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Miguel Torga Bichos

Índice

Introdução ......................................................................................................................... 3

Cap. I – Modernismo ........................................................................................................ 6


Contextualização ........................................................................................................... 6
Em Portugal .................................................................................................................. 6

Cap. II – Miguel Torga ................................................................................................... 11


1 - Cronologia ............................................................................................................. 11
2 - Vida e Obra............................................................................................................ 13

Cap. III – Bichos ............................................................................................................. 19


1 – A obra ................................................................................................................... 19
2 - Personagens principais da obra: ............................................................................ 21
3 - O Modernismo na obra – características: .............................................................. 21
4 – Nero ...................................................................................................................... 22
5 - Mago ...................................................................................................................... 23
6- Madalena ................................................................................................................ 31
7 - Jesus ....................................................................................................................... 33

Conclusão ....................................................................................................................... 35

Bibliografia ..................................................................................................................... 36
Miguel Torga Bichos

Recomeça... se puderes, sem angústia e sem pressa


e os passos que deres, nesse caminho duro do futuro,
dá-os em liberdade, enquanto não alcances não
descanses, de nenhum fruto queiras só metade.

Miguel Torga
(Fonte: http://pensador.uol.com.br/frases_de_miguel_torga)
Miguel Torga Bichos

Introdução

A vida do ser humano sempre esteve ligada aos animais, quer tenhamos uma visão
religiosa das coisas ou, por outro lado, científica. Assim, do ponto de vista da religião, o
animal foi criado um dia antes do homem (quinto dia) e para servi-lo. (Gênesis 1: 26). Já
a visão científica vai ainda mais longe, pois defende que o homem e o animal
(nomeadamente os primatas) descendem de um mesmo antepassado. Quer optemos por
uma visão, quer por outra, é indesmentível a relação que o Homem sempre teve com os
animais e a importância que estes tiveram no desenvolvimento da nossa espécie.
A ideia principal deste livro centra-se nessa contradição entre a vida e a cultura de
uma sociedade, através da apresentação de animais com sentir humano e vice-versa; uma
verdadeira irmandade entre homens e animais. São catorze contos, onde o mistério da
vida nos aparece em todo o seu esplendor, perfilando bicho, homem e natureza numa
comunhão fraternal, em que todas as peças são necessárias ao puzzle da vida.
Na obra, a característica do existir (diferente do viver), está sempre presente. Os
bichos da obra questionam a sua existência, mesmo que seja apenas no momento da sua
morte. Assim é o Homem… existe, mas será que sabe que também viver? Se uns vivem
e questionam-se sobre o seu existir, outros há que se limitam a existir e, nem na hora da
morte se questionam, ao contrário dos nossos bichos. Mas tudo provém e desemboca na
terra (telurismo1).
Segundo Torga, o Homem deve ser capaz de realizar-se no mundo. Deve unir-se
à terra, ser-lhe fiel, para que a vida tenha sentido e o sagrado se exprima. É
na terra que a vida acontece e é aí que se deve cumprir. É nela que está
a origem da vida. Por isso,a terra surge, em Torga, como um ventre materno, sendo que,
a tarefa do Homem é orientar-se para esse sentido criador, genesíaco.

O telurismo de Torga exprime-se no seu apego à terra, na sua fidelidade ao povo,


na sua consciência de ser português. Mas o poeta não se contenta em elogiar a terra,na
medida em que sente a condição humana cheia de limitações.
Todavia, para o autor da obra em análise, o Homem vive numa sociedade
“civilizada”, mas corrompida por valores do seu tempo, afastado exageradamente das

1
Influência que exerce o solo de uma região sobre o carácter e os costumes dos seus habitantes (Fonte: http://www.infopedia.pt/lingua-
portuguesa/telurismo)
Miguel Torga Bichos

suas origens. Para ele, é fundamental que o Homem regresse a essas origens (à Natureza),
para que possa, deste modo, encontrar um sentido para a sua existência. Se voltar às
origens, o contacto com o outro, com os seres vivos, filhos da mesma Natureza,
“despertará” e “reaprenderá” a usar a sua sensibilidade, harmonizando-a com a razão. Só
assim poderá viver fraternamente e em equilíbrio com todos os seres do universo, o que
lhe permitirá aliviar as adversidades do percurso existencial humano, marcado, não raras
vezes por sentimentos que causam dor.
Mas Bichos é, mais do que isto, é o retrato fiel da vida trasmontana, um viver de
suor e lágrimas, recheado de obstáculos, mas completa de alegria, cujo sofrimento
justifica: a alegria de ser, de viver em comunhão total com a natureza, em fusão
permanente com os elementos.
Miguel Torga fez desta obra um testemunho ímpar da união natural entre os Homens
e os Bichos – a simbiose da vida. No meio dos dois, a terra, o traço que lhes dá vida.
É curioso o título da obra: Bichos. Porquê “bichos” e não “animais”? Bichos são,
possivelmente, os animais humanizados, fraternizados com o homem numa mesma luta
que é a mesma de todos os dias da vida, cantados num poema em prosa que não é de
Torga, mas da terra. E neste conceito de “terra” podemos englobar os homens e os seus
irmãos “bichos” – os três elementos constituem um todo, um cosmos único onde Torga
participa como mensageiro, personagem e intérprete.
A linguagem é simples, cuidada, pelo que se torna num cântico à cultura popular.
Bichos é um livro humilde, límpido, honesto e com sentimentos, quase um grito sôfrego
e profundo da terra que confina os homens, numa fusão entre ambos, como se tudo
despontasse de uma amálgama onde terra, bichos e homens fossem os ingredientes que
estiveram na base da arrumação do universo, das coisas e dos seres.

Por isto, o objectivo do presente trabalho é analisar quatro contos do livro Bichos
(1940), de Miguel Torga (“Nero”, “Mago”, “Madalena” e “Jesus”), de modo a que nos
seja possível identificar a relação Homem- Bicho, a importância destes na vida humana,
bem como permitir uma reflexão sobre a condição humana reflectida por bichos que
vivem connosco todos os dias e que, nós homens e mulheres, nas nossas vidas apressadas,
julgamos não terem sentimentos. O presente trabalho será constituído por três capítulos.
No primeiro capítulo será feita uma breve alusão ao Modernismo, corrente em que Miguel
Torga se insere. No segundo capítulo, para além da cronologia do mesmo autor, será
Miguel Torga Bichos

apresentada a sua vida e obra. E, no último capítulo, irão ser analisados os quatro contos
acima mencionados.
Miguel Torga Bichos

Cap. I – Modernismo

Contextualização

O início do século XX foi um momento de crise


aguda, de dissolução de muitos valores. Os artistas
reagiram ao cepticismo social, marcado por um
laxismo próximo do «laissez-faire, laissez-passer» http://www.google.pt/search?q=modernis
mo&source
através da agressão cultural, pelo sarcasmo, pelo
exercício gratuito das energias individuais, pela sondagem, a um tempo lúcida e inquieta,
das regiões virgens e indefinidas do inconsciente, ou então pela entrega à vertigem das
sensações, à grandeza inumana das máquinas, das técnicas, da vida gregária nas cidades.
No início deste século as minorias criadoras manifestaram-se por impulsos de
ruptura com as diversas ordens vigentes. As forças da aventura romperam as crostas das
camadas conservadoras e tentaram redescobrir o mundo através da redescoberta da
linguagem estética. Na área da poesia recusam-se os temas poéticos já gastos, as
estruturas vigentes da poética ultrapassada. A arte entra numa outra dimensão: os objectos
não estéticos e o dia-a-dia na sua dimensão multiforme entram na arte. Recusa-se o código
linguístico convencional e, sob o signo da invenção, surgem novas linguagens literárias:
desde a desarticulação deliberada até à densamente metafórica, quase inacessível ao
entendimento comum.
É a toda esta recusa, desejo de ruptura e redescoberta do mundo através da
linguagem estética que se chama modernismo ou movimento modernista.

Em Portugal

No início do séc. XX as revistas culturais foram o principal meio de divulgação


das transformações sofridas pela arte. No ano de 1910 surgiu, em Portugal, a revista
mensal A Águia, dirigida por Teixeira Pascoaes2. O objectivo dessa revista era ressuscitar
a Pátria Portuguesa a partir do saudosismo, ou seja, por uma espécie de retomada das
tradições do País. O período em que aquela revista circulou é conhecido também

2
Teixeira de Pascoaes, pseudónimo literário de Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos, (Amarante, 8 de
novembro de 1877 — Gatão, 14 de dezembro de1952) foi um poeta e escritor português, principal representante do
Saudosismo.
Miguel Torga Bichos

como Saudosismo. Por ser um momento de transição, uma vez que em 1915 surge a
revista Orpheu, marco inicial do Modernismo português, esse período também pode ser
classificado como Pré-Modernismo (GUIMARÃES, 1982).
O Modernismo em Portugal é difícil de ser estruturado. Alguns estudiosos
dividem-no em dois, três e até mesmo em quatro momentos. Quanto ao primeiro e
segundo momentos não há divergências entre esses estudiosos, mas as duas outras fases
geram muitas controvérsias. Após muita pesquisa, optou-se em dividir o período
Modernista português em duas partes: Primeiro Momento ou Orphismo e Segundo
Momento ou Presencismo. As duas outras fases são classificadas como Neo-realismo e
Surrealismo. Isto justifica-se porque os escritores da fase Neo-realista repudiam a
literatura psicológica e propõem uma literatura de carácter social, muito próxima à
praticada pelos autores Realistas. Já os escritores da fase Surrealista são influenciados
pelas teorias de Andre Breton3, idealizador do Surrealismo. Devido a todas estas
circunstâncias, o ano de 1940, quando o grupo da Presença se desintegrou, é considerado
o término do período Modernista em Portugal.
O Modernismo em Portugal tem início oficial no ano de 1915, quando um grupo
de escritores e artistas plásticos lança o primeiro número da Orpheu, revista trimestral de
literatura. Esse grupo é composto por Mário de Sá-Carneiro4, Raul Leal5, Luís de
Montalvor6, Almada Negreiros7, o brasileiro Ronald de Carvalho 8e, entre outros, o
fantástico e polémico, Fernando Pessoa 9e seus heterónimos (Álvaro de Campos, Ricardo
Reis, Alberto Caeiro) (GUIMARÃES, 1981).

