SOARES, Emanoel Luís Roque. As vinte e uma faces de Exu na filosofia afrodescendente da
educação. Cruz das Almas/Belo Horizonte: EdUFRB/Fino Traço, 2016.
ROCHA, Aline Matos da. As vinte e uma faces de Exu na filosofia afrodescendente da educação (Re-
senha). Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação. Número 28: maio-out./2017, p. 203-207.
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bas, pouco conhecidas e estudadas nas “será que um método ocidental serve para
academias brasileiras. Estas que além de uma pesquisa de matriz africana?” (SOA-
ser um espaço de pesquisa, são as princi- RES, 2016, p. 31), apresenta sua compre-
pais formadoras de professoras e professo- ensão da fenomenologia e explica porque
res, que precisam dialogar com outras vo- considera a sua utilização um caminho pro-
zes para poder ensiná-las e fomentá-las em fícuo para estudar Exu. Para Soares (2016,
suas/seus estudantes. Reconhecendo tam- p. 32):
bém as vozes e experiências daquelas e A fenomenologia é uma espécie
de comunicação da realidade à
daqueles. De acordo com Hooks (2013, p.
nossa consciência, uma maneira
119), cada estudante “tem suas lembran- de conversar com o problema
de pesquisa, de inquiri-lo, de di-
ças, sua família, sua religião, seus senti-
alogar com ele para compreen-
mentos, sua língua e sua cultura que lhe dê-lo, interpretá-lo; faz-se neces-
sário um interrogar constante de
dão uma voz característica”, a qual deve
rigor filosófico para que o fenô-
ser levada em consideração no processo meno venha a se mostrar. Dessa
forma, tal como o nosso objeto,
educativo. Em virtude disso, o livro salienta
no caso Exu, para o olhar fe-
o aspecto interdisciplinar de Exu e os diá- nomenológico, não pode existir
uma só realidade, pois existem
logos que o pensamento mobilizado pelo
várias interpretações e, assim
orixá estabelece com outras vozes, fomen- sendo, da mesma maneira que
existem vários Exus e todos re-
tando diversos enfrentamentos, tais como
ais, as verdades fenomenológi-
religiosos, educacionais e epistemológicos, cas também são várias, todas
reais e relativas, a quem as per-
buscando modificar “os modos estabeleci-
cebe e as interpreta de acordo
dos do saber” (HOOKS, 2013, p. 187). com a sua perspectiva. É um
compromisso um engajamento,
Em face(s) do exposto, o livro é
sendo que não existe neutrali-
composto por quatro capítulos – e não di- dade e, sim, uma cumplicidade,
uma escolha, quer dizer, a in-
vidido, já que “a vida não se fatia” (HAM-
tencionalidade de um perceber
PATÉ BÂ, 2010, p. 175). De modo que, no perspectivo relativo, porém rigo-
roso.
capítulo denominado Método, Soares ex-
Exu – imerso entre ser e não ser – é
põe a escolha do caminho que será percor-
fenomenológico, pois nos comunica reali-
rido com Exu. Nesse sentido, o método
dades análogas a um diamante que precisa
adotado será o fenomenológico e o genea-
ser observado e reconhecido em seus di-
lógico. O autor antecipando a pergunta:
versos lados e dimensões. Já o método
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genealógico é utilizado no sentido nietzs- nealogista olhar para a história e se questi-
chiano, introduzindo a compreensão de onar: no que Exu se transformou ao chegar
Foucault, para o qual aquela investiga as no Brasil? Que discursos são produzidos
ligações entre as formações de saber e as em relação à Exu?
relações de poder. Em Soares (2016, p. Na trilha do orixá, o capítulo intitu-
34): lado Motivações, traduz as experiências de
A genealogia é necessária para Soares com a cultura africana, e como esta
que eu aprenda num retornar a
ecoa no seu pensar africanamente e educar
Exu, não para traçar uma curva
evolutiva, mas para compreen- filosófico afrodescendente. O livro acentua
der e reconhecer as diferentes
por meio do seu autor, que não há uma
cenas e papéis distintos de cada
ator histórico. Nesta trilha gene- cisão entre vida e escrita. Em virtude disso,
alógica, as palavras do Nietzs-
Soares mobiliza um posicionamento boçal,
che para com a história da mo-
ral servem para o meu pensar este questiona (confronta) a ordem. O bo-
em relação a Exu, pois tanto a
çal é contrário a europeização do Brasil e
moral quanto o modo de ser de
Exu foram deturpados, altera- seu perverso apagamento das contribuições
dos por aqueles que, na forma
indígenas e africanas. Segundo Soares
luxuriosa de se manter hegemô-
nicos manusearam os conceitos (2016, p. 54):
legislando em causa própria,
Sou boçal, por mais pejorativo
uma vez que a história da mo-
que seja o sentido desta palavra
ral, assim como a história de
hoje, não sou ladino e nem cri-
Exu, sempre ou quase sempre é
oulo, luto com resistência para
contada e formatada estrategi-
não ver o desaparecimento de
camente por quem vence, quer
uma cultura que, embora seja
vencer, ou por quem detém ou
um atraso pelos ditos civilizados
a qualquer custo quer deter o
europeus, é para mim uma ma-
poder.
