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Revista Hermenéutica PDF
Revista Hermenéutica PDF
1
FLUSSER, D. Christianity. In: COHEN, A. A.; MENDES-FLOHR, P. (Eds.). 20th
Century Jewish Religious Thought: Original Essays on Critical Concepts, Movements,
and Beliefs. Philadelphia, PA: The Jewish Publication Society, 2009. p. 66
2
IBIDEM, p. 66.
O diálogo entre as duas tradições é marcado por encontros e desencontros.
Desencontros trágicos, num grau menor como no desentendimento
da religião bíblica e de sua mensagem ou num grau maior como nas
ideologias antissemitas que resultaram na marginalização e perseguição
religiosa da Idade Média ou até nos horrores desumanos do holocausto.
No entanto, deixando de lado as páginas sombrias da história, pode-
se concordar com Skarsaune quando deixa explícito no título de seu livro
que o cristianismo nasceu “à sombra do templo”3. Por isso, o entendimento
adequado da assim chamada tradição judaico-cristã, ou o que Skarsaune
chama da “redescoberta das raízes judaicas da fé cristã”4 é fundamental para
a prática de uma exegese que busca levar a sério a mensagem bíblica bem
como a prática de um diálogo frutífero entre as duas tradições.
Por isso, é com satisfação que apresentamos e oferecemos ao público
acadêmico mais um volume da Revista Hermenêutica, cujo número traz
interessantes contribuições nesse diálogo com a cultura e as escrituras judaicas.
Assim, nossa intenção é que através dos artigos aqui apresentados o estudo
das Escrituras seja enriquecido.
Para tanto, além de uma breve resenha do livro “Science, religion and
authority: lesson from the Galileo affair” de Richard J. Blackwell, o presente
volume traz cinco interessantes temáticas que na sua maioria cooperam
diretamente para uma adequada hermenêutica bíblica através do diálogo com
a cultura judaica antiga e contemporânea.
O primeiro artigo “A imortalidade da alma e a integralidade humana
nos escritos de Ellen White” está diretamente ligado à concepção hebraica de
entender a natureza humana. A noção bíblica do homem (humanidade) como
um todo indivisível é uma marca muito distinta do pensamento judeu que
desde seus primórdios contrasta diametralmente com o pensamento dualista
grego. Na presente pesquisa, os autores intentam analisar o pensamento
monista judaico-cristão e as infiltrações do pensamento dual platônico na
teologia cristã e, a partir daí, compreender o pensamento de White em trechos
selecionados de sua obra, buscando motivações e referenciais. As implicações
disso perpassam não apenas a obra da escritora, mas também a compreensão
das Escrituras como um todo.
O segundo artigo “A evidência linguística e extra-linguística para
a tradução de arsenokoitai”, embora não diretamente relacionado com
o mundo judaico, não pode ser dissociado do mesmo já que o termo
3
SKARSAUNE, Oskar; MENDES, Antivan Guimaraes. A sombra do Templo: as influências
do judaismo no cristianismo primitivo. São Paulo: Vida, 2004.
4
IBIDEM, p.460.
em questão vem da pena de Paulo “...circuncidado ao oitavo dia, da linhagem
de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus; quanto à lei, fariseu”.
(Fl 3:5 ARA). No presente artigo, o autor visa esclarecer o termo arsenokoitai
que, essencialmente paulino, ocorre em 1 Co 6:9 e 1 Ti 1:9-10. O autor
examina o peso da evidência linguística (morfologia e semântica) e literária
(contexto histórico, crítica genética, gênero e contexto vital) para a tradução
mais apropriada do vocábulo em perspectiva.
Por sua vez, em “Verdade, mentiras e ironias: uma breve análise de 2Re
22”, os autores revisitam o enigmático personagem conhecido na narrativa
bíblica como o “espírito mentiroso” da parte de Yahweh. Os autores exploram
a perícope no contexto de uma cena judicial israelita do período da monarquia
dividida, levando em conta a linguagem irônica da passagem. Tal recurso é
amplamente utilizado na literatura bíblico- judaica como dispositivo literário.
Assim, como se verá, o intérprete estará muito mais preparado para abordar
essa singular narrativa veterotestamentária quando os contextos jurídico e
literário judaicos são levados em conta.
No quarto artigo, “O casamento judeu: rituais, crenças e significados”,
os autores examinam essa milenar instituição judaica. Nele é demonstrada
a necessidade de maior aprofundamento acerca das tradições ligadas ao
casamento judeu em seus rituais, crenças e significados. Além de proporcionar
insights interessantes sobre a relação conjugal como idealizada por Deus nas
Escrituras, o artigo também poderá contribuir para uma melhor compreensão
do contexto bíblico familiar tão impregnado em muitos textos da Bíblia
Hebraica e do Novo Testamento.
No último artigo, “Gauchet e o messianismo”, analisa-se a tese de
Marcel Gaucht de que Jesus foi um “messias ao revés”, que abarcava tanto
a exclusividade de Israel conforme expressa na aliança e na universalidade
de Yahweh enquanto criador e regente das nações. Ademais, busca-se ainda
o significado do messianismo para os judeus em comparação com “o rei
sagrado” dos povos vizinhos bem como do messianismo de Jesus para os
judeus, através da literatura judaica pós-cristianismo.
Assim, sinceramente esperamos que o presente número da Revista
Hermenêutica porporcione uma experiência mais edificante no estudo da
Palavra de Deus. Além disso, desejamos estimular o estudo da Bíblia a partir
de seu próprio milieu, a saber, a cultura, história e geografia do povo judeu
como importantes chaves hermenêuticas para a interpretação das Escrituras.
De fato, entender o judaísmo também significa entender melhor nossa própria
cultura ocidental, visto que poucas culturas exerceram tão profunda influência
sobre a política, economia, literatura e arte como aquela do povo judeu.
Isso não apenas nos chama a uma atitude de respeito, mas a uma
disposição de diálogo aberto onde ambos os lados, judaísmo e cristianismo,
podem sair ganhando. Por isso, andar pelas terras de Israel, mesmo que
deslizando pelas páginas dos livros, sempre será recompensador para o ávido
estudante das Escrituras oriundas da tradição judaico-cristã.
Wilhelm Wachholz1
Fábio Augusto Darius2
RESUMO
A integralidade humana – corpo, alma e espírito – como elementos intrínsecos e
absolutamente indissociáveis é mote que perfaz a totalidade da prolífica obra de Ellen
White, concebida ao longo de mais de setenta anos entre o fim da primeira metade
do século XIX e o início do século XX, sob o advento do progresso de sua nação
estadunidense. Teleológica e assistemática, sua obra abordou temas aparentemente
tão díspares como teologia geral, escatologia, estilo de vida, saúde, história e educação,
sempre visando à redenção humana, cujo processo será finalizado com o aparecimento
literal de Cristo, ressuscitador dos corpos. Os escritos whiteanos, monistas portanto, se
opõem diametralmente ao sistema dual platônico, legando aos adventistas do sétimo
dia de cuja denominação ela é cofundadora – uma posição minoritária entre os cristãos
contemporâneos. O presente artigo intenta analisar o pensamento monista judaico-
cristão e as infiltrações do pensamento dual platônico na teologia cristã e, a partir daí,
compreender o pensamento de White em trechos selecionados de sua obra, buscando
motivações e referenciais.
PALAVRAS-CHAVE: Integralidade Humana. Mortalidade da Alma. Teologia Adventista.
ABSTRACT
Human integrality - body, soul and spirit - as intrinsic elements is the motto that supports
White’s entire line of work, a concept developed for over seventy years between the 19th
century and the early 20th century, under the advent of progress of her nation, the United
States. Teleological and unsystematic, her work tackled themes seemingly disparate, such
as general theology, eschatology, lifestyle, health, history and education, always aiming
human redemption, whose process will be complete upon the literal appearance of
Christ, resurrector of bodies. In White’s texts, monism opposes the dual Platonic system,
bequeathing to the Seventh-Day Adventists – whose order she is a co-founder – a minority
position among contemporary Christians. This article intends to examine the monistic
Judeo-Christian thought process and the infiltrations of the dual Platonic thought process
in Christian theology and, from there, understand the reasoning behind White’s selected
snippets, seeking their motivations and references.
KEYWORDS: Human Integrality. Mortality of the Soul. Adventist Theology.
1
Doutor em Teologia pela Escola Superior de Teologia - EST. Professor na área de História da
Igreja nas Faculdades EST e pesquisador com apoio da CAPES. E-mail: <wwachholz@est.edu.br>
2
Doutorando em Teologia pela Escola Superior de Teologia - EST. Atua como Historiador pela
Universidade Regional de Blumenau - FURB e pesquisador com apoio da CAPES, sobre a teleologia da
obra dialética da escritora estadunidense Ellen White. E-mail: <fabiodarius@aol.com>.
12 | WILHELM WACHHOLZ / FÁBIO AUGUSTO DARIUS
3
Religião originária da Pérsia, fundada por Mani, na primeira parte do século III, caracterizava
a realidade humana a partir do espiritual/luminoso e da matéria/físico/tenebroso. Ante a esta situação,
a salvação consiste em separar os dois elementos. GONZALEZ, Justo L. E até aos Confins da Terra:
uma história ilustrada do cristianismo; a era dos gigantes. São Paulo: Vida Nova, 1980. p. 165.
4
Nome que caracteriza diferentes escolas de pensamento que surgiram nos primeiros séculos
do cristianismo, cujo sistema se caracterizava pelo dualismo entre o mundo do espírito e o mundo
material, sendo que a salvação significaria a libertação do espírito de sua dimensão corpórea e material.
HÄGGLUNG, Bengt. História da Teologia. 5. ed. Porto Alegre: Concórdia, 1995. p. 27.
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SOBRE A INTEGRALIDADE HUMANA E A MORTALIDADE DA ALMA A PARTIR DOS ESCRITOS... | 13
pecado marcaria para sempre a natureza humana de tal forma que, com o
batismo a culpa fica removida, mas a natureza pecadora da pessoa permanece
(PESSANHA, 1996, p. 20-21; HÄGGLUNG, 1995, p. 114).
A natureza pecadora do ser humano não lhe permite cooperar em sua
própria salvação. Contra Pelágio, para quem o ser humano tem liberdade
para escolher entre o bem o e o mal, para quem o pecado não é defeito da
natureza, mas somente da vontade, que pode ser dominada por escolha em
fazer o bem, Agostinho defendia a salvação como ação de fora, ou seja, obra
absoluta de Deus. Para enfatizar a salvação como obra absoluta de Deus,
Agostinho defendeu a predestinação, ou seja, a salvação não depende da
vontade e cooperação humana, mas da vontade e decreto de Deus. As pessoas
predestinadas por Deus para a salvação recebem a infusio caritatis (infusão de
amor) que transforma da vontade da pessoa, ou seja, restaura a vontade de
Deus na pessoa por meio de Jesus Cristo (HÄGGLUNG, 1995, p. 112-117;
PESSANHA, 1996, p. 12).
Knight (2008, p. 352) apresenta que, para Ellen White, coração, alma,
carne, espírito, conforme o pensamento judaico-cristão não indicam partes,
mas o todo humano. Para dizê-lo de forma mais coloquial, cada um destes
conceitos podem ser comparados a janelas de uma casa. As janelas são
diferentes, mas permitem, cada qual, olhar para dentro de um todo, a casa, de
ângulos diferentes. O todo, contudo, fica preservado.
Wolff (2007, p. 30-31) se vale do conceito de Landsberger, a saber,
“estereometria da expressão ideativa”, para explicar o uso e compreensão dos
órgãos humanos. Estes, quando citados, podem facilmente ser substituídos
por pronomes (por exemplo: “A sabedoria entrará no teu coração - ... entrará
em ti – Pv. 2.10). Além disso, os órgãos são citados em suas funções, contudo,
esta função do órgão não tem fim em si mesma, mas função para todo o ser
humano. A partir disso, Wolff defende que o pensamento hebraico é sintético,
ou seja, que os órgãos não são independentes, mas “funcionam” e dizem
respeito ao todo. Disso conclui Wolff que o pensamento hebraico é sintético-
estereométrico.
A partir da verificação sintético-esteriométrica do pensamento hebraico,
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SOBRE A INTEGRALIDADE HUMANA E A MORTALIDADE DA ALMA A PARTIR DOS ESCRITOS... | 17
6
“A orientação teológica do adventismo tem mais a ver com aquilo que os historiadores
eclesiásticos chamam de a Reforma Radical ou os anabatistas”. KNIGHT, George R. Em Busca
de identidade: o desenvolvimento das doutrinas adventistas do sétimo dia. Tatuí: Casa Publicadora
Brasileira, 2005, p. 29:
7
De acordo com o autor, essas visões, que também acometiam outras mulheres, eram
“normalmente criticadas”.
| REVISTA HERMENÊUTICA, CACHOEIRA-BA, VOL. 12, N. 2, P. 11-24 |
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8
“A mente não pode pensar com clareza e ser vigorosa no agir, quando as faculdades físicas
sofrem em resultado de fraqueza ou doença. O coração é impressionado por meio da mente”. WHITE,
Ellen. Counsels to Parents, Teachers, and Students. Mountain View, CA: Pacific Press Publishing
Association, 1943, p. 177.
