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Modernidade Considerada como a época do acesso do homem & maioridade, a0 livre uso da razdo e 8 consequente autonomia em relacdo aos entraves que o impedem de escolher e de seguir por si préprio 0 seu destino, a modernidade no é sendo outra designacdo do lluminismo. Qual é ento 0 momento hist6rico que corresponde a esta 6p0ca? Os historiadores tendem a considerar 0 século XVIII como 0 século do lluminismo. E, de facto, neste século, que ocorrem dois acontecimentos que indiciam transformacées irreversiveis habitualmente associadas com a modernidade: a publicacao da Enciclopédia de Diderot e d’Alembert ea Revolucao Francesa (1789). AEnciclopédia consagrou de facto uma nova modalidade de saber, ndo fundado na autoridade politica ou religiosa, mas numa comunidade de homens dotados de razdo e por isso capazes de julzo critico. A Revolucao Francesa instituiu uma nova ordem. politica de homens livres, governados por uma Constituic0, por uma norma fundada, nao na vontade de um soberano, mas do povo. No entanto, estas transformagées vinham sendo, desde ha muito preparadas, gracas a um novo espirito que se foi afirmando, no mundo ocidental, nos mais diversos dominios da experiéncia, desde o fim da Idade Média e da Renascenca. Costumam ser definidos os seguintes factores da modernidade: o desenvolvimento e intensificacao das descobertas cientifica assim como a autonomizacdo ea fragmentagio das ciéncias, a partir de métodos de observacio e de experimentagdo sistematicamente conduzidos, o incremento e a aceleraco dos processos de invencdo técnica, a invengdo da imprensa de caracteres mévels, por Johannes Gensfleisch, mais conhecido por Gutenberg (1440), 0s ideais criticos do livre exame implementados pela Reforma e o movimento de reformulacao do catolicismo, a partir do Concilio de Trento (4545-1549, 1551-1552, 1562-1563), o incremento das vViagens maritimas que conduziram 3 descoberta dos povos do Novo Mundo, de que se destacam a descoberta da ‘América, por Crist6vao Colombo (1492) e a descoberta do caminho maritimo para a india, por Vasco da Gama (1497). Este recorte histérico da modernidade est, no entanto, longe de ser consensual. E que, por um lado, encontramos, desde 0s tempos mais remotos, intimeras manifestagdes de modernidade e de atitudes iluministas, e, por outro lado, deparamo-nos ainda hoje, ndo obstante a generalizaco dos principios iluministas, com situacGes de tirania, de coaccdo fisica ou moral, que impedem o acesso 8 maioridade e & autonomia de uma grande parte dos nossos contemporaneos. Chegaram, de facto, até nds, desde os tempos mais remotos da histéria, marcas de espirito moderno, de livre uso da razdo. A relacdo entre os que pretendem manter a todo o custo a dependéncia e o respeito da tradicaio e os que ousam pensar por si préprios e aceder a autonomia nem sempre foi pacifica, mas pontuada muitas vezes por disputas e lutas sangrentas. Recordemos, na tradico semita, 0 relato biblico do fratricidio de Caim praticado contra 0 seu irmio Abel que, & sua maneira, relata o confronto fatal entre o pastor némada e o agricultor sedentario, que deve estar associado ao surgimento do neolitico, ou 0 relato da divisdo das linguas que acompanha © episddio da Torre de Babel, contempordneo da invencao do fogo. Na tradico helénica, os ricos episédios narrados na lliada e na Odisseia sao fixagdes por escrito das lendas orais dos povos que habitavam a bacia do Mediterraneo e que, deste modo, consignaram uma sabedoria humana, auténoma portanto em relacdo aos ordculos divinos. Fol sobre este fundo que se veio a constituir filosofia grega, momento considerado por muitos autores como © milagre grego. Se desde sempre os homens procuraram explicacdes, racionais para a sua experiéncia e tentaram lutar pela conquista da autonomia, foi, no entanto, s6 no século VI que apareceu, num texto eclesidstico, pela primeira vez, a palavra moderno, adjectivo forjado a partir de outros termos que tém com moderno a mesma raiz indo- europeia mod- ou med (cf. Adriano Duarte Rodrigues, Cultura e Comunicagéo. A Experiéncia Cultural 1na Era da Informacao, Lisboa, ed. Presenca. 