neira de ser e viver africana-
Não podemos esquecer as palavras
mente, que tem muito a ensinar
de Bidima (2017, p. 01), que nos alerta aos doutores ocidentais e às su-
as categorias que até hoje não
sobre a necessidade de nos contar histórias
deram conta dos problemas so-
e também da necessidade de fazer “como ciais do mundo.
A saber, as categorias europeias
se nossas narrativas sobre o belo, o verda-
possuem seus limites e não podem, de mo-
deiro, o bem não fossem as mesmas histó-
do absoluto, dar conta dos problemas soci-
rias que os humanos se contam em todos
ais brasileiros. O não reconhecimento dessa
os lugares”. Dessa forma, compete ao ge-
afirmação tanto atesta a nossa negação das
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bases culturais afro e indígena, quanto o os acontecimentos, as pessoas
falam de mim para mim mesmo,
nosso racismo que se manifesta de diversas
contam-me como eu sou, re-
faces: institucional, epistemológica, etc. lembram de onde vim, do que
eu gosto, como eu falo, como
Desse modo, é muito importante e signifi-
vejo o mundo, em que eu acre-
cativa a estrada sob a qual o livro vem ca- dito e que, por isso, torna em
mim forte a identidade, o per-
minhando, a qual coloca as categorias oci-
tencimento, a lembrança da cul-
dentais para dialogar com as afrodescen- tura africana, a qual juntamente
com a indígena e portuguesa,
dentes.
fazem parte do meu eu, afro-
No capítulo seguinte, designado descendente que sou.
O livro ao invocar constantemente o
Conceitos, discorre sobre o papel funda-
ponto de vista dos afrodescendentes, inver-
mental do mito na filosofia afrodescendente
te as narrativas que não levam em conta
da educação. Tendo em vista que uma das
aqueles como sujeito e enunciadores da
formas dos povos se educarem e compre-
sua própria fala. Em vista disso, o autor
enderem as clássicas inquietações: de onde
ressalta que a vida individual e coletiva dos
viemos, o que somos e para onde vamos?
afrodescendentes brasileiros está plena de
É por meio das narrativas míticas, que es-
Exu. Este para o povo de santo é a energia
tão presente em todo o livro, contando e
que movimenta tudo. Nesse sentido, as
(en)cantando as traquinagens de Exu, que
religiões de matrizes africanas são as pró-
por ser o princípio da comunicação entre o
prias expressões do orixá.
Òrun 2 e o Àiyé 3 está constantemente pro-
No tópico, olhares femininos sobre
duzindo conceitos: éticos, políticos, estéti-
Exu, há tanto o olhar (da porteira pra fora)
cos, lógicos e epistemológicos. O orixá
da antropóloga estadunidense Ruth Lan-
também é o responsável por traduzir e re-
des, que chega na década de 30 em Salva-
fletir – como o abebê 4 de Oxum – a experi-
dor - BA, para realizar seus estudos douto-
ência existencial, afetiva e religiosa de Soa-
rais, nos quais resultam na obra A cidade
res em Cachoeira, no Recôncavo da Bahia.
das mulheres, que disserta sobre a matrifo-
Para Soares (2016, p. 87):
calidade para além das famílias de santo.
É neste lugar, onde eu me reco-
nheço no outro, que as coisas, Quanto as falas da Ialorixá Juciara Silva da
Paixão, “Preta de Oxaguiã, filha e herdeira
2
Céu.
3
Terra. do Axé de Gaudina Silva, conhecida como
4
Espelho.
Referências
BIDIMA, Jean-Godefroy. Da Travessia: contar experiências, partilhar o sentido. Tradução pa-
ra uso didático por Gabriel Silveira de Andrade Antunes. Disponível em: < http://filosofia-
africana.weebly.com >. Acesso em: 28 de abr. de 2017.
HAMPATÉ BÂ, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph (ed.). História Geral da Áfri-
ca I. Metodologia e Pré-história da África. Brasília: Unesco, 2010.
HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução de
Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.
SOARES, Emanoel Luís Roque. As vinte e uma faces de Exu na filosofia afrodescendente da
educação. Cruz das Almas/Belo Horizonte: EdUFRB/Fino Traço, 2016.