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Para o adventista do sétimo dia, “na qualidade de reflexo do caráter de Deus, os Dez
Mandamentos são de natureza moral, espiritual, abrangente e contém princípios universais”. Igreja
Adventista do Sétimo Dia. Nisto Cremos: 27 ensinos bíblicos dos adventistas do sétimo dia. Tatuí:
Casa Publicadora Brasileira, 2003, p.311.
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22 | WILHELM WACHHOLZ / FÁBIO AUGUSTO DARIUS
REFERÊNCIAS
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COMBLIN, José. Antropologia cristã. Petrópolis; Vozes: 1985.
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DEDEREN, Raoul (Ed.) Tratado de teologia adventista do sétimo dia.
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DUSSEL, Enrique. El Dualismo em la Antropología de la Cristandad:
desde el origen del Cristianismo hasta antes de la conquista de América.
Buenos Aires: Guadalupe, 1974.
Milton Torres1
RESUMO
O termo arsenokoitai foi provavelmente cunhado pelo apóstolo Paulo. Por essa razão, sua
tradução em 1 Co 6:9 e 1 Ti 1:9-10, suas únicas ocorrências no Novo Testamento, têm
enfrentado certas dificuldades. Quatro contextos principais têm sido propostos para o
significado de arsenokoitai no corpus paulino: exploração sexual (cafetinagem/prostituição
cultual), pederastia, sexo não consensual entre homens (estupro) ou sexo consensual entre
homens (homossexualismo). O presente artigo examina o peso da evidência linguística
(morfologia e semântica) e literária (contexto histórico, crítica genética, gênero e contexto
vital) para a tradução do termo arsenokoitai.
PALAVRAS-CHAVE: Arsenokoitai. Tradução. Novo Testamento. Homossexualismo.
ABSTRACT
The word arsenokoitai was probably created by the apostle Paul. For that reason, its
translation in 1 Co 6:9 and 1 Ti 1:9-10 – the only places where it occurs in the New
Testament – has become problematic. Four main contexts have been proposed to explain
the meaning of arsenokoitai in the Pauline corpus: sexual exploitation (pimping/religious
prostitution), pederasty, non consensual sex between men (male rape) or consensual sex
between men (homosexuality). This paper examines the weight of the linguistic evidence
(morphology and semantics) as well as of the literary evidence (background, genetic
criticism, genre criticism and Sitz im Leben) for the translation of arsenokoitai.
KEYWORDS: Arsenokoitai. Translation. New Testament. Homosexuality.
arsenokoitai” (1 Co 6:9). “Sabendo isto, que a lei não é feita para o justo, mas
para os injustos e obstinados, para os ímpios e pecadores, para os profanos
e irreligiosos, para os parricidas e matricidas, para os homicidas, para os
impuros, para os arsenokoitai, para os raptores de homens (andrapodistai), para
os mentirosos, para os perjuros e para o que for contrário à sã doutrina” (1
Ti 1:9-10).
A palavra arsenokoitai foi tradicionalmente traduzida como “sodomitas”,
uma escolha inadequada porque o termo não guarda relações diretas com o
nome da cidade de Sodoma. A New Amplified Bible, de 1958, foi a primeira
versão inglesa a traduzir a palavra como “homossexuais” (WHITE, 1994).
Em 1966, a Today’s English Version contraiu arsenokoitai e malakoi em uma
única expressão: “homossexuais pervertidos”, decisão que foi seguida pela
New English Bible, de 1970. Em 1973, a Nova Versão Internacional propôs
“homossexuais”, para 1 Co 6:9, e “pervertidos”, para 1 Ti 1:9-10. A New
Standard American Bible simplesmente optou por “homossexuais” em
ambos os casos. A partir de 2005, a Sociedade Bíblica de Portugal também
optou pela tradução “homossexuais”, em sua versão em língua moderna.
Essas versões recentes inflamaram ainda mais o debate. Sob a alegação de que
o termo arsenokoitai era um termo novo, fabricado nos primórdios da igreja
cristã e sem uso correlato na literatura pagã, muitos estudiosos têm chegado
à conclusão de que não se pode ter certeza quanto ao significado pretendido
à época (BOSWELL, 1980; MARTIN, 1996; MARTIN, 2006). De fato, a
palavra não aparece em nenhum texto que não seja cristão ou judaico até
o séc. VI (GAGNON, 2003). O propósito deste artigo é verificar se, com
base na evidência linguística disponível, pode-se determinar o significado
da palavra. O objetivo será também avaliar o peso da evidência linguística e
extralinguística (inclusive, literária) para a tradução do termo arsenokoitai.
Paulo escreveu a primeira epístola aos coríntios por volta do ano 55.
Os teólogos conservadores colocam a redação da primeira carta a Timóteo
entre 62 e 64, imediatamente antes de sua morte. Os teólogos liberais creem
que a carta a Timóteo foi escrita até 85 anos após a morte de Paulo (entre
100 e 150 A.D.), por um escritor desconhecido a quem costumam chamar
de “pastor” (TORRES, 2007). Independentemente das questões relativas à
autoria e datação, depois de seu emprego inicial nessas epístolas, o vocábulo
teve uso limitado pelos autores posteriores. A palavra arsenokoitês (forma do
singular) é um substantivo composto dos radicais arsen (“macho”) e koitês
(“aquele que se deita”). Embora não seja regra geral, o significado dos
substantivos compostos é geralmente obtido pela soma de suas partes. Se
isso se aplicar ao caso em questão, o significado de arsenokoitai será, então,
“aqueles que se deitam com machos”. No entanto, não se pode definir a
questão precipitadamente, pois a literatura nos oferece inúmeros exemplos
A EVIDÊNCIA MORFOLÓGICA
Conforme afirmado anteriormente, a literatura nos oferece inúmeros
exemplos em que o significado de substantivos compostos não é definido pela
soma dos significados de suas partes (WHITE, 1994; MARTIN, 1996), pois a
etimologia de uma palavra reflete apenas a sua história e não o seu significado
(BARR, 1961, p. 109). Em meio a algumas premissas problemáticas, Jepsen
(2006) argumenta, nesse caso corretamente, que o primeiro procedimento
para se determinar o significado de um termo composto é, de fato, fazer
a soma dos significados de suas partes. Só se deve adotar procedimento
alternativo depois que se verificou que a mera soma não é suficiente para
determinar seu significado conjunto.
A cunhagem de arsenokoitês, quer feita por Paulo ou não, obedeceu aos
processos morfológicos disponíveis na língua grega e em ação também em
outros vocábulos, algo necessário para que a palavra fosse compreendida
pelas pessoas da época em que foi criada. O radical koitês já tinha longo pedigree
literário como segundo membro de um termo composto quando apareceu
no substantivo arsenokoitês. Hesíodo, no século VIII a.C., usou a expressão
hylêkoitai (“aqueles que dormem no mato”) em seu poema épico Trabalhos
e dias (verso 529), uma combinação de hylê (“mato, selva”) e koitês. Hipônax,
o poeta de Éfeso, empregou, no sexto século a.C. (fragmento 12.2), a palavra
mêtrokoitês (“aquele que se deita com a mãe”) para se referir a uma relação
incestuosa. O escoliasta de Os cavaleiros (792a1), de Aristófanes, explica
que, durante a guerra do Peloponeso, devido à escassez de moradia, vários
“E logo o próprio rei ordenou que aqueles que fossem encontrados praticando a
pederastia tivessem os caules cortados. E foram reunidos naquele tempo muitos
androkoitai que morreram depois de terem os caules cortados. E houve grande
temor, desde aquela época, entre aqueles que padeciam do desejo por machos.”
A EVIDÊNCIA GENÉTICA
Uma pista para a tradução de arsenokoitai pode vir da Septuaginta (LXX),
a versão grega da Bíblia Hebraica cuja tradução começou a ser elaborada
aproximadamente trezentos anos antes do período do Novo Testamento. Paulo
preferia citar a Bíblia Hebraica a partir da LXX em vez de a partir do próprio
texto hebraico (ELLIS, 1957, p. 150-152), o que aumenta as chances de que o
apóstolo tenha cunhado a palavra com base no texto da LXX. Infelizmente, a
LXX não emprega o termo. Por essa razão, diferentes vertentes apontam para
semelhanças com dois grupos de passagens ali encontradas.
Alguns estudiosos alegam que arsenokoitai teria sido cunhado com base
em 1 Re 14:24 (ROBINSON, 2011). Ao se referir aos prostitutos cultuais,
a passagem emprega o vocábulo syndesmos para traduzir o hebraico qadesh.
O termo syndesmos significa “aquele que se junta a outro” (obviamente, em
um contexto sexual). Como esta passagem trata especificamente do caso dos
prostitutos cultuais, os que defendem a associação entre arsenokoitai e syndesmoi
alegam, portanto, que não existe interdição neo-testamentária à prática do
homossexualismo.
Outros estudiosos (DE YOUNG, 1992, p. 215; MENDELL, 1990?;
GARLAND, 2003, p. 211-218) se voltam para o texto de Lv 18:22 e 20:13,
passagens que proíbem que um homem se deite com outro, para dar o pano
de fundo para o vocábulo do Novo Testamento. O primeiro desses versos
afirma meta arsenos ou koimêthêsei koitên gynaikos. Literalmente, o texto diz: “não
te deitarás na cama com um macho como com uma mulher”. O segundo
diz: hos an koimêthêi meta arsenos koitên gynaikos..., “quem se deitar na cama com
um macho como mulher...”. Nesses dois versos, percebe-se o emprego de
| REVISTA HERMENÊUTICA, CACHOEIRA-BA, VOL. 12, N. 2, P. 25-49 |
32 | MILTON TORRES
A EVIDÊNCIA SEMÂNTICA
A evidência semântica diz respeito ao universo de significados e aos
vocábulos disponíveis para uso em determinada situação textual. De fato, a
dimensão sexual constituía abundante celeiro de vocábulos com significação
rica e pertencentes a múltiplos campos semânticos que se interpenetravam e
se complementavam mutuamente. Assim, no acervo de palavras disponíveis
para Paulo encontramos, por exemplo: kinaidoi (“catamitas”), paiderastai
(“amantes de meninos”), paidomanes (“loucos por meninos”), paidophthoroi
(“corruptores de meninos”), arsenobatai ou androbatai (“aqueles que cobrem
homens”), arsenomanes (“loucos por machos”), dentre outras. Devido
provavelmente a seu caráter chulo, esses termos não ocorrem no Novo
Testamento ou na Septuaginta. Mas alguns deles aparecem, por exemplo, no
seja traduzido por “homossexuais”. Segundo ele, (i) esse significado é possível
em muitos dos contextos em que a palavra ocorre; (ii) não se detecta uma
mudança importante no referencial de significado da expressão; (iii) arsenokoitai
obviamente pertence a um campo semântico que inclui a homossexualidade;
e (iv), como não existem sinônimos perfeitos, o termo arsenokoitai pode, em
vários de seus contextos, ser traduzido como “homossexuais” já que, no
mínimo, incorpora vários traços de significado que também são encontrados
nos contextos em que a palavra “homossexuais” é usada hoje em dia.
Independentemente dessas conclusões de De Young (2002), vamos, a seguir,
avaliar os diferentes contextos em que o vocábulo arsenokoitai e seus derivados
são usados na literatura contemporânea aos escritos paulinos.
Por essa razão, Martin (1996) e Harrill (1999) argumentam que o termo
envolve as duas dimensões: a sexual e a econômica.
que, segundo essa visão, estava inventando. Diante disso, argumentam que a
prostituição cultual masculina se encaixaria bem nesse perfil. Pode-se objetar,
aqui, que, conforme mencionado anteriormente, a evidência morfológica
indica que, mesmo no caso de um neologismo, um leitor antigo não deve ter
tido dificuldades para decodificar, em linhas gerais, o significado do mesmo.
Martin (1996) argumenta que, uma vez que o trecho não diz
especificamente que Naas manteve relações sexuais consensuais com Adão,
pode-se objetar que a palavra arsenokoitia seja, neste caso, compreendida
nesse sentido. O problema com esse raciocínio é que o significado do verbo
“adulterar” (moicheuô), empregado no mesmo texto, ficaria limitado apenas ao
caso em que a mulher fosse enganada para praticar relações sexuais com um
consorte. No entanto, a literatura bíblica não restringe o significado do verbo
a esse uso particular.
