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Bernardina Maria de Sousa Leal CHEGAR A INFANCIA ow , - bo = CCopytight © 2011 by Bernardina Maria de Sousa Leal Direitos desta edigdo reservados & EAUFF - Ecitora da Universidade Federal Fluminense - Rua Miguel de Fras, 9 - anoxo sobreloja-Icarai - CEP 24220-900 - Niteri, PU - Brasil Tel: (21) 2629-5267 - Fax: (21) 2629-5288 - worw.edtora.ut.Or- E-mail: secretaria@editora.uttbr E prolbida a reproducdo total ou parcial desta obra sem autorizacdo expressa da Edita ‘Normalzagso: Fétima Correa Ecigéo do text: loieia Freixinho Revisdo: Cinthia Paes Virginio Capa eecitoragao eletrénica: Marcos Antonio de Jesus Projetogrdfico: José Luiz Stalleken Martins ‘Superviséo gra: Kathia M, P. Macedo Dados Internacionsls de Catalogacio-ne-Publicagio - C\P Teal, Berardina Maria do Sousa. CChogar inténcia ~ Bemarcina Maria de Sousa Leal [Niterot EGUFF, 2011 £228 pil: 23 em, — (Cologdo Biblioteca EAUFF, 2004) Incl bibiogratia, ISBN 978-65-228-0548-8 4. Infancia 2.Educagao |. Titulo M. Série cpp 372.261 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Rett: Roberto de Souza Salles Viee-Reltor: Sidney Luiz de Matos Mello Pré-Reitor de Pesquisa e Pos-Gracuacao: Antonio Claudio Lucas da Nobrega Diretor da EdUFF: Mauro Romero Leal Passos Diretor da Diviso de Edltoracao e Produgio: Ricardo Diretora da Diviséo de Desenvolvimento e Mercado: Luciene Pde Morae ‘Assessora de Comunicagio e Eventos: Ana Paula Campos Comisstio Editorial Presidente: Mauro Romero Leal Passos ‘Ana Maria Martensen Roland Kalett Gizlene Nedor Heraldo Siva da Costa Mattos Humberto Fernandes Machado Juarez Duayer vie Reis Luiz Sérgio de Oliveira any Marco Antonio Sloboda Cortez Ze Renato de Souza Bravo Se ‘Silvia Maria Baeta Cavalcanti ieee “Tania de Vasconcelos, da UFF E fentemos descer a essa regido neutra ‘em que se afunda, doravante entregue as palavras, aquele que, para.escrever,caia ‘na.auséneia do tempo, ali onde € preciso ‘morrer de uma morte sem fim! _ Infancia: algo comum ¢, ao mesmo tempo, singular. Enquanto ; “omumn, indubitavelmente presente na vida dos seres humanos, caracteristica. ‘mente diferenciada de outros estagios do desenvolvimento biologico, Social e psiquico, No parece dificil destacar os tragos identificadores ancia em qualquer tempo e lugar ~ imperiosamente os tragos »s determinam aspectos fisiolgicos constitutivos do corpo iano ¢ demarcam instancias do desenvolvimento material da oreidade fisica de cada novo ser humano que nasce. Sao estas as teristicas que distinguem os individuos, mas também os padror ‘em faixas etérias, em classificacdes tipologicas, em categorias de stuco. A raiz biol6gica do desenvolvimento humano tem circunscrito Jambiéncia cientifica na qual a infancia vem send investigada. Este _ntendimento tem sido decisivo no trato com a inflincia. Mas a que es conhecimentos se referem, a infancia ou a crianga? \ . Infancia também pode designar o proprio perfodo vivido pela ‘erianca enquanto sujeito que vive essa fase da vida. Neste sentido, a _ Idela de infancia revela muito mais uma relagao social que se estabe- _lece entre os adultos © determinada faixa etéria. Jé-o-termo crianga® 1 r Sendo assim, a infancia a ‘ontudo, a distingao entre estas duas expressdes nao ocorre de modo tao simples. Infancia e crianga "no: sko-palavras:sobreponivels®A palavra infancia também evoca lum periodo da vida humana. Trata-se, na raiz de sua significagio, do a a - Periodo da palavra inarticulada, o qual circunscreve a apropriagao de 5 Produziruma fala, a fazer-se ouvit. O.termo infans.- 0 que nao fala -, ‘em sua origem latina, designa aquele que acaba de ingressar no mundo ‘woaigso © ainda inominado, tao nove quanto 0s modos de sua identificacio." 