1994, paginas 49 e ss.). Encontramos esta mesma raiz em termos gregos como medimnos (medida) e medo(proteger, governar) € em termos latinos como modestus, medeor, medicus, medicina, medicamentu m, medicare, medicatio, remedium, mas também. ‘em meditor, moderatio, moderari. Est associada, segundo Emile Benveniste, a «uma medida de coaccao, supondo reflexio, premeditac3o, aplicada a uma situagSodesordenada», a uma situacSo que levaria a um excesso desmedido (ubris) se nao fosse travada a tempo, oportunamente, Uma boa representacio desta acepcdo 6, por exemplo, a do garrote que estanca a hemorragia, antes que a exsanguinacdo fatal. Dai a associacdo com as ideias de remédio e de medicina. Era por isso que Aristételes considerava que «in medio stat virtus». Neste aforismo aristotélico, a palavra medium néo significa tanto meio termo, como apressadamente se costuma pensar, mas remédio, processo de paragem do descalabro da ubris. Amodernidade comecou, portanto, por ser um processo de paragem ou de estancamento do curso habitual e inconsiderado da experiéncia, quer no dominio fisico quer nos dominios politico, legal e moral. Nao devemos hoje confundir modernidade com os conceitos afins de modernismo e de modernizagdo. A modernidade é uma modalidade da experiéncia marcada pela ruptura para com a tradicao e ocorre sempre que os fundamentos e a legitimidade da experiéncia tradicional, dos seus valores e das suas normas, perdem a sua natureza indiscutivel e deixam, por conseguinte, de se impor a todos com obrigatoriedade. Podemos dizer que a modernidade se instaura sempre que a experiéncia tradicional atinge 0 limite, 0 estado de an-arquia, no sentido etimoldgico deste termo, de algo que perdeu ou esqueceu o sentido originério, a arque, ou a meméria da sua razio de ser. € porque o curso habitual da experiéncia perde o seu sentido fundador que a tradi¢So passa a ser encarada como entrave a consciéncia desperta e razodvel das coisas, exigindo, por isso, um novo processo de refundagdo. © modernismo é um movimento estético e ético. No dominio estético, corresponde a uma modalidade do gosto nos diferentes dominios da arte, tanto literdria como pictérica e musical. Tem como caracteristica a sobrevalorizagio da experiéncia do presente, o imperativo da invengao incessante de novos modelos estéticos e 0 predominio da representago do fluido e do efémero sobre © perene eo transcendente. No dominio ético, manifesta- se na procura constante de novos modelos e de novas normas de comportamento que dém conta da mudanca e das transformagées do presente, na sequéncia das inovagBes técnicas que interferem com a experiéncia da Vida. 0 modernismo esta portanto associado aos movimentos de vanguarda que conceberam os seus projectos a partir da ruptura para com os modelos estéticos para com as normas éticas aceites. ‘Amodernizagdo sobretudo um processo técnico e econémico marcado pelo imperativo de renovacdo, tanto dos mecanismos produtivos como dos procedimentos administrativos utilizados na organizacdo da vida colectiva. No seu comeco, a modernidade associava numa mesma experiéncia refundadora 0 modernismo e a modernizagio. No entanto, & medida que a modernidade se foi generalizando e tornando principio legitimador indiscutivel da experiéncia, estes conceitos foram sendo autonomizados uns dos outros, acabando 0 modernismo e a modernizaco por esquecer os principios da modernidade que estdo na sua origem e thes servem de fundamento € legitimacao. € também a este processo de autonomizagao do modernismo e da modernizacao em relacdo & modernidade que est associada actualmente a crise e a perca dos fundamentos da experiéncia presente. A crise actual da modernidade manifesta-se habitualmente por uma corrida desenfreada quer dos processos de modernizago técnica quer nas propostas de mudancas de normas e de modelos, cortados dos ideais emancipatérios constitutivos da modernidade. ‘Amodernidade é inevitavelmente uma experiéncia que retira da tradi¢ao 0 seu sentido e a sua razao de ser e que est destinada a tornar-se, por seu lado, também uma experiéncia tradicional, a partir do momento em que se impde com carécter indiscutivel. E que, a partir do momento em que 0 moderno se torna um imperativo, os novos modelos e as novas normas, mal sejam realizadas, exigem a sua ultrapassagem. Daf a natureza dissuasora do fundamento da modernidade, com a consequente emergéncia do indiferentismo ou a coincidéncia de todos 0s modelos e de todas as normas. € que, ao converter a diferenga em norma, a modernidade corre o risco de produzir a norma da indiferenca, fazendo equivaler todas as diferencas. E este paradoxol6gico da modernidade que est na origem actualmente da p6s-modernidade, vivida ora de maneira irénica ora de maneira dramatica. Aeexperiéncia