3
André Breton (Tinchebray (Orne), 19 de fevereiro de 1896 — Paris, 28 de setembro de1966) foi um escritor francês, poeta e
teórico do surrealismo.

4
Mário de Sá-Carneiro (Lisboa, 19 de Maio de 1890 — Paris, 26 de Abril de 1916) foi um poeta, contista e ficcionista português,
um dos grandes expoentes do modernismo em Portugal e um dos mais reputados membros da Geração d’Orpheu.

5
Raul d'Oliveira Sousa Leal (Henoch) (Lisboa, 1 de Setembro de 1886 - 18 de Agosto de 1964 (77 anos), foi
um escritor e poeta português.
6
Poeta, ensaísta e editor português, de nome verdadeiro Luís Filipe de Saldanhada Gama da Silva Ramos, nascido a 31 de jane
iro de 1891, em S. Vicente, CaboVerde, e falecido a 2 de março de 1947, em Lisboa.

7
José Sobral de Almada Negreiros (Trindade, São Tomé e Príncipe, 7 de Abril de1893 — Lisboa, 15 de Junho de 1970) foi
um artista multidisciplinar português que se dedicou fundamentalmente às artes plásticas (desenho, pintura, etc.) e
à escrita(romance, poesia, ensaio, dramaturgia), ocupando uma posição central na primeira geração
de modernistas portugueses

8
Ronald de Carvalho (Rio de Janeiro, 16 de maio de 1893 — Rio de Janeiro, 15 de fevereiro de 1935), foi
um poeta e político brasileiro.
9
Fernando António Nogueira Pessoa (Lisboa, 13 de Junho de 1888 — Lisboa, 30 de Novembro de 1935), mais conhecido
como Fernando Pessoa, foi um poeta, filósofo e escritor português. É considerado um dos maiores poetas da Língua
Portuguesa, e da Literatura Universal, muitas vezes comparado com Luís de Camões.
Miguel Torga Bichos

Segundo alguns autores, Orpheu é um exílio de temperamentos de arte que a


querem como a um segredo ou tormento. A pretensão dos integrantes da Orpheu é formar,
em grupo ou ideia, um número escolhido de revelações em pensamento ou arte, que sobre
este princípio aristocrático tenham em Orfeu o seu ideal esotérico e bem nosso de nos
sentirmos e conhecermos. Esses jovens artistas, também conhecidos com o Orfistas,
foram influenciados pelo Futurismo de Marinetti; pelo Institucionalismo de Henri
Bérgson10, cuja linha de pensamento só admitia o conhecimento natural e espontâneo e
dizia não à ciência e à técnica; e pelos ensinamentos de Martin Heidegger11, que colocava
a existência individual como determinação do próprio indivíduo e não como uma
determinação social.
Os objectivos principais dos orfistas eram:
- Chocar a burguesia com sua obra irreverente (poesias sem metro, exaltando a
modernidade);
- Tirar Portugal de seu descompasso com a vanguarda do resto da Europa (Fonte:
http://www.citi.pt/cultura/temas/frameset_modernismo.html).

Logo no primeiro número, publicado em Abril de 1915, os orfistas conseguiram


criar o ambiente de escândalo desejado, graças a críticas violentas, que podem ser
encontradas nos poemas "Ode triunfal" de Álvaro de Campos (Heterónimo de Fernando
Pessoa) e "Manucure" de Mário de Sá-Carneiro. Esse primeiro número esgotou-se em
apenas três semanas graças a um sucesso "negativo": as pessoas que compravam a revista
ficavam horrorizadas e despejavam sua ira contra os seus colaboradores.
Armando Cortes Rodrigues12, um dos membros da Orpheu, conta que os orfistas eram
constantemente ironizados e chamados de loucos (GUIMARÃES, 1982). O segundo e
último número da revista Orpheu foi lançado em Julho de 1915, com conteúdos bem mais
futuristas. O terceiro número chegou a ser planeado, mas não foi editado por causa do
suicídio de Mário de Sá-Carneiro, responsável pelos custos da revista.
Essa primeira geração Modernista, surgida no meio da Primeira Guerra Mundial,
foi nitidamente influenciada pelos vários manifestos de vanguarda europeus. Esse talvez
seja o motivo principal dos autores desse período apresentarem individualidades muito
fortes e não seguirem um padrão estético linear (GUIMARÃES, 1982). Apesar do

10
Henri Bergson (Paris, 18 de outubro de 1859 — Paris, 4 de janeiro de 1941) foi um filósofo e diplomata francês.
11
Um dos maiores pensadores do séc. XX quer pela recolocação do problema do ser e pela refundação da Ontologia, quer pela
importância que atribui ao conhecimento da tradição filosófica e cultural. Influenciou muitos outros filósofos
12

Poeta e autor dramático português, nasceu a 28 de fevereiro de 1891, em S.Miguel, e morreu a 14 de outubro de 1971, em Po
nta Delgada.
Miguel Torga Bichos

precoce desaparecimento da Orpheu, a revista deixou uma rica herança, uma vez que
surgiram várias outras revistas que, a grosso modo, foram seguidoras do orphismo e que
tiveram duração efémera, ou seja, duraram pouco. Foram elas:
- Centauro (1916);
- Exílio (1916);
- Ícaro (1917);
- Portugal Futurista (1917);
- Etc.
Ainda nesse primeiro momento do Modernismo português surgiram as figuras de
13
Aquilino Ribeiro e Florbela Espanca14. Nomes de destaque na literatura portuguesa,
que não tiveram ligação com nenhum dos momentos modernistas.
O segundo momento Modernista surgiu da herança deixada pelo orphismo. A
revista literária Presença, que teve o primeiro exemplar publicado em 10/03/1927, foi o
meio divulgador das ideias desse grupo, também conhecido como presencismo
(GUIMARÃES,1981).
A revista Presença foi fundada e editada por José Régio e Branquinho da
Fonseca15. Em 1930, quando a revista já estava no número 27, Branquinho da Fonseca,
por considerar haver imposição de limites à liberdade criativa, abandona a direcção da
revista, que fica a cargo de Adolfo Casais Monteiro16. Dentre os seus principais

13
Aquilino Gomes Ribeiro (Sernancelhe, Carregal, 13 de Setembro de 1885 —Lisboa, 27 de Maio de 1963) foi
um escritor português. É considerado por alguns como um dos romancistas mais fecundos da primeira metade do século XX.
14
Florbela Espanca (Vila Viçosa, 8 de Dezembro de 1894 — Matosinhos, 8 de Dezembro de 1930), batizada como Flor Bela
de Alma da Conceição Espanca, foi uma poetisa portuguesa. A sua vida, de apenas trinta e seis anos, foi plena, embora
tumultuosa, inquieta e cheia de sofrimentos íntimos que a autora soube transformar em poesia da mais alta qualidade, carregada
de erotização, feminilidade e panteísmo.

15
António José Branquinho da Fonseca, (Mortágua, 4 de Maio de 1905 – Cascais, 7 de maio de 1974 ) foi um escritor português.
Os seus primeiros textos eram assinados com o pseudónimo António Madeira. Experimentou vários modos e géneros literários,desde
o poema lírico ao romance, passando pela novela, o texto dramático e o poema em prosa, mas, como o próprio dizia, a sua expressão
natural era o conto. Como artista, interessou-se também pela fotografia, o desenho, o cinema e o design gráfico.

16
Adolfo Vítor Casais Monteiro (Porto, 4 de Julho de 1908 - São Paulo, 23 de Julho/24 de Julho de 1972) foi
um poeta, crítico e novelista português.
Miguel Torga Bichos

colaboradores destacam-se as figuras de José Régio17, João Gaspar Simões18, Miguel


Torga, entre outros.
Além de dar continuidade às ideias do orphismo e de eleger os membros desse
período como "mestres", os presencistas pregavam uma literatura mais intimista e
artística. Isso quer dizer que a literatura defendida por esse grupo estava voltada para uma
análise interior e para a introspecção (GUIMARÃES, 1981). Por causa dessas posturas
os presencistas tiveram algumas dissidências e receberam muitas críticas, baseadas nos
exageros do individualismo e do esteticismo. A revista Presença foi, em Portugal, o
principal veículo divulgador das principais obras e escritores europeus da primeira
metade do século. Além disso destaca-se ainda o espírito crítico de seus fundadores e de
alguns de seus colaboradores. Graças a esse espírito, muitos estudiosos consideram o
Presencismo como um movimento mais crítico do que criador.
No ano de 1940, em plena Segunda Guerra Mundial, o grupo presencista encerra
as suas actividades, encerrando também o Modernismo em Portugal.

17
José Régio, pseudónimo de José Maria dos Reis Pereira, (Vila do Conde, 17 de Setembro de 1901 - Vila do Conde, 22 de
Dezembro de 1969) foi um escritor português que viveu grande parte da sua vida na cidade de Portalegre (de 1928 a 1967). Foi
possivelmente o único escritor em língua portuguesa a dominar com igual mestria todos os géneros
literários: poeta, dramaturgo, romancista, novelista, contista, ensaísta,cronista, jornalista, crítico, autor de
diário, memorialista, epistológrafo e historiador da literatura, para além de editor e diretor da influente revista literária Presença,
desenhador, pintor, e grande colecionador de arte sacra e popular.