0 ‘vocdbulo crianca parece indicar mais claramente uma realidade psi- cobiologica que se refere ao individuo. No entanto, a’metaforizacao™ ‘dos termos estreita os espacos distintivos dessas duas palavras. Interessa-nos, neste estudo, investigar alinfancia nio em sua ‘constitui¢do capturdvel no ambito institucional da familia, da escola, do trabalho ou mesmo em suas condigdes de existéncia referentes & ‘etnia, género ou disponibilidades:cognitivaseNao queremos pensar a infancla como um dever ser, sendo como um déir: Nossa opcao por pensar o devir se dé pela forca semantica que 0 termo possui para ressaltar as formas do tornar-se, do vir a ser, ou seja, o modo proces- sual de alteragao de um estado: A significagao do termo “devir" ndo 6 univoea, Eusado as vezes ‘como sinénimo de*tornar-se”; As vezes 6 considerado oequiva- lente de “vira ser”; as vezes ¢ empregado para designar de um ‘modo geral o mudar ou 0 mover-se (que, além disso, costumam Ser expressos por melo do uso dos substantivos correspon- dente: “mudanga’ ¢ “movimento"). Nessa multiplicidade de significagdes parece haver, contudo, um niicleo significative Invariavel no vocabulo “devir”: 6 0 que destaca 0 processo do ser, ou, se se quiser, 0 Ser como proceso.” Concordamos que este vocabulo possua uma carga semantica maior que outros termos, tals como, mudanca ou movimento, por destacar os modos do acontecer. E, mais do que isso, o deviré por nés Pensado no sentido em que o emprega Deleuze - ndo como uma cor- Fespondéncia de relacdes -,0 que poderia relacionar a ideia de devir a uma certa previsibilidade ou vinculagao antecipavel de ocorrencias -, ‘mas como uniavariagao imprevisivel de elementos. Em suas palavra ‘um devir nao é uma correspondéneia de relacdes. Tampouco ‘ele éuma semethanga, uma imitagao, em ultima instancia, uma dentificagao. [J Devir nao ¢ progredir nem regredir segundo ‘uma série [..] Devir nao é certamente imitar, nem identificar-se; ‘em regredir-progredir; nem corresponder,instaurar relacdes correspondentes; nem produzir, produzir uma filagho, produzir Por filiagio, Devir 6 um verbo tendo toda sua consisténcia; ele ‘nko se reduz, ele nao nos conduz a “parecer”, nem “ser”, nem equivaler’, nem *produzir” |..J Devir-éya partirdas formas” elentidaioyas mats préximas daquilo que estamos em vias de” nos tornarmos;€ através tas uals nos torviamios** Se a infancia foi inventada no decorrer do tempo como descre- vem os estudos historiograficos que a investigam, sentimo-nos provo- cados @pensé-la fora deste continuum ® Em vez de tentar apreendé-la por meio das significagdes atribuidas aos diversos discursos que ten- tam defini-la historica ou genealogicamente, intentamos percebé-lana intensidade dos fluxos pelos quais ela emerge. Sabemos que a crianga_ -anarrativa. E é neste processo de construcao narrativa que o8 modos de dizer-se crianga ou perceber-se infantil geram campos semantics muito distintos. Daf resiilta nosso foco de estudo na linguagem litera “tia, Este € um tipo de linguagem que permite o transito de sentidos a multiplicidade de possibilidades interpretativas da infancia fora do _ dmmbito da linearidade histérica e temporal‘ Vejamos como a infancia tem sido abordada como focedeuma certa vontade desaber. Os conhecimentos organizados na forma de saberes cientificos sobre a infancia a tém situado claramente num continuum temporal da vida pontualmente delimitado, tecnicamente verificado e amplamente divulgado. A infancia, nesse entendimento, circunscreve uma etapa do” desenvolvimento biolégico da vida humana compreendida entre zero _e seis anos de idade ou, em termos mais amplos, entre o nascimentoe apuberdade: Deste modo, a infancia integra os saberes constitutivos da ciéneia e demarca um campo de atividades onde estes saberes sao aplicados. Ha profissionais especializados em diferentes 4reas do saber dedicados exclusivamente ao estudo da infancia. Ha também uma quantidade crescente de categorias profissionais direcionadas ao atendimento das necessidades infantis das mais diversas ordens, seja na forma de produtos comercializados, de servigos prestados & inf€ncia, ou mesmo de atendimento aos pais Delimitada por sua caracteristica temporal cronologicamente medida por meio de dias, semanas, meses ¢ anos, a infancia tem se tornado foco de indimeras investigagdes. Desde os primeiros sinais de ‘Bemerna Mera de SousaLeal © nroaugae © = vida, nas sucessivas fases do desenvolvimento embrionario, ao longo de todo o processo de gestacao até o nascimento e muitos anos depois, a infancia tem se tornado conhecida. Este perfodo é culdadosamente mareado por meio de processos quantificadores que possiblitam seu. acompanhamento. O crescimento biolégico da crianga é vigiado por intermédio de tabelas, graficos e prontuarios. Com isso, meses ¢ anos de vida adquirem 0 status definidor de descobertas, aprendizados, comportamentos