Outro texto geralmente colocado nesta categoria vem de uma citação
que Eusébio de Cesareia faz, em Preparação evangélica (6.10.25), a
Bardesames, um autor do terceiro século:
ἀπὸ Εὐφράτου ποταµοῦ καὶ µέχρι τοῦ ᾿Ωκεανοῦ ὡ̋ ἐπὶ ἀνατολὰ̋ ὁ
λοιδορούµενο̋ ὡ̋ φονεὺ̋ ἢ ὡ̋ κλέπτη̋ οὐ πάνυ ἀγανακτεῖ, ὁ δὲ ὡ̋
ἀρσενοκοίτη̋ λοιδορούµενο̋ ἑαυτὸν ἐκδικεῖ µέχρι καὶ φόνου· παρ’
῞Ελλησι καὶ οἱ σοφοὶ ἐρωµένου̋ ἔχοντε̋ οὐ ψέγονται.
“Desde o rio Eufrates até o oceano que fica no oriente, quem é insultado como
homicida ou ladrão não se indigna muito, mas aquele que é insultado como
arsenokoitês se vinga até com o homicídio. Entre os gregos, mesmo os sábios que
têm amantes não são censurados.”
A EVIDÊNCIA LITERÁRIA
Conforme muitos estudiosos perceberam, as poucas ocorrências do
termo arsenokoitai aparecem no subgênero literário (topos) conhecido como
“lista de vícios”. Os filósofos da antiguidade greco-romana tinham o hábito
de elaborar listas para que seus discípulos as memorizassem e, depois disso,
as colocassem em prática. Paulo também desenvolveu essa prática, tendo
produzido listas de virtudes, de vícios e de vicissitudes (TORRES, 2002).
Nessas listas, os itens são geralmente organizados em grupos compatíveis
ou em consonância com algum outro princípio organizador. Por essa razão,
Martin (1996) argumenta que a citação de 1 Timóteo coloca arsenokoitai e
malakoi entre os pecados de natureza econômica e não entre aqueles de
natureza sexual, como moicheia (adultério) e porneia (prostituição), por exemplo.
Para o autor, a lista de vícios, em 1 Timóteo, organiza os pecados em duplas:
transgressores e rebeldes; irreverentes e pecadores; ímpios e profanos;
parricidas e matricidas; homicidas e homens prostituídos (pornoi); arsenokoitai
e raptores de homens (andrapodistai); mentirosos e perjuros. O autor busca
apoio adicional no fato de que, na citação dos Oráculos sibilinos, a forma
verbal arsenokoitein parece ter um referencial econômico ou financeiro. Sendo
assim, propõe que a expressão não pode ser entendida como equivalente à
Provérbios 7.74) que, embora não tenha feito parte das discussões teológicas
e filológicas de arsenokoitia, acrescenta um dado importante em relação à
compreensão antiga do termo:
Οἱ µὲν ἐν ταῖ̋ πλατείαι̋ ῥεµβόµενοι, µοιχεία̋ καὶ πορνεία̋ καὶ κλοπῆ̋
λαµβάνουσι λογισµού̋· οἱ δὲ ἔξω τούτων ῥεµβόµενοι, τὰ̋ παρὰ φύσιν
ἡδονὰ̋ µετέρχονται, ἀρσενοκοιτεῖν ἐπιζητοῦντε̋, καὶ ἄλλων τινῶν
ἀπαγορευοµένων πραγµάτων φαντασία̋ λαµβάνοντε̋·
“Alguns vagueiam pelas praças, colhendo relatos de adultério, prostituição e furto;
outros vagueiam fora das [praças], participando em prazeres contrários à natureza,
procurando arsenokoitar e recebendo desfiles de outras coisas proibidas.”
A EVIDÊNCIA INTERNA
A evidência quanto ao significado de arsenokoitia pode emanar, como foi
visto, da análise de vários aspectos pertinentes ao contexto em que o termo
aparece na correspondência paulina. No entanto, nenhum peso de evidência
deveria ser maior do que o próprio contexto. A esse respeito, recentes estudos
apontam para o fato de que as epístolas de Paulo aos coríntios fazem parte
de uma discussão cujo componente sexual desempenha importante papel
(HARRILL, 2001; LARSON, 2004; MAYORDOMO-MARÍN, 2006). A
comparação da correspondência paulina com as invectivas de Polemo de
Esmirna contra Favorino de Arles, um dos hermafroditas mais famosos do
início da era cristã, situa os escritos de Paulo, entre outras coisas, no contexto
da autodefesa de sua masculinidade diante de insinuações contrárias. De
acordo com Cícero (Brutus 18.59), um orador manterá,
in gestu status erectus et celsus; rarus incessus nec ita longus; excursio moderata
eaque rara; nulla mollia cervicum, nullae arguae digitorum, non ad numerum
arculus cadens; trunco magis toto se ipse moderans et virili laterum flexione.
“em sua postura, um estado ereto e elevado; com raros passos e nunca longos; os
movimentos devem ser moderados e raros, sem inclinação efeminada do pescoço,
sem movimentação excessiva dos dedos, sem marcação do ritmo; deve, em vez
disso, moderar-se pela pose de todo o torso e pela atitude viril do corpo.”
Na visão comum da retórica romana, para ser ouvido respeitosamente,
era importante que o orador se portasse masculinamente. Por essa razão, a
crítica à postura efeminada de um orador podia destruir sua credibilidade.
Vários outros escritores da época relatam casos em que uma das partes
adotava precisamente essa estratégia, entre eles Tácito, Sêneca, Plutarco e Dio
Cássio. A passagem de 2 Co 10:10 tem sido recentemente interpretada como
consistindo desse tipo de ataque à capacidade oratória de Paulo. As próprias
declarações do apóstolo com respeito a sua flexibilidade no tratamento das
diferenças entre os cristãos daquela cidade (1 Co 4:21; 9:19-23; 10:33) poderiam
colocá-lo na condição de bajulador, traço de caráter proeminentemente
associado à postura efeminada (MARSHALL, 1987, p. 281-325). Diante
disso, o apóstolo se defende (2 Co 10:1; 11:20), apelando para o valor cristão
da mansidão (2 Co 10:1; 12:5, 8-10) e prometendo recorrer, se necessário,
a sua autoridade apostólica (2 Co 13:2). Por essas razões, há um número
crescente de estudiosos que identificam, em Paulo, elementos de uma postura
aparentemente homofóbica (LARSON, 2004, p. 92; MAYORDOMO-
MARÍN, 2006). Segundo esses eruditos, os posicionamentos de Paulo foram
motivados pela tentativa de se mostrar suficientemente viril para granjear o
apoio de seus ouvintes. Assim, é necessário que Paulo se apresente como pai
da igreja de Corinto (1 Co 4:14ss; 2 Co 11:2ss; 12:14), guerreiro (2 Co 10:3-5)
e atleta (1 Co 9:24-27). Para esses estudiosos, 1 Co 6-11 constitui importante
passagem na qual Paulo estabelece sua condição de orador viril. Há inúmeros
aspectos que são disputados em relação a esse trecho da correspondência
paulina. No entanto, é possível afirmar que entender as palavras arsenokoitai
e malakoi como tendo por referenciais aspectos de comportamento ligados à
postura efeminada faz sentido à luz dessa controvérsia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A despeito da complexidade do tema, é possível chegar a algumas
conclusões plausíveis com respeito ao significado da arsenokoitia. A evidência
morfológica aponta para o fato de que, mesmo em se tratando de um
neologismo, o leitor de Paulo deve ter entendido, sem maiores dificuldades,
o sentido sexual de arsenokoitai. A evidência genética sugere que a palavra
foi cunhada a partir da LXX. A evidência semântica indica que o vocábulo
não tinha um sentido técnico ou limitado, mas que tinha, em vez disso,
| REVISTA HERMENÊUTICA, CACHOEIRA-BA, VOL. 12, N. 2, P. 25-49 |
46 | MILTON TORRES
REFERÊNCIAS
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University Press, 1961.
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Chicago: University Press, 1980.
BRAUCH, Manfred. The exclusiveness of the gospel: 1 Corinthians 6:2-11; 1
Timothy 1:10. In: BRAUCH, Manfred; HERTZOG, William (Eds.). Bridges
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Disponível em: www.bridges-across.org/ba/brauch3.htm. Acesso em: 26 jun
2011.
CANTARELLA, Eva. Bisexuality in the ancient world. New Haven: Yale,
1992.
CANON, Justin. The Bible, Christianity and homosexuality. 2005.
RESUMO
O “espírito mentiroso” que procede de Yahweh, no episódio em que Micaías se apresenta
perante Acabe, parece depor contra a integridade de Deus. Este trabalho objetiva explorar
o sentido da ação de Micaías e do “espírito mentiroso”. Pretende ainda averiguar se há
contradição entre o texto e a teologia bíblica, no que se refere à pessoa e caráter de Deus.
Do ponto de vista metodológico, o texto de I Rs 22: 19-23 foi objeto de exegese, incluindo
análise gramatical, contextual e teológica. Agregou-se a isto a hipótese de uso de figuras
de retórica, especialmente a ironia. Concluiu-se que não era intenção divina ludibriar o
rei, mas alertá-lo quanto ao risco de sua decisão, a qual representava sua chance final de
arrependimento perante o juízo divino. O estudo do “espírito mentiroso” de Deus leva
à discussão de questões éticas paralelas, tais como o uso defensável da mentira e outros
artifícios eticamente questionáveis.
PALAVRAS-CHAVE: Exegese. Espírito Mentiroso. Ironia.
ABSTRACT
The “liar spirit” who proceed of Yahweh, in the episode that Micaiah presents himself
before Ahab, seems testify against God’s integrity. This work search investigate the sense
of the action of both Micaiah and “liar spirit”. Still intends inquire if there is contradiction
between this text and biblical theology, as for the person and character of God. In
the methodological point of view, 1 Kgs 22: 19-23 was object of exegesis, including
grammatical analysis, contextual and theological. It was added the hypothesis that were
used rethorical figures, especially the irony. It was concluded that God did not intend
to deceive the king, but warn him about the risk of his decision, wich represented his
last chance to repent before the divine court. The study of God’s “liar spirit” leads to a
discussion of parallel ethical issues, such as the defensible use of lies and another ethically
questionable devices.
KEYWORDS: Exegesis. Lying Spirit. Irony.
1
Mestre em Ciências da Religião pela UNICAP – Universidade Católica de Pernambuco. Atua
como professor de Línguas Bíblicas do SALT-IAENE - Seminário Adventista Latino-Americano de
Teologia. E-mail: <leal.jonatas@gmail.com>.
2
Aluno do 5º período do curso de bacharel em teologia do SALT-IAENE – Seminário
Adventista Latino-Americano de Teologia/ Instituto Adventista de Ensino do Nordeste. E-mail:
<diego.rafael.barros@gmail.com>.
52 | JÔNATAS DE MATTOS LEAL / DIEGO RAFAEL DA S. BARROS
INTRODUÇÃO
No episódio da batalha em Ramote-Gileade entre Israel e a Síria, o rei
Acabe estava seguro quanto à sua vitória. Ben-Hadade, rei da Síria, e seus
exércitos aliados já haviam sido rechaçados do território israelita três anos
antes, numa situação em que a Síria parecia estar em situação vantajosa. Agora,
a ofensiva bélica da aliança formada pelos reis Acabe e Josafá era favorita à
vitória. A Síria estava enfraquecida depois da baixa que tivera três anos antes,
e Israel, que vencera sem a ajuda de aliados, agora contava com o apoio de
sua nação-irmã, Judá. Na perspectiva humana, os fatores cooperavam para
que Israel lograsse vitória neste empreendimento, mas na perspectiva divina
esse não era o caso. No céu, o tribunal de Yahweh comissiona um “espírito
mentiroso” para que os profetas de Acabe sejam levados a mentir, e o rei
Acabe, crendo neles, avança para guerrear em Ramote-Gileade. Na batalha,
Acabe é atingido por uma flecha disparada aleatoriamente, e, após horas de
hemorragia, morre na batalha.
O leitor bíblico é levado a questionar os métodos usados por Deus,
que, aparentemente, decreta a morte de Acabe, utilizando-se de fraude e
engano. Isto põe em xeque o caráter do Deus de Israel e o situa no campo
da inconfiabilidade, uma vez que é aparentemente declarado ser Ele o autor
da mentira que induz o rei à batalha de Ramote-Gileade. O principal objetivo
deste artigo é propor uma compreensão mais adequada da perícope de I Reis
22:19-23, levando em consideração o contexto mais amplo da narrativa, a
linguagem e as implicações do entendimento literal desta.
O ANTECEDENTE DA NARRATIVA
Os eventos que ocorrem no capítulo 22 de I Reis não podem ser
escrutinados antes do estudo dos dois capítulos anteriores (caps. 20 e 21),
em especial o capítulo 20. Todas as três histórias estão conectadas ao tema
das profecias acerca da morte de Acabe (20:42 e 43; 21: 21 e 22; 22: 17, 28).
Deve-se ter em mente que a morte de Acabe fora profetizada três vezes por,
pelo menos, dois personagens diferentes3, a saber, Elias e Micaías.