moderna procede de um imperativo de refundacao, de busca incessante de uma origem legitimadora tanto da dimensao simbélica como da dimensSo pragmética, tanto de um sentido para © discurso como de um sentido para a acco, as duas dimens6es da experiéncia cultural. ‘Ao romper com a ordem transcendente que serve de fundamento a tradi¢do, a modernidade situa dentro do horizonte da prépria histéria o sentido para a experiéncia do sujeito. € devido a esta natureza imanente do seu sentido que a modernidade oscila entre dois projectos antagénicos: 0 projecto restauracionista e 0 projecto progressista. Podemos associar estas duas modalidades do projecto da experiéncia moderna aos mitos profético e messianico, respectivamente. O primeiro Ié a histéria como um processo de degradacio de um sentido originario, da arche, 20 passo que o segundo considera a histéria como um processo evolutivo a caminho da plenitude do sentido. Estes dois projectos da modernidade concretizam- se esteticamente nos movimentos roméntico e futurista. processo da modernidade est indissociavelmente associado a uma concepsao linear, em ruptura para com uma visdo ciclica do tempo. € por isso que muitos autores reconhecem nas religides histéricas, e no cristianismo em articular, 0 fundo que o torna possivel. AAs religides césmicas tém uma concepcao transcendente do sentido da experiéncia, situando-o num mundo & parte, no mundo dos deuses, o tempo sendo assim entendido como © retorno circular do mesmo. O cristianismo, pelo contrario, com 0 dogma da Encarnacéo, situa no interior da prépria histéria humana o sentido da experiéncia, A esta concepcdo da historia esta associada uma leitura evolutiva do mundo que se traduz, nomeadamente, pela tendéncia historicista das explicagdes tanto dos fenémenos naturais como dos fenémenos da cultura. Nao admira por isso que seja ‘também no Ocidente cristo que surjam as manifestagBes de modernidade, a partir do qual tenham acabado por se impor, quase sempre de maneira violenta, sob a formada colonializac4o, aos outros povos. Baptista Pereira assinala a secularizacao, a critica, o progresso, a revolucao, a emancipacao e o desenvolvimento como as caracteristicas principais da modernidade (Crr. Miguel Baptista Pereira, Modernidade e Tempo. Para uma Leitura do Discurso Moderno, Coimbra, Liv. Minerva, 1989, paginas 39-113). Asseparaco da experiéncia do mundo em relacdo a esfera religiosa, que caracteriza a propria raiz do cristianismo, afirma-se no Ocidente de maneira mais clara a partir do século XVII, vindo a manifestar-se na separacdo do Estado da Igreja e na instauracao de uma ordem politica nova, no baseada na autoridade de um soberano, mas no juizo da comunidade dos homens. Depois das ferozes lutas religiosas que afectaram, no comeco, o processo de seculariza¢ao, a modernidade instaura o principio da toleréncia como fundamento da convivéncia entre os homens, apesar de defenderem opinides divergentes e de professarem credos diferentes. A este ideal moderno de tolerancia esta associado aquilo que Max Weber designava como pluralismo dos valores, com a consequente autonomizacdo das diferentes dimens6es da experiéncia e a fragmentacdo das diferentes esferas do mundo. Max Weber considerava, por isso, a modernidade como processodesencantamento do mundo, de perca das referéncias mitico-religiosas que, para o homem da tradigdo, davam sentido e coeréncia a experiéncia e a0 destino (ver Max Weber, L’Ethique Protestante et Esprit du Capitalisme, Paris, ed. Plon, 1964, paginas 121, 143, 191.e 194). Nao admira, por isso, que a modernidade esteja também muitas vezes associada a uma consciéncia da solido do homem, ao sentimento de ser abandonado pelos deuses, entregue ao seu destino terreno. E habitualmente considerado o livro de Job como 0 grito do homem moderno que v8, por vezes, neste mundo, a injustica e a maldade recompensadas, ao passo que a justica, a verdade e a bondade esto acompanhadas por infelicidade, pobreza e solidéo. A critica é outro tema dominante da modernidade e esté associado & natureza racional ou, pelo menos, razodvel do fundamento das opinides e das decisées, tanto na esfera do saber como nas esferas politica, estética e ética. Nos séculos XVII e XVIll, este ideal da critica era sobretudo baseado na livre discussao das opinides, dos modelos e das normas. € este espaco de livre discussdo que dé origem a uma nova categoria politica que iré marcar profundamente © proceso de emancipacdo que caracteriza