e desenvolvimento biofisico, afetivo, cognitivo, pst- quico e social. Cada ano,de vida, marcador da sucessiva e ordenada passagem do tempo, é indicado pelo calendario no qual os meses seguem-se uns aos outros. Esta regulagao temporal orienta o ritmo, cadéncia e o rumo da vida humana. Em nossa cultura, principalmente durante os primeiros anos de vida, a cada 12 meses, ou seja, a cada ano, adata écelebradae festivamente comemorada, Sequidamente este ritual se repete e reforcadamente impe uma forma de entendimento sobrea temporalidade da vida. A medida que os anos vao se pasando, fancia vai se distanciando. Esta forma unidirecional e inequivoca de entendimento fundamenta-se nas acepcdes de ordem, medida ssequéncia com as quais 0 tempo tem sido linearmente percebido. A irreversibilidade do tempo torna-se um ditame. Inevitavelmente, 0. tempo cronolégico inicia ¢ finaliza etapas da vida. Majestosamente, ‘© tempo determina a infancia comum a todos os seres humanos. Cronologicamente situada, a infancia tem sido abordada desde 08 mais diferentes enfoques. As pesquisas sécio-historicas buscam situé-la nas contingencias dos modos de organizagao familiar e nas re- lagdes de trabalho, ou seja, na rede socialmente constitufda de relagBes entre individuos e grupos ao longo dos tempos ou em determinado tempo ¢ lugar.’ As.investigagdes antropolégicas problematizam os. conhecimentos sobre a infancia a0 colocarem em questao a hegemonia do padrao “crianea’ ocidental e etnocéntrico e reforcam a diivida quan- toaideia pretensamente consensuada de infancia.* Pesquisas na érea~ da psicologia do desenvolvimento ainda reforgam a ideia das etapas oweiclos de Vida, bem como as diferentes formas de interagao social na aprendizagem de acordo com as diferentes idades de vida, mesmo ue sejam confrontadas dentro da propria area de investigacao com outros modos de compreensio.’ Aestrutura do trabalho pedagorgico escolar fundamenta-se na divisdo por faixas etarias, na sequéncia, ordenagao e hierarquia deste tipo de distingao. Esta desdobra-se, por ‘sua vez, na forma de um dispositive pedagégico que atua no conjunto das regras hierérquicas que organizam a atividade pedagogica na forma de classificagdes, enquadramentos ¢ modalidades que incluem ‘9s docentes e demais profissionais na area educacional.”” rigor de muitos destes estudos investigativos sobre ainfancla demons, tram o interesse despertado pelo tema. Por vezes mais, outras veves menos marcadamente, tais abordagens . 'eja por meio de ritos de passagem, seja na \nsercao social de papéis desempenhados, na incorporacao de ges. tos, atitudes e comportamentos, ou mesmo no desenvolvimento de habilidades cognitivas, a infancia nao deixa de ser percebida enquanto parte constitutiva de um todo. Uma etapa, um periodo, uma fragaom verificada, Isto Infancia. © pressuposto desenvolvimento diacronico do ser humano sobre o qual os diferentes estudos se alicercam, independentemente da rea do saber a qual se referem, parece inibir qualquer tipo de e Sub- jaz a estas investigagées uma perspectiva linear, progressiva, sem desvios ou complicagées, sem receios, sem retorno, concomitancia ou entrecruzamentos. A simultaneidade com outros periods, com diferentes etapas, ¢ impossibilitada pela condicao ordenadora e se- uencial da temporalidace progressiva diacronicamente determinada, 0 desenvolvimento humano, pessoal ou coletivo parece desdobrar-se logicamente de um sistema cumulativo de procedimentos, atitudes, valores e diferentes tipos de crescimento: fisico, cognitivo, afetivo, sociocultural, econdmico etc. Tanto a concepcao de desenvolvimento como a assergao de qualquer tipo de crescimento denotam, antecipa- damente, jue a passagem do tempo representa nas distintas abordagens que a infancia recebe, ___ Estes modos de entendimento possibilitam acaptura:da-infanciae \ O que se intenta neste trabalho investigativo é, contudo, uma ‘Berard Mara de SousaLea! @ Zi modos de alcangé-la, propor diferentes Possibilidades de ler, dizer e ad escutar a infancia, Selecionar, entre o que se diz € 0 que no se diz.da Infancia, aquilo que é significativo para a produgo de novos dizeres. ‘elinear. Intenta-se evitar, deste modo, o tom apropriacior da pesquisa técnico-cientifica em favor de umasinvestigacao mais/poética, movel € flexivel, ndo por isso menos rigorosa e consistente. 