O estudo dos capítulos 20 e 22 lança nova luz sobre os fatos. Os autores
da LXX, a versão grega da Bíblia Hebraica, alteraram a ordem dos capítulos
20 e 21. No texto desta versão, houve uma anteposição
3
Há quem defenda que o profeta do capítulo 20 é o próprio Micaías, mas, é claro,
essa suposição não tem sustentação escriturística. A ideia de que o profeta do capítulo 20 e
Micaías são a mesma pessoa é defendida com base nos escritos de Flávio Josefo, que em sua
obra mais conhecida, História dos Hebreus, identifica o profeta do SENHOR que pede para
ser golpeado na cabeça como Micaías e acrescenta que, devido a esta predição tal profeta fora
atirado ao cárcere (JOSEFO, 2008, p. 422).
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VERDADES, MENTIRAS E IRONIAS: UMA BREVE ANÁLISE DE I REIS 22 | 53
CAPÍTULO 20 CAPÍTULO 22
O Rei da Síria ataca Israel (subiu a O Rei de Israel ataca a Síria (subiram a
Afeca) – v. 26. Ramote Gileade) – v. 29.
Um profeta verdadeiro profetiza a 400 falsos profetas e Zedequias
vitória de Acabe (entregará nas tuas profetizam a vitória de Acabe (entregará
mãos) – v. 28. nas mãos do rei) – v. 6
Ben-Hadade esconde-se em uma câmara Zedequias se esconderá em uma câmara
interior – v. 30. interior – v. 25
Um homem, filho dos profetas, profetiza Micaías profetiza a morte de Acabe – v.
a morte de Acabe – v. 40-42 17; 19-23
O profeta é ferido por vontade própria Micaías é ferido contra sua vontade – v.
– v. 37. 24.
Este é um paralelismo de natureza antitética, e aplica uma ligação de
causa e consequência entre os textos dos capítulos 20 e 22, pois é o fato de
Acabe aliar-se aos arameus que causará finalmente a sua morte. Jerome Walsh
(apud BROWN, 2007, p. 373) afirma que “a primeira e a terceira história
(caps. 20 e 22) formam um par contrastante. (A LXX enfatiza o paralelo
antitético ao unir ambas e colocar a história de Nabot [sic] antes delas).” Este
contraste é um elemento que abre as portas para a entrada da ironia – em suas
mais variadas formas – na narrativa.
AS IRONIAS DA NARRATIVA
O contraste entre os capítulos 20 e 22 possivelmente implica certo
tom de ironia, comum na literatura histórica do Antigo Testamento4. Trata-se
do que hoje seria chamado popularmente de “ironia do destino” e que Stan
Goldman (1990) denominou “ironia gerativa”.
4
Para maior compreensão acerca do uso de ironias na Bíblia Hebraica ver, dentre
outros: Watson (1995, p. 306-312); Spangenberg (1996, p. 57-69); Rossow (1982, p 48-52);
Goldman (1990, p. 15-31); Acosta (2009, p. 9-32).
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54 | JÔNATAS DE MATTOS LEAL / DIEGO RAFAEL DA S. BARROS
A ironia gerativa é realmente uma dupla ironia que força o leitor a questionar seus
valores éticos e não-éticos. [...] É particularmente importante porque oferece uma
nova abordagem para a chave do revés da trama e a problemática ética da história.
(p. 15 – Tradução nossa5).
atribuir lábios mentirosos ao profeta filho de Inlá, mas isto não passa de
outro tom de ironia na narrativa. Qual a eficácia da falsa fala de Micaías?
Profetizando assim, o vidente potencializa o impacto da verdade, fazendo
com que o rei Acabe clame por ela: “Quantas vezes te conjurarei que não me
fales somente a verdade em nome do Senhor? (v. 17)”. Assim, Acabe confessa
sua culpabilidade nesta questão. Ele reconhece com seus próprios lábios ser
esta uma falsa profecia. Isso significa que ele acaba de confirmar que todos
os seus profetas mentiram – já que ele pede a verdade a Micaías e espera que
agora esta seja diferente da mensagem de seus 400 profetas.
A partir de agora, independentemente do que Micaías viesse a dizer
na sequência, Acabe tornar-se-ia indesculpável perante a audiência, pois
reconhece publicamente que o oráculo de seus profetas não é verdadeiro. O
que, então, desmascara Acabe? O uso da ironia na boca de um sábio profeta:
Micaías, filho de Inlá.
Outro momento irônico da narrativa é percebido no momento em
que o rei de Israel, disfarçado para não atrair o ataque dos Sírios, é acertado
aleatoriamente por uma “flecha perdida” (v. 34). Acabe despojou-se de suas
vestes reais e trajou a armadura de um simples soldado (v.30) para, talvez,
impedir o cumprimento da profecia de Micaías, mas o plano do rei de ludibriar
a Deus não se concretizou. Sua tentativa de virar a mesa e enganar a Deus foi
frustrada. Ironicamente, como enfatizou Josefo (2008, p. 426), “a troca de
roupas não mudou o destino de Acabe”. Este tipo de ironia é classificado por
Goldman (1990) como ironia retórica de incidente, onde o acaso é fator decisivo
e, obviamente, inesperado para a mudança da trama. Para Goldman “o efeito
particular da ironia de incidente é intensificar as expectativas literárias para
múltiplas ironias” (1990, p. 16). Esta cena é seguida imediatamente por uma
ironia retórica de perspectiva de narrativa. Ao deparar-se com esta faceta da ironia,
o leitor desfruta da ironia dramática, percebendo, mais que os próprios
personagens, o rumo que toma a narrativa, enquanto cada personagem ignora
tanto o seu destino como o ponto de vista dos demais (GOLDMAN, 1990,
p. 18). Isso se revela no momento em que, enquanto todos procuram o rei
para feri-lo, lá está Acabe moribundo, escondido em seu carro e sangrando
até a morte.
Esta sequência de ironias fornece uma pista para entender a mensagem
do texto, que como será proposto, é uma mensagem nada convencional. De
posse deste conhecimento, pode-se avançar rumo a uma compreensão mais
exata do texto.
A NARRATIVA
O Rei Acabe propõe a Josafá, rei de Judá, a reconquista do território
de Ramote-Gileade (lit. Altos de Gileade), que outrora, pertencera a Israel e
servira, inclusive, como cidade de refúgio (Dt 4:43). Este território havia sido
conquistado, em dado momento, pela Síria e, é provável que ao declarar guerra
contra os arameus, Acabe desejasse que este território fosse incorporado no
grupo de terras devolvidas a Israel por Ben-Hadade, conforme o tratado
de paz realizado por ambos em I Reis 20: 34. Acabe já tinha tomado a sua
decisão de ir à guerra e ele apenas indaga ao rei Josafá se este o acompanhará,
ou não: “Irás tu comigo à peleja, a Ramote-Gileade?” (v.4). Esta decisão é
anterior a sua consulta aos profetas que o serviam, uma vez que esta apenas
é realizada por sugestão do monarca do Sul (v.5). Isto é muito importante
para a compreensão do texto. Uma vez que Acabe decide subir à guerra antes
de consultar os oráculos proféticos, isto demonstra que este oráculo não é
decisivo para a decisão do rei.
Acabe reuniu, então, quatrocentos profetas e a estes perguntou: “Irei à
peleja contra Ramote-Gileade, ou deixarei de ir?” (v.6). A unânime resposta
afirmativa dos quatrocentos profetas não convencera a Josafá (v.7). Ele, de
alguma maneira, identificou que aqueles profetas não eram de Yahweh: “Não
há aqui ainda algum profeta do SENHOR ao qual possamos consultar?”
(v.7). É provável que o fato de os videntes de Acabe não falarem no nome do
SENHOR – Yahweh – mas utilizarem o termo ambíguo Adonay,7 tenha sido
o prumo de condenação de sua profecia. Tratando deste caso, Walsh (apud
BROWN, 2007, p. 373) propõe:
Seu conselho parece favorável, mas é, de fato, ambivalente. Não diz o nome da
divindade que lhe concederá a vitória (cf. v.12), nem especifica qual rei a receberá
(cf. a “sua mão” não ambígua em 20, 13.28). – Grifo do autor.
Sem as credenciais javistas, estes profetas não passam pelo crivo do rei
Josafá. Insatisfeito, ele pergunta por um profeta que fale no nome de Yahweh.
É então que outro personagem entra em cena. O rei de Israel recorda-se de
um vidente que fala no nome de Yahweh, mas não está disposto a convocá-lo,
porque, segundo ele, “este nunca profetiza o bem a meu respeito, somente
o mal” (v.8). Josafá censura o rei de Israel por seu discurso, e este, por sua
vez, envia um oficial palaciano para buscar Micaías, filho de Inlá e profeta do
Senhor.
7
Texto hebraico de I Rs 22:6 última parte, ênfase suprida :
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VERDADES, MENTIRAS E IRONIAS: UMA BREVE ANÁLISE DE I REIS 22 | 57
8
Texto hebraico de I Rs 22:12, ênfase suprida:
[`%l,M,(h; dy:ïB. hw"ßhy> !t:ïn"w> xl;êc.h;w> ‘d['l.GI tmoUr" hleú[] rmo=ale !KEß ~yaiîB.nI ~yaiêbiN>h;-lk'w>]
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58 | JÔNATAS DE MATTOS LEAL / DIEGO RAFAEL DA S. BARROS
9
No Antigo Israel havia a concepção de que o rei era adotado por Deus (cf. Sl 2:7 ) tornando-
se, então, Seu filho. Assim, o rei assumia a função de representante legal de Deus na terra. É claro que
isso não significa que a pessoa do rei seria divinizada (cf. Sl 89;2), mas torna o rei uma figura distinta
dos demais homens de Israel . Para maiores detalhes ver Vaux (2010, pág. 140-141).
10
Palavra alemã que parece significar “profetas da salvação” referindo-se aos 400 profetas da
corte de Acabe que profetizaram falsamente sua vitória em Ramote-Gileade.
11
Sobre a ligação entre Isaías 6: 1-8 e I Rs 22: 19-22, ver Mettinger (2008, p. 194).
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VERDADES, MENTIRAS E IRONIAS: UMA BREVE ANÁLISE DE I REIS 22 | 59
Ainda que haja um nítido paralelo entre estas visões, há quem advogue
que esta visão é de natureza alegórica e que o seu conteúdo não deve ser
compreendido literalmente14. É provável que a dificuldade de lidar com a
presença de um “espírito mentiroso” sendo comissionado por Yahweh tenha
impulsionado esta interpretação.
Todavia, para defender o caráter alegórico da visão, algumas questões
que surgem parecem ficar sem respostas. Se, ao interpretarem-se textos de
teor similar como, por exemplo, os que foram anteriormente mencionados
(Is 6: 1-8 e Dn 7: 9-10) como literais, por que entender que a visão de Micaías
em I Reis 22:19-23 não passa de simples parábola? Como interpretar que
Daniel e Isaías, entre outros, tiveram uma experiência teofânica e ao mesmo
tempo negar este fato no tocante a Micaías?
Ao interpretar que os profetas Isaías e Daniel presenciaram uma cena
real e foram acometidos por uma teofania, deve haver uma inclinação a dar
o mesmo parecer a experiência de Micaías narrada no texto em questão (I Rs
22:19-23).
Outro argumento que favorece a interpretação literal da visão é que
em nenhuma outra parte da Escritura, Yahweh é o sujeito ativo de uma
parábola que represente a Ele mesmo e Suas prerrogativas. Isto indicaria que
12
Neste ponto, alguém pode ter dificuldades de compreender que na visão de Isaías há menção
de guerra entre reinos. Mas o ano da morte do rei Uzias (destacado no v. 1) coincide com o período da
marcha assíria para fazer guerra a Judá. Neste momento, o povo se inquietava sobre o destino da nação,
que não tinha muitas chances de sobrevivência a invasão da Assíria (cf., NICHOL, 1995, p.169) .
13
Sobre o tema da existência e função do templo/santuário celestial consultar Sousa (2005).
14
Cf. Nichol (1993, p. 837); Champlin (2001, p. 1455) e Lockyer (1999, p. 43), que falham em
apresentar evidências.
| REVISTA HERMENÊUTICA, CACHOEIRA-BA, VOL. 12, N. 2, P. 51-69 |
60 | JÔNATAS DE MATTOS LEAL / DIEGO RAFAEL DA S. BARROS
O texto nos fornece alguns indícios que apontam para uma atuação
negativa (do espírito mentiroso) com um objetivo positivo. Por um instante,
é necessário relembrar a cena. Acabe está obstinado a guerrear contra os
arameus em Ramote-Gileade (v.3). Os profetas são convocados não para
eliminar uma dúvida na mente de Acabe, mas para satisfazer a vontade de
Josafá (v. 4). A atuação dos profetas não é das mais convincentes. Eles não
falam no nome de Yahweh em sua primeira atuação, de maneira que Josafá
os identifica como profetas sem credenciais divinas (v. 7) e, logo em seguida,
refazem o oráculo, profetizando no nome de Yahweh, para tentar persuadir
também a Josafá. Micaías entra em cena sendo reconhecido como profeta de
Yahweh, o que o investe de autoridade javista na presença dos reis (v. 8). Em
seu primeiro discurso (recheado de ironia) o profeta Micaías fala da mesma
forma que os profetas de Acabe (v.15), ao passo que o rei pede a verdade em
seu oráculo (v.16).