a modernidade, a categoria do espaco puiblico ( sobre o espaco puiblico na modernidade ver sobretudo Jiirgen Habermas, L’Espace Public. Archéologie de la Publicité comme Dimension Constitutive de la Société Bourgeoise, Paris, ed. Payot, 1978). Uma das ideias centrais da modernidade, que aparece alids j claramente expressa por exemplo na Enciclopédia de Diderot e D’Alembert, é a de que o homem moderno nao estd apenas dependente das leis da natureza, mas tem como missio adaptar a natureza aos seus préprios projectos. Esta ideia esta directamente associada a0 deismo, na medida em que o homem € visto como colaborador da obra divina da cria¢So, criado por Deus com a misao de a completar e aperfeigoar. Através da prescrutacdo das leis que regem a natureza, o homem. acede aos seus segredos e, deste modo, descobre os principios que o habilitiam a inventar utensilios instrumentos técnicos capazes quer de reparar os objectos naturais deficientes quer de afeicoé-los a novas funcées. ‘Amodemidade est, portanto, associada, nos séculos XVI e XVIII, a uma viséo euférica do progresso, considerando-a como a inaugurago de uma época de desenvolvimento técnico ilimitado. Os instrumentos sao ainda considerados como aperfeigoamentos da percepeao do mundo e os utensilios destinam-se a ajudar o gesto humano, na modelagem dos objectos naturais. No entanto, 3 medida que foi integrando conhecimentos Cientificos mais elaborados, a técnica foi adquirindo cada vez maior autonomia em relado & percepsao e ao gesto humanos. € este processo que conduzira ao maquinismo industrial, a partir da segunda metade do século XIX, e a0 aparecimento de uma relacao cada vez mais problemética e conflitual com a técnica. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o dominio da técnica adquiriu uma autonomia até agora inimagindvel, ao converter-se em sistema, acarretando consequéncias para a prépria experiéncia do mundo que ainda estamos longe de poder avaliar com rigor. Em todo o caso, estas transformacées esto associadas ao actual proceso de globalizagio, no s6 no dominio econémico, mas sobretudo nos dominios politico, ético e estético, anunciando-se deste modo novas oportunidades mas também novos riscos. O ideal revolucionério ¢ outra das caracteristicas constantes da modernidade. Em contraste com os valores de estabilidade que caracterizam a experiéncia tradicional, a modernidade promove valores de ruptura e de mudanca constante. Aexperiéncia moderna esta também associada & ‘emergéncia do sujeito, no sentido ambivalente deste termo, entendido, por um lado, como instancia soberana, de autonomia e emancipacao e, por outro lado, como processo de sujeicdo ao imperativo do novo e da mudanaca. Desta duplicidade, retira o sujeito moderno uma consciéncia dilacerada ou clivada. ‘Amodernidade promove a procura de principios explicativos racionais para os fenémenos da natureza e da cultura e de normas racionalmente fundadas para a politica, para a ética e para a estética Anossa época caracteriza-se pela consciéncia aguda do esgotamento dos projectos, roméntico e futurista, da modernidade e pela consequente indiferenca perante os valores e as normas que os movimentos de vanguarda procuraram instaurar, ao longo do seu processo de implantagdo. Esta consciéncia da crise da modernidade pode ser entendida como o retorno do recalcado: através das actuais manifestacées da posmodernidade vislumbram- se as préprias formas tradicionais que retornam, por vezes, de maneira nostalgica. (bibliografia AAW. ~ Moderno/Posmoderno, in Revista de Comunicagdio e Linguagens, n® 6/7, Lisboa, CECL, 1989; in Revista Critica de Ciéncias Sociais, n® 24, Marco de 1988; Apter, D.~ The Politics of Modernization, Chicago, 1965; Matei Calinescu: Five Faces of Modernity: Modernism, Avant- Garde, Decadence, Kitsch, Postmodernism(22ed., 1987) Eisenstadt, S.N. - The Protestant Ethic and ‘Modernization. A Comparative View, New York, Londres, 1964; Habermas, J. ~ L’Espace Public. Archéologie de la Publicité comme Dimension Constitutive de la Société Bourgeoise, Paris, ed. Payot, 1978; Habermas, J.—Le discours Philosophique de la Modernité, Paris, ed. Gallimard, 1988; Morin, E. - L’Esprit du Temps, Paris, ed. Grasset, 1962; Pereira, M.B.- Modernidade e Tempo. Para uma Leitura do Discurso Moderno, Coimbra, ed. Liv. Minerva, 1990; Rodrigues, A.D. ~ Comunicagéio e Cultura, A Experiéncia Cultural na Era da Informagéo, Lisboa, ed. 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