0 objeto de investigagao deste estudo é a infancia, porém 0 recorte que nos interessa 6aexperiéneia da Infancia, a infancia como: figura do novo, como resisténcia ao que ja esta estabelecido. Trata-ser ‘em primeiro lugar, deelaborar uma imagem conceitual dainfancia que permita pensé-la paraalém da cronologia, desde a logica da experiéncia € do acontecimento; a seguir, importa buscar imagens literdrias da in- fanciaquea abordem enquanto experiénela, quea valorizem enquanto acontecimento. £ neste sentido que queremos nos ocupar da infancia inspirados por personagens criados por Guimaraes Rosa. Importa-nos “anosvAo tratar da filosofia como uma arte de criar conceitos, Deleuze acerca da infancia na forma de personagens conceltuais,arrastam o§ conceitos para um plano de-expérimentacdes corpOreas simultane- amente sensoriais ¢ intelectivas. Partimos do pressuposto de que a linguagem literéria, dada sua caracteristica polissémica, apresenta-se de forma mais harménica com este tipo de entendimento di Afinal, nao queremos acrescentar as informacdes ja produzidas a respeito da infancia outros dados, mas aprecié-la em sua dimensie osticae, quem sabe, provocar a emersao de novos sentidos no campo ‘educacional quanto aos processos de aprendizagem e ensino, Talvez uma nova configuragao da infancia possa ajudar a pensar novas ex- -periéncias de aprendizagem. fancia. acontecimento da infancia/por um lado e, por outro, o pensamento hierarquizado, ordenador e disciplinar das instituigdes formais de ensino é inevitavel. £ a tensao gerada por este confronto que nos conduz a uma gama de questoes que, por sua vez, direcionam este ‘trajeto investigativo, importa-nos pensar emque medida investigagoes Bemardina Maria de Sousa Losi © = | | O confito entre os sentidos do termotiexperiénelae a Ideia de \ | | | Senne | i “dadaliacieconembiesteantimvets#R; qu213 sleagecnlomealor ‘ op esactartemeynaeR no sabes sobre ancl recone t . s destaca aforga contida num encontro contingente com algo que nos im- _peleapensar.Este pensar, intenso e mével, carece, por conseguinte, de personagens que configure uma methor definigao dos conceitos que Score ‘sero elaborados. Assim sendo, os personagens conceituais possuem, para Deleuze, existéncias fluidas e colocam-se entre o conceito e o plano pré-conceitual. Eles“operam movimentos que descrevem o plano de_ imanéneia do autor e intervém na propria criacao de seus conceitos”" E deste modo que personagens tio marcantes na historia da filosofia, como o “amigo” da sabedoria que configura ofilésofo, contribuem para ‘uma significativa identificagdo do conceito de flosofia. No caso da obra de Guimaraes Rosa, sobressaem as figuras literarias do rio, das ma gens, da travessia, do menino e da menina. £. com estes personagens: -coneeituais rosianos que intentamos chegar a uma infancia. Contudo, ‘alerta-nos Deleuze: “o personagem conceitual nao € o representante do filésofo, é mesmo o contrério: o filésofo é somente o involucro de seu principal personagem conceitual e de todos os outros, que so 08 verdadeiros sujeitos de sua filosofia’* Nao se trata, portanto, de uma mera personifieagao, simbolo- ‘ou alegoria de-uma ideia a configurarse, sendo de algo que existe fluidamente, que devem no pensar. £ deste mode que owpersonagens’ Injantis eriados por Guimaraes Rosa, além de tlustrarem o que se pensa: 1¢ com a infancia e mesmo se € possivel, com a literatura, propiciar mais intimidade com a infancia nos espagos educativos; quais sao as brechas ¢ os intersticios presentes na estruturagao do discurso pedag6gico sobre a infancia que abrem espacos para.a superagao do- “didatismo e a maneira modelar de dizer a infanela; pensar uma figu- ragdo do ato de educar que, inspirada-em/escritas literdrias, possa inaugurar sua propria infan : a _ Ao tragar um campo investigativo no interior do qual respostas ‘a. estas indagagdes emergem, a infancia nao é analisada a partir do Tenta-se, antes, estar com a infancia, ouvHa, ve-la, aprender com ela por meio de figuras literdrias criadoras de um campo imagético proprio. 