Agora, algumas indagações de cunho geral podem ser respondidas. Se
a atuação dos profetas de Acabe foi um completo fiasco, que motivos teria
o rei de Israel para crer em suas palavras? Se estes profetas não foram nem
um pouco convincentes, como Deus os utilizaria para cumprir Seu propósito
de enganar Acabe? Ou será que este não era o objetivo final do Senhor? Por
que alguém que pretende enganar outrem, enviaria um profeta confiável para
dizer a verdade de maneira tão contundente? Talvez o objetivo de Deus não
seja o de ludibriar Acabe. Mas, se esta não era a real intenção do Senhor,
qual seria esta intenção? Se Deus não queria enganar Acabe, o que Ele queria
então?
A princípio, o “espírito mentiroso”, seja lá quem ou o que for15, só entra
em cena quando Acabe consulta os seus profetas. Já foi argumentado (mais
de uma vez neste trabalho) que a obstinada resolução do rei Acabe em ir à
15
Este assunto será brevemente tratado mais adiante, no próximo tópico/questionamento.
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VERDADES, MENTIRAS E IRONIAS: UMA BREVE ANÁLISE DE I REIS 22 | 61
16
Lit. afirmação (ou declaração) falsa.
| REVISTA HERMENÊUTICA, CACHOEIRA-BA, VOL. 12, N. 2, P. 51-69 |
62 | JÔNATAS DE MATTOS LEAL / DIEGO RAFAEL DA S. BARROS
espírito de I Reis, que deve ser entendido como um ser celestial pertencente
ao exército de Yahweh que estava reunido naquele momento .
Ademais, a atuação de Satanás em Jó é completamente diferente da
forma como o espírito de I Reis age. Em Jó, Satanás é o proponente da
atuação (1:11 e 2:50 e Deus apenas autoriza sua ação (1:12 e 2:6) em I Reis
Deus é o proponente da ação (22:20) e o espírito é o executor da vontade de
Yahweh (22:22). No livro de Jó, Satanás parece ser o interessado na destruição
de Jó; já em I Reis está claro que Yahweh é quem sugere o engano de Acabe
(deve-se salientar, ainda que, tal engano não tem fins destrutivos). Assim,
diante dos fatos, esta teoria não pode ser aceita como plausível.
Então, se não é possível a compreensão do espírito mentiroso como
uma entidade demoníaca, como aceitar que um ser de tal natureza faça parte
do exército do céu sem manchar a reputação do Senhor deste exército? O
argumento de Sousa (2005, p. 223) é esclarecedor:
Como tópico do fato, espírito “mentiroso” é melhor interpretado como uma
atribuição funcional, ou seja, “mentiroso” não descreve a natureza do espírito, mas
retrata sua função na execução da proposta de YHWH de usar os falsos profetas
para trazer julgamento sobre o rei... Ele é um espírito “mentiroso” não no sentido
ontológico ou ético, ou porque ele é uma entidade demoníaca ao serviço de YHWH
– uma ideia que se desentende com a representação geral de YHWH através da
Bíblia Hebraica – mas no sentido de que o espírito induz os falsos profetas, que
já estavam sob as influências do mal, a nutrir o próprio autodestrutivo fim do rei
pelos fins de suas enganosas profecias.
Isto significa que o espírito agiria como inspirador da mentira, ao contrário
de ser mentiroso. Esta interpretação fica mais clara considerando-se que em
II Crônicas 18:21 – uma repetição deste episódio – e em alguns poucos
manuscritos massoréticos do livro de I Reis, a preposição “lamed” (traduzida
frequentemente como por ou para), antecipa o termo “espírito”18. Isto
possibilitaria a seguinte tradução como opção mais próxima do texto original:
Serei [por] espírito mentiroso na boca de seus profetas.
Em segundo lugar, há quem defenda a impessoalidade desse “espírito”19,
afirmando ser ele uma espécie de manifestação do espírito de profecia. Um dos
motivos para tanto é, talvez, a possibilidade de este espírito se colocar na boca
dos falsos profetas do rei Acabe. Se esta premissa for aceita, tem de ser aceita
também a impessoalidade ao Espírito do Senhor. Em textos como Êx 31:3
e Ez 2:2 o Espírito de Deus é colocado no interior dos seres humanos, mas
isto não é suficiente para argumentar a favor da impessoalidade do Espírito
de Deus. O bom-senso diria que isto não passa de linguagem figurada. É
possível concluir o mesmo no tocante ao “espírito” do relato de Micaías. O
espírito será “mentiroso” na boca dos profetas de maneira figurada. Chega-
18
Ver nota no aparato crítico da Bíblia Hebraica Stutgartensia na pág. 615.
19
Ver De Vries (1985, p. 268).
| REVISTA HERMENÊUTICA, CACHOEIRA-BA, VOL. 12, N. 2, P. 51-69 |
64 | JÔNATAS DE MATTOS LEAL / DIEGO RAFAEL DA S. BARROS
De acordo com Hamori (2010, p. 30) ainda que ruah tenha sido
geralmente interpretado em contextos similares como um poder impessoal,
isto seria de fato algo muito estranho para os povos do Antigo Oriente
Próximo.
Por fim, vale mencionar o pensamento de Hildebrant (2008), o qual se
apresenta com uma posição ainda mais radical quanto à natureza do espírito,
identificando-o com o próprio ruah YHWH (i.e. Espírito do Senhor)20:
“Nesta referência, rûaḥ tem o artigo definido antes dele (hārûaḥ), indicando que
somente o único Espírito é capaz de operar o plano divino. Muitos conselheiros,
na corte real, raciocinaram em conjunto, mas somente o rûaḥ foi hábil para
implementar o plano e cumprir o propósito divino” (p. 199).
Ainda que não se possa definir facilmente qual é a mais adequada entre as duas
últimas posições (se o espírito é um anjo ou o próprio Espírito de Deus) nota-se
neste e em outros textos que a mentalidade israelita “percebia rûaḥ como sendo
uma personalidade independente” (Idem, p. 107).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Toda a narrativa de I Reis 22 e seu paralelo antitético no capítulo 20
formam uma estrutura que, à primeira vista, é de difícil entendimento. Mas
à medida que se compreendem graus de ironia que perfazem a narrativa
percebe-se que esta é uma dramática cena da História Deuteronomista que
possui concepções relevantes para a estrutura teológica da Bíblia Hebraica.
O terceiro discurso de Micaías revela uma cena de juízo que acontece
em uma reunião do concílio celestial. Neste oráculo são postos diante do rei
Acabe o engano e a verdade para que ele mesmo escolha, sua própria sentença.
Esta sentença já fora prevista por Yahweh em suas desafiantes palavras no
tocante ao êxito do “espírito mentiroso”: Acabe optaria pelo engano que o
levaria a morte. Nesta cena, é visto um exemplo literário de uma combinação
exótica de ironia e piedade, visando manter a autoridade e a misericórdia
unidas na sentença divina.
O Novo Testamento concede uma visão panorâmica do agir de Deus
em situações como a que se encontra no relato de I Reis 22, no tocante ao
engano de Acabe:
Por isso Deus envia a operação do erro, para que creiam na mentira, e para que
sejam julgados todos os que não creram na verdade; antes, tiveram prazer na
iniquidade (II Ts 2:11-12).
REFERÊNCIAS
RESUMO
O presente estudo intitulado, o casamento judeu, rituais, crenças e significados, tem como objetivo
refletir sobre tradição do casamento judeu em seus rituais, crenças e significados, e está
fundamentado principalmente nas ideias dos teóricos Asheri (1995), Lifschitz (1996),
Clements (1989), através de um estudo bibliográfico. Os resultados apontaram: uma cultura
demarcada pela relação com um Deus único e eterno que inspira os cerimôniais ritualísticos
demarcados em contornos sublimes que singularizam o princípio de indissolubilidade
do casamento e o esforço da nação no sentido de voltar às origens edênicas do pacto
matrimonial. As abordagens do estudo propõem o conhecimento e a necessidade de maior
aprofundamento acerca das tradições ligadas ao casamento judeu em seus rituais, crenças
e significados.
PALAVRAS CHAVE: Judaísmo. Casamento. Rituais conjugais judeus
ABSTRACT
The current study titled, the Jewish wedding, rituals, beliefs and meanings are intended to
reflect on the Jewish wedding traditions in their rituals, beliefs and meanings. Was based
mainly on theoretical ideas of Asheri (1995), Lifschitz (1996), Clements (1989), through a
bibliographic study. The results showed: a culture marked by a relationship with one eternal
God who inspires ritualistic ceremonies marked on contours which singularize the sublime
principle of indissolubility of marriage and the nation’s struggle towards edenic back to
the origins of the marriage covenant. The approaches of the study suggest the need for
knowledge and deeper understanding about the Jewish traditions related to marriage in
their rituals, beliefs and meanings.
KEYWORDS: Judaism. Marriage. Jewish marriage rituals.
INTRODUÇÃO
O presente estudo intitulado, o casamento judeu, rituais, crenças e significados,
teve como objetivo refletir sobre tradição do casamento judeu em seus
rituais, crenças e significados, e está fundamento principalmente nas ideias
dos teóricos Asheri (1995), Lifschitz (1996), Clements (1995), através de um
estudo bibliográfico.
1
Mestre em Família na Sociedade Contemporânea. Atua como professor do SALT - Seminário
Adventista Latino Americano de Teologia. E-mail: < lclgondim@bol.com.br >.
2
Graduando em Teologia pelo SALT - Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia e
em Tecnologia da Gestão Cooperativa na UFRB - Universidade Federal do Recôncavo Baiano. E-mail:
< lucgondim@hotmail.com >
72 | LUIZ CARLOS LISBOA GONDIM / LUCAS MANCILHA GONDIM
3
Escrito sobre leis judaicas.
4
O termo se refere à santificação pelo casamento, quando o noivo é separado, exclusivo para
a noiva, e vice-versa, e ambos são separados para Deus.
5
Contrato feito durante um casamento judeu (define as responsabilidades e compromissos de
um marido perante sua esposa).
6
Bênção nupcial.
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NOIVADO
O casamento era precedido, com antecedência de um mês a um ano,
pela cerimônia da promessa de casamento ou noivado, denominada em
hebraico, erusin, ou, mais popularmente tena’im9. (AUSUBEL, 1989).
O noivado era efetuado através de um documento. Disponível de
forma impressa, tal documento era assinado pela noiva e pelo noivo e por
duas testemunhas. É ratificado pela cerimônia conhecida como “tomar
kinyan”, na qual as partes contratantes seguram um lenço ou algum outro
artigo de indumentária a fim de declarar que uma troca se realizou e que o
acordo é obrigatório. Apesar da aparente rigidez dessa lei, seu valor ficou
provado através dos séculos em que a família Judaica permaneceu sendo
7
Em hebraico(l''[;B;)é uma palavra semítica que significa Senhor, Lorde, Marido ou Dono.
8
Nome próprio mais comum atribuído ao Deus de Israel.
9
Termo de acordo assumido pelas partes envolvidas na relação do casamento.
| SEMINÁRIO ADVENTISTA LATINO-AMERICANO DE TEOLOGIA - SALT |
O CASAMENTO JUDEU: RITUAIS, CRENÇAS E SIGNIFICADOS | 75
a unidade social mais forte que o mundo já conheceu. Essa cerimônia era um
ato que se efetuava num ambiente religioso; pois, no pensamento judaico,
não existe separação entre a lei e a religião. Assim, também, o casamento
será um contrato, com força de união legal, cuja cerimônia é chamada de
kidushin. Dessa maneira, o que é materialmente uma transação comercial, tem
o sentido singular de um ato religioso em que o noivo e a noiva mutuamente
se santificam e são santificados no meio de um povo que os ajudará a crescer.
Tais cônjuges são também consagrados ao próprio criador, que lhes deu,
como primeiro de seus mandamentos, “crescei e multiplicai-vos, e enchei a
terra” (ASHERI,1995).
O casamento é uma nova fase da vida para os noivos e tornou-se uma tradição
entrar nesta nova fase com jejum e oração, com a intenção de obter perdão pelos
pecados anteriores. A origem do costume de jejuar no próprio dia do casamento
deve ser procurado no tamuld de Jerusalém. (LIFSCHITZ.1996, p.37).
