fez Del-
gado de Carvalho, que havia estudado nos Estados Unidos e era adepto
fervoroso das novas propostas educacionais, que procuravam o ajus-
t~mento do indivíduo ao meio e ao seu tempo utilizando a moderna tec-
nologia. Para esse autor, as técnicas teriam um papel importante na trans-
formação do aluno. em sujeito do processo de ensino-aprendizagem (CAR-
VALHO, 1937), pois as "Instruções" propunham "estimular nos alunos
os dons de observação, despertar-lhes o poder crítico e oferecer-lhes
sempre ensejo ao trabalho autônomo" (HOLLANDA, 1957, p.721).
Os conteúdos listados nos programas para a disciplina, chamada
agora de História da Civilização, substituía os das antigas Cadeiras de
História Universal e Hist6ria do Brasil, do Colégio D. Pedro II. O conteúdo
era assim distribuído:

- 1ª série: História Geral (iniciava-se com a "Revelação da


Civilização Egípcia" e terminava com a "Revolução Russa",
numa tentativa de compilação de toda a "História da
Humanidade").
- 2ª série: I História da Antiguidade (Oriente, Grécia e
Roma).
II História da América e do Brasil (dos descobrimentos até
a guerra hispano-americana e a independência de Cuba).
- 3ª série: I Idade Média (desde os aspectos econômicos,
sociais e políticos dos povos bárbaros até o desenvolvi-
mento cultural na Idade Média e as origens do Capitalismo).
II História da América e do Brasil (começando com os mais
antigos vestígios do homem americano até a vista do
conjunto do estado político, social, econômico, religioso e
cultural do selvagem (sic) brasileiro, passando pelas culturas
pré-colombianas).
- 4ª série: I História Moderna ( desde as grandes invenções
e suas conseqüências até o despotismo esclarecido).
II História da América e do Brasil (desde a Europa na época
do descobrimento e o contato com os primitivos habitantes
até a repercussão da independência norte-americana e as
tentativas de emancipação na América IAtina).
- 5ª série: I História Contemporânea (de causas e sucesso
da Revolução Francesa até o mundo contemporâneo e seus
mais importantes problemas). ·

169
II História da América e do Brasil (a partir da política ibérica
de NapoJeão Bonaparte e suas consequências até a América
de nossos dias e seus problemas ·mais importantes).

Como se vêt os programas distribuíam a disciplina dividida pela


periodização clássica, quanto à "História da Civilizaçãon, e procuravam
dar tratamento metodológico semelhante à História da América e do Brasil,
separando-as por períodos que se pretendiam equivalentes aos da História
européia. Isto foi feito com o propósito de "estabelecer uma estreita
vinculação entre o estudo do passado nacional e americano com o
passado europeu" (CASTROt 1955).
Os programas pretendiam forçosamente estabelecer as ligações,
procurando colocar lado a lado fatos que julgavam correspondentes, co-
mo, por exemplo, o Antigo Egito e o Império Incaico, a Revolução France-
sa e a expansão napoleônica e a Independência das Colônias da América.
O nexo entre a História Geral e a História da América e do Brasil
sempre fora fraco nas escolas, fato que provocava reclamação dos
docentes, pois ºo professor de História do Brasil via-se, às vezes,
obrigado a dar em suas aulas ~lgumas noções de História Geral e
Americana para explicar os pontos do programa que houvessem resultado
pouco compreensíveis". O comentário acima, feito por Guy de Hollanda,
já na década de 50, mostra que a História era vista como algo que devia
ser ensinado de maneira fragmentada e que a História do Brasil e da
América era um reflexo da européia. A fragmentação era aceita como lógica,
embora se percebesse que . alguns fatos não ficavam esclarecidos sem
explicações pertinentes à "História da Civilizaçãoº.
Na realidade, toda a seqüência e a organização dos programas
seguiam a visão de mundo da classe dominante européia, assimilada pelas
elites das antigas colônias - a civilização chegava ao "Novo Mundo",
quando o "Velho Continente" dele se apossava para colonizá-lo. Portanto,
não havia uma história das nações americanas, mas a História da Europa
na · América. A história de seus antigos habitantes, das populações
escravizadast dos homens pobres era estudada na perspectiva dos
conquistadores e dos dominantes.
Era marcante a presença do pensamento francês, mas sua forte
carga de laicização impediu que se caracterizasse como dominante, tanto
nos programas como nos livros didáticos que ensejaram. Era muito grande
o número de escolas católicas, que atendiam a uma clientela especialmente
numerosa. O catolicismo tinha também muita força nos órgãos admi-
nistrativos e burocráticos ligados à educação. Por questões mercado-
lógicas e ideológicas, os livros didáticos assumiam uma explicação
providencialista da história, isto é, o caminhar da humanidade fora traçado