0 intuit, _Gpercebera inlancia na-singularidade das experiéncias apresentadas — spor, Rosa-em seus escritos literdrios: Parte do referencial te6rico que fornece suporte as ideias aqui apresentadas resulta de um percurso Investigativo sobre as possibilidades educativas da filosofia em sua apro- rceupi © ximaco com criangas e jovens. Por conseguinte, investigagoes sobre as formas constitutivas do campo pedagégico, das culturas e praticas escolares, dos seus tempos € espacos, de seus aspectos restritivos ¢ delimitagdes terminol6gicas sao apresentadas a fim de se elucidarem 05 tipos de associagao existentes entre crianca € aluno, adulto e pro- fessor, ensino e aprendizagem. Ao problematizar essas costumeiras associacdes, partimos em busca le novas concepgdes de infancia cuja forca expressiva, parece-nos, habita nos textos literdrios aqui expostos. Enfim, intentamos alcangar, por meio da singularidade no uso da linguagem que Guimaraes Rosa realiza, figuras.literdrias.dainfan- cia capazes de suscitar um repensar radical-e pueril nos modos de entendé-1a. palavra, enquanto elemento material da linguagem liters- riayadiquire significado e sentido no interior de uma frase significante. Seu uso conereto € que garante significado € sentido: Assim sendo, tanto no dominio do pensamento como no da linguagem hé a decisi- vva interferéncia de quem elabora a linguagem, de quem a profere, de quem a articula de modo a fazé-la gerar significados e sentidos. £ sob este ponto de vista que nos interessa especialmente a palavra rosiana. Os-aportesifilos6ticos que fundamentam este trabalho de pesquisa condensam-senas investigagbes tebricas de Gilles Deleuze sobre o proprio sentido da tarefa filos6fica, na sua compreensio do significado do aprender, bem como no tratamento dispensado pelo autor ao estudo daescritade textos Iterdrios. Nao se trata, contudo, de retomar uma reflexao sobre a infancia jérealizada por Deleuze, mas de pensar a possibilidade da.eriacao filosofica de outro entendimento da infancia inspirada pelo vigor de suas ideias’ Em Michel Foucault nos embasamos para investigar.certa dimensao dog-processos d@) Subjetivagao da Infanclaye da, aduliez nas pieeheneneoroes e também_para identificar as ordens de verdades e dominios do saber ‘nos quais.a.infancia tem estado inserida. Nele também nos apolamos fim de destacar, na linguagem literéria,.uma alternativa aos modos, ordindrios de entendimento da vida. Giorgio Agambenyem sua inves- tigacdo inspirada em W. Benjamin sobre a destrui¢ao da experiéncia, nos fornece um nstigante estudo sobre a diferenga entre lingua e fala © um entendimento da Infancia como experiencia de linguagemh. Seu estudlo fundamenta nossa investigacao a respeito dainfanciaeriquanto experiéneia, Sobre o conceito de experiénciatambém nos referenciam 08 trabalhos deslorge:Larrosa,relativos a experiéncia da leitura em seu aspecto formativo. Da obra deJacques-Ranciére;destacamos as _ prendizado da infai 7+ idelas relativas a.uma-ordem explicadora que éstarla a colocar em ito uma série de dispositivos. capazes.de organizar-a ‘esteutura considerada necesséria para a aprendizagem e os modos do. organizagio das praticas pedagogicas escolares, No ambito da filosofia da educacdo, nos apoiamos na arqueologia da infancia que. Sandra Corazza realiza ao identificar sua historia, a inven¢ao, o apogeu ‘© desaparecimento da Infancia. Maurice Blanchot explora o espaco literario e nos provoca a pensar 0 espaco da infaneia desde aartee a -éneste contexto tedrico que recorremos a Guimaraes Rosa inspiradora de figuras literdrias da infancia que se apro- ‘ximam das concepcdes de infancia abordadas pelos autores citados. Aintertextualidade destacada entre filosofia, educagio e litera- 4 pelo entendimento da palavra como manifestacao do que 0 que somos. Neste sentido, a8 formas de dizer a infaneiadizem ‘sobre nés mesmos, sobre nossos entendimentos, percepcdes & . Na intensidade de cada experiéncia de infancia vivida e dita, eg um aspecto comum da experiéncia humana a ser com= 0 aprendizado do ser humano nao parece restringir-se a ‘qualquer rea do saber, tampouco parece caber apenas nos moldes “da cléncia e da tecnologia. Queremos chamar a atengio para um ia que pode ser alcangado pelo foco das artes, ‘particularmente da arte literdria. -— Narte titeraria trabalha melhor com a independéncia da pala- ‘yra em relacao ao vocabulario ou a gramatica. A forca semantica da ppalavra literéria, sua capacidade de livrasse, de desprender-se dos limites assemelha-se