Essa tradição no noivado judeu, com base na lei rabínica, era uma
oportunidade onde o noivo e a noiva expiavam todos os seus pecados para
poderem começar sua vida de casados como uma espécie de folha em branco
em sua experiência com Deus. (AUSUBEL, 1989).
A CERIMÔNIA DE CASAMENTO
Como para o entendimento judaico o casamento contribuía na
perpetuação de seu povo, era celebrado, por muitos séculos, com entusiasmo
por toda comunidade, tanto como um dever tanto religioso quanto patriótico.
Uma tradição talmúdica vividamente lembrada diz que, no primeiro templo,
havia um portão especial para o noivo. Os habitantes de Jerusalém se reunião ali
para observar a entrada dos cortejos nupciais. Quando o noivo entrava, era-lhe
dirigida a tradicional bênção para a progenitura: “Que Deus, Cujo trono está
instalado nesta casa, alegre os seus corações com filhos e filhas!”. Um mérito
singular era estabelecido aos membros da comunidade que participavam das
alegrias da noiva e do noivo na cerimônia de casamento. As maiores homenagens
deviam ser prestadas ao casal no dia de seu casamento. Alguns dos sábios tinham
o hábito de transferir as aulas da ieshivah10 e, seguidos por seus estudantes,
acompanhavam o cortejo nupcial em sua marcha. (AUSUBEL, 1989).
A cerimônia realizava-se em uma sinagoga, começando com o noivo
e a noiva sendo levados por seus pais para baixo da chupá11. Em algumas
congregações, este é um dossel fixo, enquanto noutras é portátil, geralmente
com seus quatro suportes de canto sendo segurados por quatro amigos
10
Academia rabínica .
11
A Chupá ou Khupá (pronuncia-se rupá, do hebraico: hP'Wx), plural Chupot ou Chupos
(hebraico: twOPWx) é a tenda sob a qual se realiza o casamento judaico.
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76 | LUIZ CARLOS LISBOA GONDIM / LUCAS MANCILHA GONDIM
A CERIMÔNIA DA ALIANÇA
Na sua forma primitiva, o casamento era em sua essência uma transação
comercial. Nela, o noivo “adquiria” a noiva pelo pagamento de uma moeda
de ouro ou de prata. Acreditava-se que, pela influência romana, esta prática
foi substituída em algumas comunidades por um anel, que, provavelmente,
simbolizava a autoridade usada no relato da bíblia pelo faraó, ao outorgar
autoridade a José colocando em seu dedo o anel real, para governar o Egito
(Gênesis 41:42). (KOLATCH,1995).
12
Em hebraico, a palavra “chassid” significa extremamente religioso e piedoso.
13
Executor da cerimonia de casamento judaica.
| SEMINÁRIO ADVENTISTA LATINO-AMERICANO DE TEOLOGIA - SALT |
O CASAMENTO JUDEU: RITUAIS, CRENÇAS E SIGNIFICADOS | 77
bênçãos eram repetidas a cada vez. Após a recitação das sete bênçãos, um
copo (não aquele de que o casal bebeu) era colocado no chão e o noivo o
quebrava, pisando nele enquanto os presentes gritam “Mazzeltov!”14. Afirma-
se, geralmente, que o copo é partido em memória da destruição do templo, de
maneira que mesmo nas ocasiões mais alegres, os judeus não esquecem que
parte do povo judaico ainda está no exílio.
Asheri (1995) acredita que a experiência total do povo judaico acha-
se carregada de superstições, muitas delas peculiares aos judeus. Para ele, a
origem desta cerimônia da quebra do copo tinha base em crenças de que
os casamentos são atraentes aos maus espíritos; por isso, cria-se que esses
barulhos afugentavam as influências malignas.
Por sua vez, J. Kolatch (1995) acrescenta que diversas explicações
existem em relação à obrigação do noivo de quebrar o copo, mas todas elas
convergem numa finalidade - criação de ruídos. Na sua visão, a explicação mais
popular e tradicional diz que o ruído de estilhaços é uma dura recordação da
perda da independência nacional judaica nas mãos dos romanos em 70 d.C.
Após o copo ser quebrado, a birchat cohanim15, é proferida, e os convidados
permanecem na sinagoga até que a noiva e o noivo tenham saído. A razão para
isso é muito importante: a cerimônia não é válida até que os recém-casados
tenham se encaminhado para um aposento onde possam ficar sozinhos por
alguns minutos. Seu encontro tem de ser a portas fechadas e a entrada ao
aposento deve ser testemunhada pelos dois homens que assinam o Ketubá.
A lei e o costume judeu era fortemente avessa à permanência de duas
pessoas do sexo oposto, sozinhas, no mesmo aposento, a menos que sejam
casados. A reclusão simbólica do casal indicava a sua condição de casados
e também que ela (a noiva) não era censurada, mas antes aprovada pela
comunidade. A reclusão do casal durava apenas alguns minutos, o suficiente
para que o mesmo tivesse um momento a sós, e para que aproveitasse a
oportunidade de falar um ao outro sem ter outros presentes. Costumeiramente,
quebrava-se o jejum do dia do casamento com um pouco de vinho e um
pedaço de bolo, sua primeira refeição juntos. (ASHERI,1995)
O término do rito do matrimônio era marcado pela quebra de um
copo de vinho: a finalidade era lembrar ao esposo que ninguém (nem ele
mesmo) podia ter felicidade distintiva e completa bem como para manter
vivo na memória o fato de não deixa-los esquecer de que não há alegria plena
enquanto o “templo de Jerusalém” (símbolo da presença divina) não fosse
reedificado. (DI SANTE, 2004).
14
Boa sorte, saúde e felicidades a todos!!
15
Bênção do sacerdote recitada na liturgia judaica.
| SEMINÁRIO ADVENTISTA LATINO-AMERICANO DE TEOLOGIA - SALT |
O CASAMENTO JUDEU: RITUAIS, CRENÇAS E SIGNIFICADOS | 79
LUA DE MEL
Uma tradição antiga com base na história de Jacó diz que as festas
de casamento devem durar sete dias, pois foram sete os anos exigidos a
Jacó por cada uma de suas esposas, Léa e Raquel. Desde a primeira refeição
após a cerimônia de casamento, repetem-se as sete bênçãos que tinham sido
recitadas sob a chupá. E durante os sete dias seguintes, reúne-se um minian16
a cada dia, com a noiva e o noivo presentes, para ouvir estas sete bênçãos
novamente. A lua de mel ocorre depois que esses sete dias tenham passado.
(LIFSCHITZ,1996).
De acordo com o Rabi Eliahu (1984), existe uma ética na sexualidade
judaica que proíbe ao homem, a partir da lua de mel, ter relações sexuais com
sua esposa no intuito de causar-lhe sofrimento ou frustração. O esposo, além
disso, não devia forçá-la a ter relações, pois um dos mandamentos existentes
no Israel antigo era o de “amar o próximo como a si mesmo”. (Levítico,
19:18). Outro dado importante apresentado por esse teórico revela que, nesse
ethos judaico, para o homem produzir prazer na mulher se fazia necessário que
ele soubesse as diferenças naturais que existem entre eles no âmbito sexual;
o homem tem o prazer mais rápido, enquanto que o prazer da mulher não
está no ato em si, mas no carinho, no amor, nos beijos e tudo que envolve
e antecede o ato. Assim, o ideal era que o homem se unisse à sua esposa
e os dois chegassem juntos ao clímax. Após o ato sexual, na lua de mel,
o homem é proibido de abandonar sua esposa. Aconselha-se que o casal
permaneça junto, ao término da relação, demonstrando assim o afeto e a
unidade existente entre eles.
Em uma pesquisa realizada por Risman (1997)17 foi enfatizada
a importância que o Judaísmo dava ao comportamento sexual para a
manutenção dos laços maritais de maneira que, o casal estaria sempre em
lua-de-mel, sensação esta renovada mensalmente no reencontro do casal que
ficava “afastado sexualmente” durante o Período de Niddah, aumentando
assim as alternativas de diálogo e a ampliação do desejo sexual.
A IMPUREZA DA MENSTRUAÇÃO
Os casais observantes do judaísmo seguiam uma regra antiga,
alternando tempo de abstinência e prazer. Esse controle sexual sempre fez
parte do matrimônio dentro da fé judaica. De acordo com a torá, qualquer
surgimento de sangue da vagina tornava a mulher ritualmente impura. Isto
significava que ela não podia ter relações sexuais com o marido. Por extensão,
16
É um grupo aleatório de dez homens que representam o povo judeu e que a presença é
necessária na realização de muitos atos e funções religiosas que devem ser realizados.
17
Psicólogo clínico. Pós graduado em sexualidade humana pela Universidade Gama Filho.
| REVISTA HERMENÊUTICA, CACHOEIRA-BA, VOL. 12, N. 2, P. 71-84 |
80 | LUIZ CARLOS LISBOA GONDIM / LUCAS MANCILHA GONDIM
o marido não podia nem mesmo tocá-la, para não leva-la à violação de um
importante mandamento (lev. 15:19 e 18:19). No momento em que a mulher
notava que saía algum sangue da vagina, mesmo que não passasse de uma
mancha em suas roupas íntimas, ela se tornava uma nidda18, e devia abster-se
de manter relações sexuais com o marido. Além disso, tornava-se geralmente
impura e transmitia impureza ritual por contato. Por isso, muitos judeus
praticantes não apertavam a mão de mulheres, porque se pressupunha que
todas estavam no estado de impureza ritual, uma vez que não havia meio de
saber o contrário, pois a boa educação impedia que lhes perguntasse. Quando
o sangue era causado pela menstruação normal, presumia-se que o período
duraria cinco dias. Ao final desse período, a mulher devia contar mais sete
dias, nos quais não aparecesse sinal de sangue. Devia, então, purificar-se numa
mikvá19. Mesmo que o seu período terminasse um dia após ter começado, ela
não podia começar a contar os sete dias puros antes que cinco dias tenham-
se passado, incluindo o dia em que o sangue aparecia pela primeira vez. Em
síntese, os casais judeus abstinham-se de manter relações sexuais durante dez
a dose dias consecutivos em cada mês. (ASHERI, 1995).
Passados os sete dias puros, a mulher devia fazer uma imersão total
(mikvá). Todas as comunidades judaicas de certo porte possuem uma casa
de banhos deste tipo. Isso era considerado tão importante que a lei judaica
estabelecia que quando se construísse uma nova comunidade num lugar,
a mikvá devia ser a primeira construção a ser empreendida. Só depois era
construída a sinagoga. A imersão tinha de ser completa e não devia existir
nada entre a mulher e a água. Além disso, ela devia estar acompanhada de
outra mulher, de mais de doze anos. Era preciso se certificar de que a mulher,
antes menstruada, estava inteiramente coberta pela água, até mesmo os
cabelos da cabeça, que não podiam ficar flutuando na superfície.
Como o dia judaico termina ao pôr-do-sol, a esposa para de contar sete
dias puros de abstinência, exatamente nessa passagem do dia para noite. A lei
diz que ela deve imergir-se na mikvá assim que as estrelas forem claramente
visíveis, a fim de não adiar a ação desse importante ritual e tornar possível o
mandamento igualmente importante das relações conjugais com o marido.
(ASHERI, 1995).
O sangue que acompanhava o parto também tornava a mulher ritualmente
impura. Se a criança que nascesse fosse um menino, a mãe era considerada
impura por sete dias, por causa do parto. Após o nascimento da criança, a mãe
18
Ritualmente impura, (do hebraico hdyn removido , separado) é a palavra que no judaísmo
designa o status de uma mulher durante seu período menstrual e os sete dias subsequentes, até que a
mulher mergulhe em uma mikvá, onde será considerada ritualmente purificada.
19
Banho de purificação ritual (em hebraico hw"q.mi) é o nome dado à imersão ritual em água
utilizada no judaísmo. Geralmente é utilizado para purificação da mulher após a menstruação e o
nascimento de um filho, e também é requerido aos que se convertem ao judaísmo.
| SEMINÁRIO ADVENTISTA LATINO-AMERICANO DE TEOLOGIA - SALT |
O CASAMENTO JUDEU: RITUAIS, CRENÇAS E SIGNIFICADOS | 81
devia contar sete dias limpos e ir então à mikvá. Se desse à luz uma menina, o
período impuro era de quatorze dias, após os quais começam a ser contados
os sete dias puros (Lv. 12, 2-5). Os homens também utilizam a mikvá, mas por
motivos diferentes. Entre os mais ortodoxos, em especial entre os chassidim e
os estudantes da cabala, era costume visitar a mikvá nas tardes de sexta-feira,
antes do início do shabat20. Porém muitos homens iam à mikvá apenas uma vez
por ano, antes do yom kipur21.