18
João Gaspar Simões, (Figueira da Foz, 25 de Fevereiro de 1903 - Lisboa, 6 de Janeiro de 1987) foi um
novelista, dramaturgo, biógrafo, historiador da literatura portuguesa, ensaísta, memorialista, crítico literário, editor e
tradutor português.
Miguel Torga Bichos

Cap. II – Miguel Torga

1 - Cronologia

- 1907: Nasce Adolfo Correia da Rocha em S. Martinho de Anta (distrito de Vila


Real.

- 1920: Emigra para o Brasil.

- 1925: Regressa do Brasil.

- 1927: Fundação da Presença em que colabora desde o começo.

- 1928: Ingressa na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra;


Ansiedade, primeiro livro de poesia.

- 1930: Deixa a Presença.

- 1931: Pão Ázimo, primeiro livro em prosa.

- 1933: Formatura em Medicina.

- 1934: A Terceira Voz, prosa; passa a usar o pseudónimo Miguel Torga.

- 1936: O Outro Livro de Job, poesia.

- 1937: A Criação do Mundo – Os dois primeiros dias.

- 1939: Abertura do consultório médico em Coimbra.

- 1940: Os Bichos.

- 1941: Primeiro Volume do Diário; Contos da Montanha, que será reeditado no


Rio de Janeiro; Terra Firme; Mar, primeira obra de teatro.

- 1944: Novos Contos da Montanha; Libertação (poesia).

- 1945: Vindima, o primeiro romance.

- 1947: Sinfonia (teatro).


Miguel Torga Bichos

- 1950: Cântico do Homem (poesia); Portugal.

- 1954: Penas do Purgatório (poesia).

- 1958: Orfeu Rebelde (poesia).

- 1965: Poemas Ibéricos.

- 1981: Último Volume de A Criação do Mundo.

- 1993: Último Volume do Diário (XVI)

- 1995: Morre Adolfo Correia da Rocha.


Miguel Torga Bichos

2 - Vida e Obra
http://www.google.pt/search?q=moderni
smo&source
Ao nascer, em 1907, em São Martinho de
Anta, Vila Real, concelho de Sabrosa, Trás-os-
Montes, Miguel Torga recebeu o nome de Adolfo
Correia Rocha. O nome ainda não era o que viria a
adoptar muitos anos depois e que o autor explica de
uma forma muito particular: Miguel, em homenagem a dois grandes vultos da cultura
ibérica: Miguel de Cervantes19 e Miguel de Unamuno20 “porque Torga é uma planta
transmontana, urze campestre, cor de vinho, com as raízes muito agarradas e duras,
metidas entre as rochas. Assim como eu sou duro e tenho raízes em rochas duras, rígidas,
Miguel Torga é um nome ibérico, característico da nossa península...” (Fonte:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Miguel_Torga). Mais que um prenúncio é todo um programa
(LOPES, 1993). Da insubmissão à própria natureza e, em todos os outros planos, humano,
político, social, que constituirão a sua obra, plena de força, independência e
intransigência. Contra todas as barreiras, vertentes aparentemente contraditórias mas que
se complementam, expõe a sua verdade sem quaisquer restrições na apreciação de
pessoas, acontecimentos e factos; não receia atacar o estabelecido ao mesmo tempo que
não põe de lado conceitos conservadores em que acredita; altera as suas próprias posições
desde que a "sua" verdade o exija. Filho de gente do campo, não mais se afasta das
origens, da família, do meio rural e da natureza que o circunda. Mesmo quando não
referidos, não são esquecidos e estão sempre presentes o Pai, a Mãe, o professor primário

19
Miguel de Cervantes Saavedra (Alcalá de Henares, 29 de Setembro de 1547- Madrid, 22 de abril de 1616)
foi romancista, dramaturgo e poeta castelhano. A sua obra-prima, Dom Quixote, muitas vezes considerado o primeiro romance
moderno, é um clássico da literatura ocidental e é regularmente considerado um dos melhores romances já escritos.
20
Miguel de Unamuno y Jugo (Bilbau, 29 de Setembro de 1864 – 31 de dezembro de 1936) foi
um escritor, poeta e filósofo espanhol.
Miguel Torga Bichos

Sr. Botelho, as fragas, as serranias, a magreza da terra, o suor para dela arrancar o pão, os
próprios monumentos megalíticos em que a região é pródiga.
Nas suas veias corre uma herança traduzida num sentimento profundo de ligação
à terra, não apenas pela sua região de origem – Trás-os-Montes – que é, até hoje,
essencialmente rural, ainda que bastante árida e, por isso, pouco acolhedora, mas por todo
o Portugal e num plano biográfico, esse sentimento abrange mesmo toda a Península
Ibérica, pois a região Norte, em que se inclui Trás-os-Montes, geograficamente, faz
fronteira com a Espanha e, para o escritor, estas realidades não podem ser dissociadas em
função de seu denominador comum, que é a secura da terra (LOPES, 1993).
A par do amor pela terra, um outro filão lhe cabe por herança: a fibra para enfrentar
as adversidades. A vida pobre e humilde da primeira infância fez com que Torga se
tornasse mais um entre os muitos emigrantes que ainda hoje deixam a região de Trás-os-
Montes. Assim, dos 13 aos 18 anos, o escritor viveu no Brasil, onde trabalhou na fazenda
de um tio, em Minas Gerais, na dura “capinagem” do café. O mesmo tio apercebe-se das
suas capacidades intelectuais e paga-lhe o ingresso e os estudos no Liceu de Leopoldina.
Regressa a Portugal em 1925 e entra na Faculdade de Medicina da Universidade de
Coimbra. Todavia, nem mesmo o sucesso na vida académica é suficiente para atenuar as
marcas dolorosas que o autor irá carregar pela vida fora e que são bem notórias na sua
obra.

“Comecei mal e tarde. Enquanto outros partiram do


saber, eu parti do sofrimento. Nenhuma porta se me abriu sem
eu a arrombar. Lutei contra a pobreza, lutei contra a ignorância,
lutei contra a idade, lutei contra os homens, lutei contra Deus,
lutei contra mim. Uma infância rolada, de bola, à mercê dos
pontapés do mundo, uma juventude esfalfada, de estafeta
atrasada na maratona da cultura... Resta-me apenas uma
consolação: embora derrotado, consegui chegar ao fim da
aventura na pureza com que a iniciei.”
DIÁRIO X

Participa de forma moderada na boémia coimbrã e ainda estudante começa a sua


produção literária, quando estabelece contacto com o grupo da revista Presença, na qual
veio a colaborar. Conclui a sua formação em 1933, com 24 anos. Especializou-se em
Otorrinolaringologia, mas começou por exercer clínica geral na sua aldeia. Contudo, a
Miguel Torga Bichos

experiência foi negativa, o que o levou até Leiria, de que gostava, por causa das
tipografias, optou por voltar a Coimbra.
Ainda no final da década de 20, o autor enfrenta problemas políticos sérios, com
a instauração, em Portugal, do Estado Novo, que assinala o início de uma nova era,
marcada pela actuação de um aparelho de censura, cujos instrumentos se centravam nos
jornais, nas rádios e num órgão específico destinado a exercer uma fiscalização rigorosa
na circulação de livros. Para além destes instrumentos havia ainda, de 1933 a 1945, a
Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, substituída posteriormente pela PIDE, temida
por usar métodos de tortura semelhantes aos da polícia nazi (a Gestapo). Miguel Torga
foi uma das vítimas da PIDE: o seu livro O Quarto Dia da Criação do Mundo (1939), foi
apreendido por, supostamente, conter cenas obscenas e fazer propaganda comunista
(LOPES 1993). A apreensão do livro foi acompanhada pela detenção do seu autor, que
fica preso em Leiria (onde exercia medicina), a 30 de Novembro de 1939. Posteriormente,
é transferido para o Aljube, em Lisboa, onde fica encarcerado até 2 de Fevereiro de 1940.
Nessa época, Torga responde a vários processos criminais e várias obras suas são
apreendidas. O passaporte é-lhe negado várias vezes.
É naquela atmosfera de opressão que aparece em 1927 (10 de Março), a revista
literária Presença (já acima referida), fundada, dirigida e editada, em Coimbra, por José
Régio, João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca, e com uma filosofia que defende
que a produção literária deve conter a marca da singularidade do artista; nela deve estar
insuflada a própria vida do autor (SARAIVA, 1987).
Quando a Presença começa a impôr-se no meio literário português, já conta com
a colaboração de Miguel Torga, que ainda continua a assinar Adolfo Correia Rocha. No
entanto, a sua colaboração na revista é relativamente curta, tendo-se iniciado no número
19 (1929) e durado até ao número 26 (1930). Nesse período, Torga publica os livros de
versos Ansiedade (1928), que não chegou a pôr à venda, e Rampa (1930), que juntamente
com Pão Ázimo são os seus primeiros livros em prosa.
Depois de se desligar da Presença, Adolfo Correia Rocha lança, com Branquinho
da Fonseca, a revista Sinal, da qual saiu apenas um número. Em 1934, publica o livro de
poemas A Terceira Voz, já como Miguel Torga. Dois anos depois funda, com Albano
Nogueira, a revista Manifesto, com apenas cinco números publicados (o nº 5 desta revista,
o último, foi publicado em Julho de 1938).
A partir de 1936 volta à poesia com O Outro Livro de Job, reeditado em 1944 e
que terá, até 1998, mais três reedições.
Miguel Torga Bichos

A sua produção começa a ter visibilidade.