ag ato infantil de inaugurar sentidos. Ela arranca Spios quenem sempre stu je “acomodidade do dito. Esta orga da palavra literaria que nao se deixa “Bprisionar no Ambito do discurso 6 a mesma que faz com que ela ua em busca de outros sentidos e corpos para encarnar. Com esta pala ‘vra.a Infancia se expressa como algo que nao sabemo8)que escapa a ossas verdades, qué se reveste de novos sentidos a cada vez que ronunciada. Sua polissemia, suas miltiplas possibilidades interpreta- tivas, faz com que aTnfancla seja, de uma s6 vez, multifacetadaee tinica ara quem a experiencia. Trata-se, portanto, de uma vivencia singular € intima, propria de cada sujeito. Longe de se parecer com Umia eate= oria*OU classificacdo, fora de qualquer demarcagao tebricade.gunho biopsiquico, a infancia pode ser entendida como unia experién: Bemarsea Mave de Sousatesl © Z privilegiado de ocorréncias. As narrativas cae rep tas de signos engendradores de sentidos a espera de interpretacoes, £ como se Imagens, cheiros e sons, reunidos em algum canto de nossas vidas, aguardassem o que violentamente se dard na forma de acontecimentowAbruptamente; o-acontecimento Infantilprovoca. a. -descoberta tardia daquilo que j4 sabiamos intuitivamente, sem que 0 ‘ivéssemos explicitadoA meméria nos faz, por conseguinte, aprender. Isto nao significa, contudo, que aprendemos com a infancia aquilo que resgatamos das memérias de crianga, mas sim que podemos pensar “o.que significa uma-infaneia na-vidarde cada um de nés e agir como se fOssemos criancas na dimensao infantil de descoberta do mundo. Aprendemos, assim, quando impregnamos de sentidos os signos aos uals a mem6ria nos remete. Neste sentido, estamos sempre a apren- der com a infancia desde que ela se apresente para nés como uma experiéncia a ser atravessada. ‘Armemiéria, mais do que reconstituigao de fatos, constitui-se, neste caso, 0 meio pelo qual a aprendizagem da infancia se faz possi- vel. Inicialmente de modo intenso e enigmatico dado 0 efeito imediato dos signos que a evocam emais tarde, por forga de um elaborado esforco do pensamento, a infancia torna-seapreensfvel. “Ha semprea violéneia de um signo que nos forca a procurar, que nos rouba a paz"; ‘afirma Deleuze: Endo é isso mesmo 0 que nos ocorre? Por quanto tempo permanecem em nés memérias auditivas, olfativas ou mesmo sensagdes indelévels, aparentemente sem-sentido, até sermos impe- lidos a decifrar todos esses signos? Aprender com a infancia. Resgatar, na infaincla, 0 que ela tem anos ensinar. Tornar parte do aprendizado-adulto aexperiéneia’da. Jinfancia. Este€ um exercicio que exige, ‘busca de sentidos, o desprendimento da acces gees minantee cronol6gica do tempo. Aprender, neste sentido, nao resulta do ensinar, nao acontece posteriormente a um conteddo explicado por outro, mas relaciona-se a algo anteriormente conquistade, embora no sabido. Cabe-nos retornar, voltar ao jé vivido, a tudo aquilo que, retido em nés, distante daquilo que nossos esquemas interpretativos “transforma em saber, aguarda ser descoberto, Contudo, para que algo ossa ser encontrado, talvez seja preciso mals do que busca, dispo- sicao e sensibilidade agucada. Parece ser preciso que nos fagamos | “anos, exige que aprendamos com ela; que a deixemos acontecer: que preparemo-nos para 0 seu encontro, Calma e pacientemente, que atentemo-nos ao seu devir. Encontrar 0 que nao se sabe, ou mesmo © que jé existia em nés, significa romper coma linearidade do tempo” € movimentar-se nos diversos tempos do processo de aprendizado. Ainfancia assim o exige. Elanao se submete a demarcagdes espago- lemporais.Nao serrestringe auuma etapa, um perfodo de vida ou uma, categoria comportamental. A’infancia pode ser uma experiéncia. E, ‘se alcangada, uma experiéncia de aprendizagem. O infantil foge, nesta perspectiva, a ordenacao légica que tem: delimitado suas significagdes, Sem lugar privilegiado,sem momentos» previsiveis:de.ocorrénciay'sem as antecipagdes préprias de um ou outro saber, a infancia pode ser pensada em uma instancia Gnica. Nao hierarquizada, desordenada, misturada a.outras linhas-do:tempo, a "outros espacos e diferentes modos de s “semodos de compreensao das coisas, Enquanto acontecimento nao — _-santecipavel, imprevisivel e incontrolavel, a/infancia nao se atrela a _ concepgao etaria do termo crianga, nem com ele se confunde. Nao se trata de um estado de coisas, nem de conceitos, tampouco se refere™ eum conjunto de caracteristicas. ‘Ainfaneia enquanto experiéncia acontece, nos acontece: Impele- nos a decifré-la. Obriga-nos a aprender o que nao foi ensinado. Forga- nos a reconhecer que ainda nao sabemos, que ainda no pensamos.