DIVÓRCIO JUDEU
O judaísmo tratava o divórcio como uma catástrofe que só ocorreria
em casamentos equivocados. Os rabinos tinham instruções rigorosas para
desencorajar, adiar e evitar o divórcio até onde fosse possível. Segundo a lei
judaica, o casamento termina apenas pela morte de um dos cônjuges ou pelo
gett22. Se o casamento apenas no civil é até certo ponto reconhecido pela lei
judaica, o divórcio não o é. As leis que se referem à preparação do gett estão
longe de serem simples. Em primeiro lugar, o divórcio é concedido à esposa
pelo marido. A esposa não tem o poder de divorciar-se do marido. Contudo,
se uma mulher tivesse razões para querer divorciar-se do marido, podia dirigir-
se a um tribunal judaico chamado bet din23 e exigir que o marido se divorciasse
dela. Se o bet din concordasse que suas razões eram legítimas, podia ordenar
ao marido que concedesse o divórcio, sob pena de excomunhão se necessário.
(ASHERI,1995).
A lei de Dt 24-1 algumas vezes era considerada como tentativa de
restringir o direito absoluto do marido de divorciar-se da esposa, tornando
o adultério o único motivo para essa ação. Phillips (1981) contradiz essa
interpretação pelo fato de que a lei em (Dt 22:22) manda que a execução e
não o divórcio seja a punição pelo adultério. Costa (1995) comenta que a lei
mais antiga para a mulher que faz referência ao adultério impõe como pena
não a execução, mas o divórcio. Em Os 2,4 e Jr3,8 pode-se compreender
que o homem acusado de adultério era considerado o mais responsável. O
posicionamento firmado pela visão deuteronômica, impunha a pena de morte
para ambos os participantes, cuja a
20
É o sábado iniciado ao pôr-do-sol de cada sexta-feira até o pôr-do-sol do sábado.
21
Segundo o costume judaico é um dos dias mais importantes. No calendário hebreu começa
no crepúsculo que inicia o décimo dia do mês hebreu de Tishrei (que coincide com Setembro ou
Outubro), continuando até ao seguinte pôr do sol. Os judeus tradicionalmente observam esse feriado
com um período de jejum de 25 horas e reza intensa.
22
Gett é como se chama o divórcio judaico.
23
Termo usado para denominar um tribunal judaico, composto por duas testemunhas, ambos
judeus praticantes que não sejam aparentados entre si ou a qualquer dos membros do casal que se quer
divorciar.
| REVISTA HERMENÊUTICA, CACHOEIRA-BA, VOL. 12, N. 2, P. 71-84 |
82 | LUIZ CARLOS LISBOA GONDIM / LUCAS MANCILHA GONDIM
VIUVEZ JUDAICA
De acordo com a Tora (Deut. 25, 5-10), se um homem morrer sem ter
filhos, o irmão fica na obrigação de casar-se com a viúva. A criança do sexo
masculino que nascer deste casamento levirato24 será então considerada herdeira
legal do irmão falecido. Em todos os casos em que o casamento levirato seja
indicado, deve-se recorrer ao procedimento da chalitza. Este é encontrado no
mesmo capítulo do deuteronômio e reconhece o fato de que não pode haver
casamento sem consentimento de ambas as partes. (ASHERI,1995).
Entre os judeus praticantes, a cerimônia de chalitza era de muita
importância uma vez que sem ela a viúva não podia se casar de novo. Na prática,
a viúva e seu cunhado compareciam perante um bet din composto por três
24
Levirato (ou levirado) é o costume, observado entre alguns povos, que obriga um homem
a casar-se com a viúva de seu irmão quando este não deixa descendência masculina, sendo que o
filho deste casamento é considerado descendente do morto. Este costume é mencionado no Antigo
Testamento como uma das leis de Moisés.
| SEMINÁRIO ADVENTISTA LATINO-AMERICANO DE TEOLOGIA - SALT |
O CASAMENTO JUDEU: RITUAIS, CRENÇAS E SIGNIFICADOS | 83
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise expressa neste artigo identificou os rituais, crenças e
significados do casamento judaico. Buscou-se responder o questionamento
quanto às características dos rituais conjugais no ethos israelense. O estudo
apresentou informações tais como conceito judaico de casamento, noivado,
cerimônia matrimonial, alianças e votos, lua de mel, divórcio e viuvez. A
pesquisa revela que a indissolubilidade do casamento na cultura judaica é
um princípio demarcado pela relação com um Deus eterno e único, que dá
aos cerimoniais ritualísticos judaicos contornos sublimes que singularizam
a visão de conjugalidade de uma sociedade preocupada em reconstruir os
ideais edênicos expressos no pacto matrimonial. O trabalho não encerra a
temática e sugere novos estudos para além dos rituais ligados ao casamento
e se expressa na intenção de contribuir com a produção teórica sobre o ethos
judaico.
REFERÊNCIAS
ASHERI, Michael; SALOMAO, Jaime. O Judaismo vivo: as tradições e as
leis dos Judeus praticantes. Tradução de Jose Octavio de Aguiar Abreu. Rio
de Janeiro: Imago, 1995.
AUSUBEL, Nathan; JUKIEWICZ, Eva Schechtman. Conhecimento
judaico I. Rio de Janeiro: A. koogan, 1989.
CLEMENTS, R. E; COSTA, Joao Rezende. O mundo do antigo israel:
perpectivas sociologicas, antropologicas e politicas. São Paulo: Paulus, 1995.
DEDEREN, Raoul (Ed.). Tratado de teologia Adventista do Sétimo Dia.
Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2011.
25
Frutos de toda relação sexualmente ilícita.
| REVISTA HERMENÊUTICA, CACHOEIRA-BA, VOL. 12, N. 2, P. 71-84 |
84 | LUIZ CARLOS LISBOA GONDIM / LUCAS MANCILHA GONDIM
RESUMO
Este artigo se propõe a analisar a tese de Marcel Gauchet de que Jesus foi um “Messias ao
revés.” Gauchet entende que a aliança de Deus com Israel era exclusiva a este povo e os
tornava únicos. Por outro lado, o povo de Israel sustentava que este Deus era o Criador
Universal, portanto um Deus Universal, e que deveria ter uma dominação universal. Para
Gauchet, o messianismo é uma solução encontrada para resolver o problema entre a
exclusividade e a universalidade, entre a aliança e a dominação. Neste artigo são analisados
os argumentos de Gauchet a respeito da exclusividade da aliança, a partir de outros autores,
mas principalmente através do texto sagrado para os judeus, a saber, o Velho Testamento e
mais especificamente a Torá. Busca-se ainda o significado do messianismo para os judeus
em comparação com “o rei sagrado” dos povos vizinhos. Por fim, é verificado o significado
do messianismo de Jesus para os judeus, através da literatura judaica pós-cristianismo.
PALAVRAS-CHAVE: Gauchet. Messianismo. Aliança Universal. Exclusivismo Judaico.
ABSTRACT
This article proposes to analyze the thesis of Marcel Gauchet that Jesus was a "setback
Messiah." Gauchet understands that God's covenant with Israel was exclusive to these
people and made them unique. On the other hand, the people of Israel maintained that
this God was the Universal Creator, therefore a Universal God, and that should have a
universal domination. To Gauchet, the messianism is a solution found to solve the problem
between the exclusivity and the universality, between the covenant and the domination. In
this article are analyzed the arguments of Gauchet about the exclusivity of the alliance,
from other authors, but mainly through the sacred text for the Jews, namely, the Old
Testament and more specifically the Torah. Also seeking the meaning of messianism for
the Jews compared to the "sacred king" of the neighboring peoples. Finally, it is checked
the meaning of the messianism of Jesus to the Jews, through the Jewish literature post-
Christianity.
KEYWORDS: Gauchet. Messianism. Universal Alliance. Jewish Exclusivism.
INTRODUÇÃO
Neste artigo será investigada a plausibilidade da tese de Marcel
Gauchet, que identificou a Jesus como o “Messias ao revés”. Primeiramente
será destacada a teoria de Gauchet a respeito de como aconteceu o processo
1
Mestrando em Ciências da Religião pela UFJF, bacharel em Teologia pelo Seminário
Adventista Latino-Americano de Teologia, diretor de publicações da IASD. E-mail: <colportagem@
hotmail.com>.
86 | FLÁVIO SILVA SOUZA
O MESSIANISMO
Como já foi mencionado, depois de fixado o judaísmo, vem Jesus e
o ultrapassa completamente. Gauchet entende que a pregação de Jesus
vem como solução à contradição original do javismo, agravada no seio do
4
A aliança de Deus com o povo de Israel se assemelha muito com as alianças hititas do final
do segundo milênio antes de Cristo, com (1) Título ou Preâmbulo (Dt 1: 1-5); (2) Prólogo Histórico (Dt
1:6-3:29); (3) Estipulações ou mandamentos (Dt 4-26); (4) Depósito do texto e leitura pública (Dt 31:
9-13; 24-26) (5) Testemunhas (Dt 31:16-30) e (6) Bênçãos e Maldições (Dt 28:1-68). NETO (2001),
5
O profetismo faz parte do contexto da aliança. Em Dt 18: 9-14, Deus ordena o povo para
que não tenha no meio dele adivinhos e feiticeiros. Como parte da aliança, Deus garante que o dom
profético estará no povo de Israel (Dt 18: 15-22), como resposta ao pedido do povo em Ex 20:19
(comparar com Dt 18: 16-17). Assim, o profeta será a boca de Deus e seu representante para lembrar
os termos da aliança e exigir o seu cumprimento. Sendo assim, o profeta ao discursar ao povo de Israel,
lembrava-lhe constantemente das bênçãos e maldições (Lv 26 e Dt 28) previstas na aliança, as primeiras
como recompensa pela obediência e as segundas como consequência da desobediência.
6
As mensagens dos profetas normalmente eram de exortação ao povo. Por exemplo, Isaías
alertava o povo a respeito de sua apostasia e condenava o culto hipócrita (Is 1:10-17), a cegueira espiritual
e a hipocrisia do povo (Is 29:9-16). Mas também havia mensagens para indivíduos em particular como
a Ezequias, o rei de Judá (Is 39-1-8).
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GAUCHET E O MESSIANISMO | 89
não é defendê-lo ou exaltá-lo, mas a partir dele entender a religião judaica, pois
este é o texto base desta religião, ou seja, a própria fonte para a compreensão
da mesma.
MESSIANISMO EM ISRAEL
Ao perceber que a aliança não era exclusivista e que, portanto, não
seria um problema entre ela e a universalidade de Deus o responsável pelo
surgimento do messianismo, aparecem duas hipóteses: o messianismo pode
ser um fenômeno original do judaísmo ou uma apropriação da religião ou
das religiões dos países vizinhos de Israel. Para entender o significado do
messianismo em Israel e verificar se há uma apropriação da religião dos povos
O TERMO MESSIAS
A análise do termo “messias” e seu significado para o povo de Israel é
fundamental para verificar se este termo em Israel tinha a mesma conotação
para os povos do Antigo Oriente Próximo. Pois, é importante observar se há
ou não um empréstimo do pensamento religioso do Antigo Oriente Próximo
à religião judaica a partir do uso desse termo.
O termo “messias” aparece cerca de 40 vezes no AT, principalmente
em 1 e 2 Samuel e Salmos. Sendo um termo quase exclusivamente usado para
os reis.
Conquanto possa designar uma função, tal como sumo-sacerdote (Lv 4:3), mashîah15
é quase exclusivamente reservado como sinônimo de rei (melek), como em textos
poéticos, onde é paralelo de rei.16 São notáveis as frases “o ungido do Senhor” ou
equivalentes como “Seu ungido”, as quais se referem também a reis. (HARRIS,
1988, p. 885)
15
Transliteração do termo messias em hebraico, que tem como significado: ungido.
16
1 Sm 2:10; 2 Sm 22:51; conferir com Sl 2:2; 18:50
| REVISTA HERMENÊUTICA, CACHOEIRA-BA, VOL. 12, N. 2, P. 85-109 |
94 | FLÁVIO SILVA SOUZA
para se entender o significado deste termo para o povo de Israel e sua religião.
O termo mashîah parece estar associado com à função de libertação do povo
de Israel.17 Além disso,
Neste contexto, vale a pena considerar com mais detalhes a descrição de Ciro, rei
da Pérsia, como “ungido” de Deus (Is 45:1), embora fique claro que não tinha sido
ungido rei em conformidade com o costume judaico (israelita). Vemos aqui uma
sublimação do conceito que o torna independente do ato externo, ao transferir o
peso inteiro do assunto para a nomeação da parte de Deus daquele que é designado
pela unção. Neste caso, a pessoa ungida é aquela que Deus escolheu de modo
especial, colocando-a sob seu comando. O ungido de Deus, portanto, depende
de Deus, além de ter sido integrado no Seu plano em obediência a sua vontade. É
assim que se explica, em parte, a razão porque os reis judaicos (de modo contrário
ao padrão das monarquias sacras noutros lugares) juntamente com o messias
judaico do AT, nunca adquiriram feições divinas, mesmo nos assim chamados
salmos de entronização, tais com Sl 2 e 110. (op. cit., p. 1081)
Pode-se observar que o ato da unção não era tão importante como a
escolha divina. Contudo não eram apenas as pessoas que eram ungidas, os
utensílios do templo também eram ungidos (Lv 8:10-11; Nm 7:10) e até o
povo era chamado de ungido (Hb 3:13). Pode-se concluir que apesar de os
povos vizinhos utilizarem a unção a reis e possivelmente a sacerdotes, a unção
para o povo de Israel tinha um conceito bem diferente, pois além de funções
diferentes para o rei e o sacerdote como já foi visto, um rei estrangeiro poderia
ser um “ungido de Israel” mesmo que não houvesse uma unção realizada por
nenhuma autoridade de Israel. Logo, pode-se afirmar que a unção e mesmo
o conceito do termo messias (ungido) não tem uma origem externa ao povo
de Israel.