170
por Deus. A civilização era uma construção divina e o progresso do
Estado Moderno era um sinal, resultava da orientação previamente traçada
pelas mãos de Deus. Era isso que explicava, de acordo com os livros
didáticos a tendência da humanidade de progredir espiritualmente na
mesma medida do progresso material. Os autores dos livros didáticos
deixavam clara a importância dos povos "civilizadores" no caminhar da
humanidade em direção ao progresso, realizando uma missão
cristianizadora dos povos "bárbaros".
Os autores dos livros didáticos aceitavam, como todos, a existência
de uma História da Civilização una e geral, e nisso refletiam os próprios
programas, que encaravam a dominação dos povos conquistados como
decorrente de sua inferioridade e atraso cultural, justificando dessa forma
a exploração e o preconceito. A divina providência se manifestaria através
das ações de determinadas personagens, que em certos momentos
guiavam os colonizados na direção da civilização. A civilização era o
elemento chave para que um povo passasse a ter sua própria história.
Assim, a história do Brasil se iniciou quando os ib~ricos se
lançaram ao mar, chegaram às novas ter~as e plantaram as sementes da
civilização cristã. Nesse momento, os nativos passaram a sofrer o processo
histórico, como o elemento passivo, somente um complemento do real
sujeito da história, o conquistador.
O grupo político vencedor mantinha a mesma visão de História que
aquele que havia perdido o poder, demonstrando sua identidade de classe.
A manutenção da mesma classe social (apesar de representada por outro
grupo) permitiu que continuasse prevalecendo a mesma concepção de
História - a que considerava a cidadania como exercício do poder político
e a reservava a um grupo privilegiado de indivíduos. Mantinha-se, pois, a
mesma situação quando da criação dos ginásios estaduais, que tinham
como objetivo a formação das elites condutoras para garantir a "paz
social". As escolas e seus programas estavam sintonizados com "um
modelo para a promoção do desenvolvimento econômico, sem modificação
da ordem social existente" (JAGUARIBE, 1968).
Esta concepção de História dominante na elaboração dos programas
não foi contestada pelos professores, que, no entanto, criticaram com
veemência outros dos seus aspectos:

- a excessiva centralização;
- conteúdo muito extenso para pequeno número de aulas
_semanais;
- justaposição da História da América e do Brasil à História
da Civilização; · ·

171
- dificuldade de apreensão por parte dos alunos de alguns
conceitos e termos expressos nos programas.

O caráter centralizador era acusado de impedir qualquer tipo de


regionalização de ensino e de não deixar margem para a História Regional
ou para heróis que não tivessem significado nacional. Foram excluídos
personagens como Frei Caneca, Bento Gonçalves, líderes de movimentos
regionalistas, de natureza separatista, e valorizados outros, como José
Bonifácio, Feijó, este último considerado "um mantenedor da unidade
brasileira".
A exclusão de heróis regionais e a valorizaçao dos personagens
tidos como representantes da unidade _nacional eram aspectos que se
coadunavam com importante aspecto do projeto político do governo de
30: a centralização do poder e o enfraquecimento das oligarquias estaduais.
O ensino de História se mostrava como um poderoso instrumento, auxiliar
da centralização política.
A centralização dos programas pelo Ministério da Educação era
criticada também pelo que representava de controle das atividades das
escolas e dos professores, pois sua rigidez impedia qualquer possibilidade
de adequação à realidade local, até mesmo quanto ao nível dos alunos ou
aos aspectos administrativos das escolas.
Além disso, · a lista de conteúdos era muita extensa é em todas as
séries. Abarcavam · grandes períodos e listavam numerosíssimos fatos e
personagens, de uma forma extremamente fragmentada. O número de aulas
semanais · era considerado reduzido pelos professores, que reclamavam
também da divisão dos programas em História da Civilização e História do
Brasil e da América, cada uma dessas partes em cada semestre letivo. Mais
ainda, consideravam que a justaposição era um grande erro de método,
dada a impossibilidade de comparação entre fatos e períodos da His~ória.
E, apesar de a programação ser obrigatória, era raro o desenvolvimento
dos tópicos relativos ao Brasil e à América, dada a exigüidade da carga
horária. A maior parte dos alunos das escolas fundamentais terminava o
curso sem ter estudado em qualquer série a História do Brasil, que os
professores (e o próprio governo) afirmavam julgar imprescindível para a
formação do espírito nacional brasileiro.
Em 1936, os membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
manifestaram seu descontentamento com os programas, afirmando que:
"Deve haver uma cadeira especial de História do Brasil para que esta não
continue como um capítulo de sumária ou de somenos importância dos
compêndios de História da Civilização, pois toda aquela relevante disci-
plina foi posta na rabadelha do programa oficial desta".