- ‘que pode ser pensado, A infancia irrompe, Ey como surge abrupta- imente, nos desconcerta, nos,deixa sem,palavras. A infancia coloca em questo nossos conhecimentos, nossa necssidade de ordenagao e.controle, 0 discurso construido a seu respeito. aparente sem- sentido das atitudes infantis exige que busquemos uma nova forma de perceber até mesmo os sentidos jé clados & infancia e inventar outros. Talvez.estejamos por demais habituados a localizar os sentidos.em lugares e espacos aritecipaveis, A infancia pode nos ajudar aaprender- novos modos de buscar entendé-la. ~~ A tensio entre o sentido da experiéncia, o acontecimento da infancia e a organizacao linearmente ordenada e disciplinar das ins- tituigdes formais de ensino € inevitével. Como dissociar a infancia dos conceitos gerais que a identificam, categorizam, sistematizam € explicam? Como desatrelar a infancia dos discursos afirmativos ja __consagrados ao seu respeito? Nao.sera por melo de novas metodolo- Bernardna Maia de Sousa Laat © 4 4 slas de trabalho didético ou pedagdgico, supomos. Tampouco pelo acercamento teérico determinante de novos conhecimentos sobre a infncia. Parece-nos mais provavel que seja por meio da disposigho Q angados, Intrigantemente, eles ndo parecem estar localizados nos sunciaencsoeeinaa gas mater tA Ge oe cue ‘infancia é sem tempo e sem lugar e,portanto, nao se evidencia onde e quando nos acostumamos a procuré-la. Nossa dificuldade em en- contrar a infancia parece residir em querermos situé-la distintamente_ Jonge da adultez, da velhice ou de qualquer outra categoria ordenadora Giliz aves. Ceampantmeaienenoncreaaanapresunsee Ese for imperceptivel aos demar- cadores utilizados pela pedagogia, psicologia e outros tantos saberes para distingui-la? E se a infancia for alcangével apenas por meio da nossa capacidade de aliar o sentir e o pensar e nao pela capacidade de construir um conhecimento que exige dissociar um do outro? Pen- ‘sar a infancia de outro modo seria a chance de encontré-la também de outro modo. Experimentar a infancla 6 a experiencia de pensar a infancia jé existente de modo novo, infantil Pensar. Experienciar 0 pensar. Esta parece ser a condigdo para que as instituicdes educativas po: bilitem 0 entendimento da infancia como experiéncia. Esta é a chance de que processos educativos aprendam, com a infancia, a buscé-la. A Infancia parece acontecer corriqueira e cotidianamente nos espacos pedagégicos. Sem modelos, sem atributos, despojadamente, a infan- cla $e da préxima a educadores desatentos. Despercebida, a infancia ‘passa:’Enquanto isso, do lado de fora, pais, pedagogos, psicélogos € clentistas sociais afirmam possuir mais e melhores métodos para conhecé-la, Alheia a poses adultas e sabedoras, a infancia parece levemente passar. Para se chegar a infancia talve7 sejanecessério saber a senha— ‘uma senha intransferivel, irrepetivel, nica a cada acesso, Uma senha sem ntimeros mas com as letras da atencao. Ha que sabé-la de cor, de coragao. Nao adianta fazer anotagées ou solicitar ajuda. £ preciso incorporé-la, senti-la dentro, deixé-la acontecer. Ese a _ ' BUANCHOT, Maurice: 0 live POF ir. Sao Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 317 "1 CASTELLO, Luis; MARSICO, Claudia. Oculto nas palaoras:Dicionérioetimolbgico de {ermos usuais na prixis docente. Belo Horizonte: Auténtica, 2007, p. 5-3. ) MORA, J Ferrater,Dicondrio de flosofa. 