17
Ciro libertou o povo de Israel da Babilônia e autorizou a volta do mesmo para seu território.
Ainda pode-se ver Saul como mashîah na sua primeira campanha militar 1Sm 11.
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GAUCHET E O MESSIANISMO | 95
Além disso, o Messias era um rei que viria, ou seja, o reino ideal não
é o atual, mas um que está por vir, diferente da ideia de reino ideal que, na
Mesopotâmia, era o do momento atual.
Há ainda a ideia de que Israel incorporou a figura do rei sagrado de
Canaã para seus reis; em outras palavras, a partir da cultura cananeia, Israel
tornou seus reis, reis sagrados. Entretanto, “ao contrário do ponto de vista da
antiga Escola de Mito e Ritual, parece que os israelitas não consideravam seu
rei divino”.(op. cit., p. 87) Além disso:
É evidente que o Deuteronômio pretende, de algum modo, circunscrever
e restringir os poderes do rei. O rei apresentado aqui difere enormemente do
costumeiro conceito do Antigo Oriente Próximo do rei como executivo principal
em todos os aspectos da vida da nação. (op. cit., p. 286)
De maneira significativa, o rei não é o “filho de Deus”, nos termos da teologia
de Sião (Sl 2:7). Essa metáfora é antes aplicada a Israel (1:31- deste modo
aproximando Deuteronômio mais de Ex 4:22-23 e de Os 11:1 do que de passagens
que refletem a ideologia de Sião). Na verdade, o conceito de realeza de Sião é
sutilmente contestado na fórmula deuteronômica de escolha divina, que se aplica
ao local de culto (12:4, etc.) e ao rei. Esse par de objetos de escolha corresponde
aos da teologia de Sião (Sl 2:6). Mas o anonimato do primeiro, no Deuteronômio, e
o lugar humilde concedido ao segundo evidenciam um modo de pensar diferente a
respeito da natureza da organização de Israel. Longe de ser filho de Deus, de forma
especial, o rei é um irmão israelita (17:15b.20). Sua subordinação à Torá (vv. 18-19)
corresponde a essa igualdade fundamental de posição com seus semelhantes. (op.
cit., p. 287-288)
Observa-se que além de o rei ser igual aos seus cidadãos em sua
subordinação à Torá, na distribuição de poderes em Israel, ele não está na
posição de mais influência. Além disso, o rei não é nem mesmo imprescindível
para Israel.
Deve-se ressaltar também a significativa diferença entre os sistemas de
governo de Babilônia e Canaã em relação a Israel.
Pode-se dizer que os sistemas de governo da Babilônia e de Canaã estavam
simbolizados no domínio divino, e o rei é a figura essencial neste mundo simbólico.
O deuteronômio destina o rei a um papel administrativo que, sempre levando em
conta o elemento da escolha de Iahweh, pode ser chamado de secular. A história
deuteronomista também rejeita as teorias orientais sacras. (DAY, 2005, p. 19)
OS DIVERSOS MESSIAS
Os muitos conceitos produziram muitos messias, alguns líderes judeus
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GAUCHET E O MESSIANISMO | 101
70 d.C.
Ele conseguiu reviver as esperanças messiânicas que estavam
adormecidas no inconsciente coletivo. Outro que também faz parte da lista
dos pretendentes messiânicos que lutaram pela libertação política de Israel foi
Simão Bar Giora, que segundo Josefo nasceu em torno de 35 d. C. Ele lutou
implacavelmente pela liberdade de Israel, e só parou sua luta por causa da
queda de Jerusalém em 70 d.C. Observam-se algumas semelhanças de Simão
Bar Giora com Jesus, como sua origem humilde, os estudos arqueológicos em
relação a sua aceitação através da esperança escatológica e sua entrada triunfal
em Jerusalém no período da Páscoa. (SCARDELAI, 1998)
Há ainda um pretenso messias que teve seu “messianismo” fora das
terras de Israel. Seu nome era Andreas Lukuas (114-117 d.C.), líder da grande
rebelião de 114 d.C. Ele comandou judeus de diversas localidades como
Cirene, Egito, Mesopotâmia e Chipre, e ainda foi proclamado rei.
Simão Bar Kokhba é o divisor de águas entre o messias filho de Davi e
o filho de José. Sua rebelião contra Roma foi um dos maiores acontecimentos
registrados nas crônicas judaicas depois da Grande Guerra de 66-70. O grande
destaque de Bar Kokhba em relação aos outros pretensos messias, é que pela
primeira vez alguém de destaque na religião judaica atribui o título de messias
a uma pessoa. (SCARDELAI, 1998)
Além disso, o Rabino Akiba considera Bar Kokhba como o cumprimento
da profecia de Números 24:17, e o Talmud confere a ele o título de messias.
Kokhba, como se sabe, fracassou em sua rebelião contra Roma. Então foi
adotada uma abordagem marginal, já conhecida na tradição oral, a doutrina
do “messias filho de José”. Era um elo entre a catástrofe daquele momento e
a esperança do futuro.
O próximo tipo de “messias” a ser estudado é o “messias profeta”.
Teúdas foi um personagem exótico no período anterior à Grande
Guerra de 66 a 70 d.C. Ele foi preso e condenado entre 44 e 46 d.C. Entre
suas acusações estava a propagação de expectativas redentoras. Não foi um
movimento isolado, Gamaliel cita-o em At 5:36. Téudas, baseado em Dt
18:15, cria que o messias seria um novo Moisés e ele se considerava este novo
Moisés. (SCARDELAI, 1998)
Ainda como messias profeta, Jonatas de Cirene e o falso profeta egípcio
também utilizam a ideia de um Novo Moisés e a metáfora do deserto. Como
pode ser visto aqui, entre o I a.C. e o II d.C., havia muitos pretensos messias,
ricos e humildes, descendentes de Davi e sucessores de Moisés, guerreiros e
profetas.
É curioso que Gauchet, além de não atentar para o fato de que a ideia
de um messias era muito plural e confusa em Israel, como já foi visto, afirme
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O JUDAÍSMO E JESUS
Pelo que afirma Gauchet, parece que o cristianismo foi uma metamorfose
natural do judaísmo. É verdade que o cristianismo iniciou entre os judeus
e que os primeiros discípulos eram todos judeus. Mas, só o fato de terem
surgido “novos messias” demonstra que a aceitação do messianismo de Jesus
não foi tão grande assim por parte dos judeus e especialmente do judaísmo.
(SCARDELAI, 1998)
Se Jesus “não esteve a altura” das expectativas messiânicas de seu povo,
com o judaísmo normativo não foi diferente.
É curioso que o que identifica a Jesus como Messias no cristianismo é
o que o afasta no judaísmo: a morte na cruz, por exemplo.
Na visão judaica, sua morte na cruz não foi apenas um malogro diante das suas
pretensões messiânicas, como também privou-o do caráter messiânico. Como seria
possível reconhecer o redentor diante do malogro da redenção? (SCARDELAI,
1998, p. 263)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através deste estudo pode-se ver que a tese de Gauchet, em relação
ao messianismo, encontra algumas dificuldades, pois é nítido que a aliança
de Israel com Deus era inclusiva e não exclusiva como supõe ele. Assim, a
afirmação de que a exclusividade da aliança foi um motivo determinante para
o messianismo é insustentável. Pode-se ver também que a ideia de Messias
em Israel era diferente do conceito de messias nos povos vizinhos de Israel.
Além disso, foi observado que o conceito de Messias em Israel, entre os
séculos I a.C. e II d.C., era muito diversificado e com vários tipos de Messias,
a saber, filho de Davi, filho de José e profeta, demonstrando, assim, que as
expectativas messiânicas, naquele período, eram diferentes do que propõe
Gauchet, ou seja, os judeus de uma maneira geral não aguardavam por um
tipo específico de Messias, muito menos um Messias como Jesus.
Ainda foram motivo de estudo os diversos “messias aclamados” dos
séculos I a.C. ao II d.C., tornando possível perceber que a ideia de Gauchet
de que qualquer um poderia ser o messias e mais ainda aquele que originaria
a chamada “religião da saída da religião” é muito improvável pelo número
destes messias aclamados e o resultado de seus movimentos após a morte de
cada um deles.
Ao observar a rejeição do judaísmo em relação ao cristianismo, que não
é mencionada por Gauchet, tem-se uma ideia bem diferente do conceito de
Gauchet em relação ao cristianismo como uma sequência natural do judaísmo.
Por fim, ao estudar o artigo de Siqueira (2004) a respeito dos profetas e o
messianismo, especialmente Daniel e Jeremias, compreende-se que Jesus não
foi um Messias ao revés como supôs Gauchet, mas foi um Messias como
foi previsto pelos profetas. Conclui-se, portanto, que a tese de Gauchet em
relação ao messianismo não é plausível.
REFERÊNCIAS
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Gordon Chown. 3ª ed. São Paulo: Vida Nova, 2007. p. 465-508. Veja também
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correntes religiosas de Alexandre Magno até o imperador Adriano. Trad.
Rosangela Molento Ferreira. São Paulo: Paulinas, 2003.
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Jesus e outros messias. São Paulo: Paulus, 1998.
SIQUEIRA, Reinaldo. A profecia apocalíptica como chave hermenêutica
para a interpretação da escatologia da profecia clássica do AT: um estudo
em Isaías, Jeremias, Daniel e Apocalipse. Em: TIMM, A. R.; RODOR A.
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GAUCHET E O MESSIANISMO | 109
como seu autor é sempre mais forte que o julgamento baseado na razão e na
experiência humana.
E para introduzir a estratégia da integração Blackwell utiliza algumas
citações de Campanella nas quais ele faz comentários sobre os livros de Deus
e afirma que quem teme a contradição entre ciência e religião está cheio de
má fé.
O objetivo de Campanella parece ser unir a ciência e religião em um
todo unificado e não há maior exemplo dessa estratégia do que Tomás de
Aquino, o qual tomou para si a tarefa de reconciliar a filosofia e a ciência
de Aristóteles com a fé católica, uma tarefa muito arriscada, como atesta o
fato de que, apenas dois anos após a sua morte, o Bispo de Paris condenou
alguns de seus escritos, mas ainda assim Aquino se tornou a nova ortodoxia
católica.
Uma estratégia de integração como essa poderia ocorrer hoje? Para
Blackwell há uma chance mínima de isso ocorrer, pois integração envolve
reconceptualização das duas disciplinas (ciência e religião) e a reconciliação
causa furor na instituição religiosa, visto que ela é encarregada de manter a
revelação original intacta. Ex. Teilhard de Chardin. Portanto, a estratégia da
integração também envolve consequências problemáticas.
As visões de Agostinho (separação) e Aquino (integração) são ainda
importantes no modo como nós hoje vemos as relações entre ciência e
religião e o caso Galileu é o principal fator que formata as mentes modernas
sobre essas relações.
Na terceira parte, denominada Um breve esboço do caso Galileu Blackwell
afirma que os fatos do caso Galileu revelam os parâmetros que tem
caracterizado as relações entre ciência e religião desde então. O primeiro fato
é que houve dois julgamentos e não apenas um. O primeiro (1616) versava
sobre as questões da verdade, fatos e em um nível abstrato, já o segundo
(1633) versava a culpabilidade legal, questão de autoridade e em um nível
pessoal.
Por volta de 1597, Galileu começou a demonstrar crença no
heliocentrismo, a qual era já uma crença antiga mantida pelos gregos. Mas, só
em 1610 com as novas descobertas, Galileu vai assumindo o heliocentrismo
como a mais provável descrição do sistema solar.
Os inimigos de Galileu apontavam a inconsistência entre a nova
astronomia e as passagens das escrituras, tais como: Josué e Salmo 19:4-6.
Assim a nova astronomia parecia implicar que a Bíblia estava errada e tal
questão era um assunto muito espinhoso no contexto da reforma protestante
e da contra reforma católica.
Duas questões difíceis sobressaíam: a) a reinterpretação das escrituras
| REVISTA HERMENÊUTICA, CACHOEIRA-BA, VOL. 12, N. 2, P. 113-117 |
116 | WELLINGTON GIL RODRIGUES / JÉSSICA RENATA PONCE DE LEON RODRIGUES