Na poesia continua com Lamentação (1943) e Libertação (1944). Seguem-
se Odes (1946), Nihil Sibi (1948). Em 1950 o Cântico do Homem. Pouco depois,
(1952) Alguns Poemas Ibéricos. Em 1954, Penas do Purgatório e quatro anos mais
tarde Orfeu Rebelde. De poesia, ainda Câmara Ardente (1962) e Poemas Ibéricos, qu
estão traduzidos para espanhol e francês.
A sua produção poética não fica por aqui. Em 1941 começa a publicação
do Diário que, ao longo de dezasseis volumes, inclui inúmeros poemas e prosa variada.
Nesses textos encontramos uma apreciação do autor sobre os acontecimentos mais
variados, introspecção intimista, poesia, crónica e análise política, social, crítica de
costumes, apontamentos de paisagem, entre outros (MARTINHO, 2004).
O teatro merece também a sua atenção e o seu esforço criador. Publica O Paraíso,
Sinfonia, Mar e Terra Firme (drama do viver rural e a espera enorme pelos que se
ausentaram - noivas, família).
Em prosa surge em 1938 A Criação do Mundo - Os Dois Primeiros Dias que
continuará com o Terceiro Dia da Criação do Mundo até a O Sexto Dia da Criação do
Mundo (1981) que, num sentido autobiográfico, se complementa com o Diário.
Não esquece o romance e Vindima constituirá o principal título deste tipo literário.
A qualidade do autor neste género não merece qualquer contestação, mas acaba por ser
menos valorizado que a restante produção.
No conto, o autor revela qualidades que para muitos atribuem a este género o
expoente máxima da sua obra. Contos da Montanha é talvez aquele que melhor revela
aquelas qualidades.
Bichos surge em 1940 e é reeditado pouco tempo depois, acabando por ser
traduzido para várias línguas. Nele o leitor pode encontrar um conjunto variado de
animais que “pensam como gente” ou, do outro lado, seres humanos vestidos de animais,
ou ainda, uma irmandade de animais e homens. Tudo isto naquilo que mais se assemelha
a uma argamassa de vida. O cão Nero, o galo Tenório, o burro Morgado, o Ladino, o
Ramiro, sem esquecer a Madalena, caminhando na contra mão da contradição entre
cultura e vida.
As suas obras integram várias antologias ao lado dos grandes nomes.
Os seus livros são traduzidos em várias línguas: espanhol, francês, inglês, alemão,
chinês, japonês, croata, romeno, norueguês, sueco, holandês, búlgaro. Por vezes
precedidas de prefácio seu.
Miguel Torga Bichos

Casa-se com Andrée Crabbé em 1940, uma estudante belga que, enquanto aluna
de Estudos Portugueses em Bruxelas, viera a Portugal fazer um curso de verão
na Universidade de Coimbra, à qual confessa em A Criação do Mundo, V: “…vou tentar
ser bom marido, cumpridor. Mas quero que saibas, enquanto é tempo, que em todas as
circunstâncias te troco por um verso”. O casal teve uma filha, Clara Rocha, nascida a 3
de Outubro de 1955, e divorciada de Vasco Graça Moura.
Individualista na medida em que advoga para o artista plena liberdade de criação,
Miguel Torga empenha-se profundamente na valorização da vida e do homem (LOPES,
1993). Ele não se subtrai à vida e às razões do homem (MARTINHO, 2004). Acaba
sozinho para estar mais longe e mais perto de tudo e de todos; isola-se na sua obra, porque
a sua necessidade de dizer-se a si mesmo não pode ser limitada por imposições de espaço.
A sua rebeldia manifesta-se contra tudo o que possa limitar a sua liberdade de acção, isto
é, ele enfrenta qualquer forma de arbitrariedade e dogmatismo. Miguel Torga encarna em
si a inquietação diante de todos os fenómenos da vida e do mundo (LOPES, 1993). Por
isto, durante toda a sua vida mantém um difícil relacionamento com as pessoas,
principalmente ao nível artístico e literário. Com personalidades ou pessoas com
visibilidade pública esse relacionamento é ainda mais complicado. Contudo, a sua relação
para com os humildes é de uma grande afectuosidade. Como prova da sua humildade e
do carinho que nutre com essas “gentes humildes”, Torga dá consultas médicas gratuitas
e perde-se em prosas com os doentes.
Não dá autógrafos, nem tão pouco dedica os seus livros, para que o “leitor esteja
inteiramente livre para julgar o texto”. Também recusa prefaciar obras de outros colegas
do mundo da escrita, salvo raras excepções. Critica sem qualquer pudor quem quer que
seja, mesmo autores consagrados e até aqueles que acabaram divinizados. Acusa Camões
de fazer os versos a martelo e considera que o título da obra Os Lusíadas é a perfeita
caracterização da nossa tacanhez e os versos mais ilegíveis do que os da Divina Comédia
(SARAIVA, 1987). Não obstante, não deixa de exprimir enorme admiração pelo vate e
pela sua obra. Aqueles que se acham pensadores aponta a ausência da mais pequena
dúvida. Demonstra perfeitamente a desconfiança que nutre para com os intelectuais e a
pouca paciência para com eles nas suas próprias palavras quando afirma:

“converso até onde me vejo obrigado, (...) largo-o


logo que posso e regresso a um convívio menos tenso e mais
Miguel Torga Bichos

fecundo, (...) sem esperança nos letrados, (...) junto dos


analfabetos encontro ainda o riso, a indignação, o espanto...”.
Fonte: http://www.citador.pt/frases/citacoes/a/miguel-torga

Trás-os-Montes e o seu Reino Maravilhoso é um dos seus grandes amores. Vê-o


por toda a parte e enaltece-o como terra de Deus e dos deuses. Todavia, esta adoração
conduz, por vezes, a alguns excessos. No vizinho Minho, mostra-se enfastiado com a
presença permanente do verde. Desanimado com as paisagens põe-se “à procura de um
Minho com menos milho, menos erva, menos videiras de enforcado”. Encontra-o onde a
relva dá lugar à terra nua, parda: no seu Trás-os-Montes natal. Nesta terra de Deus vê o
que os outros não conseguem ver: um paraíso onde se estende a mão e se desentranha
batatas, azeite, figos, nozes e um sem número de outras riquezas e mimos “que nenhuma
imaginação descreve”.
Também a pacata cidade de Évora e os monumentos que a povoam o atraem. Ela
abrevia a diversidade dos povos que por lá passaram (MARTINHO, 2004).
Coimbra (terra onde estudou e praticou medicina) suscita-lhe sentimentos
opostos: paixão e timidez, a humildade e a falta dela, a valorização do que está próximo,
mas também a desvalorização. Uma terra de estranhos sentimentos!
Nutre um grande amor por Portugal, a sua Pátria. Cada monumento, cada pedra,
cada planície, o mar, a serra – desde que portugueses – são fervorosamente enaltecidos.
Em 1960, Miguel Torga é proposto para Prémio Nobel da Literatura, mas, talvez
devido a interferências do poder de então, não alcança tal galardão. Jorge Amado21
considera-o acima de qualquer prémio. Uns anos mais tarde, volta a ser considerado para
o mesmo prémio, no entanto e uma vez mais, não lhe é atribuído.
Avesso a galardões, recusa, em 1954, o prémio "Almeida Garrett". Entretanto,
são-lhe atribuídos vários outros: em 1976, o "Prémio Internacional de Poesia" de Knokke-
Heist e, alguns anos mais tarde, o "Prémio Montaigne", da Fundação Alemã F.V.S.; em
1989, o "Prémio Camões"; o "Prémio Personalidade do Ano" em 1991 e, no ano seguinte,
o prémio "Vida Literária" da Associação Portuguesa de Escritores, na sua primeira
atribuição. Para além destes, havia já recebido em 1969 o prémio literário "Diário de
Notícias" e, em 1980, ex-aecquo com Carlos Drummond de Andrade, o "Prémio Morgado
de Mateus".

21
Jorge Leal Amado de Faria (Itabuna, 10 de agosto de 1912 — Salvador, 6 de agosto de 2001) foi um dos mais famosos e
traduzidos escritores brasileiros de todos os tempos.
Miguel Torga Bichos

Miguel Torga publica o seu último trabalho em 1993 e, em Janeiro de 1995, morre
vítima de cancro. A sua campa rasa em São Martinho de Anta tem uma torga plantada a
seu lado, em honra ao poeta.