6 ed. $io Paulo: Loyota, 2000 p 707 + DELELUZE, Gilles; GUATTARI, Felix: Mi Plats, Vol. V, Sao Paulo: E34 1997, p. 18-9, pot Huma tradigio de estudos sobre ahist6rla da infncia inclada com Philippe Aries ‘em-sua conhecida obra Histria Social. | publicada origina ‘mente cm 1960, Rleréncia recorrente nas investigagbes dehistoriadores eanalistas ‘eulturals, este estudo mareou 6 inicio do questionamento da infancia enquanto | Tenomeno natural e universal. A tnfanicia passou a ser compreendida como uma _realidade social constitufdahistorieamente. Arid configura seus estudos em das ~ teses nas quaistenta, primelro, interpretar as sociedades tradicionaise, depois, “mostrar 0 novo lugar assumido pela crianga e pela familia nas sociedades indus- lals 0 lugar marcante dos seus estudos foi teloreado pelascriteas e polémicas ‘em obras posteriores de autores como Hunt (1972), Pollock (1983), ire outros. Destacamse 0s trabalhos de Jobim elacionar a literatura ea vida, Deleuze nos provoca a considerar a escita um aso singular de devi: “Escrever nao €certamenteimpor uma forma (deexpressio) a fuma matéra vivida, Aliteratura eté antes do lado do informe, ou do inacabamento.- Escrever é um caso de devir. sempre inacabado, sempre em vias de fazerse,e que lextravasa qualquer matériavivivel ou vivida”In: DELEUZE, Gilles, Cficae liica ‘Sho Paulo: a. 34, 1997, p.. [No capitulo “As Idades da Vida" da Histria Social da Crianca e da Fanti, Philippe ‘Avis inicia seus estudos historic destacando a terminologia utilizada na Kdade ‘Media para designar os diferentes periods de vida, afrmando queaidade do homem fea considerada uma categoria cientifica e que sey Intulto, naquele estudo, era 0 ‘de “perceber em que medida essa ciéncia se havia tornado familiar |..] eo que ela __tepresentava na vida quotiians™. ARIES, Philippe. Historia Social da Cranga e da | Pamitia. 2-4. Rio de Janeiro, RJ: Guanabara, 1981p. 34, 4 Este € 0 caso dos estudos realizados sobre a infincia nas soctedades indigenas brasileiras nos quais se destacam as experléncias da infancla em tribos indigenas ‘que ressaltam 0 “entendimento da infaneia como construcao social que dilere de feultura para cultura” e que se interrogam sobre como consteule etoogratias da Infincia com as erlancas. SILVA, Aracy Lopes da; NUNES, Angela Macedo SILVA "Ana Vera Lopes da (Orgs.). Criancas Indigenas: Ensaios Antropol6glcos. Sto Paulo: | Global, 2002p. 26, __? Bo que pode ser lustrado pelos embatestedricos travadios no interior dos es acerca da desenvolvimento human reunides naforma delivro pelos conferencistas onvidados ¢ 08 organizadores do V Congresso Brasileiro de Psicologia do Deseo ‘volvimento, promovido pelo Instituto de Psicologia da USP, entre 8e 10 desetembro 4462005. Nesta publicacao, Vera Vasconcellos em seu artigo “Uma visio prospectiva ddedesenvolvimentoem que presente esté sempre recriando a passado” inicla um didlogo confrontante com uma proposta/resumo lancada anteriormente, na qual a Psicologia do desenvolvimento ¢ claramente associada a ideia de uma sequencla ert toa Irvodurto © 2 ordenada de estagios ede desenvolvimento previsfel. In: COLINVAUX, Dominique; LEEITE, Luci Banks; DELAGLIO, Débora Dalbosco (Orgs). Psicologia do Desencol ‘mento: reflexdes ¢ préticas atuals Sdo Paulo: Casa do Psicdlogo, 2006, p 64 ' Ver Resolugio CNE/CEB n© 3/2005 ~ MEC, que define normas nacionals para a at pliagdo do Ensino Fundamental para nove anos de duraga0 organiza as etapas de fensino conforme as faixas etdrias previstas ea duracao do ensino antecipadas. Ver também BERNSTEIN, Basil A Estratuardo do Discurso Pedagdgico: classe, c6igos ce controle. Petrépolis, RJ: Vozes, 1996, i -Os personagens conceituais’ In: DELEUZE, Gilles; GUATTAR ‘Alosota? Rio de Janeleo: Ea, 1992, p. 85. * Idem, p.86, © Tomo este termo de Deleuze, A reteritoriallzacfo comporta um movimento de salr de tum terrtério ese re-situar em outro; ou sea, significa um deslocamento territorial |. Felix. O.que 6 ° Tomamos de Jorge Larroswo entendimento do termo fexperiéncia°tal como ele 0 cexpressa no trecho: “Para entender la eategorfa de experiencia hay que remontarse ‘los tiempos anteriores aa clencia moderna (con su especifica definiiin del cono- ‘imiento) y ala soctedad mercantil donde se consttuy6 la defincién moderna de la vida) Durante sigs e saber humano ha sido entendido como un pdihei mathos, ‘como un apredizage en y por el padecer, em: por aquello que-a-uno te pasa. Ese ‘es el saber de experiencia el que se adquiere el modo como yno va respondiendo ‘2 lo que va pasando a ib largo de la vida y el que va conformando lo que uno es. Eeperentia significa salir hacia afuera y pasar a través" In LARROSA, Jorge. La ‘experiencia de la lectura. Barcelona: Laerts, 1998, p. 23. de Janeiro: Forense Universitario, 2008, p14 % DELEUZE, Giles. Prouste os signas. Ri

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