172 ,
Por outro lado, os programas eram considerados de difícil
apreensão pelos alunos. Num de Compêndios, Jônatas Serrano apontou
àlgumas das dificuldades que, a seu ver, os alunos teriam para desenvolver
a aprendizagem em História:

"Como fazer compreender bem as questões da Pré-História,


círculos culturais, civilizações mais antigas da Mesopotâmia
ou da Ásia Menor, o mundo egeu, os etruscos etc. etc. a
meninos de doze anos mais ou menos, que mal sabem a
própria língua, · não traduzem sequer o francês e ainda
ignoram o que seja evolução, cultura, problemas antro-
pológicos, etc.7 Evidentemente, só mais tarde, ao rever a
matéria no curso suplementar, poderão aprender o alcance
de. certas noções. Já então terão a base · científica
indispensável e conhecimento das línguas vivas e do próprio
latim". (SERRANO, J., 1935).

As preocupações que o texto acima expressa evidenciam a


desconsideração dos programas em relação ao processo de aprendizagem,
pois esperava-se que os alunos adquirissem o conhecimento pronto
produzido pelos meios acadêmicos, sem que antes elaborassem conceitos
fundamentais para a apreensão daquele conhecimento. Porém. não havia
sugestões de como proceder para desenvolver no alunado a tal capacidade
de apreensão, bem como as operações mentais que permitissem a
elaboração de conceitos mais complexos.
Análises mais recentes de pesquisadores sobre a "Escola Nova"
apontam alguns aspectos que mostram uma preocupação na adequaçao
dos educandos ao meio e na formação de indivíduos acomodados à
sociedade, na qual deveriam exercer a cidadania. Tal adequação seria de
interesse das camadas dirigentes, que manteriam o status quo, sem
mudanças estruturais na sociedade e que considerariam os currículos e
programas escolares como um forte instrumento para a . implantação e
disseminação de idéias e valores para sua permanência no poder.
A História, desde que se constituiu como disciplina escolar, tem
sido um instrumento de dominação ideológica, bem como as formas de
organização da instrução pública. Os currículos e programas permitem que
se tenha uma visão privilegiada de como estes instrumentos são
manip~Jados pelo poder, de um modo tão mascarado que dificulta a
própria percepção de tal fato.

173
REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARVALHO, Carlos Delgado de. A.\' ciências sociais na escola secundária. Um


grande problema nacional: estudos sobre o curso secundário. Rio de Janeiro:lrmãos
Pongetti, 1937.
CASTRO, Amélia Domingues de. A História no curso secundário brasileiro. Revista
de Pedagogia. São Paulo: 2(1):57-78.
HOLLANDA, Guy de. Um quarto de século de programas e compêndios de História
para o ensino .\'ecundário. 1931-1956. Rio de Janeiro: INEP/Ministério da Educaçãoe
Cultura, 1957.
IANNI, Otávio. A idéia de Brasil moderno. Resgate. Campinas: UNICAMP, n. l: 19-
38, 1990.
LEÃO, Carneiro. A instrução secundária. Revista Escolar. São Paulo, 3(28), abril, 1927.
NADAI, Elza. A ideologia do progresso e o en.\'ino superior brasileiro. São
Paulo:Loyola, 1988.
SERRANO, Jônatas e VENANCIO F°, Francisco. O cinema educativo. Escola Nova.
São Paulo, 3(3),julho, 1931.

RESUMO ABSTRACT
O artigo' discute os principais aspectos This article discusses the main aspects
dos programas de ensino de história, of history's teaching programs
organizado pelo governo em 1931, organized by the national government
logo depois da reforma educacional de in 1931, immediatly a/ter Francisco
Francisco Campos. O autor também Campos educational reform. The
enfoca a relação entre o Estado e o author also emphasizes the relationship
ensino de história, mostra11do como se between the State and historical
formou uma base ideológica para o teaching showing how it was made to
governo de Getúlio Vargas. be an ideological basis for Getulio
Vargas power.

174

Você também pode gostar