Cap. III – Bichos


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1 – A obra

Bichos é uma obra constituída por


catorze contos. Em dez deles, as personagens
(que são também o título de cada um dos
contos) são realmente bichos.
Encontramos figura como a de Bambo, o sapo, que acaba por morrer com uma
estaca espetada nas costas pelo filho do novo caseiro. Bambo conhecia, como poucos, o
quintal do velho tio Arruda que o cumprimentava pelas manhãs ou nos encontros
frutíferos que ocorriam durante a noite. Morgado, o burro, era o macho alegre e diligente
de um almocreve que, durante anos a fio, cumpriu as suas tarefas sem reclamar, pedindo
apenas em troca uma manta no fim do dia para o proteger do frio e uma manjedoura cheia
de bom milho. Só que aquele dia fatídico começara mal; o dono acordara de “mau modo”
(TORGA, 2005), o que lhe provocou uma certa apreensão, principalmente quando lhe foi
anunciado o percurso de sete léguas de serra. A verdade é que a noite chegou como
sempre e Morgado não voltou a ver a luz do dia: o dono alegre, bonacheirão, numa hora
de aflição com os lobos, para se salvar, entregou a vida do pobre burro, sem qualquer pejo
e a lamentar as dezassete libras que havia dado por ele na feira. Miura, o toiro, “rei da
campina” (TORGA, 2005), teve uma morte lenta, resultante duma luta desleal, cegado
pela nuvem vermelha agitada pelo toureiro, até ao bálsamo da entrega final ao gume da
lâmina afiada. Nero, o “cão que se respeitava, que tinha dignidade” (TORGA, 2005),
configura a morte, sublimemente descrita pelo narrador: “quando o cheiro da última
Miguel Torga Bichos

perdiz se esvaiu dentro de si, (...) quando a imagem do filho se lhe varreu do juízo, fechou
duma vez os olhos e morreu” (TORGA, 2005). Mago, o felino “domesticado”, vítima de
humilhações dos seus pares: ironias sobre as namoradas, a comida, a falta de virilidade.
Ainda se arrepia com as lembranças da juventude, sempre pelos telhados fora, os ciúmes,
os gritos de amor, mas a verdade é que o seu corpo acostumara-se à boa vida e, sempre
que tentava regressar aos velhos tempos de glória, só passava por vergonhas, o que o
levou a desistir e a entregar-se aos braços balofos de sua dona. Cega-Rega (é o único
animal que representa o sexo feminino), a cigarra que emouquece os ouvidos dos
camponeses com o seu cântico, sinónimo da sua alegria por ter ultrapassado um longo
caminho (embrião, larva e crisálida) e de finalmente ter asas e voz e sobre quem a velha
formiga da fábula repete a previsão: “A alegria passa-lhe... É deixar vir o inverno...”
(TORGA, 2005). Mas eis que chega o Poeta, isto é, “um irmão que sabia também que
cantar era acreditar na vida e vencer a morte” (TORGA, 2005). No reino das aves
encontramos Tenório, o galo, que previu o seu fim, quando ouviu a patroa a chamar-lhe
galo velho, assim que o seu filho – jovem galo – começou a levantar a sua voz nas manhãs
claras e a ser mais expedito nas suas obrigações para com as frangas. Acabou por ir para
à panela, como é normal nos animais da sua espécie. Temos também Ladino, um pardal
manhoso, que preferia a protecção do ninho às vicissitudes do ar. Alegre e perspicaz,
aprende com a vida que é obrigado a viver. Depois de velho, ainda havia quem lhe
perguntasse: “quando é esse funeral, ti Ladino?” (TORGA, 2005). Ao que ele retorquia,
sem vergonha: “só quando acabasse o milho em Trás-os-Montes” (TORGA, 2005).
Farrusco, melro jovial, acalentava a moça casadoira que sofria com os agoiros do cuco de
muitos anos de vida solteira. E, finalmente, Vicente, o corvo negro, símbolo das
antinomias, que configura o ser rebelde e que vence Deus com “aquela vontade inabalável
de ser livre” (TORGA, 2005), elevando a sua “total autonomia da criatura em relação ao
criador” (TORGA, 2005), perante a perplexidade dos outros animais da Arca.
Nos outros quatro contos, podemos encontrar, igualmente, personagens-título:
dois homens, uma mulher e um menino (Ramiro, o Senhor Nicolau, Madalena e Jesus).
Os três primeiros assemelham-se a bichos: Ramiro, dono de uma alma que “era muda
como um túmulo” (TORGA, 2005) e que, violentamente, de forma quase animalesca,
mata Ruela, por este ter sacrificado a sua cordeira. O Sr. Nicolau, entomologista
incompreendido, é um mórbido coleccionador de insectos. Madalena, por seu lado, apesar
de ser mulher, no momento decisivo de sua vida, age de forma insensível. Por último, no
conto “Jesus”, o protagonista, um menino doce, parece contrapor-se aos demais, pois quer
Miguel Torga Bichos

a sua figura, quer as suas acções invocam o olhar, o gesto e a experiência de uma criança
“divinizada”, o que parece querer indicar um resgate da inocência humana.
Assim, foram escolhidos quatro contos da obra Bichos para análise no presente
trabalho: “Nero”, “Mago”, “Madalena” e “Jesus”. Os contos “Nero”, “Madalena” e
“Jesus” foram analisados de um modo mais geral e superficial, e “Mago” foi alvo de uma
análise mais profunda e exaustiva. A escolha destes quatro contos e o tipo de análise são
explicados pelos temas que lhes são subjacentes e que, de algum modo marcaram o autor
deste trabalho.

2 - Personagens principais da obra:

Bichos: Nero, Mago, Miura, Cega-Rega, Bambo, Farrusco, Tenório, Ladino, Morgado e
Vicente.

Humanos: Jesus, Madalena, Ramiro e Senhor Nicolau.

3 - O Modernismo na obra – características:

- Lirismo;
- Linguagem coloquial;
- Regionalismo;
- Sem enfeites ou rebuscamentos na escrita;
- Simplicidade; e
- Consciência nacional.
Miguel Torga Bichos

4 – Nero

Muitas pessoas experienciam a mesma http://www.google.pt/search?q=modernismo


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situação do cão Nero. Nero é alguém que já
foi importante, foi um cão amado, capaz,
senhor do seu nome, todavia deixa a pergunta:
até que ponto a família acompanha aquela que
é o declínio e enfraquecimento natural do ser? A infância é a fase da vida em que todas
as atenções estão voltadas para o ser frágil que todo o ser vivo experimenta, e todos fazem
questão de demonstrar tal apreço. Neste conto encontramos expressão dessa
afectuosidade logo no seu início: “Com dois meses apenas, fez então aquela viagem
longa, angustiosa, nos braços duros dum portador. Mas à chegada teve logo o amigo
acolhimento da patroa nova. Festas no lombo, leite, sopas de café” (TORGA, 2005).
Mas a vida vai passando e chegada a juventude é tempo de responsabilidade,
sobretudo no seio familiar e aprender a assumir determinadas obrigações: “Com eles
compartilhara aqueles longos oito anos de existência. Com eles passara invernos, outonos
e primaveras, numa paz de família unida” (TORGA, 2005). Assim é enquanto se é jovem,
forte e produtivo.
Só que a vida não espera e eis que, quase sem se dar conta, a velhice chega. Triste
fase esta, durante a qual e até ao seu desgostoso fim, muitos se vêem esquecidos a um
canto da casa ou em lares, e lá sofrem o resto de uma vida que julgaram impossível de ser
olvidada, sem família que lhes garanta o digno amparo desta idade: “Assim, acabava de
velhice, podre por dentro, a meter fastio a toda gente” (TORGA, 2005).
É um triste fim o do cão Nero, que retrata na perfeição o epílogo de muitas pessoas
idosas, vistas na maior parte das vezes como um peso para a família, sendo morte daquelas
um alívio para os que cá ficam: “Nada mais lhe restava sobre a terra senão morrer calmo
e digno, como outros haviam feito a seu lado” (TORGA, 2005).
Miguel Torga Bichos

Contudo, na sátira que a vida é, os que procedem de tal modo esquecem-se que a
velhice é parte das linhas que definem o texto da nossa vida. E, para os que sobrevivem
às páginas que a antecedem, ela chega de forma desdenhosa para todos. É o seu epílogo.
Deste modo, Torga leva o leitor a reflectir sobre a sua condição humana e também
de cidadão, enquanto indivíduo de uma comunidade que é (ou deveria ser) responsável
pelos seus velhos, fazendo-o perceber que naquilo que é definido como o ciclo da vida, a
espécie humana não se diferencia dos “bichos”.

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5 - Mago &source

O título deste conto, à


semelhança do conto anterior, refere-se
ao nome de um animal. Nele é
apresentada a história de duas personagens (um ser humano e um animal
antropomorfizado, ou seja, com pensamentos, sentimentos e acções, próprios dos
humanos) que vivem num espaço citadino. O homem é representado pela figura da velha
solteirona Dona Maria da Glória Saneia e o animal doméstico é o gato Mago, protagonista
do conto. O foco da narrativa incide, acima de tudo, sobre o gato.
Através de um narrador omnisciente, que conhece os meandros internos do
protagonista, e pelo recurso do discurso indirecto livre, podemos acompanhar os
movimentos de consciência do felino, os seus desejos, as incertezas e inseguranças que o
preenchem e perceber que a relação que mantém com a sua dona não é uma relação
harmoniosa nem tão pouco equilibrada (antes pelo contrário). O mesmo narrador enfatiza
a violência da domesticação numa convivência como a que experimenta Mago e Dona
Saneia. E porquê? Presume-se que, para suprir a sua carência, a velha submete o pobre
felino às regras e normas próprias do universo humano, o que contribui para que, cativado
pelo conforto castrador da vida doméstica, o gato passe a vivenciar o drama da dilaceração
interna (REIS, 2005).
Assim, e tendo em conta todos os 14 contos de Bichos que salientam a união
fraterna entre todos os seres do universo, como forma de suavizar o trajecto austero e
existencial da vida humana, marcada pela angústia da certeza que há um fim, percebemos
que a velha Saneia é o símbolo de um modelo negativo de existência e de comportamento,
Miguel Torga Bichos

uma vez que, enquanto dona, não fomenta nem permite uma relação harmoniosa com o
gato. No conto, tal condição é perceptível nos momentos em que o desejo de liberdade do
gato é derrotado pelo conforto da casa da Dona Saneia ou pela própria brandura
“persuasiva” da voz da dona (ou até do seu colo). Para além de tudo isto, a velha recorre
a outros métodos para reter Mago sob seu controle, e são exemplo disso mesmo o facto
de ter-lhe comprado um fio de ouro para o pescoço (JÚDICE, 1997). Este cuidado
transparece logo no início do conto, quando o gato demonstra preocupação em não deixar
a sua dona perceber a sua escapadela rumo à liberdade da noite:

“É certo que a deixara primeiro adormecer, e só então,


brandamente, deslizara dos seus braços para o tapete e do tapete
para a rua, através do postigo da cozinha. Uma questão de
delicadeza, apenas. Porque, afinal, não havia vantagem
nenhuma em fazer as coisas à bruta e ofender quem só lhe queria
bem... Que diabo, sempre era a senhora Dona Maria Saneia que
até um fio de oiro lhe comprara para o pescoço! Que,
considerando bem, por essas e outras é que chegara àquela linda
situação...”
(Bichos, p. 12)

A verbalização dos sentimentos do gato em relação à sua dona tem uma pitada de
ironia, mas ao mesmo tempo revela uma certa inconsistência dos bons sentimentos do
animal e do oportunismo que rege a sua vida doméstica. Por exemplo, é perfeitamente
possível percebermos uma espécie de incompatibilidade entre a “delicadeza”
demonstrada por Mago ao não querer acordar Dona Saneia e o facto de não ver
“vantagem” nenhuma em ofendê-la. Entre a grata afeição e o pragmatismo da
preocupação há uma grande distância, e esse pensamento do felino parece deixar entrever
não só a dissimulação de suas atitudes para com a dona, mas também a hipocrisia que
comanda as suas atitudes no quotidiano da vida doméstica (JÚDICE, 1997). Não obstante,
parece podermos ouvir, por trás das reflexões do felino, a voz do autor, voz esta que
parece actuar como uma espécie de consciência, que detecta o conflito do protagonista,
dividido entre o desejo da liberdade e os riscos inerentes e o conforto da acomodação
alienante da casa da dona (LOPES, 1993).
A última frase deste primeiro excerto (“Que, considerando bem, por essas e outras
é que chegara àquela linda situação...”) demonstra a dificuldade do protagonista assumir
Miguel Torga Bichos

a sua história e a sua vida, bem como a fragilidade da sua vontade. Ao longo de todo o
conto percebemos que o rumo do seu destino depende, principalmente, da velha Saneia,
e que, antes da sua vida doméstica, esse rumo pertencia à mãe biológica, a quem sempre
causou preocupação e chegou, de certa forma, a matar de desgosto por causa da vida
leviana, mulherenga e inconsequente que levava:

- Matas-te, filho, arruínas-te... Palavras sensatas da


mãe.
- Muda de vida, homem! Essa excomungada leva-te à
sepultura.
Mas quê! O vício pode muito...
Até que a mãe morreu de velhice e desgosto, a Perricha
desapareceu das redondezas, e ele foi cair por acaso no quintal
de Dona Saneia.
(Bichos, p. 14)

A presença destas duas referências femininas representa uma linha que separa
duas fases distintas na vida de Mago (REIS, 2005). A dependência em relação à figura
materna existe num tempo que é anterior à queda – por acaso – na casa de Saneia e marca
a juventude do protagonista, colocando em evidência os traços mais importantes dessa
etapa da vida: a liberdade, a imponderabilidade das atitudes (namorava com muitas gatas
ao mesmo tempo, era impulsivo e de temperamento explosivo, por exemplo), a
inconsequência e a desmedida, com todos os excessos próprios da imaturidade. Na casa
de Dona Saneia, a vida é, porém, diferente: a mãe já está morta e os tempos da juventude
acabaram. Esta é uma fase da vida de Mago mais propícia à acomodação. Resumindo,
vemos, ao logo de toda a narrativa, o gato apresenta dois padrões de comportamento, que
não são, de todo, complementares, mas a antítese um do outro, característica esta que já
é perceptível no seu próprio nome: Mago.
Torga não escolhe os nomes das personagens por acaso e isso evidencia-se nos 14
contos de Bichos (LOPES, 1993).
No conto do nosso gato, encontramos o protagonista Mago e a personagem
“senhora Dona Maria da Glória Saneia”. Relativamente ao nome desta figura feminina é
evidente a sua associação quer com a figura da mãe da Deus (“Maria” da Glória), quer
com a figura da mulher adorada, a dona medieval (e, nesta acepção, fica também claro a
manipulação da Senhora, na medida em que a vassalagem de Mago é apenas por
Miguel Torga Bichos

conveniência ou dissimulação). O outro nome, aquele pelo qual a personagem é chamada


a maior parte das vezes – Saneia – transmite uma ideia de suavidade com o seu “regaço
macio”, “as carícias de algodão em rama no cachaço da dona, “as almofadas”, “os braços
balofos de Dona Saneia” (LOPES, 1993).
Quanto ao nome do felino, há que considerar alguns aspectos. Em primeiro lugar,
importa realçar que o protagonista é um gato e, como é sabido, este animal caracteriza-se
pela sua independência e pela pertinácia; coabita com os seres humanos, sem, no entanto,
fazer concessões às suas prerrogativas de animal livre. Em segundo lugar, um outro
atributo que marca este animal é a prudência, perceptível, por exemplo, no modo
cauteloso e vagaroso com que se aproxima da sua presa.
Se os atributos acima são inerentes à sua espécie, outros há que o individualizam
por serem parte constituinte do seu nome, fundamentais na sua identidade. O seu nome é
Mago e os atributos de um “mago” são aqui encontrados na sua versão paródica, uma vez
que nos colocam perante o jogo “felino” da ocultação e revelação, da dissimulação e
ambivalência da personagem, quer ao nível da práxis, quer ao nível do discurso, instância
em que recebe a contribuição do narrador (REIS, 2005). Estes traços coincidem na
perfeição com o comportamento que gato demonstra: se por um lado, submete-se a Dona
Saneia, obedecendo-lhe, por outro, foge sorrateiramente para o mundo da liberdade
quando a noite chega. Todavia, não é só à sua dona que Mago engana, mas também a si
próprio, uma vez que vive à procura de justificações para não romper as amarras que o
prendem ao falso conforto do universo doméstico (REIS, 2005).
Podemos ainda considerar Mago como uma personagem no limiar, com a real
possibilidade de manter-se presa à rota de vida prescrita por Dona Saneia, mas também
de libertar-se rumo aos riscos inerentes à vida independente. A vida de Mago parece
passar por um processo de “involução”, durante o qual a matéria anula o espírito e o
pragmatismo é a mola propulsora do seu agir. Tudo isto conduz a uma perda da magia, a
indecisão, a falta de destreza e a desalento da personagem, o que justifica o tom
ironicamente triste da narrativa (LOPES, 1993).
O conto apresenta várias passagens que permitem identificar as possíveis
metamorfoses do gato. Por exemplo: o postigo da cozinha, a soleira da porta, o quintal, o
muro, a janela, o abismo, os telhados. Estes espaços estabelecem, de forma simbólica, os
limites que antecedem as grandes mudanças, que, neste contexto, são de carácter
descendente e não ascendente. Vejamos:
Miguel Torga Bichos

- O “postigo da cozinha” simboliza um espaço de abertura, através do qual o felino


pode ter acesso à liberdade;
- O “muro do quintal”, no final do conto, marca, toponimicamente, o seu fracasso,
o derradeiro confronto com a sua consciência; neste sentido, o muro é percepcionado
como um obstáculo intransponível que reflecte a incapacidade de decisão e de fazer
escolhas – “ficar em cima do muro” – como revela o excerto abaixo transcrito:

“A alguns metros apenas do jardim da casa, cuidou que


tornava a desfalecer. E só então é que reparou: deixava um resto
de sangue por onde passava...
Fez das tripas coração, e lá conseguiu equilibrar-se e
chegar ao pequeno muro que vedava o paraíso da sua perdição.
Saltava? Não saltava? Que infâmia regressar aos mimos de Dona
Saneia! Que nojo! Que ordinarice!”
(Bichos, pp.16 e 17)

Neste conto, o espaço físico tem um papel muito relevante. É nele que se
projectam todos os conflitos de Mago, assim como a sua maneira de ser nas diferentes
fases da sua vida, o que nos permite captar o seu processo de emancipação (LOPES,
1993). Assim, é possível identificar, sobretudo, ambientes, uma vez que irradiam a
subjectividade e fugacidade das personagens. Por exemplo, alguns episódios da vida do
nosso gato mostram-nos o interior da casa de D. Saneia, nomeadamente, a sala, ambiente
este que reflecte a letargia do protagonista:

“Aquele mormaço da sala dava cabo dele. Punha-o mole, sem


acção...” (p. 12);

“Condenado para sempre ao bafio da maldita sala de visitas da


D. Saneia! [...] E tudo obrado coirão da velha...”(p. 16).

No entanto, outros episódios, particularmente aquele que constitui o auge deste


conto, passam-se em ambientes exteriores, que evocam a liberdade da vida autêntica ou,
pelo menos, a tentativa de alcançá-la. Há o “clube da gataria do bairro”, num “telhado
corrido, quase plano, amplo, alto (...)”(TORGA, 2005), ambiente este no qual Mago
projecta as suas saudosas lembranças do passado, quando se julgava livre.
Miguel Torga Bichos

Ainda relativamente ao ambiente, nota-se na narrativa uma presença forte de luz


que ora facilita, ora dificulta a visão da personagem (JÚDICE, 1997). Podemos constatar
tal importância da luz, logo no início do conto, quando Mago sai de casa para a rua, altura
em que “a noite era uma mistura de brisa e claridade”, e ele “encheu o peito de ar ou de
luar” - o que o narrador traduz como “encher os pulmões de oxigênio e de liberdade.”
(TORGA, 2005). Também à medida que a acção se desenrola, que o tempo passa e que a
degradação de Mago se acentua (especialmente depois de derrotado por outros felinos),
o ambiente exterior parece solidário com o seu estado interior:

“Fugiu desvairado pelos telhados fora. A lua, cada vez


mais branca lá no alto, olhava-o com desdém. A cidade,
adormecida, parecia um cemitério sem fim. Da torre duma igreja
saía um pio agoirento”.
( Bichos p. 16)

Para além de tudo isto, quando o nosso gato volta para casa da velha revela uma
falta de lucidez interior que se traduz pela dificuldade em ver direito, pela indisposição e
pela necessidade de estar próximo do calor da chaminé (símbolo do espaço urbano):

“Parou. Lambeu a pata doente e sacudiu-se, num


arrepio. Uma lassidão profunda começava a invadi-lo. Maldita
Dona Sância!...Se nunca tivesse conhecido tal sujeita...
Olha, olha, a enevoar-se-lhe a vista!... queriam ver que
ia desmaiar?!
Encostou-se a uma chaminé, e ficou algum tempo sem dar
acordo de si, a arfar penosamente. Até que uma onda de energia
o trouxe de novo ao mundo. Arregalou os olhos. Estava melhor,
felizmente! Já enxergava claro outra vez.”
(Bichos, p.34)

Um outro detalhe significativo e relacionado com o estado de espírito da


personagem e à sua sensação de aprisionamento é o calor, o sufoco, que parecem conotar
o entorpecimento da consciência (JÚDICE, 1997). Esta sensação de sufoco é também
experimentada pelo felino na casa de Dona Saneia. Os mimos da dona seduzem-no,
todavia não são suficientes para impedi-lo de sentir-se aprisionado. O próprio fio de oiro
que usa ao pescoço é um símbolo da sua perda de liberdade, o aburguesamento e a
Miguel Torga Bichos

feminização. Os presentes e mimos da sua dona não lhe corromperam apenas o gosto,
mas a própria alma que ficou aprisionada na materialidade do pão, nos afagos e no
conforto.
Quanto ao próprio tempo, também ele é de transição (JÚDICE, 1997). A acção do
conto, que se inicia in media res, estende-se da noite até ao amanhecer, o que é bastante
sugestivo, uma vez que transmite uma ideia de transição da inconsciência (simbolizada
pela noite ou pelo caos) à iluminação da consciência (evocada pelo amanhecer). Quando
entra em casa, após ter sido derrotado pelos outros gatos, reconhece que ninguém o
obrigara a voltar, mas que voltara por conta própria:

“De resto, que esforço concreto fizera para se libertar?


Nenhum. Ainda não havia uma dúzia de horas, ouvira a voz do
Lambão como um eco da própria consciência... E, afinal, ali
estava outra vez! E viera de livre vontade... Ninguém o
obrigara... Já roído de remorsos? Ora, ora! Outro fosse ele, nem
aquela casa encarava mais. E voltara! Sim, voltara
miseravelmente... E à procura de quê? Da paz podre dum
conforto castrador.... Que abjeção! Que náusea!”
(Bichos, p. 17)

Trata-se, portanto, de um tempo no “limiar”, quando acontecem (ou deveriam


acontecer) as metamorfoses. A noite, por exemplo, é o tempo em que os grandes mistérios
acontecem. No conto, Mago ambiciona a liberdade e pretende produzir em si próprio uma
metamorfose, e é à noite que ele trabalha nesse sentido. Tal metamorfose causa a
emancipação da consciência de Mago, que começa a assumir a responsabilidade pelo seu
próprio destino. Sucede, contudo, que a transformação operada em Mago não é completa,
uma vez que ele, apesar de reconhecer-se como responsável pelo seu destino, não
consegue passar da consciência à acção. Por outras palavras, Mago admite que ninguém
o forçara a voltar para a casa da velha, no entanto, sente-se incapaz de, na prática, alterar
o rumo dos acontecimentos (JÚDICE, 1997).
As reflexões de Mago, as incertezas, as inseguranças, as inquietudes em relação
ao seu modo de vida representam um contacto com a “vida autêntica”, mostram-no a sair
da sua condição de manipulado, mas revelam-se insuficientes, pois acaba sempre por sê-
lo, muito por culpa do conforto e “aconhegos” da vida doméstica. Deste modo, aquele
contacto com a sua vida interior permite-lhe estabelecer uma comparação com a “vida
Miguel Torga Bichos

inautêntica” que leva na casa de Dona Saneia e que já vivera, antes de se tornar
“propriedade” da velha, agindo de forma mecânica e vivendo num mundo totalmente
artificial como é o da casa dela (LOPES, 1993). Nesse sentido, podemos identificar o
mundo ao qual o gato está aprisionado, sendo a casa de Dona Maria da Glória Saneia o
exemplo da sociedade industrial, pautada pelas relações de dominação e de exploração
(como as que se estabelecem entre Mago e sua dona). Neste contexto, o próprio jardim
da casa é um exemplo de “natureza domesticada”.
Em contrapartida, os elementos naturais representativos da liberdade imperam
quando o gato sai para a rua. Entre os exemplos mais significativos deste contexto de
liberdade, está o telhado, acima do qual a lua pode ser vista com toda sua claridade,
reproduzindo a pacífica harmonia que reina no local. Desta harmonia partilha o grupo de
felinos ao qual Mago pertencera. Todos eles mantêm as características e a vitalidade que
lhes foram dadas pela “mãe natureza”.
Ao sair sorrateiramente pelo postigo da cozinha, a intenção de Mago era a de
Regressar à vida livre, abandonar os mimos da velha solteirona, o que, por si só,
implicaria a transformação do felino, que passaria de um estado de acomodação a um
estado de lucidez de consciência. No entanto, tal não sucede, não há a tão ambicionada
metamorfose. Há apenas uma tentativa fracassada e o melancólico retorno à acomodação
e à alienação, “aos braços balofos de Dona Sância” acaba por acontecer.
No excerto abaixo transcrito, podemos ver um dos principais momentos de
consciência reflexiva, logo após a derrota sofrida contra Zimbro:

“Fugiu desvairado pelos telhados fora. A lua, cada vez


mais branca lá no alto, olhava-o com desdém. A cidade,
adormecida, parecia um cemitério sem fim. Da torre duma igreja
saía um pio agoirento.
Jogara naquele lance o resto de dignidade. E perdera.
Dali por diante, seria apenas uma humilhação sem esperança.
Ele, que tivera nas mãos possantes e nervosas o corpo fino e
submisso da Boneca, ele, o escolhido da Moira-Negra, ele, o
companheiro de noitadas do Hilário, ele, Mago, relegado
definitivamente para o mundo das pantufas e dos tapetes!
Proibido para o resto da existência de pensar sequer numa
baforada da húmida frescura que agora lhe atravessava as ventas
e lhe deixava cantarinhas no bigode…”
(Bichos, p. 16)
Miguel Torga Bichos

Ainda dentro daquilo que é a consciência reflexiva, podemos reparar no conto que
Mago peca pela inconstância amorosa (em relação às namoradas), além de apresentar
outras falhas morais (JÚDICE, 1997). Esta pode ter sido a razão de não ser capaz de
assumir uma atitude ética em relação à condução do seu destino.
Este conto pode ser classificado como “alegórico”, pois representa, de modo
figurativo, determinados aspectos da condição humana: entre Dona Maria da Glória
Saneia e o gato Mago existe uma relação semelhante à que se estabelece entre o homem
e o mundo no sistema capitalista (simbolizado, neste conto, pela figura feminina da velha
e pelas suas formas de sedução).
Por fim, a ideia de Mago como escamoteador e ilusionista serve bem ao nosso
protagonista, mas não no sentido de quem promove a ilusão, mas sim no de quem vive
a ilusão, apesar de, em alguns momentos, demonstrar que tem percepção da realidade e
que deseja correr riscos e é justamente à conta desta consciência e desejo que o felino se
dilacera.

6- Madalena

Madalena é um bicho humanizado que se “entrega às falinhas


doces de Armindo” (TORGA, 2005). Num minuto de fraqueza, apaixona-
se. Paixão forte, autêntica e avassaladora. Inicialmente, vê em Armindo
o paraíso, confia nele. O pecado levou-a a ser enganada. Perdeu a
dignidade moral e a virgindade. Esperava casar-
se com ele e construir uma família, mas “Lá http://www.google.pt/search?q=modernismo
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casamento, isso não era com ele.” (TORGA,
2005).
O filho não é bendito em seu ventre, também ela não é Maria. O prazer leva
Madalena a rolar-se na palha aos “berros”; sente, posteriormente, a solidão da gravidez,
dorme em pranto, sofre as dores do parto, que são piores que facadas, sofrimento esse
comparado com o sofrimento de Jesus na cruz: “Madalena um bicho crucificado”
(TORGA, 2005).
O filho morre no parto, assim como morre o relacionamento entre os dois. Trata-
se de uma espécie de metáfora. A morte do filho limpa a sua honra, afastando-a da
Miguel Torga Bichos

condenação social. Madalena é, nessa perspectiva, vista como suplemento; é útil até certo
ponto, depois, é inútil, representando os desencantos que caracterizam o viver.
Tenta manter-se pura daí em diante, orgulhosa, embora podre perante o olhar da sociedade
(LOPES, 1993). Desejava o reconhecimento social, o casamento, mas, mesmo
contrariada, é determinada.
O sol escurece, o segredo é sepultado.
Madalena mata Armindo, o filho, e mata a si mesma. Sobrevive apenas à
sociedade. A metáfora que representa melhor esse facto é a Serra Negra: “Na Serra Negra,
quem se quiser refrescar, tem de beber o suor.” (TORGA, 2005).
Esconde a gravidez, vence o corpo, sofre o abandono castrador que esteriliza a sua
alma. Vence as dificuldades, não importando os meios, apenas os fins. O encontro com
Eros, seu verdadeiro amor (Armindo), não acontece (LOPES, 1993).
“Madalena” é um conto em que Torga faz um teste da realidade, levando a
personagem a viver a fantasia e a mostrar as consequências das coisas erradas e
pecaminosas da vida.
O nome Madalena, dado à personagem-título, não é por acaso e remete à figura
de Madalena na Bíblia. Trata-se de uma mulher que foi acusada de adultério e julgada
pela sociedade. Não é por acaso que “Jesus” aparece nesta obra, pois Jesus, segundo a
Bíblia, veio para remissão dos pecados e defende Maria Madalena, quando diz: “Quem
nunca pecou que atire a primeira pedra.”
Madalena, na Bíblia, foi a escolhida por Deus para anunciar a ressurreição de
Jesus. Era uma prostituta, mas depois foi reconhecida como uma santa. No nosso conto,
Madalena rompe, então, com o perfil de mulher que a sociedade esperava e submete-se a
uma experiência amorosa, libertadora, que lhe permite desvincular-se dos padrões
impostos pela sociedade e pelo catolicismo. Aventurou-se, correu esse risco. A aventura
é, nessa perspectiva, um lugar de formação da identidade de um ser ou nação (LOPES,
1993).
Na personalidade da Madalena bíblica, percebem-se, explicitamente, as oposições
de base entre sensualidade e erotismo, morte e amor, o que leva a que a condição feminina
seja marginal em relação ao homem, já que Madalena se encontra só.
A solidão é consequência do seu pecado e gera a ausência do seu amado. A dor é causada
pelo olhar solar e de luz do amado e a mulher passa a ser vista como o princípio do prazer,
representada metaforicamente por Torga com a ausência de luz, a escuridão. Em
contraponto, o homem representa a luz, o princípio da realidade e do mundo prático.
Miguel Torga Bichos

A Madalena do conto passa a ser a personagem que representa o sofrer em


oposição à dor. Trata-se de um ser feminino, o único das personagens de Bichos, que não
finge, mas demonstra o seu sofrimento real.
É uma mulher pagã, que fugiu ao catolicismo, por resolver entregar-se ao seu
amado antes do casamento, o que a faz ser condenada pela sociedade como prostituta.
Mas Madalena entregou-se apenas a um homem.
Muitas mulheres são como Madalena, têm desejos e são independentes, mas
“preferem morrer, a ficar nas bocas do mundo”(TORGA, 2005), a serem vistas como
prostitutas. Mas essas são as “Madalenas” da sociedade real, mães solteiras que, perante
o nascimento de um filho, padecem sob as injustiças da alma humana. Por mais que os
conceitos se actualizem e a mulher ganhe independência, muitas delas continuam a passar
pela mesma situação de Madalena e a serem condenadas.
Um outro aspecto que não se pode deixar de notar é a forma como Torga deixa
explícito no conto a igualdade entre homem e bicho: “E ela, a tola, comera, bebera e, por
fim, rolara na palha aos berros” (TORGA, 2005), este é o modo como o autor descreve o
momento do acto sexual entre Madalena e Armindo, como se ela fosse um bicho que
“berra”. Já o filho é visto como um animal que dá coices, aquando do seu nascimento
(SARAIVA, 1987).
No conto, Madalena aparece, assim, como um ser humano, animalizado,
configurando-se, no decorrer da narrativa, como uma mulher que representa as acções
humanas: “Madalena não passava de uma pobre mulher, com o maldito do filho dentro
da barriga aos coices.” (TORGA, 2005). É um ser ficcional, criado para representar o real
e as relações humanas, o que constitui a verossimilhança na narrativa analisada.

7 - Jesus

Ao lermos o conto, a primeira questão que se nos


depara é: porquê o nome “Jesus” para este conto? À qual
se pode juntar uma outra: qual a razão deste conto se
situar, justamente, a meio do livro?
Torga, subtilmente, faz através deste conto um
paralelismo com A Bíblia Sagrada. As personagens Pai,

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Miguel Torga Bichos

Mãe e Filho, parecem simbolizar, entre outras coisas, a Santíssima Trindade (note-se que
os próprios nomes são iniciados por letra maiúscula). A cordeira presa na árvore também
se pode associar ao Cordeiro de Deus, seu enviado para remissão dos pecados humanos.
As três paragens que o menino faz para descansar, enquanto sobe à árvore,
representam as três quedas de Jesus Cristo no seu caminho para o calvário, e o clímax da
sua crucificação pode ser associado ao momento descrito no seguinte excerto:

“O cedro era enorme, muito grosso e muito alto. E o


corpito, colado a ele, trepava devagar, metade de cada vez.
Firmava primeiro os braços; e só então as pernas avançavam até
onde podiam. Aí paravam, fincadas na casca rija”.
(Bichos, p. 40).
Toda esta aventura vivida pelo menino causou nos seus pais um enorme pavor, a
horrível imagem de vê-lo, com seu corpinho frágil, a cair do alto “no chão duro e mortal
de Nazaré” (TORGA, 2005). Quando o autor especifica o espaço físico “Nazaré”, temos
a confirmação definitiva de que se trata, realmente, da história de Jesus Cristo, pois foi
neste local que Ele sofreu, padeceu e foi cruxificado.
Contudo, Torga, no seu conto, optou por um desfecho feliz, pois o seu Jesus não
Morre, antes pelo contrário, vence todas as dificuldades, consegue chegar ao topo e pegar
o único ovo existente no ninho. O autor narra este momento, com uma simplicidade e
magia que nos enternece, quando o menino com o calor do seu beijo inocente faz com
que o ovo se quebre e nasça um frágil e depenado pintassilgo.
E, quando o menino acaba de contar sua história aos pais, estes proferem palavras
enigmáticas que ele não consegue entender. Mas, para o nosso herói, isso não é
importante, o que de facto conta e o deixa feliz é imagem que ficou na sua mente do
nascimento da pequenina ave. Assim… adormece “nos braços virgens da sua mãe”.
Esta narrativa, apesar de ser de uma enorme simplicidade, tem o poder de fomentar
momentos de grande profundeza, durante os quais a fé e o amor se exteriorizam, levando-
nos a nós, simples leitores, a reflectir sobre o poder do amor, capaz de despertar a vida
com tanta perfeição e doçura (LOPES, 1993).
O conto “Jesus” está no centro do livro, ou seja, precisamente no meio dos homens
e dos bichos, tal como o próprio Jesus Cristo está no centro da sociedade. A personagem
do conto é ainda uma criança, símbolo de esperança e de um futuro melhor, tendo em
conta as dificuldades das relações humanas. O ser humano acaba por ser, não raras vezes,
pior que os bichos, nomeadamente quando não consegue controlar seus impulsos, e por
Miguel Torga Bichos

isso fere, maltrata e mata os seus semelhantes e, à conta disso, o mundo tem vivido
verdadeiros momentos de caos, que causam sofrimento a todos: o próprio Homem, o
bicho e até a Natureza. Esta é a razão, pela qual o conto “Jesus” está colocado no centro
do livro; para o autor é Ele o equilíbrio e a salvação do mundo, assim como no conto, em
que “o ninho tinha só um ovo”, símbolo de vida e esperança.

Conclusão
Miguel Torga Bichos

Após a análise da obra Bichos, de Miguel Torga, podemos concluir que a salvação
do Homem e da humanidade reside num regresso às origens e ao seio da Natureza que
dignifica tudo o que vive na sua intimidade.
Também é possível concluir que a fronteira que concede ao homem o título de
homem e ao animal o título de animal está cada vez mais difícil de ser percebida. Em
alguns contos (que, apesar de simbólicos, retratam a realidade) percebeu-se, de forma
clara, que essa fronteira já não existe. Torga usou a figura animal para representar o
homem e as suas atitudes; mostrou comportamentos e outras acções humanas que pouco
ou nada se distinguem dos comportamentos e acções dos animais. O Homem, cada vez
mais individualista, acaba por colocar-se abaixo dos próprios bichos, muito por culpa da
sua arrogância, gula e soberba, que acabam por levá-lo à solidão. Já no que respeita aos
animais, o que se nota é que são seres livres e que vivem de acordo como foram
concebidos pela Natureza, com excepção daqueles que foram maltratados e modificados
pelo Homem.
Assim, reportando-se por meio da sociedade transmontana, o autor parece
denunciar a cegueira humana, o sofrimento humano e certos valores impostos por uma
sociedade que aprisiona os que nela vivem, tornando a sua existência angustiante e pouco
sensível em relação ao seu semelhante. Por isto, Miguel Torga, solidariamente, aponta
um caminho para suavizar as dificuldades que surgem no caminho da existência humana,
marcado pela angústia, solidão e, acima de tudo, pela certeza do nosso fim.
Bichos é um retrato fiel do aspecto telúrico de Miguel Torga. Neste livro de
contos, o autor apresenta esse pequeno mundo em que homens e bichos vivem em
comunhão com a Natureza, dividindo com ela as suas alegrias e tristezas e considera que
é nela que o Homem encontra a sua essência e felicidade, devendo fugir à sociedade que
o oprime e oprime o que de belo há no sentimento humano, onde todos vivem alienados,
trabalhando o dia inteiro e descansando à noite, numa rotina que os faz esquecer que
existem neste mundo outras coisas importantes para serem vividas.

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